Quem tem medo da Inteligência Artificial no Jornalismo?

a group of white robots sitting on top of laptops

Houve um tempo em que os pintores eram também alquimistas, misturando substâncias raras e perigosas para criar os seus próprios pigmentos. Um azul profundo exigia a trituração minuciosa do lápis-lazúli, uma pedra semipreciosa trazida do Oriente, e um branco puro requeria chumbo submetido a um processo químico prolongado e tóxico. O pintor não era apenas um artista: era um químico improvisado, um operário da sua própria paleta, um artesão obrigado a desviar-se do que realmente importava – o acto de pintar – para assegurar que as suas cores tivessem a intensidade e a durabilidade desejadas.

Com o tempo, essa necessidade desapareceu. A evolução dos pigmentos sintéticos permitiu que os artistas pudessem concentrar-se naquilo que realmente importava: a concepção e a execução das suas obras. E, no entanto, a arte não perdeu nada da sua profundidade nem da sua beleza. Pelo contrário, com o fardo da manufactura das cores retirado dos seus ombros, os pintores puderam explorar novas técnicas, novos estilos, novas formas de expressão. Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Velázquez, Goya, van Gogh ou Cézanne não teriam sido piores artistas se tivessem tintas pré-fabricadas. Pelo contrário, poderiam ter-se dedicado ainda mais à sua arte sem os incómodos da elevada toxicidade das tintas que afectaram (e mataram) muitos pintores. Ou a dedicarem mais tempo a simplesmente contemplar a vida. O génio não reside no método, mas na visão.

white robot wallpaper

Um paralelismo se pode fazer com todos os avanços tecnológicos – que só o são verdadeiramente quando criam rupturas, quando desconstroem paradigmas estabelecidos e impõem novas formas de pensar, produzir e interagir com o mundo. De nada serve uma inovação que apenas aprimora o que já existe sem desafiar a estrutura vigente; o verdadeiro avanço é aquele que obriga a Humanidade a reconsiderar o que tomava como certo, abrindo caminho para novas possibilidades e, inevitavelmente, novas resistências.

A Inteligência Artificial, democratizada em aplicativos, mais do que uma inovação é uma revolução, que, em todo o caso, causa compreensivas apreensões e dilemas. Por exemplo, no caso do Jornalismo, há quem tema que as ferramentas de Inteligência Artificial transformem a informação num produto padronizado, numa sequência interminável de notícias indistintas, redigidas sem alma, sem contexto, sem aquela centelha que distingue um jornalista talentoso de um vulgar reprodutor de comunicados de imprensa.

Mas este receio, embora natural, ignora a essência do verdadeiro Jornalismo e a perspicácia e espírito crítico dos leitores a médio e longo prazo. Porque, tal como um mau pintor não se torna um mestre por ter acesso às melhores e pré-fabricadas tintas, um mau jornalista não se tornará excelente apenas porque tem à sua disposição um assistente de inteligência artificial.

selective focus photography of people sitting on chairs while writing on notebooks

Obviamente, é inegável que a Inteligência Artificial levanta questões prementes sobre ética e controlo da informação. Quem programará as ferramentas que auxiliam os jornalistas? Com que critérios serão filtrados os dados e seleccionadas as fontes? Ora, sabemos que o risco de enviesamento algorítmico é real, e um jornalismo excessivamente dependente de automatismos pode tornar-se vulnerável à censura subtil e à manipulação encapotada. Mas a comodidade da tecnologia não pode ser desculpa para se abdicar do escrutínio editorial humano, sob pena de transformarmos o jornalismo numa ilusão de objectividade, quando, na verdade, apenas reflectirá os preconceitos embutidos nos sistemas que o regem.

A Inteligência Artificial não substitui a inteligência humana – reforça-a. Potencia-a. Estimula-a. Aquilo que separa o grande jornalista do medíocre não é a ferramenta, mas a forma como a utiliza. A Inteligência Artificial pode estruturar dados, sintetizar informações dispersas, organizar fontes, até sugerir ângulos de abordagem, mas não pode compreender aquilo que torna uma história realmente relevante. Não pode substituir o faro de um repórter experiente, a intuição de quem percebe que a verdadeira notícia não está na declaração oficial, mas naquilo que não foi dito. Não pode replicar a ironia subtil de um grande cronista, nem a acutilância de um editorial bem elaborado. Pode, no entanto, libertar os jornalistas de tarefas mecânicas e repetitivas, permitindo que se concentrem naquilo que realmente importa: investigar, interpretar, analisar.

Tal como no xadrez, o jogo não termina simplesmente quando os programadores conseguem construir um computador capaz de vencer um campeão mundial. Pelo contrário, a Inteligência Artificial cria sim, com essa vitória, um novo desafio: o de superar a própria máquina, de aprender com ela, de atingir um novo nível de jogo, antes inimaginável. O jornalismo não é diferente. Se o objectivo fosse apenas o de produzir notícias padronizadas, os algoritmos já o fariam sem qualquer necessidade de supervisão humana.

A computer circuit board with a brain on it

Mas a questão não é essa. O verdadeiro desafio não está em criar máquinas que produzam textos indistintos, mas sim em proporcionar aos jornalistas as ferramentas para que possam elevar a sua arte a um nível superior.

O perigo do Jornalismo jamais estará na inteligência artificial, mas na mediocridade humana. O jornalismo, como qualquer forma de criação intelectual, depende da capacidade crítica, da curiosidade, do espírito analítico. O mau jornalismo não nasce da automação, mas da preguiça, da complacência, da falta de rigor e de ética. Se há algo a temer no Jornalismo, não é o uso da Inteligência Artificial, mas sim o uso passivo e acrítico que dela se possa fazer. Se os jornalistas aceitarem que a máquina pense por eles, se se limitarem a reproduzir textos gerados automaticamente sem questionar, sem interpretar, sem acrescentar valor, então não será a Inteligência Artificial a culpada pelo declínio do Jornalismo – mas sim os próprios jornalistas.

Assim, tal como os pintores do passado souberam tirar partido dos avanços da química sem comprometer a sua identidade artística, também os jornalistas – que já contaram com o auxílio da máquina de escrever, dos gravadores, da rádio, da televisão, da Internet e de inúmeras outras ferramentas – devem encarar as novas tecnologias não como substitutos da sua essência profissional, mas como instrumentos que potenciam a acuidade da investigação, a profundidade da análise e a clareza da comunicação. Até porque não são as tecnologias que interferem com o rigor e a independência crítica que definem o verdadeiro jornalismo.

a group of white robots sitting on top of laptops

O grande jornalista do futuro não será aquele que rejeita a tecnologia por medo ou por atávico purismo, mas sim aquele que a domina, que a molda aos seus propósitos, que a usa para expandir os limites daquilo que é possível fazer. A Inteligência Artificial não apagará o talento, a intuição ou a visão crítica – será um estímulo para que cada jornalista vá mais longe, investigue melhor, escreva com mais profundidade e precisão.

Por isso, o jornalismo do futuro não será feito por máquinas; continuará a ser feito pelos humanos – talvez menos, certo –, por aqueles e aquelas que souberam integrar a Inteligência Artificial no seu processo criativo, tal como os mestres da pintura aprenderam a usar os pigmentos modernos sem perder o toque de génio que distingue uma obra-prima de um exercício técnico. O Jornalismo, afinal, é uma arte. E como em qualquer arte, o que conta não é a ferramenta – é quem a utiliza.