Mais de três semanas depois do acidente no Elevador da Glória, que lançou novamente a sombra sobre a segurança em Portugal — e perante um vergonhoso manto de obscuridade que remete o relatório para as calendas e esconde tudo sob o conveniente segredo de justiça —, a pergunta essencial permanece sem resposta oficial: por que razão colapsou o cabo de tracção?
Não basta, como têm feito a Carris e a Câmara Municipal de Lisboa, remeter o caso para investigações administrativas ou debates pós-eleitorais. É necessário explicar de forma transparente, com informação completa e assumpção de responsabilidades.

A Carris, quer na actual administração liderada por Pedro Bogas, quer na anterior, chefiada por Tiago Lopes Farias, não pode continuar no silêncio nem recusar a divulgação de contratos que deveriam ser públicos. E o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que deveria ser garante de segurança, não pode permanecer numa espécie de coma regulatório, indiferente ao escrutínio público.
Mas há, ainda assim, aspectos que já se sabem e que são fundamentais para compreender o que poderá ter estado na origem do desastre. Primeiro: até 2022, o cabo do Elevador da Glória era de alma de aço. A mudança para um cabo com alma de fibra ocorreu nesse ano, ainda sob a presidência de Tiago Lopes Farias, e justamente no mês anterior à sua saída.
Antes dessa substituição, os cabos utilizados cumpriam a norma europeia EN 12385-8, que estabelece os requisitos técnicos para cabos de aço usados em transporte de pessoas por funiculares. Depois de 2022, ninguém sabe — ou ninguém quer esclarecer — se o cabo de alma de fibra possuía ou não certificação compatível com as normas harmonizadas da União Europeia para transporte de pessoas. O silêncio sobre este ponto é, por si só, revelador.

Segundo: tanto os cabos com alma de aço como os cabos com alma de fibra têm uma característica fundamental — possuem resistência à tracção suficiente para suportar cargas muito superiores às que lhes eram exigidas em serviço no Elevador da Glória. Traduzindo: o cabo jamais romperia por esforço de tracção em condições normais. Logo, se o cabo colapsou, não foi por “partir” como um fio de corda velho, mas sim porque se soltou do seu encaixe.
Ora, aqui entramos num domínio ainda mais técnico: o das terminações dos cabos. No caso do Elevador da Glória, a selagem é, em termos simples, o coração da segurança — ainda mais sabendo agora que o sistema de travagem era absurdamente inoperacional. É nesse encaixe metálico, denominado bucha cónica ou socket (soquete), que as dezenas de fios de aço que compõem o cabo são presos, por meio de cunhas ou resinas.
Quando a selagem é perfeita, a resistência atinge praticamente a do próprio cabo — ou seja, por aí jamais haveria acidente. Porém, se existirem falhas de montagem, má escolha do tipo de cabo ou envelhecimento do material, a selagem pode transformar-se num ponto frágil, iniciando-se uma ruptura lenta: um processo que começa com pequenos deslizamentos internos, invisíveis a olho nu, até ao colapso total. Ora, o colapso repentino ocorreu cerca de um ano após a substituição do último cabo e, portanto, da criação desse encaixe metálico.

Para perceber a vulnerabilidade deste ponto, importa explicar como se faz a selagem — e muito bem o mostrou o jornalista Carlos Enes, na CNN Portugal, a partir de imagens da empresa alemã Carl Stahl GmbH, especializada em tecnologia de guindastes e elevadores. Primeiro, a extremidade do cabo é destrançada e cuidadosamente limpa, expondo fios e alma. Depois, o conjunto é introduzido numa bucha metálica em forma de cone. Segue-se a fixação, através de um de dois métodos principais.
No método mecânico, insere-se uma cunha que, sob tracção, comprime os fios contra a parede do cone: quanto maior a carga, maior o aperto. No método químico — que será o utilizado neste tipo de ascensor —, a bucha é cheia com resina epóxi ou, em versões clássicas, com metal fundido, que endurece e encapsula todos os fios, criando um bloco sólido. Finalmente, deve ser feita uma prova de carga para garantir que a selagem resiste à tracção máxima prevista.
Quando tudo é feito segundo as regras, a terminação é tão forte como o próprio cabo. Mas quando algo corre mal — seja pela má preparação dos fios, pelo uso de uma bucha inadequada ou pela escolha errada do cabo — cria-se um ponto crítico onde a falha pode ocorrer.
Os engenheiros que lidam com sistemas de tracção sabem que os pontos de amarração — onde o cabo entra no soquete — são os mais sensíveis. Aí concentra-se a fadiga por flexão, aí se inicia a ovalização que abre caminho a quebras de fios, aí se manifesta a incompatibilidade entre o tipo de cabo e a geometria da selagem. Se não houver ensaios prévios de carga, se não se verificar se existem ou não alongamentos anómalos durante os dias de serviço, o sistema pode parecer seguro até ao dia em que, subitamente, cede. Ou seja, o cabo não rompeu por fadiga de aço: deslizou do soquete.
É precisamente aqui que importa desfazer um equívoco que alguns poderão alimentar para desviar atenções. Quem pense que, tratando-se de um ascensor histórico, estes aspectos técnicos poderiam ser menorizados, sob a alegação de que quem “mandava” era o instituto público Património Cultural — que sucedeu ao IPPAR e ao IGESPAR —, desengane-se. Isso é areia atirada para os olhos dos ingénuos. O encaixe metálico, por exemplo, é uma operação de elevada responsabilidade técnica — não uma soldadura improvisada por um curioso, mas uma selagem que exige materiais certificados, controlo de processo e ensaio de resistência segundo norma europeia.
Em sistemas de transporte público de pessoas, mesmo que em veículos históricos, tudo está subordinado a normas europeias de segurança. No caso dos cabos de aço, a norma de referência é a EN 12385-8; no caso das terminações e soquetes, a EN 13411-4; no caso da liga metálica das buchas, são exigidas especificações estruturais de aços forjados como C45, S355 ou 42CrMo4, constantes das normas EN 10250 e EN 10025.

O primeiro é um aço carbono médio, robusto mas simples, usado em peças de solicitação intermédia; o segundo, um aço estrutural de baixa liga, com limite de escoamento mínimo de 355 MPa (megapascal), combina ductilidade e soldabilidade com resistência adequada; o terceiro, uma liga de crómio-molibdénio (Cr-Mo) de alta performance, oferece elevada dureza e resistência à fadiga, sendo indicada para componentes críticos de segurança. É, pois, evidente que a escolha do material e da certificação não pode ser secundária nem deixada à arbitrariedade de quem executa a obra.
Perante este quadro, as hipóteses plausíveis para o acidente do Elevador da Glória são três. A primeira hipótese: o problema estava no cabo. E aqui importa esclarecer que, no contexto de funiculares e ascensores desta natureza, os cabos com alma de aço são preferíveis aos cabos com alma de fibra. A alma de aço garante maior estabilidade dimensional, reduz a deformação sob carga cíclica e oferece melhor resistência ao esmagamento nos pontos de amarração. Já a alma de fibra, embora mais flexível e com melhor capacidade de retenção de lubrificante, pode retrair-se sob tensão prolongada e ceder progressivamente em ambientes húmidos ou sujeitos a variações térmicas, criando espaços internos que diminuem a eficácia da ligação no soquete e favorecem o deslizamento.
A segunda hipótese é que o problema tenha residido no material usado no soquete: se, em vez de um aço forjado de tenacidade comprovada como o C45, o S355 ou o 42CrMo4, foi utilizada uma liga inadequada, ou se o enchimento foi feito com resina não certificada ou mal curada, a fixação ficou condenada desde o início.

A terceira hipótese é a de erro humano na instalação, seja na preparação deficiente do cabo, sem a abertura e desfiamento adequados dos fios antes da inserção no cone, seja na execução apressada do enchimento — que pode não ter penetrado devidamente entre os fios —, seja ainda em falhas de controlo dimensional.
Não se pode excluir, claro, que o desastre do Elevador da Glória resulte da conjugação de dois ou mais destes factores: um cabo de alma de fibra menos adequado, um soquete fabricado ou enchido com materiais questionáveis e uma instalação executada com erros de método. E quando factores técnicos frágeis se somam a falhas de fiscalização e de ensaio, o resultado torna-se inevitável: um sistema vulnerável, que cedo ou tarde acabaria por falhar.
Mas há algo ainda mais grave: em qualquer cenário, o acidente revelou falhas incompreensíveis de manutenção e de fiscalização. É sabido que a fadiga ou o deslizamento progressivo de um cabo no soquete podem ser detectados com ensaios periódicos — testes não destrutivos, medições de deslizamento, verificações de integridade interna com equipamentos adequados. Aparentemente, nada disto foi feito. O regime de manutenção da MNTC parece ter-se limitado a uma rotina burocrática de verificações visuais — um olhómetro e relatórios de circunstância —, deixando de fora aquilo que é verdadeiramente essencial: ensaiar, testar, certificar.

O caderno de encargos para a manutenção concebido pela Carris seria apenas anedótico, se não fosse trágico pela ausência de exigências técnicas. Essa fragilidade permitiu à MNTC esmagar o preço base para quase metade e ganhar um concurso sem sequer saber substituir o cabo, como era exigível. De facto, tudo indica que o encaixe metálico terá sido executado na paragem regular do Elevador da Glória por técnicos da própria Carris, entre Agosto e Setembro de 2024.
E, como complemento desta sucessão de irresponsabilidades e obscurantismo, constata-se agora um dado de pasmar: nunca ninguém testou a hipótese de um colapso súbito do cabo para verificar se os sistemas de travagem responderiam de forma eficaz. Andou-se convencido de que existiria sempre um “segundo paraquedas” pronto a actuar, quando afinal não havia paraquedas nenhum. O Elevador da Glória do século XXI era um sistema assente na fé, não na redundância técnica — uma confiança ingénua de que o improvável jamais aconteceria.
Certo é que, independentemente da origem última — e teme-se que se vá atribuir responsabilidades a um qualquer funcionário da Carris, um “marido da culpa” que acaba sempre em parte incerta —, estamos perante uma sucessão de falhas que não podem ser reduzidas a um inquérito interno ou a um relatório técnico para um incerto julgamento e eventuais indemnizações.

Este não é apenas um episódio de falha mecânica; é uma falência institucional. E se a Carris não esclarece, se o IMT não fiscaliza, se a Câmara Municipal de Lisboa se refugia em discursos de pesar, resta-nos concluir que os cidadãos são transportados em veículos cuja segurança depende mais da sorte do que da técnica e da regulação.
As últimas semanas têm mostrado, mais uma vez, a atitude dos políticos e gestores perante os erros: um muro de silêncio. Mas esse muro fala demasiado alto: fala da arrogância das administrações que se julgam acima do escrutínio; fala da impotência dos reguladores que preferem esconder-se em vez de agir; e fala da cultura da opacidade que domina tantas empresas públicas, onde os cidadãos são tratados como intrusos sempre que ousam pedir transparência.