Se há sector em que Portugal teve uma evolução extraordinária ao longo do último século, foi nos cuidados infantis. Na década de 20 do século XX, a mortalidade infantil — de crianças com menos de 1 ano — era absurdamente elevada: mais de 20% dos recém-nascidos não completava o primeiro ano. A partir dos anos 40, a evolução da medicina e das condições de higiene melhoraram bastante este indicador. Mesmo assim, no final dos anos 60, ainda no Estado Novo, a mortalidade infantil rondava os 2%.
Os maiores avanços da medicina, a par da vacinação e da prevenção e cuidados de higiene, reforçaram essa evolução — e assim a taxa de mortalidade começou a ser medida por óbitos por milhar de nados-vivos, porque passou a situar-se abaixo de 1%. Mesmo assim, com números que colocavam Portugal na vanguarda dos países mais desenvolvidos, em 1996 morreram 758 bebés, ficando abaixo do meio milhar de óbitos a partir de 2022.

Ainda assim, nas últimas décadas, mesmo estando num desempenho extraordinário em termos de Saúde Pública, mas consciente da preciosidade da vida de um bebé, houve progressos significativos. A taxa de mortalidade já chegou a estar abaixo dos 3 óbitos por mil — ou seja, 0,3% — com o ano de 2021 a representar o número absoluto mais baixo de sempre: 194 óbitos.
Nos últimos anos, tem-se vindo a verificar um aumento relativo significativo: em 2024 morreram 255 crianças com menos de um ano de idade, representando um crescimento de 30,5%. Mas se estas variações até poderiam, em certas circunstâncias, ser conjunturais, por se estar perante números pequenos, a análise do PÁGINA UM ao conjunto de dados hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística detectou uma situação altamente preocupante: o distrito de Setúbal está num absurdo agravamento da mortalidade infantil.
Com efeito, a nível nacional, o período posterior a 2021 rompeu com a tendência de contínuo decréscimo de longo prazo. Em todo o caso, numa visa territorial, este acréscimo podia-se explicar pelo ligeiro aumento da natalidade e pelo aumento de comunidades com menor atenção no acompanhamento durante a gestação — situação que, em muitos contextos, se associa a menor acesso ou adesão aos cuidados pré-natais —, mas há o distrito de Setúbal que ‘apita’ por atenção.
De facto, este distrito a sul de Lisboa não só lidera o aumento recente — passou de 19 óbitos em 2021 para 41 em 2024, uma subida de 116% — como é o único distrito onde o número de mortes de bebés em 2024 foi superior ao registado há 20 anos. Aliás, neste distrito não havia tantas mortes de bebés desde 2002.

De acordo com os dados do INE, em 2004 registaram-se no distrito de Setúbal um total de 32 óbitos, menos nove do que em 2024. Ou seja, esta região teve um crescimento da mortalidade de 28% durante este período, em absoluto contraciclo com todas as outras regiões de Portugal. De facto, não há nenhum caso similar — muito pelo contrário.
Em termos comparativos, em todo o país morreram em 2004 um total de 420 bebés, enquanto no ano passado foram 250, o que representa uma redução de 40%. No distrito de Lisboa, a redução nesse período foi de 31%, enquanto no distrito do Porto foi de 60%. Em Braga, de 48%, e em Aveiro de 65%. Para se ter uma noção mais chocante desta evolução, em 2004, no distrito do Porto, houve quase o triplo de óbitos de bebés com menos de um ano face ao distrito de Setúbal (94 vs. 32); agora, em 2024, morreram 41 bebés em Setúbal e 38 no Porto.
Especular pode sempre especular-se sobre as causas de Setúbal estar em evidente e chocante contraciclo — que é aquilo que, por regra, se faz quando se pede um comentário a pediatras ou outros especialistas. Por regra, aponta-se a degradação de serviços neonatais, o aumento de partos de risco não acompanhados e eventuais factores sociais e económicos ainda por caracterizar.

Mas, por regra, fala-se nisso e mete-se uma pedra sobre o assunto sem sequer se analisar em detalhe as verdadeiras causas dos óbitos, para perceber aquilo que efectivamente está a causar esta situação única.
Em todo o caso, através de outro conjunto de dados também divulgados hoje pelo INE, consegue-se saber em que concelhos vivem as mães dos recém-nascidos que morreram nos últimos quatro anos, e onde os números têm aumentado mais. E ressaltam aí os concelhos de Almada, com uma subida de quatro óbitos em 2023 para 16 no ano passado, e do Seixal, com uma subida de dois óbitos em 2021 para 10 no ano passado. Fora do distrito de Setúbal, também se nota uma subida relevante nos concelhos de Sintra e Amadora: em conjunto, registaram 18 óbitos em 2021, número que subiu para 30 no ano passado.