Todos os dias falamos de dinheiro. Muitos de nós o amaldiçoam. Atribuímos-lhe a origem de todos os males: de guerras, de conflitos, de injustiças. Outros, falam do dinheiro como se tivesse sido algo inventado pelos Governos; por um decreto-lei: crie-se o dinheiro. Nada mais longe da verdade!
O dinheiro significa civilização. O dinheiro provém de um processo de mercado; algo que os seres humanos tiveram de “inventar” para que a civilização, o comércio e a riqueza pudessem prosperar. Sem a sua existência, seguramente teríamos de viver na Idade da Pedra, pois a especialização do trabalho seria praticamente impossível.
Como surgiu então? Qual foi o processo de mercado que deu origem ao dinheiro.
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Etapa 1: da troca directa para a troca indirecta.
A troca directa exige a dupla coincidência de desejos. Para que uma costureira obtenha uma dúzia de ovos, em troca de umas calças, não é suficiente que prefira os ovos às calças. O criador de galinhas também deverá preferir as calças aos ovos. Esta dupla coincidência de desejos é algo extremamente difícil de ser obtida; ou seja, trata-se de pura sorte encontrar uma costureira a desejar ovos e um criador de galinhas vestido sem calças.
No entanto, a costureira pode resolver esse problema, recorrendo à troca indirecta. Por exemplo, a costureira pode reparar que o criador de galinhas precisa de castiçais e o fabricante de velas precisa de calças. Ela pode, então, trocar as suas calças por alguns castiçais com o fabricante de velas e, em seguida, trocar esses castiçais por uma dúzia de ovos com o criador de galinhas. Neste caso, os castiçais foram o meio de troca da nossa costureira. Foram apenas utilizados de forma indirecta na obtenção de ovos.
Mas a solução de troca indirecta ad hoc é muito limitada. Ainda seria preciso muita sorte para a costureira encontrar alguém que esteja a oferecer algo que o criador de galinhas deseja e que também deseje calças.
O cenário mais próximo da realidade seria uma série de trocas mais longas para que a costureira obtivesse os ovos. Talvez ela precisasse de trocar calças por cordas; depois, cordas por madeira; madeira por peixes; peixes por castiçais; e, por fim, castiçais por ovos. E todos os outros bens que a costureira deseja, como leite ou fruta? Certamente, iria obrigar a costureira a passar por outro pesadelo.
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A necessidade de troca indirecta é cada vez mais necessária à medida que a divisão do trabalho aumenta e os desejos dos consumidores se tornem mais complexos. Numa sociedade tribal, em que cada família produz aquilo que consome, a troca indirecta é desnecessária: não existe necessidade de realizar trocas. Quanto mais as pessoas se especializam a produzir um determinado bem ou serviço, menos provável é que qualquer indivíduo possa adquirir as várias coisas que deseja em troca do produto ou serviço de nicho que apresenta ao mercado.
Etapa 2: de meio de troca para meio comum de troca
Para que um determinado bem se torne um meio comum de troca irá depender da sua liquidez; por outras palavras, da sua “vendabilidade“. De que se trata? Da facilidade de o vender no mercado: (i) no momento em que desejamos e (ii) de acordo com os últimos negócios realizados, ou seja, em linha com os preços actuais praticados.
Para melhor ilustrar, vamos utilizar o exemplo de um pão, o bem líquido – mais vendável –, e um instrumento náutico, o bem não líquido – menos vendável.
No nosso exemplo, o proprietário do pão está numa posição privilegiada face a alguém que deseja vender um instrumento náutico.
O primeiro bem é mais vendável que o segundo. Isto não se trata de afirmar que o proprietário do instrumento náutico não o poderá vender; se este último baixar o preço, ou seja, pedir menos bens em troca do seu instrumento, alguém o comprará. O vendedor do instrumento náutico só poderá vendê-lo, em linha com os últimos negócios que ocorreram no mercado, caso se dedique a pesquisar compradores que compreendam o valor do seu instrumento náutico e participaram em anteriores negócios semelhantes. Precisamente o contrário do vendedor do pão: este não precisa de pesquisar compradores para encontrar rapidamente um negócio, de acordo com os preços actuais.
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Devido ao reconhecimento desta desvantagem, associada aos bens não líquidos, os fornecedores destes bens, os menos vendáveis, tendem a trocá-los por bens mais líquidos (facilmente vendáveis), antes de entrarem no mercado a procurar os bens que desejam. Tal facto desencadeia uma espiral ascendente de comercialização para um grupo restrito de bens – os mais líquidos do mercado.
A elevada liquidez destes bens atrai mais procura, o que aumenta a sua comercialização, o que atrai ainda mais procura, e assim por diante. Este processo continua até que apenas alguns bens sejam seleccionados como meio comum de troca.
Etapa 3: de meio comum de troca a dinheiro
O processo de selecção irá parar quando os indivíduos apenas desejarem comercializar os seus produtos e serviços pelo bem mais vendável do grupo restrito de meios comuns de troca. À medida que incrementa o consenso sobre qual o meio comum de troca mais comercializável, a espiral ascendente de comércio para esse bem tenderá a beneficiá-lo em desfavor dos demais.
Assim, os meios de troca comuns inferiores tendem a sair inteiramente do mercado. A partir daí um único meio de troca passa a ser universalmente utilizado. Por outras palavras, esse meio comum de troca tornou-se dinheiro – também podemos chamar divisa ou moeda. Passou a ser o bem utilizado universalmente como intermediário de todas as trocas de uma dada Economia ou comunidade.
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Ao longo da História, várias matérias-primas foram utilizadas como moeda, como, por exemplo, argila, couro, papel, bambu, sal e missangas. No caso desta penúltima, podemos mencionar as seguintes curiosidades. Os soldados romanos eram parcialmente pagos com sal. Diz-se que daí vem a palavra soldado – sal dare, que significava dar sal. Da mesma fonte, obtemos a palavra salário – salarium. O sal foi dinheiro no Império Romano, devido à sua escassez e elevado valor.
As funções do dinheiro
Já mencionamos a principal e primeira função do dinheiro: ser aceite e utilizado universalmente como intermediário de todas as trocas numa dada economia. As demais funções derivam desta. A segunda função é ser unidade de conta. Todos os bens e serviços de uma dada economia passam a ser medidos em dinheiro: 0,65 euros por um café; 1,60 euros por um litro de água.
A reserva de valor é a terceira função. Neste caso, quem detém dinheiro possui a expectativa de no futuro poder vendê-lo no mercado e obter a mesma quantidade de bens e serviços. Desta forma, decide guardá-lo para utilizá-lo no futuro.
Os metais preciosos – em particular o Ouro, pelas suas características, que irei detalhar seguidamente –, foram o dinheiro utilizado pela Humanidade ao longo de mais de cinco mil anos. Que características deverá possuir um bem para tornar-se dinheiro?
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Ser portável
O dinheiro deverá ser facilmente transportável ou transferível de um determinado proprietário para outro. Os metais preciosos possuem essas características. Com um relativo baixo custo de transporte é possível transferir com facilidade de um ponto para outro o Ouro ou a Prata. Mas com algumas limitações.
Assim, criaram-se os substitutos do dinheiro; um dos exemplos: o papel-moeda. O seu portador, ao viajar de uma cidade para outra, sabe que essa nota é convertível de imediato em Ouro; assim, o transporte de papéis torna ainda mais fácil e barato o processo de transporte de metais preciosos.
Em conclusão, a transferência de propriedade, da pessoa A para a pessoa B, por exemplo, a baixo custo é de extrema importância, em particular se as pessoas A e B se encontram em geografias completamente distintas.
Divisibilidade
Uma das características importantes que o dinheiro deverá apresentar é a sua divisibilidade em unidades menores, sem perder valor, a fim de permitir a aquisição de bens ou serviços mais baratos.
A título de exemplo, as pedras preciosas nunca foram utilizadas como dinheiro devido a esta dificuldade. Apesar de ser possível dividi-las com facilidade, agregá-las novamente e manter as mesmas características é praticamente impossível. No entanto, com os metais preciosos tal é possível: podemos dividir e agregar pequenas unidades com relativa facilidade – o processo de fundir metais preciosos. Apesar de tudo, este processo não está isento de custos.
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Armazenamento
Deverá ser possível armazenar o dinheiro a baixo custo. Igualmente, não deverá depreciar ao longo do tempo.
Os presidiários tendem a eleger os cigarros como moeda; em muitos casos, ao longo do tempo, tudo na cadeia é medido em cigarros. Por exemplo, três cigarros por uma refeição extra; 20 cigarros por um par de calças. Apesar de tudo isto, os cigarros não são utilizados pela sociedade como dinheiro porque perecem; ou seja, ao longo do tempo as suas características vão-se deteriorando.
Nas sociedades antigas, muitos bens usados como moeda – como, por exemplo, ovos ou gado –, deixaram de o ser precisamente porque as suas características não são homogéneas ao longo do tempo. Perecem, são consumidos ou morrem; tal nunca deverá acontecer com o dinheiro.
Os metais preciosos mantêm as suas características ao longo do tempo. O ouro utilizado por um soldado romano há dois mil anos mantém agora as características.
Reconhecido e homogéneo
Para poder facilitar uma troca, o dinheiro necessita de ser reconhecido e ser homogéneo. Se, em cada troca, a parte que o recebe tem de o escrutinar, pesar e testar, tornar-se-á qualquer transacção em algo extremamente oneroso.
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Outra das razões para a não adopção das pedras preciosas como dinheiro deve-se a este aspecto. Em cada transacção teria de existir um perito para averiguar a sua veracidade; ou seja, avaliar se é falsa ou não.
A cunhagem de metais preciosos veio resolver esta questão. Este processo permite facilmente identificar a quantidade e a veracidade, facilitando a transacção. Apesar de tudo, ao longo da História, os monarcas e o poder sempre lutaram pelo monopólio da cunhagem; muitas vezes, utilizaram este poder para falsificar este processo em seu benefício.
Escasso e estabilidade de valor
A última característica determinante é a escassez e a estabilidade de valor. Os metais preciosos são escassos na Natureza e obrigam a um elevado esforço para a sua obtenção – a mineração.
Ao ser escasso, o seu valor terá mais probabilidade de se manter ao longo de séculos. Esta é uma das características que os proprietários do dinheiro procuram quando o utilizam como reserva de valor. Daqui a cinco ou 10 anos irão poder adquirir os mesmos bens e serviços, ou inclusive mais, beneficiando dos incrementos de produtividade que se produzem ao longo do tempo – por exemplo, os computadores tendem a diminuir de preço, atendendo que é possível produzir mais e a um custo menor.
Benefícios da existência do dinheiro
Sem a existência do dinheiro, muitas trocas, hoje banais, seriam impossíveis. Numa comunidade onde apenas existe a troca directa – o Estado primitivo da Humanidade, acima descrito –, uma pessoa que deseje vender os seus serviços de investigador para o desenvolvimento de medicamentos não teria qualquer possibilidade de sobreviver. Apenas os fornecedores de bens e serviços de consumo, como pão ou leite, teriam possibilidade de participar no mercado; os demais, estariam excluídos.
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O dinheiro permite a existência de várias etapas de produção até à entrega do bem ou serviço ao consumidor final. Por exemplo, a produção de um carro envolve várias etapas para a sua produção: desde a exploração mineira para a obtenção do aço, a peles para a produção dos estofos.
Em troca da concepção do motor do automóvel, um engenheiro recebe dinheiro pelos serviços prestados; com este poderá adquirir os bens de consumo indispensáveis ao seu dia-a-dia. Ou seja, vende serviços de engenharia relacionados com a concepção de motores em troca de dinheiro. Em conclusão, o dinheiro permite uma Economia complexa, que implica várias etapas produtivas até à venda final do bem ou serviço ao consumidor, bem como a especialização.
Outro aspecto relevante do uso de dinheiro resulta da facilidade de conceder crédito entre os participantes do mercado. Efectivamente, o crédito pode ser possível com outros bens, mas o dinheiro simplifica em muito este processo. Podemos ilustrá-lo com um exemplo.
Vamos supor que a pessoa A tem um excesso de bananas (por exemplo, 10 unidades) que não deseja consumir no próximo ano. Está assim disponível para proporcionar a outros o consumo desse excesso; em troca exige que daqui um ano lhe entreguem 11 bananas como contrapartida do seu sacrifício. Ou seja, pede uma remuneração de 10% (1 ÷ 10).
Aqui colocam-se três questões. Em primeiro lugar, como definir a qualidade das bananas que irão ser devolvidas daqui a um ano; qual o critério de peso, tamanho e cor?
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Em segundo lugar, as bananas daqui a um ano irão ter o mesmo valor de mercado? Como prever com exactidão o clima, a produção e as preferências dos consumidores daqui a um ano?
O terceiro e último está relacionado com um dos problemas apontados à troca directa. Como encontrar um mutuário que esteja interessado em receber um crédito de bananas?
O dinheiro vem solucionar todas estas questões. Como é homogéneo, uma das características do ouro, a discussão sobre a qualidade do que se devolve como pagamento do crédito não se coloca.
Por outro lado, um bem para ser seleccionado como dinheiro deverá apresentar como uma das suas características a estabilidade do seu valor – por isso, a necessidade de ser escasso. Por essa razão, muitos economistas comentam a taxa real de juro. Esta última deverá cobrir a remuneração desejada por quem concede o crédito – no nosso exemplo 10% por ano – e a depreciação do valor do dinheiro, aquilo que designamos por inflação. A taxa de juro real é precisamente a remuneração do prestamista – o que concede o crédito. Se a inflação é de 2% ao ano, no nosso exemplo, o prestamista deverá exigir 12%, aproximadamente, 10% da sua remuneração – a taxa real de juro – e 2% pela depreciação do valor do dinheiro.
Por último, no momento em que o crédito é devolvido ao prestamista, este último pode adquirir os bens e serviços que entender, não obrigando à pesquisa de mutuários que desejem um determinado bem. Em conclusão, o dinheiro permite a existência de crédito, pois simplifica-o substancialmente.
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Talvez o último aspecto do dinheiro, e o mais importante, seja a possibilidade de empreender. Sem dinheiro não existiam empresários. Empreender consiste na identificação de uma necessidade do consumidor e servi-la com lucro. Para tal desiderato, o empresário contrata serviços, capital e colaboradores. O empresário arrisca o seu capital em troca de um lucro futuro expectável, enquanto os colaboradores vendem os seus serviços – o trabalho – a troco de uma remuneração em dinheiro estável que lhes permite adquirir bens de consumo. A possibilidade de lucro atrai empresários à produção de um determinado bem ou serviço.
O surgimento do iPhone tinha como objectivo integrar os serviços de comunicação de um telefone com os de um computador pessoal (aplicações, agenda, navegador de Internet…). Para decidir a viabilidade do projecto, o empreendedor teve de estimar receitas, custos e investimentos necessários à prossecução do mesmo numa única moeda. Tal é possível, porque tudo está medido em dinheiro, no caso do iPhone, foi em USD.
Sem dinheiro, a função empresarial não existiria. Seria como actuar às cegas. Imaginemos se recebêssemos bananas, laranjas e pão em troca de iPhones, as nossas receitas. Agora os nossos custos: teríamos de pagar aos engenheiros em leite, ovos e mel; aos fornecedores de electricidade em bananas e mangas. Como seria possível determinar a viabilidade de qualquer projecto? Apenas o dinheiro permite medir a viabilidade e o sucesso de um projecto, caso contrário, seroa como jogar no escuro.
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Em conclusão, podemos dizer que o aparecimento do dinheiro foi um processo de mercado, em que uma determinada matéria-prima foi seleccionada pela sua liquidez e características.
As três principais funções da moeda são: (i) intermediário universal de todas as trocas; (ii) unidade de conta e (iii) reserva de valor. Os metais precisos, em particular o Ouro, foram seleccionados como dinheiro pela humanidade pelas suas características únicas. O dinheiro, ao contrário do que muitas vezes é propagado, representa a prosperidade e a possibilidade de uma economia complexa – várias etapas de produção, função empresarial e crédito.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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