Moreirense 3.2 (antecedido de Mónaco 3.3)


A escrita tem destas coisas – ou melhor, eu tenho destas coisas. Houve um tempo em que Da Varanda da Luz era escrita inteiramente no estádio, num nível fisicamente acima do fervor dos adeptos, acompanhado pelo famigerado farnel. Era um ritual, quase religioso, com a escrita a sair enquanto mal assistia ao jogo e, amiúde, apenas com o aviso de um bruá para poder ver os golos ao vivo. Publicava a crónica ali mesmo, sem filtro nem ponderação, porque a urgência do momento assim o exigia. Era, muitas vezes, um dos últimos jornalistas a sair do estádio, já com as luzes normais apagadas e apenas as vermelhas brilhantes acesas, dando-me uma sensação de exclusividade. Ajustes e acertos? Esses, em muitos casos, vieram depois, quando já ninguém queria saber, mas ainda assim os fiz, que a dignidade da crónica também conta.

Mas veio a edição quinzenal e, com ela, um novo método – ou uma nova complicação. Já não era um sprint frenético de 90 minutos e descontos. Pior: a crónica começou a “ir-se fazendo”, o que nunca é boa ideia. Entre outras escritas, outras paixões e, claro, algumas conveniências, a crónica passou a ser apenas alinhavada no estádio e concluída à distância, com a serenidade – ou procrastinação – de quem acha que há sempre tempo. E foi assim que, aqui e ali, começou a sair fora de horas, por vezes colada a um jogo da Liga dos Campeões, porque o futebol não tem paciência para cronogramas nem respeita calendários editoriais.

Eis o que nos traz a este momento. A crónica sobre o jogo contra o Moreirense deveria ter saído antes, a quente. Não saiu. E eis-me, assim, a concluí-la, como já fizera com o Barcelona, porque assim se fica com a sedução do futebol europeu. Mas hoje não estou talhado para uma crónica sobre o Mónaco. Até porque cheguei atrasado – o Montenegro não me deixou.

Portanto, terão os leitores – se calhar poucos – apenas para ler a crónica do Moreirense,  e antes umas fotografias deste Benfica – Mónaco por um lugar nos oitavos de final da Liga dos Campeões. Ainda bem que não me apeteceu escrevê-la – e não me levem a mal. Previ que seria um jogo de sofrimento. E não me enganei: passámos à rasca, como poderíamos ter ido de vela. A imprevisibilidade nos jogos do Benfica já se torna previsível.


Hesito, mas não muito. A dúvida instala-se como incerto anda a meteorologia deste Fevereiro, sem ser suficientemente enevoada para me fazer recuar, mas incómoda o bastante para me obrigar a pensar duas vezes se trago o chapéu de chuva. Esta tarde não chovia, mas veio-me a pergunta que não cala: vou ou não vou ao jogo? Sei que, no final, a resposta quase sempre é afirmativa, embora, a cada jornada que passa, a interrogação se torne um ritual — uma espécie de exame de consciência benfiquista, um exercício de ascese futebolística. Vale a pena? E não é só pelo resultado do Glorioso que pesa; é a antecâmara do jogo, a travessia, a incerteza do que ali me espera.

Bem sei que, se o Benfica me desse apenas alegrias, não haveria grande mérito em ser benfiquista. O fervor clubístico vive de uma mística que se alimenta do triunfo, se bem que também de alguma provação, não demasiada, para que a felicidade se mostre ainda mais dulcífera. E é nesta última que a reflexão se impõe.

Como Job a questionar a justiça divina, dou por mim a interrogar-me sobre as razões pelas quais me imponho esta jornada, sabendo que pode redundar em euforia galopante – o Campeonato está no papo –, mas também em aborrecimento taciturno – com esta equipa não vamos lá – ou, pior, naquela cólera amarga que apenas a ineficácia ofensiva e a displicência defensiva conseguem produzir – e aqui não reproduzo palavras por decoro.

(ena, ena… um brinde do VAR que nos oferece um penálti… e golooooooooo! PAVlidis, sem hipóteses!)

Bom, mais bem-disposto, embora não o suficiente para me fazer esquecer a viagem de metro. Ah, o metro. Esse purgatório subterrâneo onde se comprimem almas sofredoras de todas as condições, algumas com cachecóis encarnados, outras alheias ao rito futebolístico, mas todas reféns da mesma lógica de transporte errático. No Metropolitano de Lisboa, a passagem de um comboio não é nunca uma certeza, mas uma hipótese estatística, sujeita a atrasos e a falhas técnicas que soam a castigo divino. Quando não, o melhor que se aspira é um trem de sete em sete minutos, ou dez, sempre cheio nas proximidades do início e fim do jogo. Ando cada vez mais exigente desde que andei de metropolitano de Copenhaga: três minutos e lá vem mais um. De certeza.

(e goloooooooooo!!! PAVlidis de novo. Finalmente, com veia goleadora o grego; finalmente, a fazer jus às três primeiras letras do nome)

Estou mais animado, mas, enfim, agora tenho de continuar a minha reflexão. Dizia eu que, mais de uma vez parado numa plataforma pejada de fiéis e de curiosos, questiono-me se a peregrinação à Luz será assim tão distinta da Via Dolorosa. Pelo menos Jerusalém tem uma mística que a justifica; já a estação do Alto dos Moinhos, onde de ordinário saio para apanhar a credencial, nada tem para devaneios místicos.

Mas avanço, porque a recompensa há-de vir – um dia. Há-de vir, mesmo sem saber que recompensa me espera: a Liga dos Campeões ou só o (habitual) campeonato nacional? Em todo o caso, a chegada ao estádio é sempre um alívio. Sair do metro e respirar o ar fresco – mesmo que cheire a castanhas queimadas, a torresmos suspeitos e a bifanas de qualidade duvidosa – traz um conforto que só quem passou vinte minutos em contacto forçado com a axila de um estranho pode verdadeiramente apreciar.

Mas depois de subir do piso -2 até ao piso 4, começa a ascensão, mas já nada heróica, e sim lenta e implacável: a grande escadaria que tenho de calcorrear, até chegar à Varanda da Luz – esse meu santuário laico onde a devoção se consume –, anda a inclinar-se com os anos. Os meus anos, diga-se. Aqui, permito-me mais uma analogia bíblica: Moisés subiu ao monte Sinai para receber os mandamentos; e eu subo esta ladeira maldita para receber, com sorte, um golo bem construído. Mas se Moisés seguia ao encontro aprazado com Deus, eu, amiúde, nada tenho garantido.

(olha!, temos golo do Moreirense; como é possível!)

E ia eu embalado para escrever que, quando finalmente atinjo o meu lugar, olho para a imensidão do estádio e sinto, momentaneamente, que tudo valeu a pena… Mentira: hoje sinto que, mais uma vez, vamos andar à rasca, como têm sido quase todos os jogos deste campeonato, tirando um ou outro. O relvado está ali, verde e aparentemente promissor, como se cada jogo fosse um novo começo, uma nova possibilidade de redenção – mas não… Os dois primeiros golos do Pavlidis concederam-me esperança – não para o mítico 15-0 –, mas surgem demasiados adormecimentos…

De facto, nos últimos tempos, a esperança inicial tem cedido demasiadas vezes à frustração. O jogo começa e, em poucos minutos, aquilo que deveria ser um caminho glorioso revela-se uma provação. A bola não circula com a fluidez desejada, os passes saem denunciados, e a nossa defesa parece acreditar mais na fé do que na marcação aos atacantes.

E eu pergunto-me: vale a pena tudo isto? Vale a pena suportar o metro, a escadaria, a angústia dos minutos que passam sem golo? Por regra, quando o adversário marca, o estádio mergulha num silêncio fúnebre, a dúvida a todos assola, incluindo os jogadores. Talvez esta Via Sacra seja, afinal, um castigo. Talvez Deus (ou Eusébio, que, no fundo, são manifestações do mesmo princípio metafísico) me esteja a pôr à prova.

(goloooooooo… 3-1, marca Otamendi)

Pelo menos há animação… isso não posso questionar. E vou agora descansar um pouco que o intervalo está a chegar.

(e vem o intervalo…)

… e recomeça o jogo.

Aqui está o texto corrigido, mantendo o acordo ortográfico anterior a 1990:


Portanto, continuemos: sina ou malapata, de jornada em jornada, de dúvida em dúvida, de sofrimento em sofrimento, cumpre-se a minha peregrinação. Sei que voltarei a questionar-me se devo meter-me no metro, se quero mesmo subir aquela escadaria, se tenho estofo para mais uma noite de emoções extremas no resultado, mas de exibições pouco consistentes. Mas também sei que, quando cá chego, quando finalmente me sento na Varanda da Luz, fico sempre com esperança de que tudo melhore. Na verdade, por mais irritante que por vezes esteja, o Benfica não se explica – cumpre-se.

E cumpre-se sempre da forma mais imprevisível possível, confesso. Porque, no fundo, o Benfica já nem é apenas uma equipa de futebol – é uma experiência existencial, um exercício contínuo de fé cega e teimosia emocional. Cada jogo traz consigo a promessa de redenção, mas também a ameaça de um martírio. E é neste limbo que me encontro desde que comecei estas crónicas, e nem sei que lição tenho de aprender.

No fundo, talvez seja isso que me mantém preso a este ritual: a ilusão de que, um dia, deixe de sofrer – e só haja prazer. A chatice é que esse El Dorado nunca mais chega – e eu, aqui, de coração nas mãos.

E jogo a jogo tudo recomeça. Sempre recomeça, como um ciclo vicioso de esperança e frustração. Os jogadores voltam a correr, a bola volta a rolar, e eu volto a iludir-me, a acreditar que desta vez será diferente, que hoje veremos uma exibição convincente, sem tremores nem sobressaltos. E eu a repetir-me. Já acho que fazem de propósito. O Benfica é mestre na arte de manter os seus adeptos em suspense, de os obrigar a viver cada minuto como se fosse o último, de os fazer passar do êxtase ao desespero num simples passe mal medido. E, por mais que todos se queixem, por mais que resmunguem e ameacem nunca mais voltar, o Benfica sabe que estarão aqui na próxima jornada, no mesmo lugar, a repetir o mesmo ritual.

(e golo do Moreirense; grande porcaria: 3-2 para sofrer)

E pronto, instala-se de novo o pânico. O estádio, que há instantes parecia exalar um alívio quase festivo, regressa ao estado natural de inquietação. As mãos voltam à cabeça, os murmúrios ganham volume, e já vejo quem pragueje de pé, indignado com a facilidade com que se sofrem golos.

E o relógio, esse maldito, mexe-se agora numa sádica lentidão, e eu sei o que me espera: uns dez minutos, com descontos, de mais tormento – uma vergonha para um Benfica de glórias perante uma equipa de Moreira de Cónegos. Pelo amor do Santo Padre!!!

(… nem vale dizer nada sobre o jogo…)

Pronto! Mais uma vitória suada, com golos sofridos, uma porcaria! Regresso no próximo. Claro!