A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) acaba de confirmar, com mais de três anos de atraso, aquilo que o PÁGINA UM denunciou desde Maio de 2022: o grupo Trust in News (TIN), detentor da Visão, Visão Júnior e Jornal de Letras, veiculou pelo menos 16 conteúdos publicitários sob a aparência de jornalismo, sem qualquer identificação como tal, violando a Lei de Imprensa.
Mas a ‘condenação’ hoje revelada através de deliberação não só surge tarde como peca por manifesta brandura — e consagra, na prática, a instituição de uma espécie de “taxa de promiscuidade jornalística” de valor simbólico. Com efeito, cada infracção — isto é, cada acto publicitário disfarçado de notícia jornalística — foi sancionada com a módica coima de mil euros. No total, seriam 16 mil euros. Mas mesmo assim a Trust in News ainda beneficiou de um ‘desconto de grupo‘ por parte da ERC, ficando a coima final em apenas 2.000 euros.

A gravidade do caso não se resume à tímida reacção do regulador. Segundo os dados então recolhidos pelo PÁGINA UM e agora confirmados pela própria ERC, só os contratos celebrados entre a TIN Publicidade (empresa do grupo) e o grupo Águas de Portugal — no âmbito dos chamados Prémios Verdes VISÃO + AdP — ascenderam a 120 mil euros, pagos para assegurar conteúdos promocionais com roupagem jornalística. Mais escandaloso ainda é o caso do Instituto Camões, que assinou contratos de publicidade no valor de 124 mil euros com o grupo de media entre 2020 e 2022, garantindo páginas inteiras de propaganda institucional na revista JL – Jornal de Letras, mascaradas de suplemento editorial. Numa das edições inclui-se mesmo a ‘notícia’ da tomada de posse em 2020 como presidente do Instituto Camões de João Ribeiro Cardoso, que actualmente é o embaixador português na Índia.
Por regra, e supostamente para dar credibilidade aos conteúdos, levando a crer tratarem-se de artigos idóneos e independentes, os textos eram redigidos por jornalistas com carteira profissional activa, entre os quais se destaca Luís Ribeiro. Este jornalista da Visão desde 1999, que coordena a secção de Ambiente da revista detida por Luís Delgado, e que exerce funções como comentador de assuntos internacionais da SIC, é um dos nome recorrentes na deliberação da ERC.
A sua assinatura consta como autor de cinco artigos pagos no âmbito de um contrato celebrado com a Águas de Portugal, com “alto patrocínio” do Presidente da República. Os artigos exaltavam intervenções de ministros, do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, e de académicos seleccionados como premiados. E ainda um artigo sobre alterações climáticas. Tudo apresentado sob um formato de notícia normal, sem qualquer indicação visível de que se tratava de publicidade paga.
A própria ERC reconhece, com linguagem jurídica contida mas inequívoca, que estes textos “consubstanciam publicidade”, tendo sido publicados sem serem identificados como tal, podendo assim “ser facilmente confundidos com um texto de cariz jornalístico, pelo seu estilo de mensagem, organização e tratamento gráfico”. Mais: a deliberação destaca que a Trust in News actuou de “forma livre e consciente”, tendo obtido “benefício económico” directo com a prática ilícita — e que, apesar de alertada e notificada, “não revelou arrependimento”.

Mas apesar deste reconhecimento, os efeitos práticos são próximos de nulos. A coima aplicada, de dois mil euros no total, equivale a 0,8% do valor obtido nos contratos acima referidos. A mensagem que resulta é clara: o ‘crime’ compensa, como já começou a ser evidente em situações similares com a Impresa e o Público. Pagar alguns milhares de euros ao regulador sai assim mais barato do que fazer campanhas publicitárias declaradas com custos transparentes — e permite alcançar os leitores com muito maior impacto, explorando a suposta credibilidade do jornalismo.
Mais grave, ainda, é o facto de esta condenação nada alterar para os jornalistas implicados. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), já contactada pelo PÁGINA UM para situações similares, assume que não pode aplicar sanções de natureza deontológica ou disciplinar passados mais de 12 meses sobre a data dos factos. Ou seja, nenhum dos jornalistas que assinou conteúdos publicitários sem identificação — incluindo Luís Ribeiro, a quem o PÁGINA UM solicitou entretanto um comentário — poderá ser responsabilizado, podendo continuar a exercer funções sem qualquer impedimento, como se nada tivesse acontecido. A profissão de jornalista, nestes casos, tornou-se mercadoria com prazo de validade ético limitado a um ano.
Este episódio põe em causa a própria integridade do sistema de regulação dos media. A ERC, ao aplicar uma multa simbólica, reconhece a violação da lei, mas não propõe qualquer mecanismo de prevenção, nem exige medidas correctivas às publicações envolvidas. Os conteúdos não foram retratados, os leitores não foram informados de que leram publicidade disfarçada, e os jornalistas implicados não foram suspensos ou admoestados. O sistema tolera, normaliza e, no limite, recompensa a promiscuidade.

É por isso legítimo afirmar que se consolidou, em Portugal, uma prática de jornalismo a recibo verde institucional, em que reportagens são vendidas por contrato e redigidas por profissionais credenciados, com a conivência tácita das entidades públicas financiadoras, dos grupos de media e do próprio regulador. A chamada “taxa de promiscuidade” — agora quantificada em mil euros por notícia disfarçada — aparenta ser agora o preço a pagar para transformar a imprensa em boletim oficial ao serviço de quem paga melhor. E com desconto.
No fim, resta apenas uma conclusão: enquanto os jornalistas continuam a mercadejar a profissão, e os reguladores a fingir que punem, a confiança do público na imprensa esvai-se sem remédio. E talvez seja esse o preço mais alto de todos — embora, esse sim, ninguém o queira pagar.