Polígrafo oferece secções de ‘verificação de factos’ a quem pagar

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É comum dizer-se que todos têm um preço. No jornalismo, esse preço raramente se traduz num envelope recheado ou num jantar de gala: surge, mais frequentemente, sob formas subtis — uma parceria, um patrocínio, ou a criação generosa de uma secção temática. Desde que haja dinheiro, tudo se justifica. E é isso mesmo que agora se começa a ‘verificar’ com o principal verificador de factos português: o Polígrafo.

Criado em 2018 como órgão de comunicação social vocacionado para o fact checking — e que soube aproveitar a pandemia e a cruzada contra a desinformação para engordar as suas contas —, o Polígrafo acaba de abrir uma nova frente editorial, desta vez dedicada ao futebol. E porquê agora? Por amor ao desporto-rei? Nada disso. Por amor ao dinheiro. Concretamente, ao dinheiro da Bem Operations Limited, uma empresa de apostas desportivas e jogos de fortuna e azar registada em Malta, e que em Portugal sob a marca Betclic.

Fernando Esteves, director do Polígrafo e gerente da Inevitável e Fundamental: a arte de comercialização do fact checking.

Desde esta semana, através de uma “parceira exclusiva”, o principal verificador de facto em Portugal criou o Polígrafo Futebol, fruto declarado de uma parceria comercial. Confrontado com questões do PÁGINA UM, o director do Polígrafo e gerente da empresa Inevitável e Fundamental, Fernando Esteves, recusou esclarecer os termos da parceria com a Betclic, incluindo os montantes envolvidos.

Certo é que numa consulta realizada esta tarde, entre os 25 conteúdos mais recentes de fact checking assinados por jornalistas do Polígrafo, seis (cerca de 25%) incidem sobre futebol, com destaque para o rescaldo da Supertaça.

Aquilo que até há poucos dias era um interesse marginal por declarações duvidosas no universo futebolístico converteu-se subitamente num zelo factual sobre jogadores, clubes, árbitros e boatos de balneário. Não porque a verdade desportiva se tenha tornado mais nobre, mas porque a Betclic decidiu abrir os cordões à bolsa.

Parceria comercial entre a empresa de Malta e o Polígrafo foi anunciada esta semana, mas é apresentada como uma nova secção de futebol “Powered by Betclic”.

Apresentado com entusiasmo como um “projecto pioneiro” — aliás, “o primeiro no Mundo” —, o Polígrafo Futebol visa agora verificar rumores, exageros e inverdades que circulam nas redes sociais sobre futebol. Em tudo semelhante à verificação de factos na política ou na economia, não fora a inovação — ou melhor dizendo, a ilegalidade — residir no facto de a Lei da Publicidade e a Lei de Imprensa não permitirem que uma entidade pública ou privada, especialmente quando opera no sector em causa, patrocine conteúdos editoriais. A criação de secções editoriais motivadas por contratos comerciais representa, em si, uma forma de dependência e condicionamento editorial.

Além da já preocupante promiscuidade entre jornalismo e financiamento, a forma como o Polígrafo apresenta esta nova secção levanta fundadas dúvidas legais. Em vez de assumir frontalmente o patrocínio, optou também por mascará-lo através da fórmula ambígua “Powered by Betclic”, que surge na página agregadora da secção. Herdada do jargão tecnológico, esta expressão não permite ao leitor perceber sequer que os conteúdos ali publicados são, em última análise, financiados por uma casa de apostas — e muito menos que os mesmos decorrem de uma parceria comercial.

Mais grave: os artigos da secção Polígrafo Futebol — assinados por jornalistas e com aparência formal de conteúdos editoriais semelhantes aos outros fact checkings— não contêm qualquer menção à Betclic, embora os leitores comecem a ser bombardeados com publicidade dinâmica da empresa. O leitor comum não tem forma de saber que a peça que lê resulta de uma parceria paga, mas é exposto, sem aviso, a anúncios da marca patrocinadora.

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Estamos, pois, perante um caso claro de publicidade encapotada, violando não apenas a Lei da Publicidade como também o Estatuto do Jornalista, que proíbe os jornalistas de colaborarem em acções de marketing ou de subscreverem conteúdos que decorrem de contratos comerciais celebrados pelos seus empregadores. Qualquer jornalista está obrigado a recusar tarefas que comprometam a sua independência — e difícil será imaginar tarefa mais comprometedora do que escrever sobre futebol sob a égide de uma empresa cujo negócio depende da emoção, do rumor e do erro.

Quando confrontada com este caso, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), presidida por Helena Sousa, reagiu com uma fuga burocrática: “não se pronuncia sobre casos concretos sem que tenha sido realizada a respectiva análise”. O problema é que essas análises costumam tardar — ou simplesmente não ocorrem. O regulador tem o hábito, cada vez mais enraizado, de não ver o que não quer ver, sobretudo quando os visados pertencem ao sistema mediático.

Este novo caso de promiscuidade entre imprensa e financiadores públicos ou privados mina ainda mais os alicerces da independência editorial. A prática de criar secções à medida do patrocinador não é inédita — o jornal Público mantém, por exemplo, a secção de ambiente Azul, financiada por entidades públicas — mas é a primeira vez que um órgão dedicado à verificação de factos assume, de forma tão explícita, a criação de uma secção a pedido de uma casa de apostas. E, aliás, aparenta não ficar por aqui.

Helena Sousa, presidente da ERC: um regulador que tudo anda a permitir para descrédito do jornalismo.

Já numa fase final da redacção deste artigo, o Polígrafo anunciou esta tarde mais uma secção temática — agora dedicada ao cancro. A razão? Uma parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian. Estará, porventura, o jornalismo de verificação a tornar-se num balcão temático ao serviço de patrocinadores?

Se amanhã a Pfizer, a Sanofi, a MSD, a AstraZeneca ou qualquer outro gigante farmacêutico decidir propor (e pagar) ao Polígrafo uma secção sobre medicamentos, “powered by Pharma”, é seguro presumir que será apenas a Ciência a garantir que todos os fármacos são eficazes, seguros e sem efeitos secundários.

Ou se for a Nestlé, a Danone, a PepsiCo ou a Unilever a sugerir uma rubrica sobre alimentação, “powered by Alimentação Saudável”, será com entusiasmo nutricional que o Polígrafo verificará que os cereais açucarados e aditivados fortalecem os ossos, os refrigerantes com gás prolongam a esperança de vida e os caldos Knorr são melhores do que as ervas aromáticas.

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E se um dia a Liga Portuguesa de Criadores de Galináceos desejar patrocinar uma secção sobre bem-estar animal, “powered by Frangos Felizes”, o Polígrafo não hesitará em assegurar, no limite, que os pintainhos passam férias no Algarve com ar condicionado quando o tempo estiver demasiado quente para viverem felizes ao ar livre.

No limite, em tese, e ao invés, poderá existir uma empresa ou grupo de um determinado sector económico que imponha uma cláusula de exclusão temática, isto é, uma garantia de que certos assuntos não serão objecto de verificação por parte do Polígrafo. A caixa de Pandora agora aberta tudo permite.