Etiqueta: Tem dias

  • Verde, verde… 

    Verde, verde… 

    Raimundo nasceu em berço de ouro. Na verdade, em berço dourado, mandado fazer de propósito para o único filho da família Souza. O menino medrou. Cresceu. Cresceu. Cresceu. Diziam os pais que o rebento era espigadote. Os avós, que era bom para ir ao figo. Os amigos, que devia jogar basquete. E ele, que não compreendia o que significava espigadote, nunca tinha visto uma figueira nem gostava de basquetebol, ignorava os comentários. Aliás, tudo lhe era indiferente. Sem preocupações e sem nada melhor para fazer, crescia.

    A escola era um grande aborrecimento.  Os professores chamaram a atenção dos pais. O rapaz andava desinteressado e em más companhias:

    ⎼ Já não basta ele andar de cabeça no ar. Olhem que o Carlos não é flor que se cheire. ⎼ avisaram.

    fig on brown wooden surface

    Com uma longa carreira no ensino,  o diretor afirmava que o problema do rapaz era falta de motivação. Estava enganado. Muito enganado, como se veio a provar quando o Sr. Souza adquiriu o colégio. O Raimundo passou a ser o primeiro a chegar e o último a sair. Sentia-se em casa. Tornou-se um aluno exemplar. Não falhava o quadro de excelência. Ele e o Carlitos, quem diria?

    Por esta altura, o Carlos jogava futebol e o Raimundo decidiu entrar também para a equipa. O treinador dizia que o rapaz era grande, mas não era grande coisa. A Souza & Filho Lda. não tardou em perceber as dificuldades do clube da vila. Um patrocínio generoso. O nome da empresa estampado nas camisolas dos jogadores. O estádio pintado de fresco. A bancada presidencial renovada. E, finalmente, um treinador capaz de reconhecer o verdadeiro talento. Raimundo, esse, perdeu o gosto pelo desporto. Já não lhe apetecia.

    Entediado, deambulava horas e horas pelo calçadão, junto à praia. Certo dia, perdeu-se de amores por uma ruiva que ali passava. Não a voltou a ver, mas tinha a certeza de que era o amor da sua vida.  Sentado na gelataria, lambia colheradas de gelado de baunilha e procurava-a com o olhar. Enquanto isso, crescia, crescia, crescia. Para passar estas horas lentas e acalmar o coração, começou a versejar. Rimas únicas, de uma singularidade irrefutável: amor a rimar com pavor; olhar com almoçar; correr com morder; amanhã com maçã; mulher com colher; coração com leitão. Quatro longas tardes. Dezenas de poemas. Era obra. Reuni-la em livro, inevitável. O pai, que nem era apreciador de poesia, ficou fascinado. Reservou para si 500 exemplares. Toda a tiragem. Não houve cliente, fornecedor ou funcionário da Souza & Filho que não recebesse um volume de A ruiva que me cativa. Estava ali um grande poeta, sim senhor:

    – Um Pessoa, se ele quisesse! exclamou o professor de literatura.

    Mas o Raimundo não tinha vontade de continuar a escrever. Estava visto que a ruiva não voltava e já estava tudo dito.

    person wearing brown boots

    Uma banda! Uma banda é que era! A música nunca fez mal a ninguém. Tinha tocado flauta no colégio. Um saxofone não havia de ser assim tão diferente. O Carlos era afinado. Podia ser o vocalista. Comprou mais uns instrumentos, o pai mandou preparar uma sala de ensaios na cave. Juntou uns amigos e  formou a Raimundo & Friends. Ensaiaram uns dias. Gravaram duas músicas e enviaram-nas para uma conhecida editora de Lisboa. A resposta foi estranha: queriam conhecer o Carlos. Não fosse haver engano, o motorista da empresa levou os dois amigos até à capital. Mas não havia. Queriam mesmo conversar com o Carlos. Seguiu-se um concurso de novos talentos. Depois o Festival da Canção, um CD, a rádio, concertos… O Carlos não parava. O Raimundo já mal conseguia falar com ele. Assistia ao longe, fascinado pelas ovações, pelos elogios, pelos grupos de fãs que seguiam o amigo por todo o lado.

    Enquanto isso, a Raimundo & Friends continuava a ensaiar. Tocavam nos bares e restaurantes da vila, nos bailes, nas feiras. Entristecia-os ver o público conversar enquanto atuavam. As bocas cheias de farturas, de fogaças, de sandes de porco no espeto. O Raimundo foi desanimando. E, à medida que desanimava, a sua pele ganhava um tom estranho. Esverdeado. Os médicos não conseguiam explicar. Fechava-se cada vez mais no quarto. Seguia quase ao minuto a vida do Carlos. Parou de crescer. Encolhia, ao invés. Completamente verde.

    Na vila, a mudança não passou despercebida. Tornou-se tema de conversa. Havia teorias:

    ⎼ É da comida. Só comem porcarias. ⎼ dizia a D. Amélia.

    ⎼ Eu digo que é da água. Está cheia plástico. ⎼ respondeu o Sr. Jorge.

    man holding his neck

    ⎼ Aquilo é da vacina. Eu bem avisei, mas não quiseram acreditar. ⎼  afirmava a D. Manuela, feliz por finalmente provar que tinha razão.

    Uma velha, enrolada sobre o cajado à porta do Centro de Saúde, levantou o rosto. Com ar grave e seguro, fez o diagnóstico:

    ⎼ É inveja, digo-lhe eu, que já vi tudo.

    O Raimundo, verde, verde, continuava a mirrar. Deixaram de o ver. A vila inteira foi mobilizada. Nada. Nem sinal do rapaz. Tinha encolhido tanto que tinha de se esconder não fossem pisá-lo.  Um dia, aproveitando a calma do amanhecer, trepou a uma folha de malva para apanhar os primeiros raios de sol. Estendeu-se, espreguiçou-se, bocejou. Uma toutinegra ensonada saiu de dentro de um arbusto e comeu-o.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • A estrelícia 

    A estrelícia 

    É quase primavera. Ajoelhado, arranca pacientemente as azedas que teimam em invadir os canteiros. Um carreiro de formigas entra pela terra seca. Puxam, empurram, arrastam como podem pedaços de granulado. O cão olha espantado a comida que sai da tigela e segue jardim adentro até desaparecer. O trajeto repete-se uma e outra vez. Vaivém implacável que aprisiona os insetos à rotina.  Retomam-na a cada dia.

    Salvador detém-se a observar as minúsculas Sísifos. Talvez devesse tapar a tigela.  Mas dá-lhe pena.  Pergunta-se se as formigas terão memória do dia anterior. Ou será que, como ele, acordam e percebem que o sono foi apenas o alívio permitido entre os dias?

    Pergunta-se se estará sozinho ou se haverá outra criatura no mundo que, a cada amanhecer, seja esmagada pela realidade. Que receba, a cada despertar, a notícia da morte do amor da sua vida. Se haverá, para além dela, mais alguém que faleça um dia e outro e outro. Se mais alguém desperta pronto a viver e é confrontado com o espaço vazio ao seu lado. O silêncio na casa. A solidão. E depois levantar-se. Preparar-se como se estivesse vivo. E ao longo do dia ir rolando a rocha que vai ganhando volume à medida que as memórias a vão adensando: a doença, o medo, a degradação do corpo, a depressão, as dores, as últimas palavras, o último suspiro. O saber que um segundo antes ela ainda o ouvia. O medo de não ter dito tudo. Nunca se diz tudo. A escolha da roupa, do caixão. O retorno a quatro paredes que já não são casa. As roupas nos armários. O anel de noivado e a aliança de casamento que ficaram no móvel da entrada quando saiu pela última vez. Ainda ali estão. Não lhes toca. E se ela voltar?

    Todos os dias são o mesmo dia. Todos os amanheceres o reviver. Pergunta-se quais terão sido os seus crimes? Que outro homem cumpre em simultâneo os destinos de Sísifo e Prometeu? As entranhas renovam-se apesar da sua vontade. Leu recentemente um livro no qual o protagonista perdia a memória e repetia a cada dia o dia anterior. Não é esse o seu caso, pensa. Antes fosse. Lembra-se bem de cada detalhe. De cada sensação. Ainda sente as mechas de cabelo dela a escorrer-lhe entre os dedos. Ainda as vê caídas no chão. Não, não perdeu a memória. Apenas é incapaz de a tornar permanente.

    A memória ressurge incompleta a cada despertar. As lacunas preenchem-se ao longo do dia. Uma escova. Uma fotografia. O sofá. Ao anoitecer está completa. Esmaga-o. E ainda assim, espera a noite. Anseia por ela. Abraça-a. O sono chegará em breve. E depois o sonho. E finalmente o reencontro. Olham-se e sorriem. Há muito que as palavras são desnecessárias entre eles. Passeiam, tomam café no alpendre, brincam com o cão. Às vezes viajam até destinos longínquos. Mergulham felizes em águas tíbias. Conversam muito, ainda que não digam uma palavra. A luz do amanhecer afasta-os lentamente. Já não a consegue tocar. Procura-a e não a encontra. Telefona-lhe, mas ela não atende. Desperta angustiado. Alivia-o perceber que foi um sonho. Afinal ela não partiu. Procura-a com a mão. Vira-se. O travesseiro intocado diz-lhe que o sonho foi doce. E anseia já por mais uma noite, ainda que o preço sejam as entranhas em sangue a empurrar a rocha montanha acima. Quatro mil manhãs.

    ⎼ Morreste quatro mil vezes.  ⎼ ­ sussurra enquanto continua a limpar o canteiro.

    Só ele sabe disso: um segredo bem guardado. Não interessa o que pensam os outros, a religião, a ciência… no traço descontínuo do sonho, são felizes.

    ⎼ Esta noite trago-te cá.  A tua estrelícia floriu. Tens de ver.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Uma vida a servir a causa pública 

    Uma vida a servir a causa pública 

    Pousa o copo e a garrafa. Abre a janela e debruça-se sobre o parapeito. A brisa fresca no rosto sossega-o. Outubro. O fim do calor insuportável do verão do sul. A chegada discreta do outono. Olha para baixo e, por entre as copas das árvores que se começam agora a desnudar, vislumbra a avenida alumiada pelo branco quente dos candeeiros. Está bonita, a cidade. Romântica. Orgulhoso da sua obra, leva o copo à boca.  Pega na garrafa e lê o rótulo. Tem bom gosto o senhor vereador, pensa. O brandy reconforta-lhe a garganta. A vista da penthouse é encantadora. Chamar-lhe penthouse pode ser exagerado. Mas soa bem melhor do que “último andar”. Vendeu-lha um rapaz muito correto. Até lhe fez uma atençãozinha. O pai é construtor. Pessoa honesta e trabalhadora. Mas não há seriedade que resista à maldade e à má-língua dos invejosos. É a pequenez da província. Não se pode contar nada a ninguém.

    Copo numa mão, garrafa na outra, dirige-se ao terraço. Daqui a vista expande-se até ao centro da cidade. Ao fundo da avenida, os holofotes iluminam um conjunto de edifícios em remodelação. Luxuosos, charmosos, exclusivos. Isto sim, é uma boa aplicação dos fundos europeus. Devolver a cidade aos munícipes. Promover a habitação na Baixa. Em redor, um belo jardim que veio substituir o inestético parque de estacionamento. Houve quem criticasse a decisão. Mas basta olhar para perceber como valoriza o espaço. Além disso, é inegável que a cidade precisa de mais espaços verdes. Uma questão de saúde pública, até.

    Photo of Alcoholic Beverage on Top of Counter Top

    O Presidente já consegue imaginar-se no novo terraço. Jacuzzi. Vista mar. Não tinha pensado mudar-se, mas o construtor fez-lhe uma proposta irrecusável. E logo agora que estava a terminar o mandato para não dar azo a falatórios.  Vendeu-lho a preço de custo. Uma joia de homem. Sabe bem o que o dinheiro custa a ganhar.

    Olha para o telemóvel. Está na hora. Termina o brandy e encaminha-se para o escritório. Sente-se exausto. Os dias têm sido longos e difíceis.  Abre a agenda. Olha para a lista de telefonemas a fazer e parece-lhe não ter fim, mas há que garantir o apoio à candidatura:

    –  Pois é, Meritíssimo. Pois é. O meu mal é não saber dizer que não. Uma vida a servir a causa pública… Conto então com o apoio do meu amigo, certo?

    Deputado da nação. Quem diria!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • É aqui! 

    É aqui! 

    Voo TAP 103 Lisboa-Belo Horizonte. Onze horas da manhã. Novo aviso de atraso na partida. Laura anda de um lado para o outro. Coloca o passaporte na mochila, verifica o bilhete pela enésima vez, arruma-o também. Senta-se, levanta-se, volta a sentar-se. A espera adensa a inquietude e o medo de voar. Ao microfone o anúncio da possibilidade de um upgrade para a classe executiva. Laura pondera. Conclui que isso em nada altera a sua angústia: Se cair a económica, a executiva também não fica lá em cima.

    Finalmente, ordem de embarque. Aguarda ansiosa na fila e pergunta-se porque não ficou em casa. Àquela hora estaria a regressar de uma tranquila manhã de praia. Mole. Sem preocupações. A saborear as merecidas férias. Porquê ir, então, se voar a aflige, se viajar dá sempre tanto trabalho e tem tantos imprevistos? Porquê abandonar o conforto do lugar seguro? Porque insiste em ir?

    A viagem faz-se com a ajuda de um comprimido milagroso. Laura desperta com o anúncio da aterragem. Um pousar suave. Palmas. Uns persignam-se, outros verbalizam um “Graças a Deus” ou à Virgem da sua devoção. Laura aperta a caixa dos comprimidos: Abençoados!

    Pés em terra firme. Aguarda-a o controle do passaporte, a espera das malas e a verificação da bagagem. Sai e depara-se de imediato com a amiga que a aguarda. Fica espantada ao vê-la. Ali, à sua frente. Um sorriso enorme. Braços abertos. Não compreende o seu próprio espanto. A viagem estava há muito planeada e sabia perfeitamente que amiga a viria buscar. No entanto, há sempre qualquer coisa de extraordinário no facto de encontrar alguém num local totalmente diferente daquele onde a conhecemos. Sente, neste momento, a mesma espécie de incredulidade que a assalta quando se encontra pela primeira vez perante um monumento famoso. Como se fosse preciso ir para ter a certeza.  Para confirmar a existência.

    Segue-se uma longa deslocação até à cidade. Pensa perceber agora a curiosa designação do aeroporto: “Confins”. Bastante adequada, na verdade. É noite e para lá da estrada, pouco se vê. A conversa, essa, é animada e vai dando forma ao que a noite esconde.

    Chegadas ao centro da cidade, a amiga leva-a pelas ruas de Belo Horizonte com a alegria de quem mostra orgulhoso a sua casa. Os monumentos, as ruas famosas, os lugares da literatura, os belos edifícios.  Mal podem acreditar que estão ali as duas.  Laura ouve com atenção a história e as histórias da capital mineira. Quer ver tudo. Saber tudo. Experimentar tudo. E enquanto a amiga continua a mostrar-lhe a sua cidade, na mente de Laura começa a formar-se a primeira imagem do país.  O seu olhar detém-se na luz vermelha de um semáforo a tentar assomar-se por detrás de um enorme emaranhado de cabos.  Uma longa faixa negra. A perder de vista. Fios de esparguete negro, al dente, pendurados em postes:

    ⎼ Tantos fios! Mal se veem os semáforos. Isto é normal? ⎼  pergunta.

    ⎼ É, sim. ⎼ responde a amiga com uma gargalhada ⎼ Bem-vinda ao  Brasil. Quando um cabo se estraga, não é substituído. Acrescenta-se outro. Aí, vai ficando cada vez mais volumoso.

    Riem-se as duas. Laura imagina o poste à sua frente a transpirar como um halterofilista que excedeu os seus limites. As pernas a fraquejar e, por fim, o sucumbir ao peso. Repara, então, como a  estes aglomerados de linhas horizontais se juntam, num plano inferior, estendidos sobre os muros e vedações nas entradas dos edifícios, incontáveis rolos de arame farpado com lâminas reluzentes:

    ⎼ Tanto arame farpado e tantas grades na entrada dos prédios. ⎼ comenta.

    ⎼ É. Tem de ser. ⎼ responde a amiga ⎼  Não está em Faro, não.

    Laura repara que alguns edifícios têm grades até ao terceiro piso. Cabos, arame farpado, gradeamento ⎼ a miríade de  linhas horizontais e verticais dá forma a um estranho e sinistro jogo do galo. Sinal de uma convivência pouco pacífica entre duas vontades distintas: a de unir e a de separar. O esforço de união é grande, porém frágil. Os cabos que a proporcionam são muitos, porém atabalhoados, com ar de improviso e de remendo. O desejo de separação, pelo contrário, é firme. As barras dos gradeamentos são robustas, as farpas do arame, feitas de materiais de boa qualidade. Um investimento desigual, evidência das enormes clivagens e da debilidade das costuras que unem a sociedade brasileira.

    Na manhã seguinte, o programa é uma visita à zona da Pampulha.  Estacionam numa rua bem perto da lagoa artificial e seguem a pé. Laura mal pode esperar por ver ao vivo a obra de Niemeyer. Atravessa a estrada em passo acelerado e depara-se com a pequena igreja de São Francisco. Niemeyer! As formas arredondadas. Ondas de azul e branco. Tão pequenina. Sente o coração bater mais forte. Aproxima-se. Quer tocar os azulejos. Repete com as pontas dos dedos os traços azuis que desenham peixes e pássaros sobre um fundo branco. Emociona-se. Percebe, então, porque veio. Porque veio desta vez e porque vai sempre. Olha para a amiga e exclama:

    ⎼ É aqui! É mesmo aqui!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Vem aí trovoada!

    Vem aí trovoada!

    A manhã acontece com a tranquilidade própria dos primeiros dias de setembro. Uma pausa entre o corrupio das férias e o do trabalho. O caminho quase deserto. A brisa fresca convida à preguiça no terraço. Um fundo azul-céu. O sol a derramar dourado sobre a paisagem. A luz a tocar ao de leve as copas verdes dos pinheiros mansos. Luminosas por fora. Sombrias por dentro. O vaivém dos pássaros a traçar linhas entre as árvores do mato e as do quintal. Os hibiscos floridos. Grandes. Alegres. Nas paredes, osgas gordas, moles, a aproveitar o que resta do verão. Um dia perfeito. Um velho passa e dá de vaia. Daí a uns minutos, outro. Aposentados. Indiferentes ao calendário. Os dias são apenas dias. O percurso diário, circular como o tempo: exercício, terapia, passeio, lugar de encontro.

    O senhor da bicicleta passa para cima e para baixo, para baixo e para cima. Dá as voltas que a idade lhe permite e que o médico recomendou. Não perde a oportunidade para lembrar às duas amigas que passam que: – Já não era para estar aqui hoje! Uma pessoa tem de se mexer.  Elas confirmam, acrescentando a importância de espairecer.  E lá vão. Elas para baixo, ele para cima. Poucos minutos depois, novamente a bicicleta. Cruza-se, desta feita, com uma senhora roliça, peito de pomba, passada lesta e ar de quem sabe coisas:

    ⎼ Vem aí trovoada!  ⎼   exclama.

    ⎼  Pois vem! ⎼   confirma ele, continuando a pedalar.

    a pink flower with green leaves

    Olho para o céu e não vejo os sinais. Também não questiono. A moleza tomou conta de mim. Continuo refastelada a observar.  Reparo como se cruzam, mas não param.  Por hoje, estão conversados. Conhecem-se bem. Sabem das vidas, das famílias, das maleitas uns dos outros. Além disso, um pouco mais adiante, um vizinho instalou um cadeirão debaixo de uma árvore e passa ali boa parte do seu tempo, garantindo que todos ficam ao corrente das novidades.

    Ocorre-me, entretanto, que há vários dias que não vejo uma  das senhoras que por aqui costuma passar. Aguardo alguém que me possa dar notícias. Mais uma vez, a bicicleta. Aceno e pergunto se sabe o que é feito  da vizinha. Conta-me que cegou. Que já não sai:

    ⎼ Não vê nadinha! ⎼ reforça.

    Está morta, penso. Tão triste!

    Um pé atrás do outro, uma pedalada depois da outra, um cumprimento, a frase que se atira sem esperar resposta: Está fresquinho!; É preciso é ir andando!; Ah, valente!; É p’rá medalha!  Provas de vida. Garantias renovadas de que ainda se está aqui. De que se é. O que importa saber se vem trovoada? Por aqui, confirma-se que se está vivo, que se vê e se é visto, que se ouve e se é ouvido. Exercita-se a certeza que se desmancha cada dia.

    a bicycle parked in front of a house

    A senhora que sabe coisas volta a passar.

    ⎼ Vem aí trovoada!  ⎼ grito-lhe.

    ⎼  Pois vem! Ê lhe disse, J’quim? ⎼ responde, olhando para o meu interlocutor.

    ⎼ Tá visto que sim.  ⎼ diz ele com um sorriso.

    Um para cima, outro para baixo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Vir de vez

    Vir de vez

                  Tinha saudades de casa. Fecho os olhos. A luz intensa atravessa-me as pálpebras. Mergulho numa paz absoluta. A monotonia por que ansiava há tanto. O som das cigarras, ondas que se desfazem num murmúrio ao encontrar a areia. Um contínuo. Som que é silêncio.  Apenas o canto das rolas marca o compasso e nega a suspensão do tempo.   A sombra imperfeita das videiras. A aragem a brincar com a minha pele, a soprar-me os pelos das pernas e dos braços: fresca, quente, quente, fresca, quente…

                  O telemóvel vibra junta da minha perna. Não queria atender, mas nunca se sabe:

    ⎼ Tou? Toninho, já cá tás, filhe? ⎼ perguntam do outro lado.

    ⎼ Estou, sim, tia. Cheguei de madrugada.  ⎼ respondo.

    ⎼ Ai, graças a Deus, filhe. Tava aqui em pulgas. Ainda deves tar cansade. Mas quande quiseres passa por’qui. Vem almoçar ca gente. Tenhe cá uma coisa p’a t’amostrar.

    the sun is setting over a grassy field

     

    A tia tem razão. Ainda estou muito cansado. Vim de carro. Já me tinha desabituado. Mas vim de vez. Parece mentira. De vez… Combinamos um almoço para sábado.

    Os tios esmeram-se.

    ⎼ Isto aqui não é à grande e à francesa, mas é à grande e à algarvia! Vá lá, toca a comer que isto quem na presta pra comer na presta pra trabalhar. ⎼ brinca o primo Ernesto, enquanto põe em cima da mesa uma travessa de sardinhas assadas.

    ⎼ Carcanholas da ria, berbigão, xarém com conquilhas, saladinha montanheira, sardinhas, panito pra pôr por baixo… Sirvam-se que disto não apanham vocês lá na França. ⎼ acrescenta.

    ⎼ Ah, pois não, mas agora já sabes que estou logo aqui ao lado. É só convidares-me mais vezes.  ⎼ respondo.

    As longas sardinhadas no alpendre dos tios. Os risos, as conversas que se misturam com os sabores, os odores, as cores, as memórias. Ouço-os, como às cigarras: doce banda sonora de verões passados.

    O Ernesto, de pano de cozinha na mão, vai enxugando uma enorme melancia encharcada.

    ⎼  O frigorífico é para melancias enfezadinhas. explica  – Esta esteve dentro do tanque desde de manhã para ficar fresquinha. A melancia quer-se grande, para dar umas boas talhadas.

    white and brown wooden house on green grass field near body of water during daytime

    Seguem-se um café e um medronho para ajudar a digestão. A tia Alice surge de dentro de casa com uma tesoura de jardinagem numa mão e uma fotografia na mão.

    ⎼ Vê lá se conheces aí alguém. ⎼ desafia-me, colocando a fotografia em cima da mesa.

    – Deixe lá ver. Tenho de pôr os óculos. – respondo.

    ⎼ Ai, filho, se já nem tu vês bem… na hei de eu tar velha… ⎼ desabafa a tia entre o lamento e a brincadeira. E eu percebo que nunca vai entender como é possível o filho da irmã já estar aposentado. Na verdade, espanta-a sempre que já esteja maior que ela.

    ⎼ Não diga isso, que a tia está mais nova do que eu. ⎼ respondo, enquanto ela, ligeira, sobe à cisterna, que já só serve como poiso para as centenas de vasos que são o seu orgulho:

    ⎼ Vou-te mandar aqui umas podas. Tens de dar um jête àquele quintal. Pôr lá umas florinhas, que morreu tudo à sede e a tu mãe tinha sempre tude chê’delas. ⎼ diz.

    Examino a fotografia. Um primeiro olhar e viro-a. Na parte de trás, esborratada e já quase ilegível, a inscrição “Ludo, 1954”. Oito mulheres e cinco crianças. Estão em pé, alinhadas. Sorriem para a câmara. Trabalhadoras das salinas. As roupas, pouco mais que farrapos. Vestidos andrajosos. Camisas que não fecham. Saias presas à cintura por cintos velhos ou baraços.  As vestes das meninas destoam das das mães. Limpas. Engomadas. Chapeuzinhos de palha. Aperaltadas para a fotografia, com certeza. Na imagem, um único rapaz. Ao contrário das meninas, está coberto de pobreza. Tem um ar sujo. Sobre o corpo, uma camisa curta. Apenas isso.

    As mulheres usam lenços por debaixo dos chapéus. Por cima, as rodilhas ajudam a equilibrar as canastras. Pés de lama. Nus. Negros até aos tornozelos.

    a chair and a table in a dark room

    ⎼ Então? Não conheces ninguém? ⎼ pergunta o tio António, enquanto arrasta a cadeira para junto de mim.

    ⎼ Reconheço a tia. Toda nova e jeitosa. Olhe para isto. Parece uma garça, aqui com uma pernoca alta e toda desempenada. – provoco-a sorridente. Ela ri-se e diz qualquer coisa que não percebo.

    ⎼ Olha, a prima Amélia. Estás aqui prima, à frente das nossas vizinhas: a Idalina, a Estrudinhas, a Marcelina.  Aqui ao lado, a mãe da Natércia e da Noélia. Elas à frente. As feições não mudaram nada.  E, se não me engano, esta é avó delas. Não me lembro do nome. ⎼ digo enquanto passo o indicador uma a uma.

    ⎼ Vangelina. ⎼ lembra a tia. ⎼ E a do lado. Sabes quem é? ⎼ pergunta.

     ⎼ A minha mãe, claro. Que saudades! ⎼ os olhos enchem-se-me de lágrimas, a garganta prende-se um pouco. Tusso e ajeito-me na cadeira.  É dia de festa.

     ⎼ Grandes senhoras! – exclamo, sabendo que o repetirão em coro.

    Lembro-me bem destas mulheres e destas crianças. Sei de cor as suas histórias. Apesar de a vida nos ter levado por caminhos diferentes, agosto foi sempre o mês do reencontro. De pôr a conversa em dia, mas também de lembrar. Repetiam todos os anos as suas histórias, como se essa partilha garantisse que o seu passado tinha realmente acontecido: a gripe espanhola que levou o pai e a mãe da Estrudinhas quando ela tinha dois anos; a guerra do Ultramar que matou o noivo da Noélia;  o marido da Ti Vangelina, que emigrou para a Venezuela e nunca mais deu notícias; o sangue vendido para pôr um teto sobre a cabeça dos filhos;  o aborto causado pelo peso do sal; a exploração; as jornas de trabalho de sol a sol; a fome que se enganava com figos secos; a penúria que obrigou os meus pais a emigrar. Também eu preciso que confirmem. Que à mesa me digam que estou certo. Que foi assim que aconteceu.

    ⎼ Oh, tia, eu sei que a miséria era muita. Mas não me diga que não dava ao menos para me taparem as miudezas para a fotografia? ⎼ pergunto.  

    ⎼ Tu até tinhas uns calçanites que te fez a avó Julinha, que Deus tem. Mas eras muito pequeno e a tua mãe não tinha tempo para te andar a limpar o rabo. Nem havia cá fraldas, o que é que pensas?  Vocês eram mecinhes, andavam per‘li uns c’os outres. Não havia cá onde os deixar. – explicou a tia. – Pareciam pilritesós saltinhes dum lado pró outre.

    ⎼ Era duro, hã…? – pergunto.

    ⎼ Era, mas a gente também se ria muito. Contávamos muita anedota. Cantávamos. Dizíamos umas asneiras p’rá gente se ir entretende. Éramos moças…Ele em havende pás sopas e pa vocês se irem criande… mas trabalhava-se muite.

    grayscale photo of Eiffel tower on top of white envelope

    Exatamente o que vejo nesta fotografia, nestes sorrisos: um misto beleza, sofrimento, força e doçura. Sorrisos abertos, francos. Sorrisos de gente feliz. Impossíveis de compreender sem conhecer estas mulheres. Não me lembro daqueles tempos em que era tão pequeno que ainda não tinha direito a calções. Para mim, elas só entraram na minha vida anos mais tarde. Mas reconheço os sorrisos. São os mesmos. Sorrisos felizes, mesmo quando as histórias dos tempos difíceis lhes colocavam um véu de tristeza no olhar. O segredo por detrás deste sorriso aberto? Acredito o sal que lhes curtiu a pele lhes temperou a alma.  Eram divertidas, bem-dispostas, naturalmente felizes ou, pelo menos, decididas a sê-lo.   

    Ao almoço pega-se o lanche. Os tios insistem que fique para jantar. Já me tinha esquecido do que significa “passa cá por casa”.  O estômago diz-me que não aguento. Que não posso ficar sentado. Decido fazer uma caminhada no Ludo. Está um final de tarde lindo. Vou até às salinas. As águas turvas dos tejos coloridas pelos azuis, rosas e dourado do céu. Manchas do branco das nuvens. Aproximo-me na esperança de ver ali resquícios do passado, mas a água já não espelha a imagem das marnotas: um bando de flamingos cruza-se com um avião que levanta voo. Os que chegam e os que partem. Pergunto-me quantos lá irão na esperança de um dia virem de vez.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • O Miguilim da gruta

    O Miguilim da gruta

    Aninhado no ventre da mãe, embalava-o já aquele som melodioso. Uma espécie de canção entoada a dois. Ora em uníssono, ora revezando-se, as vozes da mãe e do pai abraçavam-se.

    Os serões do jovem casal eram passados na cozinha. Ela bordava. Ele fazia-lhe companhia. Contava-lhe como tinha sido o dia na mina. Perguntava-lhe se tinha passado bem. Se o bebé se tinha mexido. Queria saber o que ela estava a bordar. E ela mostrava. Dois passarinhos.

    ⎼ E o que vai escrever nesse paninho, Mariana?

    Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim. ⎼ respondeu. António acrescentou:

    ­⎼  a galinholagem deles. – “É preciso olhar para esses com um todo carinho…”.

    De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. – completou ela. 

    black and yellow wall sconce

    Era esta a melodia que atravessava a mãe e embalava o filho. As palavras dos textos de Guimarães Rosa. Aprenderam-nos quando eram Miguilins. Deixaram-se encantar pelas palavras do escritor nascido na sua terra. Foi ali, naquela escolinha de Cordisburgo, que se conheceram e se apaixonaram. Na cidade do coração.

    O bebé nasceu prematuro. Tão pequenino e delicado que dava até medo de pegar. O pai segurou-o cuidadosamente. Receava magoá-lo com os seus braços fortes e as mãos calejadas:

    ⎼ Olha só, Mariana, tão pequenininho. Parece um manuelzinho-da-crôa.

    ⎼  … o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima. – respondeu ela com um sorriso.

    Estava escolhido o nome: Manuel. Como o passarinho mais delicado, mais bonito e engraçadinho do sertão.

    As palavras de Guimarães Rosa vivas. As paisagens e as personagens. Os bichos. As pessoas. As plantas. O chão. Tão familiares e tão estranhos. Eram o ali e o além.  Manuelzinho memorizava as palavras dos pais. Repetia-as para si próprio. Às vezes, procurava compreendê-las.

    Aos 12 anos, juntou-se aos Miguilins. Finalmente! Dedicou-se de corpo e alma à tarefa do grupo: memorizou um a um os textos que lhe foram confiados. Aprendeu a dizê-los com a voz, com o corpo, com a alma. Orgulhosos, os pais ajudavam-no. Os serões eram agora a três.  Não havia na terra motivo de maior alegria do que ter um filho nos Contadores de Estórias Miguilim.  Orgulho da cidade, o grupo que carrega o nome da personagem rosiana é a sua bandeira e o seu melhor embaixador.

    open book lot

    Tal como para todos aqueles jovens, a aventura de Manuelzinho terminou aos 20 anos. Era chegado o momento de voar noutras direções. Sabia o que queria.  Ia para a universidade estudar literatura. Compreendia agora a nostalgia dos pais:

    ⎼ Uma vez Miguilim, para sempre Miguilim. ⎼ diziam.

    A universidade foi um sonho que durou apenas 4 meses. O dinheiro não chegava. Regressou a casa. Procurou emprego. Encontrou um ali bem perto, na Gruta do Maquiné. Agradou-lhe a ideia de ser guia. Gostava de contar histórias. Na gruta não seria diferente. Manuelzinho abraçou aquela sombra. Amou-a.  A gruta era agora o seu sertão:  Sertão é onde o pensamento da gente se forma maior que o poder do lugar, tinha aprendido.

    O silêncio, as salas gigantes, o vazio. Preenchia-os com a sua luz, com as histórias, as personagens e as paisagens que povoavam a sua mente. Talvez por isso, recebia os turistas com um sorriso tímido, mas acolhedor. Palavras e gestos doces. À medida que atravessava cada uma das sete salas, contava a sua história: quem as descobriu, quando, o que ali achou, os filmes que ali foram gravados.  Apontava a lanterna para as formações rochosas e mostrava castelos de fadas, abóboras gigantes, morcegos de pedra, uma língua de vaca que saía da parede. Um ralo aberto na rocha que ia dar ao Japão. Ou talvez fosse um portal para outra dimensão, quem sabe?

    Certo dia, uma turista curiosa perguntou-lhe se Guimarães Rosa alguma vez tinha visitado a gruta. Manuelzinho apressou-se a dizer algumas frases do escritor a propósito daquele lugar. E fê-lo com tal entusiasmo e arte que a visitante não conseguiu esconder a perplexidade. Perguntou-lhe como tinha ele aqueles textos na ponta da língua, assim, sem qualquer preparação.  Manuelzinho cresceu. Encheu o peito. Compôs o capacete. Aprumado, respondeu:

     ⎼ Bem, é que eu sou um ex-Miguilim, mas ex-Miguilim não existe não, moça. Ser Miguilim não sai da gente.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Ilusões e quiches de espinafres

    Ilusões e quiches de espinafres

    Agarrou o livro. Abriu-o, pressionando a palma da mão contra o vinco que teimava em fechá-lo. Leu os dois primeiros parágrafos. Releu-os em voz alta. Fechou-o. Era tudo o que a capa e o título prometiam. Voltar a amar, a silhueta de um casal sobre um pôr-do-sol em tons de Inteligência Artificial. Oferecera-lho a tia:

    ⎼ Como gostas de ler… e tens de começar a pensar em refazer a tua vida. És muito nova!

    Pois gosto, pensou. Gostava também da tia. Gostava ao ponto de guardar aquele livro. Não tencionava lê-lo. Guardá-lo-ia como qualquer outro objeto que ela lhe tivesse oferecido. Livro-pisa-papéis. Livro-de-não-ler. Livro-há-mesmo-alguém- que-acha-que-isto-é -literatura. Livro-como-é-possível-abater-árvores-para-imprimir-isto. E, o mais incrível, livro-número-1-no-TOP-de-vendas. Este sucesso que não conseguia perceber fez com que um turbilhão de pensamentos lhe atravessasse a mente. Lembrou-se dos anos 90. Das  supermodelos. Perfeitas. Poderosas. Cindy, Naomi, Linda, Christy. Desfilavam, posavam, eram ricas e famosas. Ser como elas era o sonho de milhares de miúdas e miúdos por todo o mundo. Mas mais do que isso, passou a ser o sonho de muitos pais e mães. Embevecidos com a beleza das suas crias, viam ali a possibilidade de uma vida bem sucedida. Começaram a surgir escolas de manequins um pouco por todo o lado. “Caçadores de talentos” convenceram as famílias a apostar o que tinham e o que não tinham na realização dos sonhos dos mais novos. Dos que tinham tudo para dar certo. Mas também dos que não tinham rigorosamente nada que pudesse apontar nesse sentido. Sentada à mesa do escritório, livro nas mãos e olhar perdido naquele pôr-do-sol impossível, continuava a pensar nas crianças e jovens que qualquer leigo na matéria teria percebido não terem a mínima possibilidade de virem a ser modelos. Deixaram para segundo plano os estudos, atraídos por uma carreira nas passerelles ou na publicidade. Bem mais apetecível do que estudar, sem dúvida. Anos à espera da grande oportunidade. Amargurados, a  sentir-se injustiçados. A acumularem rejeições e traumas. Anos e anos até perceberem, ou não, o que lhes tinha acontecido.

    assorted-color hanging clothes lot

    Olhou novamente para aquele monte de folhas impressas e achou que poderia servir para elevar um pouco o monitor do computador. Afinal, sempre teria alguma utilidade.  Abriu-o mais uma vez. Já agora, queria ver como terminava. Leu o parágrafo da última página. Ah, felizmente tinha uma lombada com a altura ideal para o que precisava. 

    Das pseudoescolas de manequins, o seu pensamento deslocou-se para as escolinhas de futebol. Para os meninos arrastados pela ideia de que a fama é tudo. De que estudar dá trabalho. Ganhar a vida a dar uns chutes na bola é bem mais fácil e apelativo. Talento e sacrifício são pormenores. Abre-se uma “escola”. Enfiam-se os miúdos nuns equipamentos giros. Depois, basta ir sussurrando aos ouvidos dos pais que têm ali o próximo Ronaldo e a mensalidade não falha. Sonham com aviões particulares, mansões em lugares paradisíacos, contratos de milhões a fazer capas de jornais. O tempo vai passando. O secundário faz-se a custo. O sentimento de injustiça. A revolta. A frustração que tantas vezes poderia ter sido evitada. Bastaria alguma honestidade. Bastaria que se dissesse claramente que a maioria dos meninos e meninas se podem divertir, mas nunca  serão profissionais. Só que a honestidade custa dinheiro. O problema é que no futebol é que não há como vingar sem verdade. Já na literatura… Suspirou. Voltou a olhar para o livro. Poderia o texto da contracapa induzir os compradores em erro? Começou a ler. Não aguentou mais de duas linhas. Não. Nem era esse o caso.

    E voltou a pensar nas sanguessugas que, sempre atentas, vão diversificando o negócio, tirando proveito das ilusões e ingenuidade alheias. Alimentam-se  agora do sangue de um novo grupo de vítimas. Atacam-nas nas águas pantanosas das editoras, que nascem um pouco por todo o lado, entaladas entre uma escola de modelos/atores (vai dar tudo ao mesmo) e outra de futebol. E é ver entrar e sair os aspirantes a escritores.  Entram apreensivos, ansiosos. Saem com o ego massajado e a carteira mais leve. A maioria das editoras é hoje um negócio que vive de alimentar sonhos e explorar sonhadores. Publicam manuscritos com mais erros de ortografia e sintaxe do que parágrafos. Enredos ao nível da composição “As minhas férias”. Um discurso que convence o autor de que será o próximo Saramago. Mas em bom, claro!  O outro nem pontuar sabia! O editor vai metendo milhares de euros ao bolso, ano após ano. Sim, porque os leitores não foram lá à primeira, mas hão de reconhecer o génio. Não se pode desistir assim. O próximo volume não falha. Faz-se uma capa ainda mais chamativa e embala-se num saquinho com brilhantes, fechado com uma fitinha de seda. Monta-se uma banca com flores de plástico nas feiras do livro e fazem-se sessões de autógrafos. É fundamental que o texto tenha muitas frases de encher o ouvido. Daquelas a escorrer azeite. Pode até ter atores das telenovelas a ler uns excertos. Custa dinheiro. Mas é um investimento. Depois é publicar mais um. E outro.  E até outro, se o pé de meia ainda não se tiver esgotado.

    man playing soccer game on field

    E vem-lhe então à memória a recordação de uma antiga professora da FLUL. Uma conhecida catedrática com tanto de competente como de pouco diplomática que, certo  dia, após a apresentação de um trabalho, perguntou à autora se havia um prato que cozinhasse particularmente bem.

    ⎼ Quiche de espinafres! ⎼ retorquiu a rapariga.

     A resposta não se fez esperar:

     ⎼ Então, vá para casa e faça imensas quiches de espinafres. Mas deixe a literatura em paz que não lhe fez mal nenhum.

    E ela foi.

    Cruel? Sim. Honesta, porém.

    Leonor coloca finalmente o livro debaixo do monitor. Lombada virada para a parede. A cor da capa e o título são-lhe insuportáveis.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    Corria o ano de 1950. Pelas ruas da cidade vagueava um cão abandonado. Ardiloso, escapava como podia à carrinha do canil municipal. A perseguição levou-o a procurar refúgio junto ao Liceu. Foi aí que o canídeo cor de mel foi adotado pelos estudantes e elevado ao estatuto de mascote. Deitado junto a um grupo, empoleirado junto a outro, alimentado por todos, Kanitov, assim lhe chamaram os estudantes, tinha encontrado um lar.

    Certo dia, porém, Kanitov afastou-se deste lugar seguro e voltou a percorrer as ruas da Baixa, onde, à vista de toda a gente, o inimigo lhe deitou finalmente a mão. Sem um dono que pagasse a licença, o destino do animal estava traçado.

    black and tan short coat medium sized dog sitting on green grass field during daytime

    A notícia da captura chegou rapidamente aos ouvidos dos estudantes. Juventino, aluno do 8.º ano, tinha então 16 anos. Era baixo para a idade, magro, pálido. Tão recatado que poderia desaparecer sem que os colegas dessem pela sua ausência. Só Kanitov lhe sentia a falta. Mal o via ao longe, o bicho corria desenfreadamente na sua direção, saltitando e abanando o rabo. Juventino, filho único, a quem nunca foi permitido ter um animal de estimação – não fosse o menino adoecer dos pulmões – encontrou em Kanitov um companheiro. Um fiel amigo com quem partilhava a sandes de iscas fritas que a anemia o obrigava a ingerir diariamente.

    A perspetiva de Kanitov ser abatido era inaceitável para os jovens. E, enquanto os colegas iam murmurando soluções, eis que Juventino, saído da penumbra em que vivera até então, saltou para cima de um banco e gritou: ⎼ Uma manifestação, companheiros! Isto pede uma manifestação! ⎼ Movidos pelo amor ao cão e pela inesperada atitude sanguínea do colega, os estudantes juntaram-se no pátio preparados para avançar.

    O Reitor, tomando conhecimento desta intenção, alertou os rapazes para o perigo que corriam. Não tinham autorização do Governo Civil. Mas Juventino, assumindo a liderança, falou por todos quando disse que a decisão era irrevogável. Estavam cientes do perigo. Sabiam que os ajuntamentos eram proibidos. Mas era o Kanitov, caramba! Era um deles!

    Foto: Inácio Ludgero

    Uma vaga de capas negras desceu a avenida e atravessou as ruas da Baixa, em direção à Câmara Municipal: – Viva o Kanitov! Libertem o Kanitov! – Exigiam.

    A população, assustada, dividia-se entre o desejo de se afastar para evitar problemas e a curiosidade de saber quem era Kanitov. Alguém esclareceu: – É um general russo. – E o rumor correu a cidade: Os alunos do Liceu, o futuro da região e do país, caminhavam pelas ruas cidade a exigir a libertação de um general russo. Uma vergonha!

    O meritíssimo juiz, posto ao corrente do escândalo, abandonou o café que tomava numa esplanada da moda e foi ver quem eram os meliantes. Não podia acreditar no que os seus olhos viam. A encabeçar o grupo de delinquentes, punho em riste e a gritar a plenos pulmões, o seu Juventino. Por instantes, pensou em ir até ele e arrastá-lo dali pela orelha. Mostrar que sabia educar o filho. Mas a vergonha foi maior. Dirigiu-se a casa. O passo pesado. Cabisbaixo. Pediu à mulher que lhe mandasse buscar uns sais. Sentia-se prestes a desfalecer:  – Ai, Valentina! Que grande desgraça! O nosso Juventino, Valentina! O nosso Juventino! Ai, que me foi para o Liceu normal e vem de lá comunista!

    Ao final da tarde, mascote resgatada, o novo líder estudantil dirigiu-se a casa de peito cheio. Ia feliz. Ansioso por partilhar o feito com os pais, por lhes explicar como se tinha sentido forte pela primeira vez na vida.

    Foto: Inácio Ludgero

    Bateu à porta. Ninguém abriu. Voltou a bater. A velha ama veio à porta, mas não o deixou entrar. Lavada em lágrimas, entregou-lhe uma mala de viagem e um envelope: – Fuja, menino! Fuja, e que Deus o proteja!

    Sem perceber o que se estava a passar, Juventino agarrou a mala e abriu o envelope. Lá dentro, algum dinheiro, dois cordões de ouro, um par de brincos e uma mensagem: “Querido filho, o seu pai denunciou-o à polícia. Vêm prendê-lo! Vá para Paris e procure a ajuda do seu tio. Um beijo, da mãe que tanto o ama e morrerá com a dor de não o voltar a ver.”

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Olhão

    Olhão

    Olhão. Final de tarde. Estacionam perto da Marina e seguem a pé junto à Ria. Procuram o concerto anunciado para aquele jardim.

    Têm tempo. Saboreiam o ar fresco que vem do mar e tempera a brisa morna de um verão que principia. O amigo visita pela primeira vez o Algarve e  Leonor explica-lhe  a origem da designação “Olhão, cidade cubista”. Abrandam o passo. Ela aponta e pergunta:

     ⎼Vês os cubos? Vês como se sobrepõem? Olha ali, um maior na base, depois um mais pequeno e por fim um bem menor. Parecem legos.

    a yellow and white boat in a body of water

    Ele sorri e imagina mãos de crianças a descobrir formas e volumes. A experimentar equilíbrios. Prosseguem. Vão olhando e comentando os edifícios mais próximos. Cubos, mirantes, platibandas, açoteias… Tudo é para ele novidade e espanto.  Mas a atenção de ambos é subitamente desviada para outras formas. À sua direita. Parecem vir do mar. Formas completamente opostas à  geometria retilínea das casas. Uma ondulação de pedra que  prolonga em terra firme a da água agitada pelo vento. Os bancos de jardim e a calçada ondulantes a replicar-lhe o movimento. Uma réstia de sol a espalhar sobre a tarde as sombras trémulas das folhas das árvores. No chão, no rosto, nas costas e palmas das mãos. Tatuagens flutuantes.

    Ecoam então os primeiros acordes e vislumbram-se ao fundo os movimentos redondos da orquestra. A melodia enche o jardim. Enche a tarde. Sinuosa, sobe em direção às gaivotas suspensas numa dança hipnótica. Música e aves pairam embaladas pela brisa. Lânguidas. Tranquilas.

    Tudo parece encenado. Um bailado grandioso. Uma coreografia rigorosa. Atenta aos mínimos detalhes: orquestra, maestro,  público, aves, árvores, vento. Os aviões que surgem hesitantes entre o descer e o planar. Essas aves imensas. Aproximam-se ao ritmo da música.

    a flock of birds flying over a body of water

    Subitamente, um movimento firme, um braço em riste, uma nota  forte que atravessa o ar e os corpos. Duas andorinhas, em perfeita sintonia, rasgam o céu. Caças velozes num voo rasante em direção ao palco. Um pequeno cão a fazer acrobacias. Saltita. Ladra. Disputa o protagonismo com Tchaikovsky. A vida a  entrar pela música. A música a entrar pela vida.

    Leonor convida-o a ir com ela até ao lago dos patos. A música envolve-os ainda. Passam o Mercado do Peixe, depois o da Fruta. A alegria de Leonor depressa dá lugar à perplexidade. O lago já não existe. Mas os patos estão lá. Não de carne e osso, como antigamente. Apenas pequenas estátuas que evocam a sua existência. Uma instalação escultórica: o “Jardim dos Patinhos”.

    ⎼ Que alívio! Afinal não sou só eu que me lembro. Olha que até duvidei da minha memória. Vir até aqui era parte de um ritual. Ia-se ao mercado, depois comer um gelado à Gelvi e, claro, tínhamos de vir ver os patos. ⎼ explica ao amigo.

    Outros tempos. Outros patos. A estes não os embala a água. Embala-os o som dos violoncelos. Observa-os e consegue sentir o incómodo do metal que se enfiava debaixo das costelas quando se debruçava sobre a vedação. Sente as mãos da mãe a segurá-la pela cintura. A  elevá-la e a sustê-la enquanto ela se estica e tenta tocar as penas com as pontas dos dedos…

    a woman sitting on a chair next to a body of water

    O concerto termina.  Leonor procura escapar à nostalgia que a assalta. Agarra na mão do amigo e puxa-o até à proa simulada de um navio que entra pela Ria adentro. Ensaiam a famosa cena do Titanic. Trauteiam a música da Céline Dion e riem da figura que sabem estar a fazer. Registam o momento numa fotografia divertida e encetam o caminho de regresso. Os olhos de Leonor seguem as linhas traçadas pelo rasto de um barco que ruma à Culatra. A perfeição da linha reta desfeita pelo movimento ondulante das águas. Também é Olhão.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.