Pinto da Costa, um caixão no relvado


Meus bons amigos e minhas bondosas amigas – e para todos aqueles que, em vida, beijam a face direita do outro enquanto a esquerda ainda seca o golpe da bofetada anterior. Daqui vos escreve, do Além, este vosso humilde autor, neste infinito exército de espectros, defuntos, extintos, finados e outros tantos sinónimos que os vivos arranjam para evitar pronunciar a palavra fatídica, como quem espanta um fantasma com uma metáfora.

E digo “humilde” não por natural modéstia – que a modéstia, como bem sabeis, é a vaidade dos discretos –, mas porque a morte nivela as coisas, e aqui deste lado do túmulo, o epíteto de “finado” basta-me. Já não há títulos, condecorações ou distinções: reis e mendigos compartilham o mesmo silêncio, presidentes e pedintes dividem a mesma eternidade, e até os mais prolixos políticos se calam – ainda que, por costume, alguns continuem a prometer ressurreições em três tempos.

Entretanto, não vos iludais – sim, vós que ainda respirais, porque esta legião de almas aumenta sem cessar. Sim, meus prezados viventes, cada dia que passa são 160 mil a menos no vosso lado e 160 mil a mais no nosso. Uma simples questão aritmética vos dirá que, somados os séculos, o nosso exército, aqui, há muito ultrapassou a população dos vivos.

Podeis numerar os vossos frívolos soldados e fanfarrosos generais. São eles, parecendo muitos, poucos perante a legião de mortos que vos espreita na sombra dos tempos. Se isto, por aqui, fosse físico, estaríamos mais atafulhados do que os indostânicos nos beliches do Benformoso. Contas feitas, desde que Cristo guinchou nas palhas de Belém, já se esganiçaram, espernearam e respiraram entre 108 mil milhões e 120 mil milhões de almas. De todos estes, só ‘restam’ do vosso lado pouco mais de oito mil milhões. Sois vós uma triste minoria, cerca de 7% – o que, em democracia, significa que valeis pouco mais do que o Bloco de Esquerda, ou talvez agora bastante mais, dado o desmoronamento dessa gloriosa trincheira revolucionária depois do partido da Mariana Mortágua andar a escorraçar lactantes como um alfaiate republicano varrendo fidalgos.

Portanto, continuai a brincar por aí com o sufrágio universal, a liberdade de expressão, as lutas de classe e a empresa familiar do Montenegro, mas aqui, do lado de cá, a verdadeira maioria já decidiu: cedo ou tarde, todos vós vos juntareis a nós.

De resto, dir-vos-ei que a única desigualdade real que subsiste entre vivos e mortos é a ilusão. Vós julgais que a vida é uma estrada infinita, enquanto nós sabemos que não passa de um atalho curto para este lado da existência. A cada suspiro vosso, o tempo afia a foice, e se hoje ainda tendes carne nos ossos, amanhã sereis como eu, um narrador póstumo a rir-se da vossa vã pressa em acumular riquezas, títulos, diplomas e afazeres.

Cuidai-vos, pois, se vos apraz; fazei exercícios, comede verdes e bebei águas minerais ou até água do mar e suplementos vitamínicos; mas sabei que, por mais que vos esforceis, a estatística não falha: a taxa de mortalidade entre os vivos permanece, desde o início dos tempos, firmemente fixada nos 100%.

Alguns chegam aqui atónitos, outros indignados, muitos incrédulos. Mas todos, sem excepção, terminam por entender o derradeiro ensinamento: a vida é um empréstimo curto. Porém, antes disso, há os funerais – esse espetáculo sublime!

Que concerto de lágrimas e discursos, que sinfonia de soluços e elogios post mortem! No meu tempo, quando me finei, onze amigos levaram-me ao jazigo com uma tristeza de quem leva um fardo incómodo. Não que fossem desalmados; eram apenas vivos, e os vivos têm essa qualidade inescapável: ainda vivem. Mas hoje, ao espreitar os cortejos fúnebres modernos, noto que a comédia atingiu um nível superior.

Hoje, no Porto, por exemplo, até tivemos um caixão no relvado de um estádio de futebol – o que, em abono da verdade, nem é assim algo tão inaudito, porque eu já vi coisas bem mais extraordinárias. Contudo, deu-me pretexto para a crónica. E defendo não ser inaudito porque já vi um ministro inaugurar uma obra sem existir, um economista com menos acerto do que um horóscopo de jornal, e até um treinador avaliar como belíssimo o desempenho da sua equipa depois de levar cinco secos. Já também vi debates políticos onde a inteligência entrou morta, e já assisti a funerais onde o defunto aparentava mais ânimo do que certos congressos partidários. Já vi, de igual modo, gente a votar em mortos – e mortos a votarem, dependendo das freguesias. E vi, mais de uma vez, quem estivesse vivo apenas por teimosia, como certos presidentes de empresas públicas que ninguém sabe bem para que servem.

Portanto, um caixão num relvado? Bah! Nada que me surpreenda.

Bom, mesmo bom num funeral, é a vista que o defunto tem sobre a plateia para ver quem realmente chora e quem apenas marca presença para garantir que o testamento não os esqueceu. E, portanto, Pinto da Costa, homem que tanto soube afastar as más-línguas em vida, deve estar agora divertido por se ter visto rodeado de tantas na última hora – ou primeira na eternidade. Nos últimos dias, aqueles que lhe atiraram peçonhas, ergueram-lhe loas sentidas, os que o odiavam competiram por um lugar de honra na despedida. Até a águia que há muito esperava ver o dragão tombar se mostra condoída, e o leão de igual modo. Que teatro delicioso!

Vede ali como o choro é inversamente proporcional ao afecto sentido em vida! Que bela cena é aquela em que um rival de décadas verte lágrimas fartas diante do esquife, chorando não a perda do amigo, mas a perda da oportunidade de continuar a odiá-lo. É de virem as lágrimas aos olhos, para quem as tem. E aquele outro, que outrora nem podia ouvir o nome do finado sem cuspir de lado, agora declama sentidas palavras sobre “o grande homem que partiu”. Ah, a hipocrisia! – essa arte superior à diplomacia, porque se pratica sem tratados e sem necessidade de anexações.

E que dizer daqueles que, cinco minutos antes, ocupavam-se com trivialidades, e cinco minutos depois já narravam aos comensais a sua profunda ligação com Pinto da Costa? Há um fenómeno curioso nestas ocasiões: o falecido, que em vida era um homem de rotinas, de pequenas manias, de carne e osso, converte-se instantaneamente numa figura heróica, um titã de qualidades sobrehumanas. “E eu estava lá”, declara qualquer um, inflando o peito como se as exéquias fossem a tomada da Bastilha. “Nós conversávamos muito”, mente outro, que nunca trocara mais que um aperto de mão protocolar.

Porém, não nos fiquemos pelos velhos conhecidos. Há também os desconhecidos, aqueles que jamais privaram com o morto, mas que vêem, ali, na morte e nas exéquias uma excelente oportunidade de participação social. São os profissionais do luto, seres que, sem necessidade de ensaio, exibem o rosto embargado, os olhos vermelhos e um ar de pesar tal que um verdadeiro amigo se sentiria descompensado por não chorar tanto. São os chorões públicos, os carpideiros modernos que, de telemóvel na mão, asseguram o registo de ocasião, talvez uma selfie enquadrando o caixão. Afinal, agora o pranto digitaliza-se, e se um lamento não for partilhado nas redes sociais, terá sido mesmo um lamento?

E do meu lado do túmulo, há risadas. Sim, risadas, porque a eternidade, se nada mais concede, dá-nos perspectiva. Observamos os que se alvoroçam pela herança, os que fazem contas às posses do falecido ainda antes de ele ir comer capim pela raiz ou virar tempero do vento. Vemos aqueles que, com um olho lacrimejante e o outro na agenda, já preparam a próxima ocasião solene. Vemos as viúvas que nunca amaram, os amigos que nunca foram, os elogios que nunca haveria se a vítima ainda tivesse ouvidos.

E assim se segue o teatro do mundo. Como diria o imortal Shakespeare, “a vida é um palco” e os funerais são o seu terceiro acto, que transforma os personagens em virtuosos por decreto, ainda que na cena anterior fossem vilões. Eu, Brás Cubas, que de lágrimas soube pouco, mas de hipocrisia sei muito, vos digo: não vos apoquenteis com as aparências. Os mortos têm tempo, e a eternidade é longa. Nós assistimos a tudo, do grande além-túmulo, e se há algo que nos diverte, mais do que as louvaminhas póstumas, são aqueles que as proferem com fervor enquanto já fazem cálculos sobre a distribuição da prataria.

Aos vivos que choram sinceramente, o meu abraço etéreo. Aos que choram com cálculo, um sorriso espectral. E aos que não choram de modo algum, esses sim, têm o meu respeito: pois o silêncio, por vezes, é a única forma honesta de lembrar os mortos. E eu, se calhar, perdi uma boa oportunidade para estar calado – mas não aguentei.

Em todo o caso, esbeltas leitoras e finíssimos leitores, se esta crónica vos agradar, pago-me da tarefa; se vos não agradar, pago-vos com um piparote, e adeus.

Brás Cubas

N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.