Será que nem com 16 mortes a opacidade dos (ir)responsáveis termina?


Três semanas após o acidente do Elevador da Glória, já não se pode falar de um mero incidente mecânico, de uma avaria técnica resolúvel com melhor manutenção, troca de peças e relatórios de ocasião. O que se revelou foi, acima de tudo, a imagem de um Estado em falência: simultaneamente mau gestor e mau regulador — incapaz de assumir a função preventiva e independente que lhe caberia, reduzindo a fiscalização ao mínimo, quando não a zero, apenas para não ter trabalho.

O Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que deveria certificar, inspeccionar e fiscalizar, preferiu refugiar-se em legislação dúbia. A Câmara Municipal de Lisboa, tutora política da Carris, limita-se a discursos de circunstância, como se não tivesse qualquer dever de escrutínio — e cujo expoente máximo foi a hipócrita convocatória de uma reunião extraordinária no dia seguinte às eleições autárquicas.

Já a administração da própria Carris, que gere estes equipamentos centenários, parece considerar que os cidadãos são intrusos e os jornalistas incómodos sempre que se exige transparência, ou seja, sempre que se pede documentação que deveria estar disponível no Portal Base.

Nas últimas semanas, todos se têm escondido atrás das próprias falhas e fazem de tudo para diluir responsabilidades, como se a degradação de um símbolo histórico de Lisboa fosse apenas um acaso técnico sem culpados.

Mas aquilo que está em causa não é apenas perceber porque é que um ascensor secular, que deveria ser motivo de orgulho patrimonial e de confiança para quem o utiliza, falhou de forma tão grave. Está em causa saber se a Carris, a sua administração nos últimos anos — que incluiu, entre 2016 e 2022, Tiago Lopes Farias, professor de Engenharia Mecânica do Técnico — e o próprio IMT cumpriram os mínimos deveres de prudência e responsabilidade na substituição do cabo e na manutenção dos veículos.

Tiago Lopes Farias, professor do Instituto Superior Técnico de Engenharia Mecânica, foi presidente da Carris entre 2016 e Maio de 2022: foi no seu mandato que se mudou as características do cabo do elevador da Glória. Porquê: a administração actual da Carris, liderada por Pedro Bogas, não explica. Foto: IST.

Até agora, apesar das manifestações públicas de pesar e promessas de colaboração, o silêncio tem sido a regra. Não se conhecem oficialmente os contratos celebrados para a aquisição e instalação dos cabos; não estão acessíveis os cadernos de encargos que deveriam fixar as especificações técnicas; não há qualquer prova de ensaios de carga ou de resistência realizados após a instalação. Nada. A Carris escuda-se agora na investigação criminal.

Este comportamento é inaceitável numa empresa pública, financiada por dinheiros públicos e que presta um serviço público. O Portal Base, onde por lei devem estar publicados os contratos, permanece mudo. E a administração da Carris, à semelhança de tantas outras do sector dos transportes, invoca interpretações inaceitáveis — e ilegais — para não colocar ali os documentos. Depois do acidente, e após até ter tentado enganar jornalistas com uma minuta forjada, a Carris tem a obrigação moral de publicar tudo: contratos, especificações técnicas, justificações da escolha do cabo.

Não se trata de uma curiosidade de jornalistas ou académicos. Trata-se do direito dos cidadãos a saberem em que condições circulam equipamentos que transportam pessoas todos os dias. Se a administração não é capaz de agir com decência cívica, só lhe resta a demissão — caso contrário, permanece um perigo social à frente de uma empresa desta natureza.

Yellow tram ascends a steep cobblestone street.

Mais grave ainda é a ausência de qualquer prova de fiscalização independente por parte do IMT, cuja presidência se mantém em silêncio. Como é possível que um regulador com a responsabilidade de zelar pela segurança da mobilidade nunca tenha realizado inspeções regulares a um equipamento com mais de um século? Como é admissível que, depois da substituição de um cabo crítico, não tenha havido um ensaio público, documentado e sujeito a escrutínio técnico? Se o IMT existe apenas para carimbar o que as empresas entregam, então não é regulador: é cúmplice.

Não é difícil perceber o que se quer esconder. Há fortes indícios de que a Carris alterou as especificações técnicas entre 2020 e 2022, optando por cabos mais baratos e menos resistentes. É crucial perceber as razões dessa transição, nomeadamente a passagem de um cabo com alma de aço para outro com alma de fibra — e se essa decisão comprometeu directamente a segurança do ponto de amarração.

Essa alteração pode explicar a falha que originou o acidente, mas só a documentação — contratos, especificações técnicas, relatórios de ensaio — o pode confirmar. Não chega depender de fugas e documentos parciais. É preciso transparência total.

Actual Conselho de Administração da Carris.

Depois do trágico acidente de 3 de Setembro, Lisboa e o país não podem tolerar esta cultura de opacidade. Um acidente num funicular não é apenas um problema de engenharia: é um problema de confiança. Os lisboetas e turistas que diariamente utilizavam o Elevador da Glória têm o direito de saber se quem gere transportes públicos cumpre padrões de segurança ou se apenas poupa dinheiro à custa da vida humana.

O que este episódio mostra, mais uma vez, é a tendência nacional para abafar falhas em vez de as enfrentar. Não há relatório independente, não há dados públicos, não há transparência. Há apenas a expectativa de que uma investigação criminal politizada sirva para apaziguar a indignação, que os cidadãos esqueçam e que a imprensa se distraia.

Não basta que a Carris assegure que “alguém está a investigar”. É preciso abrir os arquivos, publicar contratos, expor cadernos de encargos, justificar opções técnicas, explicar porque não houve ensaios e, sobretudo, assumir responsabilidades. E é preciso que o IMT deixe de ser figurante, esclarecendo porque nunca fiscalizou, porque nunca exigiu ensaios, porque se limitou a confiar na palavra da operadora.

Se nada disto acontecer, teremos o retrato cru do país: um país onde os acidentes não servem para aprender mas apenas para enterrar, onde a gestão pública se faz de silêncio e encobrimento, e onde “regulação” é apenas um eufemismo para a abdicação do dever de proteger os cidadãos.

Este editorial não é um apelo. É uma exigência. A Carris, o IMT e a tutela política têm de prestar contas. Porque não se trata de parafusos ou cabos abstractos. Trata-se de vidas humanas, de confiança pública, de património que é de todos.