Pela boca morre o peixe: Gouveia e Melo soube de ‘cunha’ de político na vacinação da covid-19… e nada fez

Ontem, na entrevista à TVI e CNN Portugal, Gouveia e Melo garantiu ser “muito imune” a cunhas, quando questionado pela jornalista Sandra Felgueiras sobre a eventualidade de se repetir um ‘caso das gémeas’ durante uma sua Presidência da República. “O que eu fiz na pandemia, quando tomei conta da pandemia, dos casos e casinhos, responde por mim” — disse o ex-coordenador da task force da vacinação contra a covid-19 entre Fevereiro e Novembro de 2021. E acrescentou: “Eu sou o que sempre fui. E podem contar comigo com essa segurança. […] Eu sou muito imune. As pessoas que me conhecem e que andam comigo há muito tempo sabem disso” — concluindo que “[n]a minha forma de agir e de estar, eu não dou abrigo a esse tipo de procedimento; procedimentos de excepção e de favoritismo. Algum procedimento de excepção é por motivos humanitários ou outro qualquer; agora, não porque conheço o A ou conheço o B, ou porque [sou] amigo do A ou amigo do B, ou porque alguém se cruzou comigo no passado — isso nunca acontecerá.”

Essa postura de Gouveia e Melo entra em contradição com factos já revelados pelo PÁGINA UM, e que constam mesmo de documentação de um procedimento da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) que, apesar da gravidade da situação, menorizou os procedimentos do então coordenador da task force e também do então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.

Com efeito, durante o processo de vacinação de médicos não-prioritários — cerca de quatro mil que não estavam em funções operacionais, não cumprindo assim os critérios de prioridade da DGS, numa altura ainda de escassez de doses — Miguel Guimarães escreveu um e-mail, a 17 de Março de 2021, para o endereço electrónico de Gouveia e Melo, reiterando aquilo que lhe transmitira “telefonicamente”.

O bastonário salientava o processo da primeira fase de vacinação, em que se tinham administrado as doses de desperdício, mas que uma dose tinha sido “administrada em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.

A missiva com esta confissão consta na página 19 destes documentos que se encontram no processo aberto pela IGAS. Miguel Guimarães nunca quis esclarecer o PÁGINA UM sobre quem foi o político beneficiado, nem a IGAS atendeu a esta confissão, que é de enorme gravidade, porque se tratou de uma ‘cunha’, além de infracções éticas, legais e até penais.

Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.

De acordo com o Código Penal, quem, no exercício de funções públicas — neste caso, Gouveia e Melo enquanto coordenador da task force de vacinação — teve conhecimento de uma infracção penal (como, por exemplo, o abuso de poder ou prevaricação de titular de cargo político por parte de um político que recebeu indevidamente a vacina, em desrespeito às normas definidas para a campanha de vacinação) e não comunicou tal facto ao Ministério Público ou a uma autoridade competente, poderá estar abrangido pelo crime de prevaricação ou abuso de poder.

Mas o próprio processo de vacinação destes médicos esteve, logo na génese, ferido de irregularidades e de favorecimentos, com Gouveia e Melo a sair beneficiado por ter feito um favor a Miguel Guimarães na sua ascensão política.

No início de 2021, com a insatisfação da Ordem dos Médicos por não estarem incluídos na totalidade os clínicos na Fase 1 da vacinação, Miguel Guimarães negociou directamente com Gouveia e Melo uma alternativa, que passaria por desviar doses do sistema normal para serem administradas aos cerca de quatro mil médicos não-prioritários nas instalações do Hospital das Forças Armadas, a troco de uma contrapartida de 27 mil euros. Gouveia e Melo acumulava, na altura, funções de adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas.

No processo instaurado pela IGAS, e concluído em Maio do ano passado, Miguel Guimarães referiu que, desde Janeiro de 2021, remetera à então ministra da Saúde, Marta Temido, uma reclamação por causa da existência de médicos não integrados no grupo prioritário, que, na verdade, seria um parecer do Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem dos Médicos. O conteúdo deste parecer não foi sequer enviado à IGAS, nem a IGAS o solicitou posteriormente, pelo que a sua existência é duvidosa.

Nos documentos enviados por Miguel Guimarães à IGAS constam ainda missivas do primeiro coordenador da task force, Francisco Ramos, em papel timbrado da Secretaria de Estado da Saúde, onde informa que, na “sequência de reuniões realizadas”, solicitava à Ordem dos Médicos uma lista de médicos que “exerçam a sua actividade de prestação directa de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de saúde já mobilizadas para a execução do plano de vacinação”. Mas essa lista nunca se viu, nem Miguel Guimarães a enviou à IGAS; e nem a IGAS a quis ver.

Com a chegada de Gouveia e Melo à task force em Fevereiro de 2021, de acordo com a documentação a que o PÁGINA UM teve acesso, a informalidade espraiou-se. Já não há papel timbrado nem ofícios. Fez-se tudo por correio electrónico, embora com uma inusitada reverência. Miguel Guimarães tratava Gouveia e Melo por “Distinto Senhor Coordenador da Task-Force Mui Ilustre Vice-Almirante”.

Gouveia e Melo foi coordenador da task force.

Em 19 de Fevereiro de 2021, poucas semanas depois de Gouveia e Melo ter tomado posse como coordenador da task force, Miguel Guimarães envia-lhe por e-mail “uma base de dados com médicos que querem ser vacinados, e cumprem os critérios definidos pela DGS”. Essa lista não é conhecida, não foi fornecida pela task force nem pela Ordem dos Médicos à IGAS. E a IGAS não a quis sequer ver, sendo que essa era a questão óbvia num decente e idóneo processo de esclarecimento.

Mas, de acordo com esse e-mail de Miguel Guimarães, nessa altura a lista nem estava ainda concluída, dizendo ele que “continuamos a receber mais inscrições de médicos que ainda não foram vacinados e continuam no activo”, prometendo enviar mais tarde “uma nova base de dados de forma a evitar sobreposições”. Embora estranhamente não haja qualquer resposta de Gouveia e Melo às missivas de Miguel Guimarães, tudo evoluiu rapidamente para a vacinação de cerca de quatro mil alegados médicos — e reitera-se “alegados médicos” porque nunca se conheceu a lista final de nomes, nem a IGAS a quis conhecer —, cujas vacinas foram administradas em unidades militares. Pelos e-mails de Miguel Guimarães sabe-se o número daqueles que tinham menos de 65 anos, porque receberam a vacina da AstraZeneca, e daqueles que tinham mais de 65 anos, pois receberam a da Pfizer.

Em finais de Fevereiro de 2021, além das pessoas indicadas pela Ordem dos Médicos a viverem no Continente, Miguel Guimarães ainda indicaria 27 médicos da Madeira e 42 dos Açores para serem vacinados, mas no processo fica-se sem saber também quem eram e se houve mesmo inoculação das doses. A IGAS não teve curiosidade em saber.

Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, ao lado de Miguel Guimarães. Geriram em conjunto uma conta solidária, titulada por eles juntamente com Eurico Castro Alves, de onde saiu o dinheiro para pagar cerca de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida da vacinação de médicos não-prioritários.

Mas essa informação até existirá, eventualmente, num “relatório final da primeira fase” desta operação de vacinação que Miguel Guimarães prometeu, em mensagem de correio electrónico de 17 de Março de 2021, enviar “brevemente” a Gouveia e Melo. Também a IGAS não quis saber deste relatório nem quis saber se houve outros relatórios.

A forma como o procedimento da IGAS foi conduzido mostra ou negligência ou intencionalidade em isentar de culpas Gouveia e Melo e Miguel Guimarães. O relatório final do processo de esclarecimento, da autoria da inspectora Aida Sequeira, retira conclusões que nem sequer se encontram plasmadas em qualquer documento.

Por exemplo, o relatório destaca que “a ponderação e preparação do processo de vacinação foi do conhecimento da DGS e do responsável máximo pela tutela da saúde, a então Ministra da Saúde”, mas, na verdade, não existe no processo consultado pelo PÁGINA UM qualquer documento que comprove esse conhecimento por parte da DGS, que é a Autoridade de Saúde Nacional e a única entidade responsável pela norma eventualmente violada.

Acresce também que a IGAS omite na sua análise a impossibilidade legal da então task force dirigida por Gouveia e Melo negociar procedimentos com a Ordem dos Médicos ou outra qualquer entidade. Somente em Abril de 2021, Gouveia e Melo obteve poderes reforçados através de um despacho governamental.

3 clear glass bottles on table

Mas o relatório final da IGAS fez ainda pior, numa tentativa de ‘legalizar’ os médicos não-prioritários. Com efeito, a inspectora Aida Sequeira diz que a norma 002/2021 tinha tido uma “actualização a 17 de Fevereiro de 2021”, que passava a incluir na Fase 1 os “profissionais envolvidos na resiliência do sistema de saúde e de resposta à pandemia e do Estado”, bem como “outros profissionais e cidadãos, definidos pelo órgão do governo, sobre [sic] proposta da Task-Force”.

Porém, isso é completamente falso.

Na verdade, houve uma actualização da norma em 17 de Fevereiro, mas não em 2021 (ano dos factos), mas sim em 2022, no ano seguinte, conforme se pode constatar no texto. E, de facto, esse alargamento até se verificou inicialmente em 31 de Agosto de 2021, numa fase de maior oferta de vacinas pelas farmacêuticas. Ou seja, a introdução de uma referência completamente falsa por parte da inspectora da IGAS sobre uma alteração da norma da DGS no dia 17 de Fevereiro de 2021 não aparenta nada ser um mero lapso.

Não existe também no processo qualquer documento que comprove a afirmação da inspectora Aida Sequeira de que “em Janeiro de 2021, o Secretário de Estado da Saúde, com conhecimento da DGS, oficiou a Ordem dos Médicos no sentido de que fosse disponibilizada ‘(…) uma base de dados de contactos de médicos com actividade de prestação de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de cuidados de saúde já mobilizadas”. A inspectora da IGAS diz que essa informação proveio de “diligências adicionais promovidas por esta Inspecção-Geral”, embora não haja qualquer nota sobre a fonte nem sequer o documento que confirme o necessário conhecimento, verificação e aprovação da lista enviada pela Ordem dos Médicos.

Carlos Carapeto: A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde também viu a ‘cunha’, mas preferiu fechar os olhos. A alteração da data de uma norma, introduzida pela inspectora responsável pelo processo, permitiu ilibar Gouveia e Melo e Miguel Guimarães de procedimentos irregulares na vacinação dos médicos não-prioritários.

Assim, e apesar de se ficar sem saber quem, afinal, eram as cerca de quatro milhares de pessoas vacinadas sob a batuta de Miguel Guimarães — e se eram todos médicos, e se todos cumpriam os critérios da norma da DGS, porque a IGAS nada pediu —, a inspectora concluiu “pela conformidade legal da inoculação da vacina contra a covid-19 aos profissionais de saúde, circunscrita a Fevereiro de 2021”, determinando o arquivamento. Ficou assim também ‘apagado’ o pecadilho da “personalidade política” vacinada à margem da lei por uma “questão de necessidade e oportunidade”, bem como o exorbitamento de funções por parte de Gouveia e Melo.

Em todo o caso, sobre as suspeitas de irregularidades na contabilidade financeira da Ordem dos Médicos no processo de ‘contratação’ do Hospital das Forças Armadas, a IGAS decidiu enviar o processo para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa, mas até à data não existem quaisquer informações sobre o avanço deste processo.