Um fim de um mundo

Seria a identidade e toda a sua doença contemporânea associada, uma questão de branding, fruto de uma necessidade quase patológica de pertença?

Nessa época conturbada que já vinha de há muito (talvez mesmo desde a Origem dos Tempos ou mesmo do Tempo só), muitas pessoas não sabiam bem quem eram, tendo a necessidade de comprar a sua identidade, ao invés de terem simplesmente uma…

Porque sim.

Ela podia estar num iPhone, numas Levi’s 501 de ganga, nas músicas de uma banda do momento, mas que rapidamente passará de moda, na pertença a um grupo de runners conhecidos na rede que vestem verde-luz para fazer-se à estrada e que gostam de correr das 23 horas em diante, ou ainda podia mesmo residir no cartão de sócio de um clube de futebol cotado em bolsa mas cuja direcção nem um rosto corrupto visível tem para uma hipotética selfie com o presidente.  

Podia estar também numa mota, num skate, num blusão de cabedal como no filme de David Lynch Wild at Heart, ou estar ainda plasmada nuns ténis ou meias do Lidl, e mesmo numa vacina da Pfizer ou da Moderna, para lembrar um passado recente.

Enfim, aquilo que dava sentido de pertença às pessoas podia ser tudo isto e muito mais, mas raramente seria possuir um pensamento claro, genuíno ou mesmo arrojado.

Ter uma identidade não custava muito, as redes sociais encarregavam-se de ser a caderneta para a colecção dos cromos identitários que por aí pululavam e quanto mais barata custasse a identidade, melhor seria.

Depois também havia as identidades espirituais e religiosas, como o eco-espiritualismo, a ioga, o sexo tântrico, budismo, hinduísmo, neo-paganismo, meditação no zoom e muitas outras.

Se se pertencesse ao ramo das artes, então nesse caso seria crucial ter uma à séria, mas mais sofisticada.

Ser-se humanista era muito valorizado neste ramo da sociedade, mas não um humanismo à século XX pela via do Socialismo ou da Social Democracia, esse já tinha os pés para a cova. Hoje era exigida uma alavanca mais cultural. E era bom dizer-se e escrever-se de vez em quando “alavancagem” ou “igualdade”, o que por si só não seria nenhum problema.

Já ser pelos “trabalhadores” era considerado démodé e seria marca e identidade do Partido Comunista ainda que estivesse a perder de ano para ano cada vez mais votos.

Falar na pobreza já não assegurava deputados, mesmo que a sociedade estivesse mais pobre.

Os velhotes andavam a morrer em barda e parecia que já ninguém queria saber deles.

Mesmo os mais desfavorecidos não acreditavam que algum partido político fizesse alguma coisa pela sua situação, alguns acreditavam mesmo mais na Cristina Ferreira e na TVI, ou ainda pior, no Cláudio Ramos e na sua incrível “honestidade intelectual” como se ela fosse salvívica.

O esquema desse tempo era outro e o futuro não parecia contar muito com os mais pobres.

Eram abstratos de mais e não trabalhavam, atrapalhavam até.

A sociedade do Bem (mal) Estar estava a ficar desumana, sem duvida.

Aos olhos dos menos pobres, os mais pobres não queriam trabalhar, não se percebendo muito bem de onde vinham essas ideias.

O novo paradigma era cultural e climático.

Muitas vezes bastava ser-se cisgénero ou do género binário e querer acabar com o carbono e queimar todos os carros à face da terra, ou mesmo ter novamente o hino nacional e o ódio à emigração muçulmana a viver no Tik Tok para se ter uma identidade, consoante a pseudo-geografia por onde se esteja a ver, que isso certamente já seria música para os ouvidos das redes (anti) sociais, que cada vez mais tinham as orelhas maiores, tipo lobo-mau.

O novo bilhete de identidade já não era carimbado pelo Governo, mas por um canal de You Tube ou por uma conta de Instagram. O carimbo era um like.

Que mundo!..

Não se podia era não se ser nada.

Se se fosse artista mas se se identificasse com a direita mais clássica, corria-se o risco de acabar nas galerias do Casino Estoril a pintar casas de férias com paisagens naïves que desencantam sempre riachos e moinhos vindos não se sabe de onde, sobretudo as pessoas mais velhas que ainda acreditavam em valores clássicos e tradicionais.

Mesmo assim, isso era ter uma identidade. Os cromos de Cascais fechados no seu gueto de camurça anacrónico também tinham o direito à vida e muitas vezes o objecto ou o gadget que dava o passaporte identitário encontrava-se em saldos.

Já não havia assim tantos ricos para que prescindissem dos saldos.

E desta forma chegamos ao Ricardo Campos de Almeida, o pequeno herói desta historia que achava também que era hora de nos alimentarmos de livros em vez de informações digitais. Era hora de lembrarmos o humano em vez de imaginarmos o transumano. Sabia muito bem que conquistar um direito podia demorar um século mas perdê-lo, podia ser numa hora.

Para ele estava na altura de valorizar a inteligência natural novamente em prol da inteligência artificial e de pensar. Portanto… De existir, para transformar.

Este rapaz era um clássico, mas para a frentex, achava ele.

Fosse o que fosse, pensasse o que pensasse, disparatasse o que disparatasse, não se identificava na totalidade com grupo algum.

Em qualquer era das trevas, foi sempre a centelha da razão que fez a humanidade renascer para reconstruir o presente e imaginar o futuro. Parecia que nesse tempo o acto mais revolucionário era pensar diferente.

O Ricardo Campos de Almeida pensava diferente. Achava que perder-se na maré da ideologia ou no oceano da ignorância nada mais era do que o conforto de ter destinado a função de pensar para os outros, e ter apenas o impulso de agir. Age, não penses, era a frase lapidar da New (brand) Age.

O mundo que se avizinhava era impensável de certa forma, em que as grandes empresas de investimento e multinacionais estariam aparentemente ainda mais com as minorias, com os pobres, e com os injustiçados em geral.

Tipo Black Rock e Vanguard que davam cada vez mais cartas no jogo absurdo da economia política. Uma estética que podia ter os dias contados.

Interessante, desafiador, cómico, e claro… Mentiroso. 

Portanto, o Ricardo Campos de Almeida compenetrava-se de que simplesmente pensava e contrariava as tendências que não só povoavam o subconsciente global mas também o próprio consciente colectivo, se assim se poderia dizer.

E isso era satisfatório. Era o autor e o publico ao mesmo tempo, mas era incapaz de motivar fosse quem fosse com as suas ideias.

Havia dias em que nem ele próprio acreditava minimamente naquilo que tinha pensado no dia anterior, denominando-se facilmente essas pessoas, de indivíduos com transtorno bipolar aos olhos do directório de saude mental americano (DSM). O directório europeu ainda não sucumbira totalmente às novas sensibilidades psiquiátricas.

Pensar e sentir coisas opostas podia ser sinónimo de um transtorno bipolar, sobretudo se ao sujeito-vítima-de-si-próprio que sofra desse mal, a coisa o esfrangalhasse sem contemplações e passasse os limites do sofrimento, e essa pessoa podia não ser apenas vítima de uma conjuntura.

Mas embora o Ricardo Campos de Almeida o soubesse, não se considerava assim.  

Era apenas inseguro e sabia não ser uma pessoa extrovertida ao ponto de recuperar facilmente das agruras do dia anterior só porque falava do assunto. As coisas eram substancialmente mais complexa, mas ele dava-se bem com isso, achando ser natural. Pelo menos até ter sido observado por um médico especializado-em-nada, que o contrariou.

O Ricardo Campos de Almeida era controlador aéreo e isso obrigava-o a estas acções de controle médico de rotina.

Mas desta vez o especialista parecia ser diferente do anterior, sendo novo na empresa já que o antigo que o observara durante anos, bastante mais velho, tinha-se retirado devido a uma crise nervosa aguda.

Mas esse era pouco exigente e estava lá mais para conversar sobre cinema, o que normalmente agradava ao controlador aéreo já que ambos eram admiradores de Eric Rohmer e dos seus filmes palavrosos.

O novo e dinâmico especialista em saúde mental contratado pela empresa, era de outra estirpe mais perigosa e incisiva, tinha a escola toda e fora certamente bom aluno. Era um bom cão-de-fila das novas sensibilidades médicas e psiquiátricas seguindo protocolos atrás de protocolos sem pô-los minimamente em causa.

Apesar de tudo, o Ricardo Campos de Almeida era uma pessoa bem-disposta, ria-se bastante em geral e tentava não andar triste, embora fosse titubeante para fazer raccord com um mundo cada vez mais inseguro, tendo até confessado essa sua característica ao médico que disparando de rajada, assegurou que essa consideração fosse anómala.

Para o especialista, a boa disposição poderia estar a esconder uma depressão profunda, ainda que o Ricardo Campos de Almeida o negasse, confessando também que lia bastante e que isso tinha um efeito positivo nele quando estava mais triste.

O especialista afirmou que isso também não era normal, parecia saber bem o que era a normalidade.

O tipo de literatura que o controlador aéreo lia não podia pôr uma pessoa bem-disposta, já que se tratava de uma literatura intelectual e difícil, à base de filosofia com clássicos tipo Dostoyevsky no cardápio literário.

Aconselhou-o a ler uns livros mais leves, literatura light, essa sim fá-lo-ia esquecer a dura realidade e torná-lo-ia mais ligeiro, menos problemático e mais apto.  

Mas o especialista achou estranho o especialista anterior não ter anotado essa anormalidade na sua ficha clínica.

Para o Dr. Paulo Souto e Silva o que o Ricardo Campos de Almeida precisava era de uma boa dose de ligeireza.

E, se tomasse o que lhe receitava, poderia trabalhar sem problema.

Saiu da consulta de rotina medicado com o patrocínio da Bial.

Foi para casa, agora sim melancólico e meio deprimido e ainda passou pela farmácia para aviar as estranhas receitas, mas jamais pela livraria, não iria tão longe.

Assim poderia continuar a agradar à entidade empregadora que o contratara e que andando em restruturações já se tornavam visíveis as mudanças.

Recentemente a empresa tinha posto a bandeira colorida do Arco-íris na sua entrada e garantia publicamente estar a fazer guerra ao carbono embora estivesse ligada aos transportes aéreos.

Rumou até casa a pé e achou estranho a cidade estar tão calma, como se estivesse a meditar sobre si própria. Tinha estado a chover, mas uns raios de sol típicos de Abril, penetravam por entre o cimento dos prédios e o plástico dos automóveis, convertendo-se num cenário fílmico e até poético. Foi uma caminhada sem tempo definido tal o turbilhão de pensamentos em que a cabeça do homem se encontrava.

Chegou a casa, mas ao invés do comprimido receitado, tomou um duche rápido e depois ligou a televisão enquanto preparava umas almôndegas.

E mal ligou o aparelho ficou atónito com o que viu. Ainda mais que àquela hora de almoço do dia 11 de setembro de 2001 quando foi comer a casa da mãe no intervalo das aulas.

A SIC Notícias estava em directo de Washington, porque uma bomba explodira na Casa Branca. 41 mortos já contabilizados.

Nada disto podia estar a acontecer. Pensou que podia ser uma brincadeira já que era dia 1 de Abril, o dia das mentiras.

Mudou de canal e foi parar à TVI 24, que fazia um directo também, mas a partir de Bruxelas. Por envenenamento várias pessoas que trabalhavam no Parlamento Europeu, sucumbiram, entre elas o próprio presidente da Comissão Europeia.

Não podia ser.

Alguma coisa estava errada. Mas com isto das fake news todos os dias eram dia 1 de Abril. Tentou pesquisar na Internet mas estava extremamente lenta ao ponto de voltar aos canais convencionais.

Passou para a RTP3, e em rodapé por baixo de um jornalista que vociferava uns disparates imperceptíveis, informava que a sede da Google havia sido bombardeada com uns drones verdes e estranhíssimos que deram cabo do edifício num ápice, vitimando pelo menos 88 pessoas. Mesmo sendo dos poucos que ouvira falar do projecto Blue Beam e do Cyber poligon, não estava a acreditar na ocorrência.

Noticiavam também que o novo Zuckerberg que tinha passado a ser pela liberdade de expressão estava em paradeiro incerto, tendo o seu avião particular sido encontrado no meio de uns penhascos californianos, sem ninguém lá dentro.

Mas pareciam tudo suposições embora lembrasse uma alucinação colectiva.

Ainda em grandes parangonas lia-se que a casa do presidente Orban da Hungria tinha explodido com o próprio lá dentro, o que afastava a possibilidade de ser um atentado da extrema-direita, segundo a RTP.

Tentou os canais internacionais. Nada de mais, pareciam as mesmas notícias copiadas mas nos contextos desses países. Mal por mal antes Portugal e voltou à SIC, mas desta vez aparecia chuva no seu plasma. Uma chuva analógica e a fazer lembrar outro tempo televisivo.

Experimentou a CMTV e diziam com um directo mal-amanhado, que os estúdios da SIC haviam sofrido uma espécie de atentado, mas a jornalista estava atónita e mal conseguia falar.

Deslocava-se para lá, mas parecia estar drogada. Não enchia chouriços, enchia malas de viagem com estupefacientes.

O mundo enlouquecera e ele é que tinha de tomar comprimidos? Baixou até ao silêncio o volume da televisão, fitou os medicamentos que ainda não tinham saído das embalagens correspondentes, e pensou no especialista que lhe receitara aquilo. Estaria ele também a seguir a novela da terceira guerra mundial em directo, enquanto bebericava um gin tónico? Da terceira não! Para aí da quarta ou da quinta, já lhe perdera a conta.

Divertiu-se com a imagem e decidiu não tomar os medicamentos.

Foi até à janela ainda com a toalha de banho pela cintura e com o cabelo húmido, viu o entardecer quase a abraçar a noite que ao invés daquilo que as televisões mostravam, era belo e sumptuoso, contrariando totalmente a adrenalina vigarista espelhada no som estridente do seu plasma.

Para ele o pior era o som. As imagens por si eram inofensivas sem o áudio. Até podiam ser cores em movimento. O som era o inferno.

A ultima voz que ouviu foi a de um comentador de geopolítica que estava a chorar em directo e a jurar que tinha avisado desta catástrofe humana mas que nunca ninguém o ouvia, nem a mulher. O pivot muito conhecido aproveitava para pedir desculpas ao público pelos seus últimos trinta anos de teatro, assumindo-se como um mau actor. Pedia de joelhos à audiência para que não o deixassem acabar como Gaddafi, arrastado pelo chão de Tripoli. Parecia mesmo o fim do mundo.

Abriu a janela e o silêncio mostrava-se de uma beleza comovedora. Ao longe via-se a linha do horizonte que dividia o azul do rio com o azul alaranjado do céu. Parecia uma pintura digital. A paisagem e a sua beleza sempre foram a sua aspirina e foi atingido por uma lufada de ar que trazia o aroma primaveril de terra fresca.

O rio, lá em baixo, estendia-se preguiçoso, numa dança silenciosa com os prédios envolventes.

Não havia pressa no cair da noite – era um entardecer sem a mínima intenção de chegar a lado algum.

O Ricardo Campos de Almeida enquanto desfrutava do silêncio envolvente, acendeu um cigarro e percebeu que voltava a estar bem disposto.

Ruy Otero é artista media

Ilustrações de Swimming Pool Project