Cabo de aço do elevador da Glória custou 7.783 euros em 2020, mas Carris decidiu depois ‘poupar uns cobres’


A Carris gastou, em Agosto de 2020, apenas 7.783 euros na compra do cabo de aço que literalmente sustentava o Elevador da Glória. Dois anos depois, em Março de 2022, já em vésperas da entrada em funções da actual administração liderada por Pedro Bogas, decidiu “poupar” e adquiriu um cabo de menor qualidade, com alma de fibra, por um custo unitário 43% inferior. O barato poderá ter saído bem caro, com 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos no desastre de 3 de Setembro passado.

De acordo com facturas e notas de encomenda a que o PÁGINA UM teve acesso — e perante a incompreensível recusa da Carris em disponibilizar documentos que deveriam estar há anos no Portal Base —, tudo indica que a empresa municipal julgou poder “poupar uns cobres” optando por cabos com menos aço.

Acidente de 3 de Setembro causou a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

Na primeira metade de 2020, a Carris adquiriu à empresa ExtraCabos, com sede em Paio Pires, cabos certificados para uso em elevadores de passageiros, com alma de aço (IWRC), configurados para garantir boa resistência à compressão e maior durabilidade à fadiga provocada pelo contínuo dobrar e desdobrar nas polias.

Essa opção seguia a prática consolidada no sector dos transportes e o espírito da norma europeia EN 12385-8, que admite diferentes tipos de núcleo, mas cuja aplicação em transporte de passageiros tem levado, por regra, à utilização de alma metálica, pelo nível de segurança exigido. Para assegurar essa conformidade, a Carris pagou mais 6.000 euros pela certificação, garantindo o cumprimento das regras específicas para transporte de pessoas.

Tanto para o cabo do Ascensor da Glória como para o do Lavra, tratava-se de um modelo específico para transporte de passageiros, em aço galvanizado, com 32 milímetros de diâmetro e resistência de 1770 N/mm², cumprindo a norma EN 12385-8. Era um cabo 6×19 Seale IWRC, isto é, seis pernas com 19 fios cada, assentes sobre uma alma de aço independente, garantindo maior robustez e segurança. A carga mínima de ruptura (CRM) era de 662 kN, cerca de 67 toneladas-força. Para o Glória foram fornecidos 276 metros, ao preço unitário de 28,20 euros, num total de 7.783 euros (sem IVA).

Em 2020, a Carris ainda comprou cabos com alma de aço e certificação EN 12385-8.

Porém, em 2022, a Carris optou por uma solução distinta: cabos com alma de fibra (CF). À primeira vista, o diâmetro era o mesmo (32 mm), com CRM de 662 kN — equivalentes a cerca de 66 toneladas-força. Apesar de teoricamente suficiente para suportar as solicitações estáticas de um funicular, especialistas ouvidos pelo PÁGINA UM explicam que a questão crítica não é a resistência bruta, mas sim o comportamento em serviço.

A alma de fibra — que, ao contrário do que escreveu erradamente o Expresso, só começou a ser usada em 2022, já no mandato de Carlos Moedas, e não em 1999, ainda no tempo de Fernando Medina — oferece menor resistência à compressão, maior alongamento e degrada-se mais rapidamente sob flexão repetida: exactamente o esforço a que estão sujeitos os ascensores históricos lisboetas.

Além disso, ao contrário de 2020, a Carris não terá solicitado à fornecedora Sociedade de Aprestos para Navios, então ainda no Cais do Sodré, a certificação segundo a norma europeia. A decisão, em Março de 2022, foi da anterior administração, liderada por Tiago Farias, curiosamente doutorado e professor em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico.

Cabos mais baratos, menos resistentes e sem garantia de certificação foram comprados apenas a partir de 2022: a Carris nem sequer quer agora explicar as explicar as decisões de um passado recente.

“O problema destes cabos não é a força de ruptura, mas sim a fadiga. Um cabo com alma de fibra perde estabilidade mais depressa quando sujeito a ciclos repetidos de flexão — e isso é precisamente o que acontece nos funiculares da Glória, Lavra e Bica”, explicou ao PÁGINA UM um engenheiro de materiais com experiência em certificação de cabos de tracção.

O argumento económico também ajuda a compreender a escolha. Entre 2020 e 2022 os preços das matérias-primas, sobretudo do aço, dispararam devido sobretudo à pandemia e à guerra da Ucrânia. Seria de esperar que os cabos de aço para elevadores históricos se tornassem mais caros. Mas os documentos mostram o inverso: em 2022 a Carris comprou cabos mais baratos por metro do que em 2020, apesar da conjuntura adversa.

Nesse ano foram adquiridos 1.000 metros de cabos de 32 mm, suficientes não apenas para a substituição de 2022 mas também para a de 2024, dado que o Glória necessita de 276 metros e o Lavra de 188.

Carlos Moedas, com a ministra do Ambiente e o presidente da Carris, ao fundo, no anúncio da Carris da formalização da candidatura da empresa para fornecimento de 15 elétricos, em 28 de Junho de 2024.
/ Foto: CML/ D.R.

Em suma, ao mudar a especificação técnica, a Carris reduziu o custo por metro de 28,20 euros para 16,05 euros — uma poupança de 43% a preços nominais, mas sacrificando a durabilidade e o desempenho. “É uma poupança ilusória. Os cabos de fibra custam menos à cabeça, mas duram metade do tempo, e isso talvez não tenha sido ponderado quando se atribuiu a durabilidade prevista”, nota a mesma fonte.

A diferença entre cabos com alma de aço (IWRC) e cabos com alma de fibra (CF) é crucial. Os primeiros oferecem maior resistência à ruptura, menor alongamento e duram mais sob esmagamento em polias e tambores, sendo por isso os mais indicados para sistemas de transporte de passageiros como os funiculares e acensores.

Já os segundos — mais baratos e flexíveis, mas menos robustos — são adequados a guinchos, gruas de oficina ou sistemas auxiliares, mas não a equipamentos que puxam “trambolhos” como os ascensores de Lisboa. A capacidade de ruptura sobretudo em zonas sensíveis de ligação pode cair entre 7% e 10% face a um cabo equivalente com alma de aço.

Logo após o acidente, o PÁGINA UM pediu repetidamente à Carris documentação sobre as compras de cabos. A administração, que inicialmente prometeu fornecer todos os elementos, passou a recusar, invocando que decorrem inquéritos do GPIAAF e do Ministério Público.

Confrontada com os documentos relativos às aquisições de 2020 e 2022 — estes últimos usados, em princípio, na substituição de 2024 e que romperam em Setembro —, a Carris respondeu que “os elementos e a documentação, referidos nas perguntas, abrangem um período alargado que começa em 2020”, apesar de se tratar apenas de duas ou três compras em seis anos. E acrescentou que, por estarem em curso os inquéritos, “neste momento não nos podemos pronunciar sobre estas matérias”. Uma justificação que se tornou, afinal, uma conveniente desculpa para obscurecer um processo que exigia transparência absoluta.

O PÁGINA UM também contactou a empresa Sociedade de Aprestos para Navios, agora com sede em Alcântara – que terá fornecido os cabos em uso aquando do acidente – no sentido de saber se estes cumpriam as normas europeias, mas não foi ainda possível falar com nenhum responsável.