Morte ao estranho

black Corona typewriter on brown wood planks

PIRÓMANOS I Em todos nós jazem pensamentos. Alguns são incendiários: morte ao estrangeiro, ao estranho, ao emigrante. Morte ao preto, ao amarelo, ao cor de burro quando foge. Morte ao grande capital, morte ao lagarto, dragão ou lampião. Morte ao monhé, ao zuca, ao agiota, ao corrupto. Morte ao diferente. Todos diferentes, todos iguais é um slogan de humanistas. Onde andam eles? Este grito de guerra é o resultado da ameaça. É ancestral. O temor da perda dos direitos adquiridos, da territorialidade, da pátria. Em nome de Deus mata-se. Um crítico literário pode matar um autor apenas imbuído de maldade. Há a pequena velhacaria e o mal intrínseco. O que é o Mal? É uma tentação de aniquilar o que não nos agrada.

UM LUGAR ao SOL I Até pode chover, caírem sapos da estratosfera, canivetes suíços e estrelas cadentes, bolas de fogo incandescentes. Onde estou os caminhos bifurcam-se como em todos os lugares. Tomo a estrada menos percorrida, a do meu encontro com o call of the wild. Perdi a conta aos kms e nem sei quanto dista uma milha. Andam por aí peregrinos de bordão e emigrantes a voltar à terra. Há montes e vales. Trilhos sinuosos, mais ainda se no bucho houver um vinho branco do meu homónimo Cabaço numa taberna a cheirar a alecrim. Estou no hemisfério Norte e ambos os parietais confluem numa realidade palpável. Estou longe de lugar algum empobrecido por falta de astro-rei. Na barriga tenho a cabeça cheia de sabores, odores e uma observação meticulosa do voo das aves, do baloiçar dos carvalhos e oliveiras. A embriaguez lúcida de que não é preciso um maná de mais do que um banho de Natureza.

VEREDICTOS I Não é de agora o costume de fazer desenhos sobre fulano e beltrana. Desde a articulação de sons que os há, os bitates. Há até um ofício semiprofissional: calhandreira(o). Isto dito entre uma passa, um golo (de xerês) ou no decorrer da novela ou do noticiário. Que é bêbedo, que bate nas mulheres, que mija fora do penico, que mete a unha e a mão no pertence alheio, que pega de empurrão, que é um suíno ou bácoro, ou mesmo uma vaca e megera ou pêga de arribação, que se morder a língua lhe dá um treco, que só pensa nele ou nela, que vade retro. Pois bem, a violência não é só doméstica. E no domo, até chegar ao crime, há o castigo de levar com a sarna. No lugar de seguir o princípio de que se estão mal, mudem, as vítimas e carrascos atordoam-se até ao dobrar dos sinos pelo mais fraco. Agora tocou ao Sousa Tavares, o cronista ferino, ser alvo da situação que ficará entre a putativa calúnia, difamação e injúria, e um fundo de verdade fruto do mau feitio e da pena assanhada. Toca a todos. O veredicto do público armado em júri.

CATATAUS I É positivo ter um espírito crítico construtivo. Antes, porém, contudo, todavia, é preciso começar pela conduta pessoal. Erros meus, má fortuna, amores ardentes. Deve haver um fundo camoniano e pessoano em cada um. E não há espiga se houver tentações. Cair nelas, é atiçar o fogo, como se atiçam os hímenes. Depois, é aguentar a bronca e lidar com ela(s) ou eles, se as labaredas desatarem no períneo. Fazer de conta que se é uma coisa e praticar outras é o paradoxo a evitar.

DO NOJO I A banalização da escrita pública cria juízes de pacotilha como quem solta ares ao vento. Estou a falar de tudo um pouco (da facilidade de recorrer ao insulto e difamar, injuriar e caluniar). Mas vou escrever umas linhas sobre o nojo da Comunicação Social (alguma) e de quem vem agora cilindrar o Miguel Sousa Tavares enquanto homem e marido. Primeiro, se toda a gente falasse com verdade da sua vida íntima não sobraria uma alma imaculada. Depois, alguém que o responsabiliza pela morte da TC acareou o Miguel ou lhe abriu um processo sendo o que acusam um crime público? Vão dizer que não o fizeram por medo. Por ser o Miguel. Mas é mais grave do que isso. É porque a violência está em toda a parte. Recalcada, cabotina e escondida no esterco das redes sociais. E de alguma CS reles e ordinária.

VIDAS I Tudo na Vida (mineral, vegetal, animal…) está ligado, nem que seja por fios invisíveis. Quando Lobo Antunes diz eu hei-de amar uma pedra atinge o auge da simbiose. Amar o que não se manifesta por actos e palavras, mas na perenidade, na imobilidade serena. Se tudo é impermanência – até na erosão de uma pedra – o Amor, esse grande vocábulo da esperança de unificação, permite viver apontado a um fim maior do que a própria satisfação. O Amor não divide para reinar. Quando o Amor é cego (e não só o amor conjugal) leva ao conflito. O conflito nasce da frustração. É a chama da raiva. Na Vida ganhamos e perdemos. Em última instância perdemos a vida. É uma perda de tempo lidar com calhaus ou deixarmos embrutecer a possibilidade de refinamento na tentativa de moldar o que não nos agrada. Há que polir o diamante que porventura estará oculto em todos nós. Tudo o que existe à face ou no miolo da terra. Até nos pântanos nascem flores. Ou mesmo no Universo sideral.

ISRAEL I Fui a Israel duas vezes, em contextos distintos. A primeira visita fi-la sozinho em 2003. Fui revistado e interrogado mal passei o guichê dos passaportes. Tinha um passaporte novo, emitido por conta de carimbos de entrada na Síria e no Líbano. Levaram-me para uma sala e três marmanjos com cara de poucos amigos perguntaram-me o que fazia eu ali. Disse que vinha ver uma amiga. Que amiga? Uma amiga. Judia? Sim, judia (podia ser cristã ou muçulmana). Porque carga de água tinha a Estrela de David tatuada no pulso esquerdo? Não é a estrela de David mas o Selo de Salomão, retorqui. E porque levava livros sobre a Cabala? Porque a estudava e estudo, já agora, numa perspectiva de entendimento retrospectivo. Lá me deram guia de marcha, desconfiados da amiga ser a Dorit Rabinyan (nem mencionei que ia para casa do Meier Shalev). Nessa viagem ouvi de tudo um pouco, discursos acesos e sionistas e por defender a causa justa Palestiniana (sem o recurso ao terror) fui posto a andar do kibutz onde pernoitei no intuito de escrever com conhecimento de causa.
Na segunda visita fui com a comitiva da Cristina e o tapete vermelho do fado. Já tinha A Escada de Istambul publicada em hebraico, mas nem assim pude reunir-me com o editor da Kinneret ou frequentar o mundo literário. Aguardo uma ida. Foi um ritual de passagem. Faço tours para judeus e israelitas cá no burgo e realço as injustiças do passado. Todas as injustiças me interessam. Matar à fome ou ajustar contas segundo a lei de Talião é uma delas. Repudio todos os massacres de inocentes, tal como um punhado de amigos israelitas que zarparam de Israel até ali haver uma Democracia.

Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

As ilustrações foram elaboradas com recurso a inteligência artificial.