Se há uma verdade insofismável na História do Pensamento Universal, é que toda a filosofia, desde Heráclito até Kant, e desde Hegel até Foucault, andou às voltas com o conceito de Poder. Sofismas, paradoxos e exegeses, laboriosamente decantados ao longo das centúrias, serviram ora para sustentar a sua legitimidade vinda dos Céus, ora para justificar a sua necessidade terrena, ora para denunciar os seus abusos despóticos. O Poder foi, de Platão a Maquiavel, o eixo em torno do qual se construíram utopias e se ergueram impérios, se redigiram tratados e se travaram batalhas.
Mas eis que, após tanta especulação metafísica, depois de tantos volumes encadernados em couro a tentar deslindar a natureza do mando e da obediência, emerge, qual novo arquétipo do engenho humano, um espírito singular que resolve, de um só golpe, a questão que atormentou as mentes mais argutas da Humanidade: Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, nado em terras de Quelimane, e que nadou pelos mares durante décadas em esquifes profundos, apenas para agora se firmar como timoneiro de terra firme, sem mar, sem navios e, ao que parece, sem bússola.

Falo-vos do conhecido Almirante dos Sete Egoceanos, que, através de duas singelas páginas do Expresso – essa prestigiada gazeta de respeitável antiguidade, onde agora se cultiva o jornalismo com a delicadeza de um florista a vender cravos murchos ao preço de orquídeas raras – vos explica, ensina, elucida e, por fim, esclarece, que a arte de governar é, afinal, um mero e esmerado exercício de equidistância entre tudo e nada, entre a firmeza e a vacuidade, entre a ordem e o flutuante acaso das marés.
Lendo a sua bula iluminada, onde o truísmo se veste de revelação – e onde aquilo que mais se destaca é um S garrafal da revista do Expresso, com honras de manchete –, eis que o Almirante dos Sete Egoceanos “explica pela primeira vez o seu entendimento sobre a Constituição e as funções que julga serem da competência do Presidente da República”.
Eu, por mim, que morto estou, muito me diverte a prosápia de quem, num raro assomo de artificial humildade, julga que o seu entendimento sobre as coisas rivaliza com o de Deus ao esculpir, com fogo e trovões, as tábuas da Lei para Moisés. Porque sim, o Almirante Gouveia e Melo, sempre avesso a protagonismos, não se limita a interpretar a Constituição – ele desce do Monte Sinai mediático, envolto numa nuvem de luz e autoconvencimento, para vos revelar, a vós, mortais, a palavra definitiva sobre os destinos da República Portuguesa.

E vós, simples viventes, só podeis tremer perante tamanha iluminação, gratos por serdes dignos de assistir ao momento em que um oficial de Marinha, recém-chegado ao território seco das ideias políticas, decide, magnanimamente, explicar-vos como deve funcionar um Estado. Eu, que já não padeço dessas tribulações mundanas, observo tudo com a leveza de quem, desde a eternidade, já viu profetas mais ambiciosos e charlatães mais convincentes.
Com a leitura das suas duas tábuas de revelação – tantas quantas as páginas que o generoso Expresso lhe ofertou –, Gouveia e Melo concede a todos os que nelas pousarem os olhos a oportunidade rara de uma iluminação súbita: a epifania de que a governança assume finalmente o seu formato mais puro, destilado, quintessencial – ou seja, uma enxurrada de platitudes embalada na majestosa certeza de que a democracia precisa de democracia, a liberdade de liberdade e o equilíbrio de equilíbrio.
Para quê, então, as tribulações de um John Stuart Mill, os labirintos de um Tocqueville, os sofismas de um Weber? Tudo se resolve com a estonteante simplicidade de uma linguagem naval: navegamos pelo mar proceloso da incerteza, mas avistamos o farol da unidade nacional, e que ninguém ouse contestar o Capitão da Nau!
Ora, mas todo o grande pensador necessita de uma introdução sobre o seu pensamento ideológico. E que prodígio de equilíbrio, que sublime demonstração de ginástica intelectual! Gouveia e Melo, homem de proas firmes e lemes resolutos, não se limita a navegar os mares revoltos da política – ele flutua, lépido e tépido, entre duas margens, sem nunca molhar os pés.
“Situo-me politicamente entre o socialismo e a social-democracia“, escreveu ele – ou alguém por ele. Brilhante!

Um posicionamento tão inovador e arriscado quanto afirmar que a água é húmida, que o vento sopra ou que um pão de forma é, de facto, um pão com forma. O Almirante, esse visionário, descobriu o meio-termo entre dois conceitos que, no fundo, são já uma variação um do outro, com a ousadia de quem anuncia ao mundo que acaba de descobrir um arquipélago… entre duas ilhas que já existiam no mapa e figuravam há décadas nas brochuras turísticas locais.
E, claro, defende ele, uma “democracia liberal como regime político” – porque nada como reafirmar o óbvio com solenidade de estadista. Eis uma revelação grandiosa: Gouveia e Melo, vivente em democracia nos últimos 51 anos da sua vida de 64, não defende a autocracia, nem a teocracia, nem um sistema baseado no sorteio dos cargos em rifas de feira. Não! Ufa! Ele defende a democracia liberal!

Um verdadeiro farol de lucidez, portanto. E mais: um bastião do pensamento político, um cruzador da evidência que, sem arriscar o naufrágio do comprometimento real, segue seguro pelo profundo oceano das generalidades, sem um só vagalhão de dúvida ou sequer uma brisa de originalidade a perturbar-lhe o curso. Tivesse sido eu a substituir o seu amanuense e acrescentar-lhe-ia na boca: “Encontro-me politicamente entre o vago e o redundante, defendendo que é preciso liderar com liderança e governar com governo.“
Ao longo da sua epístola de obviedades, como acrobata de conceitos, o Almirante nunca arrisca quedas: ele equilibra-se sempre na corda mais segura, no discurso mais inatacável, no território onde nada é verdadeiramente dito, mas tudo soa impecável.
Por exemplo, qual Aristóteles de casaca e galões, eis uma epifania política com um axioma de vibrante originalidade: os partidos políticos são fundamentais, garante ele. Eis um postulado tão revolucionário que não duvido que Platão, se reencarnado fosse, repensasse todo o seu ‘A República’ e, envergonhado, substituísse o governo dos filósofos pelo governo dos partidos – ou, melhor ainda, pelo governo dos não-partidos, aqueles seres incorruptíveis e elevados que o Almirante sugere como alternativa.

Mas não nos apressemos! A ciência política moderna, segundo esta nova escola de pensamento naval, desenvolve-se com algumas inovações paradigmáticas, autênticos axiomas paradoxais – ou seja, princípios autoevidentes que se contradizem, mas que, ditos com solenidade, adquirem o brilho de verdades inatacáveis. Se quiserem um nome mais técnico, chamemo-los de “teoremas de elasticidade política” – aqueles que servem para tudo e para nada, conforme a conveniência do momento.
No primeiro teorema, defende Gouveia e Melo que a democracia deve ser tolerante, mas com mão de ferro contra aqueles que, na sua visão iluminada, ousam abusar dessa tolerância – mesmo que tal implique podar, com o rigor de um cirurgião inquisitorial, liberdades fundamentais como a de informação, de expressão e de contestação. Eis um ensinamento digno de figurar nas academias de filosofia política, talvez sob o título “A Democracia expurgada dos seus excessos”!
Coitado do Karl Popper, ingénuo que era: escreveu longo ensaio sobre o paradoxo da tolerância, e vem agora o Almirante dos Sete Egoceanos esquartejar-lhe a tese com a destreza de um açougueiro doutrinário, destilando-a num raciocínio primário. Para Gouveia e Melo, a verdadeira tolerância, na sua forma mais pura e sublime, reside precisamente em excluir quem diverge, garantindo assim um campo de discussão livre… mas apenas dentro dos limites devidamente autorizados e supervisionados pelo novo Guardião do Pensamento Justo.

E, claro, não faltarão mecanismos de reabilitação para os desafortunados que, por desatenção ou irreverência, ousem extraviar-se dos dogmas da moderação certificada. Prevejo, aliás, que tais desviantes sejam reintegrados com a ternura de um instrutor de ioga que, ao menor deslize na postura, corrige os alunos com descargas elécricas – um choque de realidade para que aprendam, enfim, a flexibilidade da obediência aos ditames do Almirante.
Eis, pois, a evolução da democracia liberal em versão almirantesca: tolerância para os toleráveis, censura esclarecida para os desviantes e uma liberdade rigorosamente regulamentada, para que ninguém se extravie no incómodo hábito de pensar pela própria cabeça. O Santo Ofício já tinha intuído algo semelhante – só faltava vesti-lo de linguagem moderna e embrulhá-lo num discurso sobre a defesa da democracia.
No segundo teorema, o Almirante dos Sete Egoceanos defende que o Estado não deve intervir na Economia, salvo quando for necessário intervir – uma variante do célebre “digo-te que fujas, mas mando que fiques”, um daqueles enunciados de precisão matemática flexível que, ao contrário do rigor newtoniano, não serve para descrever leis universais, mas sim para garantir que o enunciador tem sempre razão, independentemente do contexto.
O livre mercado deve ser livre, mas também deve ser regulado – não muito, nem pouco, mas na medida exacta, aquela que apenas Gouveia e Melo pode determinar com a régua invisível da moderação conveniente. Aqui reside um dogma maleável do intervencionismo selectivo, uma verdadeira doutrina quântica da governação, onde o Estado é simultaneamente presente e ausente, regulador e não-regulador, guiado por uma lógica insondável que apenas os iluminados conseguem interpretar.

Se há um nome para esta teoria, e evocando Adam Smith, chamemos-lhe “A Teoria da Mão Invisível do Almirante” – uma variante sofisticada do liberalismo intervencionista, onde o Estado não deve intervir, a menos que se decida que deve, e só nos momentos certos, que ninguém sabe exatamente quando são. Um prodígio de elasticidade doutrinária, um verdadeiro “laissez-faire dirigido”, onde o mercado navega livremente… até que o timoneiro decida que é tempo de agarrar no leme e ajustar o rumo.
Eis, pois, a evolução da política económica em versão Gouveia e Melo: um mercado livre; mas sob vigilância, uma Economia desregulada, mas controlada; um sistema em que a mão invisível opera, mas com supervisão militar! A arte de governar resume-se, assim, à precisão de um compasso de navegação etéreo, que ninguém sabe onde está – mas que o Almirante assegura possuir.
No terceiro teorema almirantesco, a Presidência da República deve ser independente e equilibrada, mas também deve convocar eleições antecipadas sempre que o Presidente considerar que o equilíbrio está desequilibrado. Uma neutralidade interventiva, um poder discreto mas decisivo, uma imparcialidade cirurgicamente orientada.
Como complemento, Gouveia e Melo defende que o Presidente deve pairar acima dos partidos, mas manter um olhar atento sobre as movimentações partidárias; deve evitar imiscuir-se, mas também deve intervir cirurgicamente, garantindo que tudo se mantém como ele deseja. Uma magistratura de influência, mas sem parecer influente; um garante da estabilidade, pronto a desestabilizar quando necessário.

Aqui está, pois, a reinvenção da física política: o movimento simultâneo na inércia, a acção que não age, a neutralidade que puxa cordelinhos. Uma democracia em equilíbrio dinâmico, onde o Chefe de Estado é ao mesmo tempo espectador e maestro, árbitro e jogador, presença e ausência.
Mas isto não parece mais uma democracia fantoche? Uma encenação política em que o equilíbrio é mantido pela constante ameaça de desequilíbrio, e a imparcialidade é apenas um nome mais elegante para o controlo estratégico?
Porém, não penseis que a ciência política do Almirante se limita a reflexões teóricas. Nada disso! Ele é um homem de acção, de comando, de orientação decisiva. Prova disso é a sua visão geopolítica totalizante: o perigo já não vem só do Leste, mas agora é de 360 graus, incluindo assim também o asteroide 2024, a Grande Mancha Vermelha de Júpiter e eventuais ataques de caranguejos revolucionários do Pacífico, mais virulentos do que os do Índico.
Eis uma doutrina de defesa notável: ao contrário da banalidade dos que acreditavam que os inimigos vinham de um lado ou de outro, o Almirante percebeu a Verdade Superior – o perigo está em todo o lado, é omnipresente, como Deus.

E como responder a esta ameaça global, difusa e perpétua? O Almirante, na sua infinita clarividência estratégica, vos oferta a solução: “É tempo de ir além do óbvio e dos interesses imediatos, sem afunilamentos”. Perante tal fórmula mágica, resta apenas a dúvida cartesiana: como nunca ninguém pensou nisso antes? A Humanidade, perdida em debates estéreis sobre a organização política das sociedades, falhou em compreender que a solução era apenas… não se afunilar!
Concluo, neste momento, que o grande erro de Maquiavel, Rousseau e Montesquieu não foi a ilusão republicana ou a crença ingénua na separação de poderes; foi não perceberem que o verdadeiro inimigo da liberdade não era a tirania, mas sim… o afunilamento ideológico! Em todo o caso, se estais agora permanentemente cercados, sabei também que estareis permanentemente seguros – desde que tenhais em Belém um Gouveia e Melo a “cuidar, proteger e honrar a democracia”…
Mas, atenção! O Almirante já sabe que não agradará, em simultâneo, a gregos e a troianos, a liberais e a estatistas, a terráqueos e a marcianos. Ele assume, com a segurança de quem nunca se questiona, que o Presidente deve representar todos os portugueses sem, no entanto, ser de todos – e ainda bem, segundo a sua tese, pois, de contrário, comprometeria a sua isenção.
Este nobre paradoxo merece um estudo minucioso: a unidade nacional deve ser promovida, desde que o representante da unidade pertença a uma determinada não-facção, garantindo assim que representa todos sem estar, de facto, ligado a ninguém. Como convém a uma magistratura independente, mas estrategicamente interventiva; imparcial, mas atenta às dinâmicas partidárias; elevada, mas com os pés bem assentes nos corredores do seu poder.

Em suma, com Gouveia e Melo, tereis um Presidente omnipresente na neutralidade, invisível na acção, uma figura que se moverá com a leveza de uma sombra e a firmeza de um decreto – e que, por um milagre da engenharia política, conseguirá ser simultaneamente árbitro e jogador, ausente mas vigilante, passivo mas decisivo. Um verdadeiro Yin e Yang presidencial de soma zero – uma dramática nulidade.
Eis, pois, em súmula, o novo modelo de liderança presidencial à la Almirante, destilado pela fina ciência do pensamento naval: a democracia a ser salva da democracia; a liberdade a precisar de ser restringida para ser mantida; o Presidente a ser independente, mas activo; a política a não poder ser partidária, salvo quando o Presidente decide que pode.
A conclusão inevitável: em duas tábuas do Expresso, tendes a pureza dos grandes tratados filosóficos, a clareza dos manuais de navegação e a força das frases esculpidas em bronze, tudo isto em concentrado. Nos próximos meses, nos anos seguintes e nas décadas e séculos vindouros, se o deixarem à solta e sem acompanhamento psiquiátrico, os ensinamentos do Almirante dos Sete Egoceanos serão entoados com a reverência de máximas imortais, repetidas com solenidade e acolhidas com o fervor reservado aos dogmas supremos, como versículos inquestionáveis das Scripturae Sanctae da Razão Impecável.

Estátuas serão erguidas, cátedras serão inauguradas, e talvez – se o zelo for suficiente – ainda testemunhareis em vida o primeiro evangelho apócrifo da Nova Ordem Estratégica Naval, onde, entre parábolas de tempestades e calmarias, o Almirante revelará o Quarto Segredo de Fátima.
Depois do Almirante – isto é, d.A. –, a retórica jamais precisará de ideias; a erudição medir-se-á em clichés; e a profundidade política será tão rasa quanto um lago de três palmos. A grande lição do Almirante Gouveia e Melo, durante a próxima campanha presidencial, será demonstrar aos eleitores que nada é mais eficaz na política do que o solene e pomposo uso do perigoso nada.