Não é de hoje. A especulação imobiliária e a transformação de terrenos rústicos em urbanizáveis sempre foram verdadeiras minas de ouro para quem, nos meandros políticos, sabe navegar entre o Governo e a Assembleia da República, que fazem as leis e aprovam planos de ordenamento, e o mundo autárquico, que delimita áreas urbanizáveis e aprova os licenciamentos. Desde os anos 80, nos primórdios dos planos directores municipais (PDM), sob a aparência de desenvolvimento e progresso, bem como da necessidade de habitações, muitos empresários e políticos unem esforços para valorizar terrenos que, antes, valiam o preço da uva mijona. O segredo? Um jogo bem montado de influência, legislação e oportunidades bem aproveitadas.
A especulação imobiliária baseada na reclassificação de terrenos é um dos negócios mais lucrativos para quem souber movimentar-se nos bastidores da política, combinando informação privilegiada, boas relações com o poder local e uma estrutura bem montada de influências e intermediação.
Aqui ficam os Dez Mandamentos que sempre regeram este lucrativo negócio, sendo que a recente alteração da Lei dos Solos, que já fez subir os preços dos terrenos rústicos, é mais um capítulo da promíscua ligação entre o imobiliário e a política lusitana.
1 – Amarás a informação privilegiada acima de todas as coisas
O primeiro passo para o sucesso na especulação imobiliária é saber antes dos outros onde o dinheiro vai brotar. Se um município está prestes a rever o seu Plano Director Municipal (PDM) ou a alterar o perímetro urbano das cidades, vilas e aldeias, há que garantir que a informação chega primeiro aos interessados certos. Ligações próximas com vereadores do urbanismo, arquitectos municipais ou até membros de gabinetes governamentais são essenciais. O segredo do lucro está em comprar, aos proprietários papalvos de prédios rústicos, antes da valorização ser pública.
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2 – Não tomarás o nome da transparência em vão
O discurso oficial tem de ser sempre exemplar. Para evitar desconfianças, é fundamental defender publicamente boas práticas de ordenamento do território, sustentabilidade e desenvolvimento equilibrado, e, sobretudo, invocar o direito constitucional à habitação. Nos bastidores, no entanto, a actuação deve ser outra: pressão sobre técnicos municipais, negociações de bastidores e uma gestão “criativa” das normas ambientais e urbanísticas. O importante não é o que se faz, mas sim o que se aparenta fazer.
3 – Santificarás as boas relações com autarcas
Sem apoio político, não há reclassificação de terrenos. O jogo é simples: os autarcas precisam de financiamento para as suas campanhas, e os promotores imobiliários precisam de decisões favoráveis. Jantares estratégicos, promessas de futuros cargos ou simples favores pessoais criam uma teia de interesses mútuos. Um presidente de câmara ou um vereador do urbanismo alinhado pode valer milhões em mais-valias.
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4 – Honrarás os técnicos municipais e consultores
A burocracia pode ser um entrave, mas também um grande aliado. O segredo está em ter nos quadros (ou no bolso) engenheiros, arquitectos, advogados especializados em ordenamento do território e, sobretudo, deputados e até governantes com empresas de consultoria de objecto social ambíguo. São eles que irão justificar, com argumentos técnicos e pareceres “científicos”, a necessidade de alterar a classificação de um terreno de cabras para área urbanizável essencial ao progresso da Nação. Sem um parecer bem fundamentado, nenhuma decisão política pode ser tomada – e é aqui que entra a influência sobre os profissionais da área.
5 – Não darás parte de fraco nas negociações
Antes da reclassificação, os terrenos rústicos devem ser adquiridos pelo menor preço possível. Os pequenos proprietários rurais, muitas vezes sem noção do verdadeiro potencial da terra, devem ser convencidos de que, se não aceitarem valores irrisórios, perdem uma oportunidade de vida. Pressionar, oferecer valores aparentemente vantajosos ou até recorrer a intermediários que escondam a identidade dos verdadeiros compradores são práticas que devem ser implementadas. Depois, quando a reclassificação ocorrer e o preço disparar, os intermediários usados jamais atenderão o telefone aos pobres vendedores ludibriados.
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6 – Não ficarás preso a uma só estratégia
Quando a alteração do uso do solo ou a expansão dos perímetros urbanos se mostrar difícil ou demorada, há sempre alternativas. Pode-se convencer o presidente da câmara e os autarcas a elaborarem Planos de Pormenor, Unidades de Execução ou a autorizarem pela via do “interesse público” para contornar obstáculos administrativos. Em casos mais complexos, nada como recorrer a lobbies e advogados influentes para encontrar brechas legais que permitam a reclassificação. A chave é nunca desistir à primeira barreira.
7 – Não levantarás suspeitas desnecessárias
Esconder os rastos é essencial. Para evitar que se perceba quem realmente lucra, utilizam-se sociedades offshore, empresas-fantasma ou testas-de-ferro para as compras iniciais de terrenos valorizados pela alteração do uso do solo. O verdadeiro dono do terreno só aparece mais tarde, talvez um fundo de investimentos – que melhor esconde os titulares de unidades de participação – quando os terrenos já estiverem valorizados e prontos para serem vendidos para construção imobiliária. Quanto menos ligações directas houver entre o político que aprovou a reclassificação e o beneficiado, melhor.
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8 – Não cobrarás dividendos de forma directa
Lucros imediatos podem ser tentadores, mas os verdadeiros mestres da especulação sabem que a paciência paga melhor. Em vez de apenas vender terrenos valorizados, aproveitam-se oportunidades como adjudicações de obras públicas, concessões de exploração ou parcerias público-privadas, ou então contratos fictícios de empresas de consultoria que nem site ou funcionários de jeito precisam de possuir para facturarem bem. Muitas vezes, os verdadeiros lucros surgem anos depois, sob a forma de contratos vantajosos para empresas ligadas aos envolvidos.
9 – Não desejarás o escândalo, mas estarás preparado
Por mais discreta que seja a operação, há sempre o risco de um jornalista incómodo ou de um rival político levantar suspeitas. Nesses casos, a estratégia é clara: negar tudo, desvalorizar as acusações, clamar transparência, invocar a família e o futuro dos filhos, e alegar com fervor que a decisão seguiu todos os trâmites legais. Se necessário, recorre-se à velha desculpa da “cabala política” ou da “perseguição ideológica” para descredibilizar qualquer investigação.
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10 – Não cobrarás o lucro apenas uma vez
Depois da valorização inicial, o jogo ainda não acabou. Quem domina o sector e os esquemas sabe que há sempre mais dinheiro a ganhar. Uma vez urbanizado, o terreno pode ser vendido para construção, os edifícios podem ser arrendados ou revendidos, e novas licenças podem ser obtidas para aumentar ainda mais o valor das propriedades. Assim, deves criar uma empresa de gestão de escritórios, de condomínios e até de limpezas. O ciclo da especulação é infinito para quem sabe aproveitar todas as oportunidades.