Moderna: o colapso de um Ícaro que tocou o sol pandémico


Durante os anos febris da pandemia, o mundo assistiu a um espectáculo farmacêutico de proporções inéditas. Como na antiga fábula de Ícaro, e aproveitando a ideia de que eram empresas beneméritas e salvadoras, diversas farmacêuticas alçaram voo tão alto que chegaram a roçar o sol — ou, mais propriamente, a embater na razão e na prudência, escudadas numa narrativa de urgência que legitimava tudo, até o inadmissível.

Entre estas, a norte-americana Moderna destacou-se como símbolo maior da fortuna repentina, empoleirada sobre uma tecnologia experimental — o mRNA — promovida com ares de milagre científico e embalada por contratos estatais que dispensavam responsabilidades e multiplicavam os lucros.

Os lucros foram, aliás, de uma obscenidade quase teológica. Em 2021 e 2022, sustentada quase exclusivamente pela vacina Spikevax, a Moderna arrecadou lucros de mais de 20,5 mil milhões de dólares, o equivalente a cerca de 18,6 mil milhões de euros — ou 6,7% do PIB português. Antes de 2021, a Moderna apresentava prejuízos sistemáticos.

Este sucesso com um só produto — e a Moderna nem sequer foi a farmacêutica que mais vendeu vacinas contra a covid-19 — teve como base uma vacina que, apesar de alegadamente segura e eficaz, foi testada a correr, aprovada sob regimes excepcionais e vendida a governos com cláusulas de exclusão de indemnização em caso de efeitos adversos.

Tratava-se, dizia-se, de uma emergência — e, como em todas as emergências, os que correm depressa e com bons contactos institucionais colhem primeiro. A Ciência — ou o que dela restava, ou pelo menos a parte que preserva os princípios da prudência — foi empurrada para segundo plano, dando lugar à logística, à política e ao marketing biomédico.

O frenesim chegou também à bolsa. As acções da Moderna, cotadas no índice Nasdaq sob o irónico símbolo MRNA, que antes da pandemia valiam cerca de 25 dólares, atingiram o seu pico histórico a 10 de Setembro de 2021, quando chegaram aos 449,38 dólares — uma subida de cerca de 1.700% num ano e meio. Foi a glória absoluta, o zénite do voo de Ícaro.

Mas desde então a queda tem sido vertiginosa. A 1 de Agosto de 2025, a cotação era de apenas 27,60 dólares — uma queda de 94% face ao pico —, levando a empresa a perder quase toda a valorização obtida durante a pandemia. A capitalização bolsista, que em 2021 superava os 180 mil milhões de dólares, ronda agora os 10,7 mil milhões. Um desmoronamento de proporções mitológicas.

Com o fim do entusiasmo pelos reforços — e a crescente ocultação dos efeitos adversos —, as vendas decaíram. E os prejuízos da Moderna regressaram: 4,7 mil milhões de dólares em 2023 e quase 3,6 mil milhões no ano passado, acompanhados por queda de receitas e poucos sucessos noutras terapias de mRNA.

Evolução da cotação da Moderna com indicação do máximo (449,38 dólares em 10 de Setembro de 2021) e cotação em 1 de Agosto de 2025 (27,60 dólares). Fonte: Google Finance.

O tempo do marketing biomédico terminou com estrondo. A Moderna, que em tempos não sabia como gastar o dinheiro que entrava em catadupa — investindo em laboratórios, fábricas, campanhas, contratações —, tenta hoje salvar-se de um declínio que é estrutural. No segundo trimestre de 2025, a empresa anunciou receitas de apenas 142 milhões de dólares, uma queda de 41% face ao período homólogo, e um prejuízo ajustado de 2,13 dólares por acção — ainda assim, melhor que os 2,97 dólares de prejuízo esperados pelos analistas.

Piores, contudo, são as expectativas para o futuro. James Mock, director financeiro da farmacêutica, procurou suavizar a notícia: parte significativa da receita será reconhecida no terceiro e quarto trimestres, disse. Haverá um pico no outono, sugeriu. Mas reconheceu que o impulso recente veio sobretudo dos reforços de primavera nos EUA e dos cortes de 800 milhões de dólares em custos — um sinal claro de emagrecimento forçado.

Não por acaso, Stéphane Bancel, CEO da Moderna, anunciou na semana passada a dispensa de cerca de 10% da força laboral. A empresa, que no final de 2024 empregava 5.800 trabalhadores, terá menos de cinco mil até ao fim deste ano.

Não se trata apenas de reduzir gordura: é uma amputação cauterizada. E, tal como nas narrativas mitológicas, depois do voo de glória vem a queda abrupta. Bancel justificou a decisão com a necessidade de “disciplinar financeiramente” a empresa e preparar o caminho até 2027. Certo é que as milagrosas vacinas de mRNA — outrora apresentadas como o futuro inevitável da Medicina — já não se vendem como dantes.

O novo produto da empresa — a mRESVIA, dirigida ao vírus sincicial respiratório — está longe de fazer grande sucesso. Até a nova versão da vacina contra a COVID-19, a mNEXSPIKE, obteve apenas uma aprovação restrita: nos Estados Unidos, apenas para maiores de 65 anos ou pessoas com comorbilidades, como sucede com as vacinas sazonais contra a gripe ou a pneumonia. Nada que se aproxime do mercado universal que se quis impor durante a pandemia — com fins meramente mercantilistas.

Perante este cenário, a Moderna volta-se para o futuro — ou melhor, para a promessa do futuro. Fala de vacinas combinadas, de terapias para doenças raras, de oncologia personalizada, de vírus latentes. Projecta investimentos, anuncia regulações em curso, convoca uma visão estratégica. Mas, por mais que se empunhem termos como “disrupção”, “inovação” e “resiliência”, os dados impõem um regresso à realidade: sem uma nova emergência sanitária (fabricada ou não), dificilmente se repetirá o contexto político, mediático e regulatório que permitiu os lucros faraónicos da era pandémica.

A crise da Moderna é, pois, paradigmática. Mostra que a transição do modelo de vacina de emergência para o mercado endémico — isto é, concorrencial, previsível e regulado — é dolorosa para quem apenas aprendeu a prosperar com o tapete vermelho estendido pelos governos e pelo alarmismo mediático, assessorado por cientistas mercantilistas.

Hoje, até os governos que outrora assinaram contratos multimilionários sem pestanejar — muitas vezes sob sigilo — mostram-se menos generosos. E os cidadãos, vacinados em série, começam a questionar se não foram enganados e usados por uma hipérbole institucionalizada.

Na verdade, aquilo que está a suceder à Moderna não é apenas um estrondo económico: é simbólico. Representa a falência de um modelo que confundiu biotecnologia com salvação, urgência com imunidade, marketing com saúde pública. Representa o ocaso de uma época em que os CEOs das farmacêuticas eram tratados como visionários e não como gestores de interesses corporativos. Representa, em última instância, o regresso de Ícaro ao chão — com as asas derretidas pela luz crua do escrutínio.

Por isso se impõe uma reflexão mais ampla. O episódio da Moderna deve ser lido não como uma simples travessia empresarial num ciclo de mercado, mas como uma lição civilizacional: de que a Ciência, quando subordinada à lógica do lucro e do pânico, torna-se uma caricatura de si própria; de que a Política Pública, quando abdica do escrutínio, alimenta monstros económicos de pés de barro; e de que o jornalismo, quando abdica do contraditório, ajuda a construir mitos que mais tarde se desfazem em silêncio.

A Moderna foi, como tantas outras, uma das beneficiárias de uma era de excepções. Mas o seu colapso poderá significar que os tempos da prevenção, da proporcionalidade e da transparência estão de regresso. E com eles, o sol da racionalidade — algo a que as asas de cera não resistem.