Do arrojar-se em Osaka: considerações zoológicas e teológicas sobre a Língua


Uma sociedade que olvida o seu passado cava não só a cova da sua memória, mas também abre uma vala comum para sepultar, lado a lado, a sua identidade e a sua dignidade. Quem o diz sou eu, um inquilino perpétuo do subsolo — e por isso, suspeito, saberei avaliar com alguma propriedade o valor simbólico tanto de um buraco como de um hipogeu. Não há metáfora que me falte, nem húmus que me surpreenda.

Dir-me-ão que exagero, que a História não morre assim tão facilmente. Talvez. Mas também ninguém a viu levantar-se de um túmulo, onde a sequestraram, com a compostura de quem regressa por vontade própria. A História não morre, dizem — mas adormece, pode ser silenciada, moldada aos caprichos dos vivos como um cadáver manipulado por ventríloquos. Há quem lhe chame releitura ao que não passa de reescrita conveniente.

E é nesse afã de enterrar — com ou sem lápide — tudo quanto foi e já não se conforma à ortodoxia da moda vigente que políticos e burocratas acabam por lançar a pá, não apenas sobre os mortos, mas sobre si mesmos. Julgam-se sepultadores da memória alheia, quando afinal cavam a própria extinção simbólica. A cova, no fim, é sempre escavada pela mão diligente da ignorância — sobretudo quando esta se veste de modernidade e se mascara de progresso. E se é verdade que os mortos não falam, permitam-me esta excepção: o esquecimento é o único cemitério onde o luto é facultativo, mas a orfandade é garantida.

A pueril ignorância voluntária dos adultos sempre me espantou — é como quem, ao encontrar uma fotografia antiga, prefere rasgá-la a confrontar-se com o rosto que já teve. E, diga-se, sem receio de parecer antiquado: há mais dignidade num retrato a sépia de um antepassado de ceroulas honestas do que num painel de aeroporto em inglês simplificado, onde se proclama que Portugal “está a comunicar inovação”.

No lusitano cantinho, a terrinha, o peso da sua História passou de alicerce a embaraço, e é essa transfiguração perversa que hoje sustenta a ilusão de um presente auto-suficiente. Mas a vergonha do passado só deixará de ser o vexame do futuro se o porvir for ainda mais ignaro do que o agora — o que, diga-se com diversão, já não é hipótese remota; antes, tendência comprovada por dados e decretos.

Não me move o ânimo nem me fere a compostura que Portugal veja a sua memória como um fardo, mas já me encanita, mesmo estando em ossos, que reputem a minha língua — não aquele músculo de chicote da verdade e veneno da intriga, que os vermes já digeriram —, mas a Língua, a colectiva e com maiúscula, como um estorvo. Porque, queira-se ou não, acabei involuntário herdeiro de Gil Vicente, Fernão de Oliveira, João de Barros, Luís de Camões e António Vieira — e, como qualquer órfão honrado, zango-me quando cospem no retrato dos meus antepassados.

Tivesse Nicolas Durand de Villegagnon logrado, no século XVI, mais do que montar o seu efémero Forte Coligny na Baía de Guanabara, e talvez pouco me apoquentasse com os destinos da língua portuguesa. Teria antes sido um súbdito gaulês na França Antártica e herdado o estilo e as normas de Chrétien de Troyes, Guillaume de Machaut, Joachim du Bellay, François Rabelais e Claude Favre de Vaugelas, que tanto se esmeraram em adubar o francês com flores retóricas, mas também com certo perfume de pretensão inebriante.

E, quem sabe, estaria agora a escrever com ternura sobre la patrie e la langue de Molière, entre um suspiro e um ponto e vírgula, sonhando que o mundo inteiro um dia falasse francês — língua feita para dizer com quatro palavras aquilo que em português se resolve com uma e um gesto. Mas enfim, consolo-me: se não me coube a glória da universalidade, ao menos escapei à tortura de pronunciar rue como se estivesse a tossir em verso.

Toda esta torrentosa fanfarra de lusíadas palavras e liturgia de portucalenses vocábulos, à laia de exórdio, serve unicamente para vos falar que este sucedâneo do Reino de Portugal — antigo senhor de mares e de letras — resolveu apresentar-se na Exposição Universal de Osaka, em pleno ano da graça de 2025, omitindo — com a coragem dos tímidos e a temeridade dos envergonhados — a Língua Portuguesa.

Entram os visitantes no lusitano pavilhão, para logo imergirem num mar de luz e imagens, donde apenas emergem o japonês — por deferência — e o inglês — por subserviência. O português, esse, permanece submerso.

Este facto, que seria apenas grotesco se não fosse revelador, foi perpetrado sob a égide da AICEP, acrónimo que, segundo os arquivos oficiais, designa a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, mas que melhor seria traduzido como Agência para a Inutilização Cretina da Expressão Portuguesa. Preside-lhe um cavalheiro chamado Ricardo Arroja — cujo apelido, por uma dessas ironias de cariz escatológico-divino, já prefigura o seu destino: arrojar-se. E quanto mais depressa, melhor.

Mas alto! Não à frente, como Eneias ao combate; nem para cima, como Elias no seu carro de fogo; nem aos deuses, como Prometeu à ousadia — arroja-se simplesmente ao chão. E fá-lo com zelo: como o cão de Tobias, que lambia as feridas do seu amo cego, assim também se arrasta o Arroja, devoto e diligente, aos pés do inglês.

Ricardo Arroja, presidente da AICEP junto ao pavilhão de Portugal na Expo 2025 Osaka.

Como explicar tal prodígio de abnegação identitária? Como justificar que, num investimento de 26 milhões de euros — o equivalente a uma armada de galeões de papel reciclado —, não tenha sobrado espaço nem para uma frase em português? Talvez, quem sabe, a língua de Camões tenha sido considerada pouco eficaz, pouco market-friendly, ou, na lógica dos publicitários ministeriais, demasiado identitária para um país que quer parecer outro.

Oh, veneráveis sombras de António da Mota, Peixoto e Zeimoto, vós que em 1543 aportastes ao Japão, em fragatas tão frágeis quanto o carácter dos burocratas modernos, que diríeis agora, vendo a pátria que vos sucedeu apresentar-se ao arquipélago nipónico sem voz? Onde estão as espingardas de prata que oferecestes ao daimyō? Onde a gramática que os jesuítas redigiram? Onde a imprensa tipográfica, o catecismo, a língua?

Desgraçado de ti, Fernão Mendes Pinto, armado em Ulisses da grandeza lusa, que disseste que o Japão ficara maravilhado com o verbo português — e eis que hoje, pela mão de Arroja e seus acólitos, se apaga esse verbo como quem apaga um candeeiro numa casa alheia por medo de ofender.

Mas talvez não se trate apenas de ignorância. Talvez seja mesmo um complexo, como o diagnosticou o meu patrício Nelson Rodrigues, esse dramaturgo da alma brasileira que detectou o “complexo de vira-lata”: essa vergonha difusa de ser o que se é, essa ânsia de parecer cosmopolita pela negação da origem. O senhor Arroja, assim, não é apenas um tecnocrata: é um vira-lata com vergonha do país e da sua língua.

E aqui entra o elemento teológico: ao renunciar à sua língua, o homem renuncia à sua alma — e ao fazê-lo, comete o pecado de Babel, embora às avessas. Se os construtores da bíblica torre quiseram unir-se por uma língua comum, o Arroja moderno prefere confundir a sua para melhor diluir-se. Tal como Pilatos, que se lavou com água para não sujar as mãos com o sangue do Justo, assim também se lava a AICEP do incómodo português — para não afligir turistas, consultores ou intérpretes de japonês de escritório.

Há, neste gesto, também algo de zoológico. Um canídeo, quando teme, deita-se. O animal submisso curva-se, mostra o ventre, esconde os dentes. Ricardo Arroja, nesse sentido, é um espécime lapidar do Canis lupus familiaris tecnocrático: obediente, higiénico, sem voz própria. Já não é o cão de guarda da Cultura nacional; é o cão de colo da conveniência internacional.

E o mais trágico é que esta auto-humilhação se dá no país que, outrora, mais escutou os portugueses, com atenção e reverência. O Japão, que teve no português a sua primeira janela para o mundo moderno, é hoje palco deste amesquinhamento voluntário. Como se Portugal fosse um mendigo à porta de um templo onde já foi sacerdote.

Há pastéis de nata portugueses… ou,simplesmente, custard tarts, designação mais adequada para a subserviência linguística em exibição.

Mas não espereis demasiado de burocratas e políticos. Um velho mestre da minha infância dizia: “há almas que não aspiram à imortalidade — apenas ao cargo.” Portanto, para eles, a língua portuguesa é uma despesa. A memória, um entrave. A identidade, uma excentricidade.

Assim, caríssimas leitoras e não menos ilustres leitores, proponho uma solução radical: declare-se o português uma língua morta. Como o latim de Cícero. Como o grego antigo de Píndaro. Como o aramaico de Cristo. Como o etrusco de Velthuran, escriba de túmulos e poeta sem leitores. Façam-lhe um funeral com honras de Estado.

Encomendem a alma de Camões aos cuidados da UNESCO e passem a chamar ao idioma, com rigor de mercado e pragmatismo ibérico, brasileiro. Bem sei que o pavilhão do Brasil também passa vergonha em terras nipónicas, mas os meus patrícios, tirando isso, sempre são maior número e, com mais ou menos política, mantêm viva esta língua de século — nos livros, nas canções, nas ruas.

Até porque, vejamos bem, Portugal já não se vê como Nação. Vê-se como logótipo. Se em tempos recentes já transformaram o árabe al-Gharb em ALLgarve para fins turísticos, agora só falta Portugal transmutar-se em PortugALL. E um logótipo não precisa de língua — apenas de slogan. Como os burocratas se esqueceram de que a língua é o sopro da soberania, acabam estrangeiros de si próprios.

Portanto, Ricardo Arroja, vós que presidis à Agência para a Inutilização Cretina da Expressão Portuguesa, e com toda a reverência que a vossa genuflexão não me merece, permitais-me declarar: o vosso apelido não é um acaso paterno; sois, sim, um aviso à navegação. O vosso arrojar não é impulso heróico — é reflexo pavloviano. Arroja, aqui, é como atirar-se fora uma herança embaraçosa.

O vosso Pessoa disse outra coisa qualquer sobre a língua e pátria, de que me não estou agora a recordar, mas poderia ter escrito que “a pior forma de ignorância é a elegância do apagamento” — e, nesse aspecto, senhor Arroja, Portugal apresenta-se mesmo em Osaka como um país elegantemente ausente.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

A ilustração foi produzida com recurso a inteligência artificial.