Fraude científica: como a Ordem dos Médicos se deixa usar para manter uma narrativa falsa


Este é um exemplo perfeito — e por isso alarmante — de como a Ciência pode ser instrumentalizada para fins políticos e narrativos, ainda por cima com o selo de uma instituição centenária. Um artigo publicado esta semana na (suposta) revista científica Acta Médica Portuguesa, detida pela Ordem dos Médicos (e dirigida pelo seu bastonário, Carlos Cortes), assinado por Filipe Froes e dois co-autores — um dos quais uma antiga jornalista do Sol , Marta Reis que, durante a pandemia, promoveu ‘médicos influencers‘, incluindo o próprio Froes — constitui um caso acabado de fraude científica por omissão, por manipulação retórica e por abuso da autoridade institucional.

O seu objectivo é claro: manter viva a ideia de que a pandemia de covid-19 foi, em Portugal, uma tragédia sanitária sem precedentes — mesmo que os dados, se bem analisados, desmintam essa tese. A fraude torna-se ainda mais grave quando se percebe que este texto foi redigido sem qualquer rigor metodológico e com laivos panfletários, sendo usado para alimentar peças na comunicação social, nomeadamente no Expresso, sem qualquer escrutínio jornalístico ou científico. A promiscuidade está à vista.

Filipe Froes (ao meio) foi mandatário de Carlos Cortes (segundo a contar da direita) nas (duas últimas) eleições para bastonário da Ordem dos Médicos.

Sob o título “Janeiro de 2021 e a COVID-19 em Portugal: o mês mais mortal desde 1919”, o artigo pretende convencer-nos, numa sucessão de frases vagas e comparações grotescas, de que o impacto da pandemia em Portugal rivaliza com o da gripe espanhola, que teve o seu auge em 1919. A narrativa começa pela cronologia: 1.150 dias de pandemia, de Março de 2020 a Maio de 2023, 26.655 mortos atribuídos à COVID-19, com um pico de 5.805 óbitos em Janeiro de 2021.

Estes números até poderiam ser discutidos — e devem sê-lo —, mas o problema fundamental reside noutro ponto: o artigo carece por completo de metodologia científica minimamente exigível para uma publicação académica. Não houve análise estatística, não houve padronização etária, não houve controlo por variáveis confundentes, não houve enquadramento comparativo internacional, não houve sequer uma discussão crítica sobre causalidade. Se em Ciência isto não é aceitável, andar ainda com estes simplismos enviesados em 2025 nem sequer é admissível como panfleto.

Pior ainda: o texto exibe uma retórica inflamada, de tom quase propagandístico, tentando ligar de forma forçada os números de Janeiro de 2021 à “introdução da variante Alfa” e ao “período pós-festas”, numa tentativa artificial de justificar os dados brutos. Mas estes números, mesmo em termos absolutos, não são contextualizados.

Filipe Froes e António Diniz foram activos médicos influencers durante a pandemia. Marta Reis, licenciada em Comunicação Social, foi jornalista do i e do Sol durante o período pandémico, passando para a assessoria do Ministério da Saúde em Setembro de 2022, antes de passar para a comunicação da ULS de Lisboa Ocidental.

O país, em 2021, tinha mais do dobro da população de 1918, muitíssimos mais idosos e, como é sabido, uma estrutura etária profundamente envelhecida. Jamais se pode comparar mortalidade total entre dois anos tão longínquos sem o devido enquadramento. Aos autores não lhes interessou analisar as taxas de mortalidade por grupo etário, porque verificariam que mesmo em 2021 — no ano de maior incidência da covid-19 — a taxa de mortalidade até nos maiores de 85 anos foi inferior à que se registava, para o mesmo grupo etário, em 2010. Se a mortalidade absoluta foi elevada, foi porque aumentou a esperança média de vida ao longo das últimas décadas — e tivemos uma nova doença a atingir uma população idosa nunca antes tão numerosa.

Ainda assim, os autores proclamam e insistem, sem vergonha, que “Janeiro de 2021 foi o mês mais mortal desde 1919”, como se uma contagem absoluta de óbitos, sem qualquer ajustamento demográfico, pudesse ser levada a sério num artigo científico. Num panfleto mediático de 2021, até aceito que sim. Agora, numa revista que se quer científica, em 2025, isto é uma inqualificável vergonha para qualquer bastonário que queira apagar os anos de Inquisição do Miguel “Torquemada” Guimarães. Uma revista científica aceitar um título destes é desprestigiante.

Note-se, aliás, que a única taxa apresentada no suposto artigo de Froes & Ca. — 1.216 óbitos por 100 mil habitantes em 2021 (e usar essa unidade é descaradamente populista e nada científica, porque a norma é utilizar-se óbitos por mil habitantes, o que daria 12,16) — é, de facto, a mais elevada desde 1957. Mas este valor, sendo relevante, não demonstra qualquer singularidade catastrófica, nem permite associar de forma directa a mortalidade à covid-19. A generalidade da mortalidade de 2021 resulta de múltiplos factores: idade da população, adiamentos de tratamentos, colapsos hospitalares, atrasos em diagnósticos e assistência médica não-covid. Nenhum destes elementos é sequer mencionado no artigo.

Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica.

Além disso, um qualquer epidemiologista decente não trabalha jamais apenas com taxas de mortalidade total, porque sabe, ao contrário do inefável Froes & Ca., que em Epidemiologia facilmente se observa o chamado efeito de Simpson, ou paradoxo de Simpson. Este é um fenómeno estatístico em que uma tendência observada no total de um conjunto contraria as tendências verificadas nas suas partes.

Em termos simples, pode acontecer que a mortalidade global de uma população aumente, ao longo de um determinado período, mesmo quando as taxas de mortalidade de todos os grupos etários — incluindo os mais vulneráveis — estão a diminuir. Esta inversão aparente resulta de mudanças na composição interna da população: se, por exemplo, aumenta significativamente o número de pessoas idosas, que apresentam naturalmente maior risco de morte, o total de óbitos tenderá a subir (e a taxa global também), mesmo que o risco individual em cada faixa etária esteja a baixar.

Este fenómeno é particularmente visível em países com envelhecimento demográfico acelerado, como Portugal. Nas últimas décadas, apesar de se registarem reduções consistentes das taxas de mortalidade específicas em todos os grupos etários, incluindo nos maiores de 85 anos, a mortalidade total anual tem vindo a crescer. Assim, sem uma leitura desagregada por idades ou sem o uso de taxas de mortalidade padronizadas, corre-se o risco de interpretar como agravamento aquilo que, na verdade, é um progresso disfarçado por uma ilusão estatística.

A única virtude do artigo é mostrar a quantidade de conflito de interesses de Filipe Froes e de António Diniz com a indústria farmacêutica da pandemia. Curiosamente, quando esteve nas sucessivas intervenções televisivas, Froes jamais falou destas ligações. Nem ninguém na comunicação social ‘mainstream’ lhe perguntou.

A manipulação mais grave, no entanto, reside na forma como os autores seleccionam e interpretam os dados de internamento hospitalar. O artigo apresenta longas tabelas com o número diário de camas ocupadas por “internamentos covid”, em enfermaria e em cuidados intensivos, no período entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021. Froes & Ca. sugerem que estes dados ilustram uma pressão sem precedentes sobre o Serviço Nacional de Saúde.

Mas omitiram — de forma deliberada — um dos paradoxos mais reveladores de toda a pandemia: os dados do Instituto Nacional de Estatística mostram que, entre 2020 e 2022, o número total de internamentos hospitalares em Portugal foi inferior ao registado em anos anteriores, bem como o número global de dias de internamento. Ou seja, o sistema hospitalar teve, em termos agregados, menos actividade assistencial do que em anos pré-pandemia.

Esta contradição factual — que qualquer investigação científica séria teria de abordar — é ignorada sem pudor. Pior ainda, os autores falham também em referir o que é hoje reconhecido até por instituições oficiais: muitos dos internamentos classificados como covid foram internamentos por outras patologias, com teste positivo para SARS-CoV-2. Assim, a classificação “internamento covid” inclui, sem distinção, situações clínicas muito diversas mas com teste positivo ao SARS-CoV, mesmo que assintomático.

Mas no artigo da Acta Médica Portuguesa, todos estes casos são apresentados como prova de uma alegada “pressão pandémica” — sem qualquer validação clínica ou segmentação por gravidade. Esta é mais uma omissão grave. Na prática, o que se apresenta como “carga pandémica” pode ter sido, em larga medida, uma reclassificação administrativa de internamentos ordinários, inflacionando os números e alimentando o alarme público.

Carlos Cortes, bastinário da Ordem dos Médicos, é também director da Acta Medica.

A ausência de dados sobre o número total de camas hospitalares disponíveis no SNS, ou sobre o número de camas convertidas temporariamente em unidades de cuidados intensivos, é assumida no artigo como limitação — mas essa mesma limitação não impede os autores de fazer afirmações categóricas e de grande peso político e mediático. Isto não é ciência, é retórica institucional disfarçada de artigo científico.

Mais inquietante é a forma como os autores rejeitam todo o escrutínio científico, escudando-se em “dados oficiais” como se isso lhes conferisse imunidade epistemológica.

Um dos autores, Filipe Froes, conhecido pelo seu papel mediático durante a pandemia, declara — vá lá! — abertamente ter recebido pagamentos, honorários e colaborações com mais de uma dezena de farmacêuticas, incluindo as principais promotoras de vacinas e de antigripais de eficácia questionável. Não é ilegal, mas torna-se eticamente insustentável que um artigo sobre o impacto da pandemia — coincidente com o início da vacinação em massa — seja publicado sem qualquer crítica ao papel da vacinação, sem referência a efeitos adversos ou à mortalidade em vacinados, ou sem cruzamento com dados de cobertura vacinal. A omissão é gritante e reveladora.

E a quem cabe a responsabilidade por validar este artigo? À Acta Médica Portuguesa, a revista científica da própria Ordem dos Médicos, dirigida por Carlos Cortes que teve Filipe Froes como seu mandatário nas duas eleições. A revista aceita, publica e legitima um texto curto, como se fosse científico, sem qualquer revisão metodológica visível, sem discussão científica substantiva e, pior ainda, com um objectivo claro de reforçar uma narrativa já amplamente desacreditada na literatura internacional.

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Trata-se pois de um uso impróprio de uma plataforma institucional, e uma revista científica, para validar politicamente uma leitura histórica enviesada dos anos pandémicos. A revista da Ordem dos Médicos deveria ser um bastião da integridade científica — mas, neste caso, foi cúmplice de (mais) uma operação de propaganda.

E, mais uma vez, a comunicação social desempenha aqui um papel vergonhoso: o Expresso, jornal generalista e membro activo do circuito mediático da pandemia, noticiou o artigo sem qualquer filtro crítico, transformando-o em mais um tijolo no edifício da desinformação institucional. Não se perguntou pela ausência de revisão estatística. Não se questionou o conflito de interesses. Não se inquiriu a Ordem dos Médicos sobre a razão de aceitar um artigo tão frágil. Ao contrário: publicou-se com o mesmo entusiasmo reverente com que, em tempos, se noticiavam previsões alarmistas do Imperial College ou números de testes da DGS, sem verificação nem contraditório. O jornalismo falhou — de novo. E os “anos loucos da pandemia” já passaram: convém elevar os padrõezinhos!

Aquilo que este caso demonstra, em toda a sua crueza, é que a pandemia criou um circuito fechado entre Ciência, política e comunicação social, onde os papéis de validação se sobrepõem e confundem. A autoridade da Ordem dos Médicos é usada para garantir o verniz científico; os autores coniventes (por vezes mercantilmente ligados a farmacêuticas) continuam a fornecer uma narrativa conveniente; os media amplificam sem questionar; e a opinião pública é conduzida como gado bem-comportado. Não há Ciência nisto — apenas um simulacro dela.

Num país sério, este artigo seria motivo de inquérito interno por parte da Ordem dos Médicos, e a revista Acta Médica Portuguesa teria de rever os seus critérios editoriais. Num país sério, jornalistas confrontariam os autores com as omissões metodológicas e os conflitos de interesse. Num país sério, os dados oficiais seriam cruzados com outras fontes, com análises independentes e com dúvidas saudáveis. Mas Portugal, neste campo, não tem sido um país sério.

Sem análise crítica, o jornal que se arroga de referência publica tudo como se houvesse novidade e sem contexto crítico. Hoje, é fácil meter uma ‘notícia’ no Expresso.

A fraude científica não se faz apenas com dados falsos. Faz-se também com dados verdadeiros apresentados de forma enviesada, com omissões de outros dados por causas intencionais e estratégicas, com gráficos sugestivos, com títulos sensacionalistas — e, sobretudo, com a complacência das instituições. É este o caso. E é preciso dizê-lo com todas as letras.

A pandemia acabou, mas a manipulação continua perene. E quem deveria defender a verdade científica, neste caso, quer ainda enterrá-la — de bata branca e logótipo ao peito.