O aniversário é de Sintra, mas a prenda será recebida por uma historiadora de arte cuja empresa unipessoal arrecadará 294 mil euros (IVA incluído) sem ter tido o ‘incómodo’ de passar por concurso para organizar, entre outras acções culturais e pedagógicas, como ‘gincanas’ e ‘escape room‘. Alegando tratar-se de uma programação com “direitos de autor”, a empresa Spira, detida integramente por Catarina Valença Gonçalves, a empresa pública Parques de Sintra – Monte da Lua decidiu celebrar um ajuste directo para um contrato ao longo deste ano.
Os eventos a organizar inserem-se no 30º aniversário da elevação da ‘paisagem cultural’ de Sintra a Património Mundial, pela UNESCO. Para celebrar este marco, a Parques de Sintra – Monte da Lua abriu os cordões à bolsa e a ‘sorte grande’ saiu à Spira, que teve a fortuna de ter sido a única empresa que a administração da empresa pública se terá lembrado de convidar para organizar as comemorações, mesmo se o montante em causa deveria, em princípio, levar à realização de um concurso público.
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A Parques de Sintra – Monte da Lua justifica a opção pelo ajuste directo pelo facto de se tratar de uma “criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espectáculo artístico”. Neste caso, a Spira terá criado o programa de festejos ‘PH30’ que prevê a realização de 30 iniciativas ao longo de 12 meses, entre Dezembro de 2024 e o final deste ano.
Mas esse expediente é uma inversão dos procedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos. Com efeito, havendo necessidade de organizar eventos comemorativos, a entidade pública ou define o caderno de encargos (com uma programação provisória), lançando um concurso público para a sua execução, ou opta então por um concurso de ideias, garantindo depois a sua execução, por ajuste directo, ao vencedor. Ora, a Parques de Sintra-Monte da Lua ‘curto-circuitou’ o procedimento, convidando a empresa de Catarina Valença Gonçalves para lhe propor uma programação e ‘legalizando’ o ajuste directo concedendo-lhe à posteriori alegados “direitos de autor”.
De acordo com o anúncio público das celebrações, a programação foi concebida com um “foco especial nos jovens” e promete ser “inovadora, divertida, desafiante e digital”, trazendo “aos parques e monumentos iniciativas inéditas”. No programa, seguindo o caderno de encargos, constam ainda actividades como ‘gincanas’ e ‘escape room‘, mas também ‘murder mistery‘ e ‘ghost experience‘.
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Questionada pelo PÁGINA UM sobre a ausência de um concurso público, a Parques de Sintra diz que se pretendeu “adquirir uma programação que envolve um conceito artístico específico, que resultará em vários espectáculos que decorrerão no período de um ano”. E acrescenta que este conceito foi desenvolvido pela “empresa que se convidou [a Spira], ficando a cargo desta, não apenas a concepção e ideia artística, como a produção e logística que envolverá todo este evento”. A empresa terá ainda a seu cargo a comunicação relacionada com o programa.
Para defender a sua opção, a Parques de Sintra destacou o facto de a Spira ser uma empresa “especializada em concepção, execução e produção de projectos de revitalização patrimonial, Turismo Cultural e de Lazer, consultoria na área de Gestão do Património, actividades de animação-pedagógica e formação de técnicos da área da Gestão do Património, autora de projetos como a Rota do Fresco, a primeira rota de turismo cultural em Portugal, ou a Bienal Ibérica do Património Cultural, evento de referência do sector do Património Cultural”.
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Na missiva enviada ao PÁGINA UM acrescenta-se que empresa da historiadora de arte entregou “à Parques de Sintra uma proposta global que contempla a programação para os diversos públicos, assim como a produção integral de todas as actividades e iniciativas”.
Porém, mostra-se bastante duvidoso que a Spira fosse a única empresa capaz de programar e organizar eventos desta natureza, incluindo ‘gincanas’, ‘escape room‘,’murder mistery’ e ‘ghost experience‘, o que coloca em causa a legalidade do contrato. Com efeito, a norma do Código dos Contratos Públicos escolhida pela Parques de Sintra – Monte da Lua, para evitar o concurso público, refere expressamente que só pode ser usada quando “as prestações que constituem o objecto do contrato só possam ser confiadas a determinada entidade” por se estar perante “a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espectáculo artístico.” Esta norma é, por regra, usada quando uma entidade pública compra uma escultura ou pintura de um artista específico ou quando decide contratar, por exemplo, os Xutos & Pontapés ou o Tony Carreira.
Esta não é a primeira vez que a Spira ‘tem sorte’ junto da Parques de Sintra. Aliás, este ajuste directo para as comemorações é uma espécie de déjà vu. Em Julho de 2018, a empresa já tinha facturado 236.710 euros com um contrato para a programação do Ano Europeu do Património. Nesse caso, foi usado como argumento para o ajuste directo o facto de não existir concorrência “por motivos técnicos”, sem se dar a conhecer no Portal Base como se chegou a essa conclusão.
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Mas o envolvimento da Parques de Sintra com a Spira vai para além destes dois ajustes directos. A fundadora e gerente da empresa, Catarina Valença Gonçalves, é a directora do programa avançado em gestão de património cultural da Universidade Católica, uma formação que conta com o apoio da Parques de Sintra. Uma prova de que a Spira, e a sua fundadora, têm na Parques de Sintra um bom aliado.
Além disso, de entre os 46 contratos que a empresa angariou junto de entidades públicas, os dois mais valiosos foram a Parques de Sintra. No total, dos cerca de 2,8 milhões de euros que a Spira já facturou em contratos públicos, mais de 586 mil euros (com IVA) vieram da Parques de Sintra, ou seja, cerca de 20% do total.