Lisboa de luto: 15 mortos e um sistema que nunca paga pelos seus erros


Quinze mortos, dezenas de feridos, turistas em pânico, comércio local paralisado. Lisboa está de luto, e por mais do que um dia. O descarrilamento do Elevador da Glória não foi um acidente no sentido puro da palavra. Foi uma tragédia anunciada, consequência directa da irresponsabilidade estatal, do desleixo burocrático e da lógica perversa de um sistema que vive do assalto ao contribuinte e nunca presta contas.

Desde finais de Agosto que o contrato de manutenção e segurança caducara. Não havia substituto, não houve sequer um ajuste directo para garantir serviços mínimos. O funicular histórico, símbolo da cidade, circulava sem cobertura contratual de manutenção quando o cabo de sustentação partiu. A carnificina não foi uma surpresa: foi a consequência inevitável de um Estado que funciona sem responsabilidade real.

A história desta tragédia começa em 2017, quando a Carris foi municipalizada e transferida do Estado central para a Câmara de Lisboa. O discurso foi o habitual: proximidade, gestão de proximidade, mais controlo democrático. Na prática, significou apenas que a Câmara passou a usar a empresa como um instrumento político e como sorvedouro de fundos.

Em 2022, o globalista Carlos Moedas nomeou Pedro Bogas presidente da Carris. Nesse mesmo ano, a manutenção dos elevadores históricos foi externalizada para a empresa MAIN – Maintenance Engineering, através de concurso público. O trabalho passou a ser feito por subcontratação, afastando os trabalhadores internos que conheciam as máquinas e que sempre tinham garantido a sua manutenção.

Dois anos depois, em 2024, realizou–se a última grande intervenção. Os trabalhadores continuaram a alertar para falhas, denunciaram problemas nos cabos de sustentação, pediram que a manutenção regressasse a casa. Foram ignorados. A 31 de Agosto de 2025 caducou o contrato. Não havia manutenção, não havia segurança. Três dias depois, o Elevador da Glória despenhou–se.

Contudo, nada mudará. A Carris não é uma empresa privada sujeita ao veredicto do mercado. É uma vaca sagrada do poder político. Desde 2017 é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa. Em termos claros, o “dono” político da tragédia chama–se Carlos Moedas. Mas esse não sofrerá consequência alguma. Nenhum gestor público verá a sua carreira destruída, nenhum administrador perderá a casa para pagar indemnizações, nenhum político responderá em tribunal até ao fim da sua vida. O contribuinte, o assaltado, sempre ele, pagará a conta.

Os números não deixam margem para dúvidas. A Carris recebe todos os anos cerca de trinta milhões de euros em subsídios à exploração. Entre 2020 e 2024, só para tapar o buraco estrutural da operação, foram quase cento e cinquenta milhões extorquidos aos residentes em Lisboa. A isto somam–se cento e quarenta e três milhões em subsídios ao investimento para frota e infra–estruturas, canalizados por fundos europeus e pelo Orçamento de Estado. Ao todo, quase trezentos milhões de euros em cinco anos. Dinheiro em catadupa, mas que não chegou para garantir a manutenção mínima de um funicular centenário.

Aqui reside a diferença fundamental entre um accionista privado e um “accionista público” como a Câmara Municipal de Lisboa. O privado vive sob a disciplina férrea do mercado. Se um operador privado permitisse a morte de quinze pessoas por negligência, seria imediatamente arrasado pelo risco reputacional.

Pedro Bogas, presidente da Carris.

Os turistas e residentes deixariam de usar os seus serviços. As indemnizações civis seriam devastadoras, as seguradoras rescindiriam contratos, a falência seria inevitável. O accionista privado veria a sua fortuna arruinada, passaria os próximos anos nos tribunais, perseguido até ao fim da vida por processos judiciais e execuções patrimoniais. É essa a lógica saudável do mercado: quem falha paga, e paga caro.

O “accionista público”, pelo contrário, é imune. A Câmara Municipal de Lisboa não enfrenta risco reputacional: não há concorrência, não há alternativa. O “cliente” é obrigado a usar o serviço subsidiado, e a conta é paga por todos através dos impostos – um eufemismo para designar um assalto.

As indemnizações não saem do bolso dos administradores nem dos políticos: saem do bolso do contribuinte. O desastre não significa falência, significa mais impostos, mais subsídios, mais inquéritos que nunca dão em nada.

Conselho de Administração da Carris.

O presidente da Câmara aparece agora nas televisões com ar compungido, mas são lágrimas de crocodilo. Hoje chora frente às câmaras, amanhã já estará a procurar a próxima inauguração, a próxima fotografia, o próximo vídeo nas redes sociais, para se promover. Trabalhar, resolver, assumir responsabilidades não é com ele.

É um indivíduo que vive do saque e precisa de garantir os próximos quatro anos de carreira. Pedro Bogas continuará a dormir como um bebé de um ano, os administradores da Carris prosseguirão as suas carreiras douradas, e o ciclo recomeçará. A irresponsabilidade não tem preço para quem manda, porque o preço é sempre empurrado para os bolsos dos contribuintes – os eternos assaltados.

O cinismo é total. Depois da tragédia, alguém teve a ousadia de declarar que “os protocolos foram cumpridos”, quando na prática não havia protocolos em vigor desde o primeiro de Setembro. Eis a lógica degenerada da gestão pública: proteger-se com burocracia enquanto corpos jazem no chão.

Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

Os trabalhadores tinham avisado que a manutenção externalizada em 2022 não tinha o rigor da realizada internamente. Tinham alertado para os cabos de sustentação. Tinham exigido que a Carris reassumisse o controlo técnico. Foram ignorados; no fim, a narrativa oficial é a de que “tudo estava em ordem”.

Não nos iludamos também quanto aos sindicatos, que se apresentam agora como voz da moralidade. Os sindicatos não são santos: são cartéis de trabalhadores com poder legal, capazes de impor condições de exclusividade salarial ou de protecção profissional, mesmo a quem não está sindicalizado. Ao contrário do empresário privado, que só sobrevive se alguém comprar voluntariamente o seu produto ou serviço, o sindicato usa a arma da lei para forçar terceiros. É a perversão legal transformada em regra.

people riding yellow tram on road near building during daytime

Este desastre é a metáfora perfeita do funcionamento do Estado. O Estado não presta contas. O Estado não assume riscos. O Estado não responde às vítimas. No privado, o erro significa falência. No público, o erro traduz-se em mais impostos. Cada tragédia é convertida em argumento para reforçar orçamentos, pedir mais dinheiro, alargar a eterna roubalheira. A disciplina do mercado castiga o erro; o regime estatal recompensa-o.

Lisboa está de luto, mas devia estar furiosa. Furiosa com um presidente da Câmara que é o responsável político máximo e que continuará intocável. Furiosa com uma empresa que em cinco anos devorou trezentos milhões de euros e não assegurou a manutenção mínima de um símbolo da cidade. Furiosa com um sistema que rapina os contribuintes e devolve cadáveres. Furiosa com a mentira de que “o público é de todos”, quando na realidade não é de ninguém.

Há ainda as externalidades negativas que ninguém contabiliza. O turismo em Lisboa sofrerá inevitavelmente com este desastre. Quem confiará a vida a uma cidade que deixa descarrilar um funicular? Os negócios em redor do Elevador da Glória verão menos clientes, menos movimento, menos receitas.

houses near sea

Em qualquer mercado livre, esses negócios processariam a empresa responsável por negligência, reclamando indemnizações pelos danos sofridos. Aqui, não. Aqui o prejuízo espalha-se, os danos diluem-se, e a factura regressa sempre ao contribuinte.

A tragédia do Elevador da Glória não foi apenas um acidente. Foi o Estado em funcionamento puro: rios de dinheiro, incentivos perversos, sindicatos cartelizados, manutenção cancelada, protocolos inexistentes e responsabilidades nulas. A máquina política já trabalha para transformar a morte de quinze pessoas em mais um álibi para reforçar o orçamento. Os contribuintes, os eternos confiscados, lá estarão outra vez a pagar tudo. Mas tenhamos esperança: o governo já declarou um dia de luto nacional.

Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.