A imprensa em estado terminal e os ‘paninhos quentes’ da academia

A close-up of a stack of newspapers resting on a desk, symbolizing information and media.

A leitura do mais recente relatório do Media Pluralism Monitor sobre Portugal não surpreende ninguém que acompanhe a realidade mediática portuguesa. O que surpreende, isso sim, é a forma como a academia – ou, mais precisamente, a visão exclusiva do Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa (ICNOVA) – continua a insistir em cobrir com véus técnicos aquilo que já não passa de um cadáver político e económico em decomposição. A cada edição, o relatório adopta uma linguagem anestesiada, quase eufemística, que tenta reduzir a meros “riscos médios” aquilo que é, na verdade, uma implosão sistémica.

O documento fala em “risco médio-alto” para a pluralidade de mercado, em “risco alto” para a inclusão social, e em “risco médio-baixo” para a protecção fundamental. Palavras medidas, pintadas em tons pastéis, como se a academia tivesse medo de nomear a falência. Falar em “risco médio-alto” é um eufemismo que se presta a maquilhar um colapso estrutural.

Foto: PÁGINA UM

Portugal tem hoje uma paisagem mediática em que o Estado é simultaneamente regulador, financiador e accionista de peso. É dono de 95,9% da Lusa, controla a RTP por via de contratos de concessão caducados que se arrastam sem escrutínio, e dita as regras orçamentais da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Esta última, na prática, fecha os olhos a promiscuidades, à publicidade encapotada, a irregularidades contabilísticas, mas nunca hesita em assumir uma sanha persecutória contra quem não se ajoelha perante o seu poder discricionário.

Esta promiscuidade institucional recorda um ditado antigo: não se pode ser árbitro, jogador e dono da bola ao mesmo tempo. Em Portugal pode. E, o que é mais grave, a ICNOVA não só não denuncia o problema como aplaude discretamente, contribuindo para legitimar um Plano de Acção para os Media que, sob pretexto de apoiar o sector, mais não faz do que criar mecanismos de subjugação.

O relatório, em todo o caso, não deixa de apontar que a criminalização da difamação continua a ser um dos problemas centrais: jornalistas podem, em pleno século XXI, ser condenados a prisão por “ofensas à honra”. Eis a democracia portuguesa: uma democracia que protege mais o decoro das elites do que a liberdade de informar. Pior ainda, continua a faltar legislação anti-SLAPP – normas destinadas a travar processos judiciais abusivos cujo único objectivo é silenciar jornalistas e investigadores. E aqui a omissão é gritante: se há algo que mina a liberdade de imprensa em Portugal são precisamente esses processos persecutórios, utilizados por elites políticas, médicas e empresariais como armas de intimidação.

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Foto: D.R.

Basta olhar para a realidade concreta. Na próxima semana inicia-se, no Porto, a primeira audiência de julgamento intentada pelo médico Gustavo Carona contra mim, em que me são imputados 31 crimes – pasme-se, incluindo críticas literárias satíricas que fiz a um dos seus poemas ou por lhe ter chamado “Braveheart de Leixões” durante a pandemia.

Em Outubro, será a vez de eu enfrentar um processo ainda mais grandioso, intentado pelo Almirante Gouveia e Melo, pela Ordem dos Médicos, pelo ex-bastonário Miguel Guimarães (hoje deputado do PSD) e por médicos como Filipe Froes e Luís Varandas.

A seguir, chegará outro processo em que, representados pela mesma sociedade de advogados, alinham a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos, a APIFARMA e novamente Miguel Guimarães. Enquanto isso, a ERC entendeu impedir a análise em Conselho Regulador (que implicaria uma deliberação) a ameaça de processo judicial que um advogado me fez antes mesmo de eu ter publicado uma notícia, mas abriu prontamente um processo administrativo contra o PÁGINA UM depois de um jornalista da CNN Portugal ter ‘exigido’ que o jornal fosse encerrado.

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Foto: D.R.

Quantas linhas dedica o relatório do ICNOVA a esta realidade concreta? Nenhuma. Não há qualquer referência às sistemáticas recusas de entidades públicas em cederem informação e documentos administrativos, que, por exemplo, obrigam o PÁGINA UM a recorrer sistematicamente aos tribunais administrativos, sendo que entre as entidades pouco transparentes estão a própria ERC e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ). Ah, e as intimações ou vegetam por anos a fio, ou, quando despachadas pelos tribunais administrativos, são amiúde pura e simplesmente ignoradas pelas entidades públicas visadas.

Não há uma linha sobre este ‘cancro’ na liberdade de imprensa, porque a academia prefere medir riscos em escala abstracta, ignorando a prática quotidiana de bloqueio e intimidação.

Na frente económica, a análise académica limita-se a repetir aquilo que qualquer redacção conhece de cor. A imprensa tradicional está à míngua, os freelancers sobrevivem com recibos verdes pagos a meses de atraso, e os grandes grupos navegam em águas turvas de concentração accionista. Impresa, Media Capital, Cofina e RTP dominam o mercado, enquanto a Global Media definha depois das aventuras com fundos sediados em paraísos fiscais.

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Foto: D.R.

E o tão celebrado Portal da Transparência da ERC, apresentado como uma conquista civilizacional, não passa de uma anedota, um arquivo incompleto, que serve mais para legitimar a opacidade do que para iluminá-la. Apesar disso, o relatório atreve-se a classificar este campo como de “baixo” ou “médio-baixo risco”. É uma anedota. Para os autores, numa democracia só seria grave se os jornalistas fossem presos em plena rua ou alvejados na redacção. O quotidiano de precariedade, manipulação e opacidade não entra no radar.

Talvez, contudo, o maior embuste metodológico resida na avaliação da independência política como de “baixo risco”. É difícil encontrar afirmação mais absurda. A RTP consome mais de 200 milhões de euros anuais, com cerca de mil jornalistas em quadro; a Lusa funciona como agência noticiosa estatal; e a ERC permanece cativa do duopólio PS-PSD, que decide em jantares privados quem deve presidir ao regulador e que ordens deve ou não executar. Onde está aqui a independência? O que existe é um teatro de sombras: em palco recitam-se versos constitucionais sobre liberdade e pluralismo; nos bastidores, as cordas são puxadas por partidos e governos.

E chegamos ao ponto mais devastador: a exclusão social e cultural. O relatório classifica este campo como de “alto risco”, o único onde parece acertar. É verdade que as mulheres continuam afastadas dos lugares de decisão editorial, que as minorias surgem nas páginas sobretudo como problemas policiais ou estatísticos, e que os media locais sobrevivem à conta de subsídios que apenas prolongam a agonia. Mas mesmo aqui, a leitura é superficial. Porque a exclusão não é apenas social ou cultural: é estrutural. A exclusão é consequência de um modelo falido que se recusa a assumir uma evidência: Portugal não tem condições para manter um parque mediático tão numeroso, deficitário e dependente de promiscuidades.

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Foto: D.R.

Este retrato, pintado com pinceladas suaves no relatório europeu, merecia traços fortes e carregados. A imprensa portuguesa encontra-se capturada, subfinanciada, dependente e desigual. Vive de subsídios pontuais, da publicidade encapotada das autarquias, de contratos de serviço público mal desenhados e da complacência de reguladores que se comportam como cúmplices. O resultado é um ecossistema em que jornalistas mal pagos competem com comentadores políticos generosamente remunerados, em que a notícia factual é substituída pela opinião, e em que a sobrevivência financeira depende mais do favor governamental do que da confiança dos leitores.

Não surpreende, por isso, que os cidadãos desconfiem cada vez mais da imprensa. Não surpreende que as audiências fujam para o ruído digital, mesmo sabendo que aí a desinformação impera. O que surpreende é a passividade com que relatórios como este preferem suavizar problemas estruturais. Há anos que a precariedade, a promiscuidade, a exploração e a opacidade foram normalizadas. A academia prefere medir riscos em escalas técnicas, como se fosse possível graduar a decomposição de um cadáver.

A verdade é simples e crua: a imprensa portuguesa não está apenas em risco. Está em estado terminal. E os paninhos quentes académicos não escondem o cheiro da decomposição.