Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge manipula índice de calor extremo após prever catástrofe (que não aconteceu)

O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), tutelado pelo Ministério da Saúde, recusa justificar por que motivo manipulou esta terça-feira os valores do Índice ÍCARO — um modelo estatístico usado para estimar o excesso de mortalidade provocada por calor — e também se escusa a explicar os pressupostos científicos, técnicos e metodológicos que sustentam os números publicados.

A alteração dos dados, feita sem qualquer nota explicativa, foi realizada poucas horas depois de o PÁGINA UM ter divulgado, na noite de segunda-feira, as previsões inéditas — e alarmantes — que o próprio INSA tinha publicado horas antes no portal oficial da Transparência do Serviço Nacional de Saúde.

Fernando Almeida, presidente do INSA: muda previsões catastrofistas e acha que não tem de dar satisfações quando se manipula os números originais. / Foto: D.R.

Segundo os dados então disponíveis, o valor previsto para amanhã, dia 6, atingia 1,57 — o mais elevado alguma vez registado desde que o Índice ÍCARO consta do portal da Transparência do SNS. De acordo com a definição estatística do modelo, tal valor correspondia a um aumento de 157% na mortalidade diária face a condições meteorológicas normais. Traduzido em números absolutos: sendo a média de mortes diárias no Verão de cerca de 280 óbitos, o índice implicaria mais de 720 mortes num só dia, ou seja, mais 440 do que o habitual.

As previsões apresentadas pelas previsões desta segunda-feira também se revelavam extraordinariamente elevadas para ontem (1,21) e para hoje (1,30), o que corresponderia, respectivamente, a 619 e 644 óbitos por dia. Assim, só com base no Índice ÍCARO e nas suas estimativas, o total de mortes para estes três dias seria próximo das duas mil, representando um alegado excesso de mais de 1.100 mortes face à média esperada. Se o modelo estivesse minimamente calibrado, tal cenário equivaleria a uma das maiores crises de saúde pública das últimas décadas.

Contudo, os dados reais rapidamente desmentiram este alarmismo. Segundo os números do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), o total de óbitos registados nesta segunda-feira (307), e até às 20h30 de hoje o número de mortes era de 244, sendo previsível que o valor final fique próximo de ontem. Aliás, convém referir que, do ponto de vista estatístico, só se pode falar de excesso de mortalidade nesta época do ano quando os valores diários ultrapassam os 350 óbitos. Não só tal não se verificou, como os valores se mantêm dentro da normalidade.

Previsões catastrofistas (divulgadas ontem) para os dias 5 e 6 de Agosto…
… foram alteradas poucas horas depois de uma notícia do PÁGINA UM (na manhã de hoje) que indicava que aparentavam ser catastrofistas (e exageradas).

Mesmo assim, ainda antes de qualquer indício de anomalia, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) e a Direcção Executiva do SNS emitiram um comunicado no final da tarde de ontem com um vasto conjunto de recomendações públicas, partindo como ponto de partida das previsões do Índice ICARO. Saliente-se que existe um interesse político para criar uma narrativa de uma onda de calor inédita para justificar a crise dos incêndios que lavram no país desde a semana passada.

O mais grave, porém, nem é o falhanço do modelo, mas sim a facilidade com que se alteram os números originais do Índice ÍCARO sem justificação. De facto, foi apenas na manhã de hoje que os valores do Índice ÍCARO para o início desta semana foram alterados na base de dados pública do SNS. Sem aviso, sem explicação, sem referência a erro. O valor de 1,57 desapareceu, dando lugar a um mais ‘modesto’ 1,01 – que mesmo assim falhará, porque implicaria cerca de 600 óbitos. Para hoje, o valor de 1,30, na previsão de ontem, mudou para 1,07, para a previsão de hoje.

Parece algo irrelevante, mas mesmo sabendo que o INSA não teve coragem para mudar a previsão de ontem para o próprio dia (1,21), fica patente que o índice ÍCARO serve para pouco. De facto, se o modelo de aproximasse da realidade, o valor de 1,21 significaria que 619 óbitos, mas o valor ficou pela metade — e dentro da normalidade.

Ana Paula Martins, ministra da Saúde, tutela o INSA. / Foto: D.R.

Durante esta tarde, o PÁGINA UM contactou três responsáveis públicos, que têm também a incumbência de credibilizarem a Ciência: Fernando Almeida, presidente do INSA; Rita Sá Couto, directora-geral da Saúde; e António Amaral, director-executivo do SNS. Apenas este último respondeu, através do seu gabinete de comunicação, remetendo toda a responsabilidade para o INSA. Os dois primeiros — os directamente responsáveis — mantiveram-se em absoluto silêncio.

O PÁGINA UM colocou questões objectivas e transparentes, como: quais os critérios e variáveis usados na construção do Índice ÍCARO? Que variáveis meteorológicas ou ambientais estão incluídas? Existe alguma componente subjectiva ou ajustável manualmente? Qual o valor considerado no denominador da fórmula de cálculo (isto é, o número de óbitos esperados sem calor)? Como se calcula o numerador (óbitos previstos sob efeito térmico)? A fórmula é fixa ou sofre adaptações semanais? Por que razão os valores previstos foram revistos em poucas horas? Houve erro de cálculo, actualização de dados meteorológicos ou intervenção discricionária? Existe histórico de revisões abruptas? Com que frequência? Qual o impacto prático das previsões? São comunicadas a outras entidades? Que planos públicos são desencadeados com base nestes números e que entidades são avisadas?

A ausência de resposta a todas estas perguntas não é apenas uma falha de comunicação: é um sintoma de opacidade e de irresponsabilidade institucional. O Índice ÍCARO, recorde-se, foi criado em 1999 pelo Observatório Nacional de Saúde do INSA, em colaboração com o IPMA, e baseia-se numa equação simples: estima-se a diferença entre o número de óbitos esperados com efeito do calor e o número médio de óbitos sem calor, com base em séries de temperatura máxima observada e prevista. O elemento central é a chamada “sobrecarga térmica acumulada”, isto é, o número de dias em que a temperatura ultrapassa os 32 graus, ponderado pelo grau de excesso acima desse limiar.

brown grass during sunrise
Foto: D.R.

O modelo, pioneiro no contexto europeu, tinha méritos técnicos, mas assumia desde o início uma lógica catastrofista. No artigo científico que lhe deu origem, publicado na Revista Portuguesa de Saúde Pública, os autores afirmavam já de forma explícita que o sistema foi desenhado para privilegiar a sensibilidade (ou seja, detectar qualquer situação de risco), mesmo à custa da especificidade (evitar alarmes falsos). Citando literalmente: “Num sistema de alerta, não pode sacrificar-se a sensibilidade à especificidade”. Traduzido: o modelo foi concebido para tocar o alarme o mais cedo possível, mesmo que isso signifique errar frequentemente.

Nos últimos anos, o Índice ÍCARO tem sido utilizado como instrumento de apoio à comunicação institucional em saúde pública, mas sem ajustamento às novas realidades clínicas, demográficas ou epidemiológicas. Os valores mais recentes resultam exclusivamente de previsões meteorológicas a três dias e não cruzam qualquer dado com registos de saúde, mortalidade real ou factores sociais de risco.

Além disso, o modelo é opaco: ninguém fora do INSA sabe como funciona em detalhe, nem que peso têm as variáveis, nem como se tratam os dados. E, como agora se comprova, os valores podem ser alterados em poucas horas sem qualquer nota de rodapé — como se não tivessem existido.

Definir medidas de Saúde Pública com base em modelos sem rigor é meio caminho andado para descredibilizar a confiança da população. / Foto: D.R.

Este episódio, em que uma previsão recorde é discretamente apagada e substituída por outra sem explicação, é um grave sinal de degradação da confiança científica e institucional. Quando uma entidade pública altera dados sensíveis sem prestar contas, compromete não apenas a credibilidade do índice, mas a do próprio sistema de saúde pública. E quando jornalistas ou cidadãos pedem explicações e recebem silêncio, o problema já não é apenas estatístico — é democrático.

Num país que em tempos teve Ricardo Jorge como referência de rigor e serviço público, ver o seu nome hoje associado a um sistema opaco e errático é uma ironia amarga. E, mais do que isso, um alerta. Porque há um risco maior do que o calor: o da erosão silenciosa da confiança pública — essa sim, irreversível quando se perde.