Ó Mário Centeno, como chega um tipo com média (só) de 16 a governador do Banco de Portugal?


Deambulando num misto de férias e trabalho pelos países bálticos, apenas ontem me chegaram ecos da entrevista de Mário Centeno, afastado de governador do Banco de Portugal, concedida a Vítor Gonçalves, o novo director da RTP.

Manifestamente, viu-se um Mário Centeno ferido no orgulho, desiludido pela não recondução, talvez vítima de uma “cabala” para o encostar com o contrato da nova sede desta instituição que mereceria maior escrutínio. Na verdade, com menos competências do que tinha há 20 anos, qual a razão para tamanha megalomania em Entrecampos?

Porém, o seu acinte — sim, o termo é apropriado — não justifica o ataque rasteiro aos jornalistas que noticiaram a renovação do contrato do seu chefe de gabinete, Álvaro Novo, e a promoção ao cargo de directora-adjunta do Departamento de Estatística de Rita Poiares (casada com Ricardo Mourinho Félix, que foi secretário de Estado quando Centeno era ministro das Finanças). Até porque, essencialmente, estava em causa o timing. Se tais decisões tivessem sido tomadas com recato e distanciamento, talvez não se levantassem sobrancelhas.

Mas a coincidência entre a véspera da sua saída e os despachos que beneficiam directa ou indirectamente amigos e conhecidos é, no mínimo, questionável. Infelizmente, não fui eu quem deu essa notícia — outros chegaram primeiro. Mas, se tivesse sido — e o PÁGINA UM revelou muitos contratos estranhos no período de Centeno, sobretudo com sociedades de advogados e gastos supérfluos com as instalações provisórias —, as palavras do ainda governador teriam sido ainda mais ofensivas.

Com efeito, Centeno, em vez de se explicar, disparou — e não argumentos, mas desdém. Duas vezes — e sem que Vítor Gonçalves reagisse, como deveria — passou um atestado de menoridade à classe jornalística, ao afirmar: “As pessoas [jornalistas] que fizeram essas notícias, provavelmente não têm currículo para entrar no Banco de Portugal, porque o Banco de Portugal é muito exigente […]. Para entrar no Banco de Portugal não se pode ter média de 10.” Repare-se: não disse isto num momento de exaltação ou improviso. Foi uma munição preparada de casa, como quem carrega cartucheira para caçar pardais com calibre de javali.

Ora, eu conheço bem o currículo académico de Mário Centeno. E sei que, por mais doutoramentos em Harvard que se acumulem (o que não é pouca coisa), as skills — perdoe-se-me a anglicização para dar um toque de Management — de um governador do banco central não se medem por médias finais de licenciatura nem por decibéis de vaidade. Um governador mede-se por outras métricas: rigor, isenção, sentido de Estado, independência face ao poder político, ética nas nomeações e contenção na arquitectura das vaidades. Não é por ter média elevada que se está acima da suspeita.

E também não é por não se trabalhar no Banco de Portugal que se tem, necessariamente, uma média baixa. E mesmo que essa média não seja extraordinária, não é por isso que se deve ser afastado da mesa das decisões públicas ou da observação crítica. A História mostra que alguns dos mais brilhantes jornalistas, escritores, pensadores e reformadores nunca tiveram grande nota nos exames, mas passaram com distinção os testes da lucidez, da coragem e da integridade.

E aqui entro eu, inevitavelmente, na arena do argumentário ad hominem que Centeno tão habilmente sugeriu. Já que foi ele quem puxou das médias para tourear jornalistas, meto-me na lide. Mário Centeno terminou a sua licenciatura em Economia em 1990 no centenário Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) com uma média de 16. É obra: consta do Quadro de Honra. Já eu, pobre jornalista — sim, dessa classe que ele considera indigna, por demérito, de entrar no Banco de Portugal e de revelar criticamente as suas doutas decisões — sou, salvo erro, o único aluno do ISEG a integrar, ao mesmo tempo, o Quadro de Honra de Economia e de Gestão. E, em ambos os casos, com média final de 17 valores.

Detalhe do Quadro de Honra do ISEG com os registos relativos a Mário Centeno e a Pedro Almeida Vieira.

Quer isto dizer que, pela bitola de Centeno, estarei mais qualificado para o Banco de Portugal do que ele próprio? À luz do seu argumento, poderia eu, um simplório jornalista (para ele), perguntar-lhe afinal, com a legitimidade da minha média de 17 na mesma alma mater: “Ó Mário Centeno, como é possível alguém ser governador do Banco de Portugal só com média de 16?” À luz do bom senso, evidentemente, isso não faz sentido — e muito menos fazem sentido as palavras acintosas de Centeno contra os jornalistas.

Na verdade, esta lógica das médias é, além de pateticamente arrogante, profundamente perigosa — até porque todos sabemos as razões da ida de Centeno para o Banco de Portugal. Em poucos anos, Centeno foi infectado pela lógica da tecnocracia vaidosa: julga-se membro de uma elite que se crê ungida por um destino académico que a legitima para mandar sem prestar contas, sem ser escrutinada.

Esta é a lógica que confunde mérito com titulatura, inteligência com colecção de diplomas, competência com circuito de nomeações entre amigos. Uma lógica que desumaniza, que reduz as pessoas a números — e que, não por acaso, é a mesma lógica que levou Centeno a defender, com frieza estatística, medidas de austeridade sob o pretexto da consolidação orçamental.

Centeno, que ascendeu ao topo do Banco de Portugal por ter sido ministro das Finanças de um Governo socialista, veio agora dar-nos lições de mérito por ter sido afastado por um Governo social-democrata, numa zanga de “comadres” da escola do ISEG. E nem disfarça.

Enfim, se alguma coisa se aprende com este episódio, é isto: o desprezo pelas profissões alheias revela mais sobre o carácter de quem fala do que sobre o mérito de quem é atacado. E se Mário Centeno queria mesmo sair com dignidade, bastava-lhe ter ficado calado. Porque, às vezes, a última nota que se deixa — e não falo da média de licenciatura — é aquela por que verdadeiramente se será lembrado.