Mais flexíveis mas mais vulneráveis na amarração: cabos de alma de fibra foram escolha de um professor de Engenharia Mecânica


Foi um professor catedrático de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico (IST), Tiago Lopes Farias, que decidiu em Abril de 2022, um mês antes de deixar a presidência da Carris – que ocupou durante seis anos – substituir os tradicionais cabos de tração do elevador da Glória – e dos outros ascensores – passando de alma de aço por cabos com alma de fibra. E foi ele próprio, mais um dos seus vice-presidentes, quem assinou o contrato com a Sociedade de Aprestos por Navios, de acordo com documentos a que o PÁGINA UM teve acesso.

Qual a razão desta alteração, Tiago Lopes Farias mantém um comprometedor silêncio. Aliás, apesar de inúmeros especialistas e investigadores do IST já se terem pronunciado sobre o desastre de 3 de Setembro, este professor catedrático – que esteve durante cerca de seus anos à frente da Carris e teve outros cargos em empresas públicas no sector dos transportes – mantém um comprometedor silêncio.

Tiago Lopes Farias foi presidente da Carris entre 2016 e Maio de 2022. Foi ele que assinou o contrato que mudou a tipologia dos cabos dos ascensores. Não respondeu sobre os motivos técnicos dessa escolha, apesar de ser professor de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico.

O PÁGINA UM questionou Tiago Lopes Farias, através de e-mail, sobre os fundamentos da troca dos cabos em 2022, sobre a existência de pareceres técnicos que sustentaram a mudança, se foram realizados ensaios de fadiga e de durabilidade antes da instalação, se houve comparação da vida útil dos dois materiais em condições reais de operação e se a alteração partiu da Carris ou foi sugerida pelo fornecedor. Nenhuma destas perguntas obteve resposta.

A troca do cabo de alma de aço por cabo de alma de fibra não reside, segundo apurou o PÁGINA UM, na resistência à tracção, porque aí são praticamente semelhantes, se cumprirem as normas europeias de segurança. A diferença poderá estar no comportamento distinto sobretudo no ponto mais sensível: a zona de amarração, onde o cabo é fixado por terminais, grampos ou cunhas. É nesse local que se concentram esforços e curvaturas e onde se inicia, na maior parte das vezes, situações de degradação, por vezes lenta, que pode levar à ruptura ou ao deslizamento.

O processo de amarração do cabo, que devem ser substituídos a cada cerca de dois anos, consiste em prender o cabo de forma a que este não deslize nem se solte, transmitindo toda a carga ao terminal. No caso de cabos com alma de aço, o núcleo metálico ajuda a manter a geometria interna e distribui parte das tensões, resistindo melhor ao esmagamento provocado pela pressão do terminal.

Foto: D.R.

Já nos cabos com alma de fibra, como o núcleo é deformável existe o risco de processos de ‘compactação’ ao longo do tempo, o que, a ocorrer, reduz o diâmetro do cabo, criando folgas internas e permitindo micro-movimentos dos fios exteriores. Esses movimentos não causam uma falha imediata – e, portanto, não é detectável no momento da substituição do cabo –, mas funcionam como uma espécie de ‘corrosão’ mecânica invisível, acumulando desgaste até gerar uma zona de fragilidade crítica.

Caso suceda, como é uma hipótese plausível no acidente do elevador da Glória, o risco pode manifestar-se de duas formas. A primeira é o deslizamento lento: à medida que a alma de fibra se acomoda, a pressão do terminal deixa de ser suficiente para garantir a fixação, e o cabo pode começar a ceder milímetro a milímetro até perder totalmente a ancoragem. A segunda é a ruptura progressiva: os fios exteriores, sobrecarregados porque o núcleo não absorve esforços, vão sofrendo fadiga, partindo-se um a um até que o conjunto já não resiste à carga e colapsa subitamente. Ambos os processos podem ser demorados, desenvolvendo-se ao longo de meses – e pior: sem sinais visíveis até à iminência do acidente.

Primeira página do contrato assinado por Tiago Lopes Farias que escolheu o cabo de alma de fibra, com boa resistência à tracção, mas mais vulnerável na zona da amarração.

É por isso que, segundo especialistas consultados pelo PÁGINA UM que preferem o anonimato, os manuais técnicos e normas europeias, como a EN 12385-8, insistem que a escolha da alma do cabo não se deve limitar à resistência nominal, mas ao comportamento em serviço real, com destaque para a zona de amarração. A ciência dos materiais destaca, aliás, que falhas como as que terão ocorrido no elevador da Glória, raramente são instantâneas: começam com pequenas deformações internas, prossegue com micro-movimentos repetidos, instala-se com a fadiga acumulada e termina num colapso que, quando ocorre, já não pode ser evitado.

Um presidente da Carris com formação em Engenharia Mecânica ou os departamentos de segurança e manutenção da empresa municipal tinham a obrigação de ter noção destes riscos? A resposta pode ser dada pelo senso comum – que já pouco vale para as 16 vítimas mortais.