O Conselho Disciplinar Regional do Sul (CDRS) da Ordem dos Médicos recusa explicar por que motivo ‘engavetou’ o processo disciplinar relativo a dois cirurgiões do Hospital de Faro acusados, desde Abril de 2023, de um conjunto de negligências graves.
O despacho de acusação confidencial a que o PÁGINA UM teve agora acesso — tem data de 23 de Julho de 2024, ou seja, mais de 14 meses — e propõe suspensões de 12 meses para o cirurgião Pedro Cavaco Henriques e de seis meses para o antigo director de serviço de Cirurgia, Gildásio Martins dos Santos, ex-presidente da Administração Regional de Saúde (ARS) do Algarve e vogal do Conselho Nacional do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).

Contactado pelo PÁGINA UM, a ausência de explicações sobre a fase processual e os motivos do atraso são justificados pelo CDRS, liderado por Diogo Pais, por obra e graça do “princípio da presunção da inocência [que] deve ser salvaguardado”. Um argumento que contrasta com a postura da Ordem dos Médicos que durante a pandemia divulgava publicamente a simples abertura de processos disciplinares por delito de opinião, expondo e estigmatizando médicos que manifestavam visões críticas das políticas sanitárias oficiais.
Neste caso, porém, as acusações contra Pedro Henriques e Gildásio Martins dos Santos não se prendem com opiniões, mas com acções clínicas. E muito graves porque estiveram e estão em causa vidas humanas. O despacho de acusação, assinado pelo relator Vítor Rocha, é de uma severidade invulgar, apenas justificável pela gravidade dos erros descritos.
Num relatório de cerca de 150 páginas — que analisa uma dezena de intervenções cirúrgicas e ainda a divulgação ilícita de dados clínicos da denunciadora, a médica Diana Pereira —, o relator evidencia perplexidade quanto à conduta ética e técnica dos arguidos. Sublinha que a ausência de autocrítica, humildade e rigor técnico de Pedro Henriques pode transformar o acto cirúrgico em fonte de dano, e a autoridade hierárquica de Martins dos Santos num instrumento de abuso.

No caso concreto de Pedro Henriques, embora o relator reconheça que é “comprovadamente detentor de formação avançada em cirurgia colo-rectal”, assinala que o cirurgião revela “uma ignorância extrema da anatomia e das técnicas cirúrgicas, o que lhe dá muito pouco sentido crítico”.
Num balanço devastador, o relator adverte ainda que, quando se alia “o pouco respeito pela integridade do outro” à violação reiterada do princípio hipocrático primum non nocere, “o resultado pode ser catastrófico”.
O despacho recorda que devem existir sempre limitações ao exercício da actividade cirúrgica: a primeira, “intrínseca”, radica “na excelência da formação técnica e humana e no sentido de autocrítica”; a segunda, “institucional”, decorre do “controlo hierárquico e da avaliação do erro”, nomeadamente através da análise inter pares das complicações e da mortalidade operatória. Sem essas salvaguardas, alerta o relator, “o sistema clínico degrada-se e coloca em risco a vida dos doentes”.

Vítor Rocha insiste ainda na humildade e cooperação como condições essenciais à aprendizagem médica. “Para que seja possível ao cirurgião evoluir através do erro, é fundamental ter a humildade necessária para o reconhecer e, depois, o analisar em conjunto com os seus pares”, escreve, sublinhando que só assim se pode corrigir falhas e melhorar a prática clínica. “Há uma característica humana que deve ser comum a todos os médicos — a compaixão e o sofrimento comum por aqueles que sofrem e precisam de ajuda médica”, acrescenta.
O relator lamenta que, no exercício do contraditório, “em momento algum o Dr. Pedro Henriques reconhece os erros e as complicações”, algumas das quais “graves e que produziram sequelas irreversíveis”. Nota ainda que essa recusa se deveu “à sua obstinação cirúrgica validada pelo director de serviço [Martins dos Santos]”, comportamento que considera “contrário ao mais elementar bom senso e altamente censurável para um cirurgião”.
O relatório descreve também falhas reiteradas nos registos clínicos e a violação do dever de documentar ocorrências intra-operatórias, o que impediu a correcta identificação das negligências denunciadas. Segundo o despacho, os dois médicos “não cumpriram este dever de registo, de forma reiterada em todos os casos avaliados”, configurando um ilícito disciplinar por violação do artigo 40.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.

Em matéria de confidencialidade, a acusação é igualmente severa. O relator demonstrou que “o Dr. Pedro Henriques acedeu efectivamente à Plataforma de Dados de Saúde e consultou informação pessoal e clínica da participante [Diana Pereira]” sem autorização, e que o director de serviço, “Dr. Martins dos Santos, publicou e partilhou efectivamente, no dia 21 de Abril de 2023, no grupo WhatsApp criado para os médicos do Serviço de Cirurgia I, o relatório médico referente à consulta a que a participante compareceu”.
O objectivo seria denegrir a imagem pública da médica denunciadora — uma acção que ecoou depois em notícias do Expresso, usadas para desacreditar as suas denúncias. O despacho conclui que ambos violaram o dever de sigilo e acederam indevidamente a dados de saúde, “preenchendo, em abstracto, o tipo de crime de violação de segredo previsto no artigo 195.º do Código Penal”.
Nesta linha, Vítor Rocha censura duramente Gildásio Martins dos Santos, lembrando que, sendo “assistente graduado sénior e director de serviço de um hospital universitário”, tinha o dever acrescido de garantir qualidade e segurança na prática cirúrgica. Contudo, “não explicou o motivo das complicações [cirúrgicas] nem a forma de as evitar”, preferindo “um ataque permanente de carácter à participante [Diana Pereira], tentando fazer passar a ideia de insanidade mental desta”.

No fecho do despacho, o relator conclui que os dois médicos “agiram voluntária e conscientemente, não respeitando as normas deontológicas a que estão adstritos, havendo negligência grosseira e até dolo eventual”. Considera, assim, demonstrada “má prática médica e imperícia”, esta última apenas imputável a Pedro Henriques.
Apesar de o relatório propor suspensões de 12 meses para Pedro Henriques e de seis meses para Gildásio Martins dos Santos, a decisão permanece sem homologação 15 meses depois.
Recorde-se que, no mês passado, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) propôs apenas 40 dias de suspensão para Pedro Henriques, estando o processo disciplinar de Gildásio Martins ainda pendente. Paralelamente, este último moveu um processo judicial contra Diana Pereira, reclamando 172 mil euros de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes das denúncias.

Contactado pelo PÁGINA UM, o presidente do SIM, Jorge Roque da Cunha, afirma “manter plena confiança pessoal e institucional no Dr. Gildásio Martins dos Santos, dirigente sindical com mais de 35 anos de serviço sem qualquer mácula”. Recorda que o antigo director de serviço “chegou a ser suspenso [preventivamente] pela Ordem dos Médicos, decisão entretanto anulada nessa mesma sede”, acrescentando que “também o inquérito da IGAS relativo aos factos denunciados foi arquivado”.
Saliente-se, no entanto, que o arquivamento da IGAS não é definitivo, uma vez que decorrem ainda processos no Ministério Público. “Neste contexto, entendemos que cumpre respeitar os mecanismos próprios de justiça e de regulação, não cabendo ao sindicato antecipar julgamentos nem retirar legitimidade a quem continua a desempenhar funções representativas”, conclui Roque da Cunha.