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  • ‘Taxa de promiscuidade’: coima por publicidade escondida em 16 artigos jornalísticos custa apenas 0,8% do valor dos contratos

    ‘Taxa de promiscuidade’: coima por publicidade escondida em 16 artigos jornalísticos custa apenas 0,8% do valor dos contratos

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) acaba de confirmar, com mais de três anos de atraso, aquilo que o PÁGINA UM denunciou desde Maio de 2022: o grupo Trust in News (TIN), detentor da Visão, Visão Júnior e Jornal de Letras, veiculou pelo menos 16 conteúdos publicitários sob a aparência de jornalismo, sem qualquer identificação como tal, violando a Lei de Imprensa.

    Mas a ‘condenação’ hoje revelada através de deliberação não só surge tarde como peca por manifesta brandura — e consagra, na prática, a instituição de uma espécie de “taxa de promiscuidade jornalística” de valor simbólico. Com efeito, cada infracção — isto é, cada acto publicitário disfarçado de notícia jornalística — foi sancionada com a módica coima de mil euros. No total, seriam 16 mil euros. Mas mesmo assim a Trust in News ainda beneficiou de um ‘desconto de grupo‘ por parte da ERC, ficando a coima final em apenas 2.000 euros.

    A gravidade do caso não se resume à tímida reacção do regulador. Segundo os dados então recolhidos pelo PÁGINA UM e agora confirmados pela própria ERC, só os contratos celebrados entre a TIN Publicidade (empresa do grupo) e o grupo Águas de Portugal — no âmbito dos chamados Prémios Verdes VISÃO + AdPascenderam a 120 mil euros, pagos para assegurar conteúdos promocionais com roupagem jornalística. Mais escandaloso ainda é o caso do Instituto Camões, que assinou contratos de publicidade no valor de 124 mil euros com o grupo de media entre 2020 e 2022, garantindo páginas inteiras de propaganda institucional na revista JL – Jornal de Letras, mascaradas de suplemento editorial. Numa das edições inclui-se mesmo a ‘notícia’ da tomada de posse em 2020 como presidente do Instituto Camões de João Ribeiro Cardoso, que actualmente é o embaixador português na Índia.

    Por regra, e supostamente para dar credibilidade aos conteúdos, levando a crer tratarem-se de artigos idóneos e independentes, os textos eram redigidos por jornalistas com carteira profissional activa, entre os quais se destaca Luís Ribeiro. Este jornalista da Visão desde 1999, que coordena a secção de Ambiente da revista detida por Luís Delgado, e que exerce funções como comentador de assuntos internacionais da SIC, é um dos nome recorrentes na deliberação da ERC.

    A sua assinatura consta como autor de cinco artigos pagos no âmbito de um contrato celebrado com a Águas de Portugal, com “alto patrocínio” do Presidente da República. Os artigos exaltavam intervenções de ministros, do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, e de académicos seleccionados como premiados. E ainda um artigo sobre alterações climáticas. Tudo apresentado sob um formato de notícia normal, sem qualquer indicação visível de que se tratava de publicidade paga.

    A própria ERC reconhece, com linguagem jurídica contida mas inequívoca, que estes textos “consubstanciam publicidade”, tendo sido publicados sem serem identificados como tal, podendo assim “ser facilmente confundidos com um texto de cariz jornalístico, pelo seu estilo de mensagem, organização e tratamento gráfico”. Mais: a deliberação destaca que a Trust in News actuou de “forma livre e consciente”, tendo obtido “benefício económico” directo com a prática ilícita — e que, apesar de alertada e notificada, “não revelou arrependimento”.

    Luís Ribeiro, coordenador da secção de Ambiente da Visão e comentador da SIC fez conteúdos publicitários para execução de um contrato de prestação de serviços da empresa pública Águas de Portugal.

    Mas apesar deste reconhecimento, os efeitos práticos são próximos de nulos. A coima aplicada, de dois mil euros no total, equivale a 0,8% do valor obtido nos contratos acima referidos. A mensagem que resulta é clara: o ‘crime’ compensa, como já começou a ser evidente em situações similares com a Impresa e o Público. Pagar alguns milhares de euros ao regulador sai assim mais barato do que fazer campanhas publicitárias declaradas com custos transparentes — e permite alcançar os leitores com muito maior impacto, explorando a suposta credibilidade do jornalismo.

    Mais grave, ainda, é o facto de esta condenação nada alterar para os jornalistas implicados. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), já contactada pelo PÁGINA UM para situações similares, assume que não pode aplicar sanções de natureza deontológica ou disciplinar passados mais de 12 meses sobre a data dos factos. Ou seja, nenhum dos jornalistas que assinou conteúdos publicitários sem identificação — incluindo Luís Ribeiro, a quem o PÁGINA UM solicitou entretanto um comentário — poderá ser responsabilizado, podendo continuar a exercer funções sem qualquer impedimento, como se nada tivesse acontecido. A profissão de jornalista, nestes casos, tornou-se mercadoria com prazo de validade ético limitado a um ano.

    Este episódio põe em causa a própria integridade do sistema de regulação dos media. A ERC, ao aplicar uma multa simbólica, reconhece a violação da lei, mas não propõe qualquer mecanismo de prevenção, nem exige medidas correctivas às publicações envolvidas. Os conteúdos não foram retratados, os leitores não foram informados de que leram publicidade disfarçada, e os jornalistas implicados não foram suspensos ou admoestados. O sistema tolera, normaliza e, no limite, recompensa a promiscuidade.

    Deliberação da ERC identifica os artigos publicitários, cinco dos quais da autoria do jornalista Luís Ribeiro, cuja acção, apesar de ilegal, ficará impune porque já presceveu,

    É por isso legítimo afirmar que se consolidou, em Portugal, uma prática de jornalismo a recibo verde institucional, em que reportagens são vendidas por contrato e redigidas por profissionais credenciados, com a conivência tácita das entidades públicas financiadoras, dos grupos de media e do próprio regulador. A chamada “taxa de promiscuidade” — agora quantificada em mil euros por notícia disfarçada — aparenta ser agora o preço a pagar para transformar a imprensa em boletim oficial ao serviço de quem paga melhor. E com desconto.

    No fim, resta apenas uma conclusão: enquanto os jornalistas continuam a mercadejar a profissão, e os reguladores a fingir que punem, a confiança do público na imprensa esvai-se sem remédio. E talvez seja esse o preço mais alto de todos — embora, esse sim, ninguém o queira pagar.

  • Portugal terminou o ano passado com 3.282 centenários

    Portugal terminou o ano passado com 3.282 centenários

    Nascer em Portugal em 1924 era, à luz dos padrões actuais, quase um acto de heroísmo biológico. Ou, no mínimo, um compromisso com a precariedade. Nesse ano, há precisamente um século, vieram ao mundo 207.440 crianças em território nacional. Mas o berro inaugural de cada uma delas não significava uma entrada garantida no mundo dos vivos. A taxa de mortalidade infantil era então um verdadeiro flagelo: mais de 15% dos nascidos morriam antes de completar um ano. Para se ter uma ideia da brutalidade, essa percentagem é quase 50 vezes superior à actual — e não, não é erro de impressão: a taxa de mortalidade infantil ronda agora os 3 por mil nascimentos, ou seja, 0,3%.

    A vida há um século era breve, rústica, sem antibióticos nem ecografias, com mais rezas do que diagnósticos. Morria-se de qualquer maleita, e as doenças infecciosas grassavam entre camadas sociais e faixas etárias com uma imparcialidade assassina. Chegar à velhice era excepção e não destino: a esperança média de vida rondava então os 40 anos. Alguns contrariavam esse destino, mas eram poucos. No início da década de 20 do século passado, a população portuguesa com mais de 75 anos era residual, inferior a 2%. O envelhecimento demográfico era uma impossibilidade estatística.

    Mas houvesse que conseguisse contrariar esse destino, mesmo que poucos. Entre os mais de duzentos mil nascidos em 1924, houve quem tenha resistido à tuberculose, às disenterias, à guerra, à fome, à ditadura, às gripes, aos internamentos, às quedas no quintal e, seguramente, à pandemia da covid-19, que deixou idosos sem consultas e diagnósticos durante dois anos. E houve quem tenha apagado — nem que fosse com sopro simbólico — as cem velas em 2024.

    Segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o número de centenários em Portugal aumentou, entre 2023 e 2024, de 3.149 para 3.282, ou seja, mais 133 resistentes. Mas esse é o número líquidos, considerando o balanço entre quem chegou aos 100 anos e aqueles que se finaram com mais do que essa idade, porque a partir daí a taxa de mortalidade é extremante elevada. Ora, considerando as denominadas tábuas de mortalidade, como a taxa de sobrevivência de uma mulher com 99 anos chegar aos 100 anos é de apenas 57% e a de um homem nas mesmas condições é de 52%, significa que quase 1.200 pessoas em 2024 conseguiram alcançar as 100 ‘primaveras’.

    Certo é que, segundo os dados do INE, de entre 3.282 centenários que chegaram ao final do ano de 2024, cerca de 80% são mulheres: 2.686, para sermos precisos. Os homens — apenas 596 — continuam a confirmar que a masculinidade é biologicamente menos duradoura, e que a questão do ‘sexo forte’ não encontra solidez na longevidade.

    Não se conhece, por razões de sigilo estatístico, o concelho exacto onde residem as criaturas de espantosa longevidade. Mas sabe-se onde se concentram proporcionalmente: o Alentejo e o Centro lideram, com 5,0 e 4,5 centenários por cada 10 mil habitantes, respectivamente. O rácio médio nacional é de 3,1. No outro extremo, temos os Açores, com 1,9, e a Grande Lisboa, com 2,3, cujos residentes, talvez demasiado ocupada com trânsito e stress, não têm grandes chances de longos e tranquilos envelhecimentos.

    Número de residentes em Portugal com 90 e m ais anos no final de 2024. Fonte: INE.

    Se os centenários são as estrelas da longevidade, os seus irmãos mais “novos” formam um exército ainda mais crescente: os superidosos, aqueles que navegam entre os 90 e os 99 anos, e que, salvo desastre, alimentam estatisticamente o clube dos centenários do futuro. Em 2024, o INE identificava 26.612 pessoas entre os 95 e os 99 anos, e mais 108.239 entre os 90 e os 94. Ou seja, 137.733 portugueses tinham mais de 90 anos, correspondendo a 1,3% da população total. Aqui, também, as mulheres são dominantes: sete em cada dez nonagenários e centenários são do sexo feminino.

    Este grupo etário tem crescido de forma notável: mais 11 mil pessoas em relação a 2021, que confirma que a longevidade, que durante séculos foi um acaso, é hoje uma probabilidade crescente. E, para confirmar essa tendência, basta recuar algumas décadas. Em 1970, Portugal tinha menos de 8,7 milhões de habitantes e apenas 43.981 pessoas com mais de 85 anos — isto é, menos de 0,6% da população. Foram precisos 23 anos para que esse grupo passasse a representar mais de 1% do total populacional, em 1993, quando se ultrapassaram os 100 mil indivíduos com mais de 85 anos.

    A barreira dos 200 mil foi vencida em 2009, e os números continuaram a subir com determinação. Em 2023, o INE contabilizava 379.366 pessoas com mais de 85 anos, e em 2024 esse número subiu para 388.556, representando 3,6% da população portuguesa. Ou seja, em pouco mais de meio século, o número de pessoas com mais de 85 anos multiplicou-se por nove em termos absolutos, e por sete em termos relativos.

    Evolução da população em Portugal com mais de 85 anos desde 1970 até 2024. Fonte: INE.

    Um dado curioso: nem a pandemia da covid-19, que teve impacto significativo nas faixas etárias mais avançadas, travou este crescimento. Entre 2019 e 2023, os números subiram todos os anos: de 343.512 em 2019, para 352.726 em 2020, depois para 362.327 em 2021, 368.507 em 2022, e 379.366 em 2023. Se a tendência se mantiver, é altamente provável que em 2025 o número de pessoas com mais de 85 anos ultrapasse os 400 mil.

    Estes dados não são apenas matéria para estatísticos e demógrafos. Representam um desafio político, económico e cultural de primeira ordem. Um país com quase 400 mil pessoas com mais de 85 anos — e com mais de 130 mil acima dos 90 — não pode continuar a tratar a velhice como uma nota de rodapé nos orçamentos de Estado. A longevidade deixou de ser excepção: tornou-se estrutura demográfica.

    E essa estrutura exige respostas. A começar pela redefinição das políticas de saúde, de habitação, de mobilidade e de apoio social, considerando que a população com maiores necessidades (acima dos 65 anos) já representa mais de 25% da população portuguesa. Neste momento, essa faixa ultrapassa já os 2,7 milhões de habitantes. As instituições, os hospitais, os transportes públicos, os serviços de proximidade não estão ainda preparados para um país que está a envelhecer não apenas em média, mas nos seus extremos. Porque envelhecer não é só viver mais anos — é também poder vivê-los com dignidade, autonomia e significado.

    Evolução da representatividade dos maiores de 85 anos na população portuguesa (número por 10.000 habitantes) desde 1970 até 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Há quem continue a ver os velhos como um problema, uma despesa, um fardo. Mas talvez seja tempo de rever essa ideia. Os centenários não são peso — são testemunho. Cada um deles carrega um século inteiro de história vivida, de resistência biológica e social. Representam o triunfo da vida sobre a precariedade, da ciência sobre a mortalidade, da persistência sobre o acaso.

    E se houve quem, nascido em 1924, tenha conseguido alcançar 2024 com lucidez, apetite e alguma ironia, talvez mereça mais do que uma estatística do INE. Talvez mereça que o país — este mesmo que insiste em falar de futuro com os olhos postos no presente — aprenda finalmente a honrar quem já viu tudo, sobreviveu a quase tudo, e ainda cá está para contar. Até porque, quem nascer hoje, terá ainda mais chances do que os seus pais de ser bisavó ou bisavô, e de ser até trisavó ou trisavô quando fizer 100 anos em 2125.

  • ‘Tirem-nos deste filme’: Anúncio de emprego para o ‘Doclisboa’ recebe más críticas

    ‘Tirem-nos deste filme’: Anúncio de emprego para o ‘Doclisboa’ recebe más críticas

    Quem envereda profissionalmente pelo mundo das artes e da cultura arrisca poder passar por dificuldades financeiras. Mas a Apordoc-Associação pelo Documentário, que é responsável pela organização do evento Doclisboa, elevou a precariedade laboral no mundo das artes e do cinema a um novo nível.

    Num anúncio de emprego que a associação publicou no dia 11 de Junho, a Apordoc surpreendeu o sector pela negativa levando potenciais candidatos a desabafar: “tirem-nos deste filme!” Em causa está um anúncio de recrutamento para a vaga de ‘coordenador’ para o Doclisboa25. Além do salário baixo para a função, no montante de 1.200 euros, com IVA incluído — o que resulta num rendimento líquido de 924 euros —, o cargo será desempenhado na modalidade de recibos verdes.

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    Foto: D.R.

    Isto apesar de a acção de recrutamento indicar que irá existir um evidente vínculo laboral, com cumprimento de horário fixo de trabalho e o exercício das funções em local físico fixo. O ‘coordenador’ terá ainda de levar o seu PC pessoal, pois não terá nenhum disponível na organização.

    Para se ter um termo de comparação, o valor bruto oferecido pela Apordoc para o cargo de ‘coordenador’ está abaixo do oferecido, por exemplo, pela retalhista Mercadona, em Portugal, aos seus trabalhadores base, os quais beneficiam ainda de vínculo permanente. Por outro lado, o valor pago pela Apordoc iguala o rendimento de entrada oferecido pela sueca IKEA aos novos trabalhadores em Portugal, sendo que 90% dos postos na empresa retalhista são de vínculo permanente.

    Mas, em concreto, o que terá de fazer o ‘coordenador’? No anúncio pode ler-se que a Apordoc “procura um(a) profissional com experiência em produção e coordenação de eventos da indústria cinematográfica para integrar a equipa do Doclisboa 2025”. Aponta que “este cargo envolve a gestão operacional de actividades relacionadas com a indústria, sob a supervisão da Direção de Indústria e Desenvolvimento, com uma visão abrangente das actividades do Nebulae [projecto de indústria e espaço de networking do DocLisboa], alinhadas à estratégia global do festival”.

    Uma das principais responsabilidades será a “coordenação e produção das actividades do Nebulae, gerindo os aspetos técnicos e logísticos em articulação com a equipa de produção do Festival”. Também terá de “acompanhar e garantir a execução do calendário das actividades da indústria, em diálogo com as diferentes equipas do Festival, assegurando a sua implementação conforme o planeamento definido pela Direção”. Cumpre ainda ao coordenador “elaborar o mapa de necessidades técnicas para os espaços de eventos e sessões Nebulae”.

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    Foto: D.R.

    O coordenador terá ainda de “atuar como responsável pela comunicação directa com project holders, convidados/as e participantes das actividades Nebulae, assegurando fluidez e clareza na troca de informações”. Cabe-lhe também as tarefas de “recolher e organizar conteúdos para o catálogo da indústria e documentos de imprensa, em colaboração com a equipa de Comunicação” e “coordenar com a equipa de Guest Office as necessidades de viagem, alojamento e hospitalidade dos convidados da Indústria”.

    Outra das suas funções será a de “acompanhar a implementação das contrapartidas para patrocinadores (banners, materiais gráficos, menções, etc.), sob orientação da área de Desenvolvimento e Parcerias”. Por fim, terá a ser cargo a “coordenação directa da equipa de voluntários/as da Indústria, incluindo atribuição de tarefas, orientação e supervisão durante o Festival”, além do “acompanhamento e gestão das actividades da Indústria ao longo dos dias de Festival”.

    O recrutamento será apenas para o período que vai de 04 de Agosto de 2025 até 31 de Outubro de 2025 e o horário dura das 10H00 às 19H00. O local de trabalho será no “escritório da Apordoc em Lisboa (Casa do Cinema, Rua da Rosa, 277, 2º) ou outros espaços a ser utilizados para efeito de escritório para o desenvolvimento deste trabalho”. O coordenador contratado “deverá dispor de computador portátil próprio para o desenvolvimento do trabalho”.

    Anúncio da Apordoc para recrutamento de um coordenador do festival DocLisboa.

    O anúncio da Apordoc tem gerado reacções negativas dentro e fora das redes sociais. Numa publicação sobre a vaga na conta da associação no Instagram, um dos utilizadores escreveu um comentário negativo “Oferta de emprego vergonhosa. Trabalho precário com exigências de relação laboral com vínculo efectivo. Continuamos a brincar com as pessoas, que na verdade são o principal activo de qualquer organização que se preze.”

    Uma outra utilizadora desta rede social questionou: “porquê recibos verdes?” Em resposta a esta pergunta, a Apordoc indicou que “esta é uma vaga para a equipa temporária que o festival contrata a cada edição, dezenas de pessoas que, pela natureza do projecto, trabalham connosco apenas durante uns alguns meses por ano”. “Acrescentou que “todas as pessoas que fazem parte da equipa permanente do Doclisboa têm contrato de trabalho e tentamos dar as melhores condições possíveis à nossa equipa”.

    Além das condições precárias oferecidas para o cargo, no anúncio da Apordoc pode ainda ler-se uma nota que serve de aviso aos interessados com alguma limitação de locomoção: “o escritório da Apordoc ainda não dispõe de acesso para pessoas com mobilidade reduzida”. Ou seja, as pessoas com mobilidade reduzida não poderão concorrer ao cargo. E assim, além das condições precárias de contratação, também se enterra o lema da inclusão.

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    Foto: D.R.

    O PÁGINA UM colocou questões à Apordoc por e-mail, na semana passada, mas até ao momento ainda não obteve respostas.

    O anúncio da Apordoc não só desiludiu alguns profissionais do sector, pela patente precariedade e ausência de inclusão, como deixou uma má impressão sobre a organizadora do festival. Mas, havendo quem no sector esteja com dificuldades para pagar as contas ao fim do mês, certamente haverá candidatos para a função, aceitando as baixas condições. Sempre servirá para adicionar mais uns ‘créditos’ ao curriculum. Mesmo que os bolsos já cheguem vazios ao meio do mês.

  • Entidade Reguladora para a Comunicação Social perdoa em segredo multa por publicidade à Tabaqueira

    Entidade Reguladora para a Comunicação Social perdoa em segredo multa por publicidade à Tabaqueira

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), actualmente liderado por Helena Sousa, recusa prestar esclarecimentos sobre os motivos que levaram ao arquivamento de forma secreta de um processo de contra-ordenação instaurado contra o jornal Público, por alegada violação da Lei do Tabaco, resultante da publicação de conteúdos promocionais pagos pela Tabaqueira. A multa poderia atingir um máximo de 250 mil euros.

    A decisão do Conselho Regulador foi tomada em Agosto do ano passado, mas só agora a ERC revelou este facto depois de ter sido questionada pelo PÁGINA UM. Ao contrário do que é exigido por lei, mesmo nos casos de arquivamento, a ERC não tomou a decisão por deliberação, que é obrigatoriamente pública, e os motivos desta decisão permanece envolta em segredo.

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    Porém, indícios de infracção grave tenham sido anteriormente reconhecidos pelo próprio regulador numa prévia deliberação por unanimidade em Novembro de 2022, num mandato anterior à de Helena Sousa, uma professora de Ciências de Comunicação sem qualquer experiência jurídica nem particular sensibilidade sobre as obrigações legais em matéria de regulação administrativa e contra-ordenacional.

    Quando questionada pelo PÁGINA UM sobre a base legal e factual para o arquivamento, a ERC remeteu apenas para uma “análise preliminar” da sua Unidade de Contra-Ordenação, recusando, no entanto, enviar o documento. Em alternativa, a entidade sugeriu que fosse apresentado um requerimento ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA).

    No entanto, sabe-se que a própria ERC tem, em múltiplas ocasiões, recusado fornecer documentos mesmo após requerimentos formais, o que tem obrigado o PÁGINA UM a apresentar queixas sucessivas à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ou a recorrer aos tribunais administrativos — onde, mesmo após decisões desfavoráveis, o regulador insiste em apresentar recursos. Além disso, sendo a ERC a entidade que constitucionalmente tem a função de promover o acesso facilitado dos jornalistas às fontes de informação, não faz sentido que se recuse reiteradamente a satisfazer um pedido concreto e simples sob um acto administrativo.

    No conteúdo comercial, o Público apresentava mesma a fotografia de Marcelo Nico, director-geral da Tabaqueira, com a referência de que fora tirada “durante a apresentação do novo IQOS Iluma“.

    Convém referir, contudo, que a alegada “análise preliminar” da Unidade de Contra-Ordenação não faz qualquer sentido na fase em que se encontrava o processo de contra-ordenação – que fora aberto por uma deliberação e que teria de ser concluído com outra deliberação –, uma vez que existem normas legais a seguir. Nessa deliberação de Novembro de 2022, a ERC tinha sido taxativa ao concluir que o texto promocional do Público, ademais paga pela Tabaqueira, constituía “uma contra-ordenação económica muito grave”.

    Com efeito, ao arquivar agora um processo (que abrira) sem qualquer deliberação formal — como seria obrigatório —, o Conselho Regulador da ERC arrisca estar a contornar normas essenciais, o que fragiliza juridicamente a decisão tomada. Mais grave ainda: ao evitar uma decisão formal e pública, impede-se o escrutínio dos cidadãos e inviabiliza-se uma eventual contestação judicial, deixando no ar suspeitas de favorecimento ou, no mínimo, de falta de rigor institucional.

    Saliente-se que este caso remonta ao início de Outubro de 2022, quando o jornal Público publicou um conteúdo comercial da Tabaqueira, coincidente com o lançamento do sistema de tabaco aquecido por indução IQOS Iluma. O artigo, publicitado como “conteúdo comercial”, elogiava a tecnologia da nova geração da Philip Morris, empresa-mãe da Tabaqueira, e era acompanhado de uma imagens de carácter claramente publicitário, incluindo fotografia do director da Tabaqueira com um novo produto de tabaco lançado poucos dias antes.

    Helena Sousa, presidente da ERC introduziu a ‘modalidade’ de arquivar contra-ordenações pela ‘calada’ e , apesar de liderar a instituição constitucionalmente para promover o acesso dos jornalista à informação, recusa esclarecer os actos administrativos que toma.

    Como o PÁGINA UM noticiou a 14 de Outubro de 2022, o regulador confirmara ter aberto um procedimento contra o jornal do Grupo Sonae por possível infracção da Lei n.º 37/2007, nomeadamente do artigo 14.º-E — que proíbe publicidade e patrocínio a cigarros electrónicos e recargas — e do artigo 18.º, relativo ao patrocínio, considerando tratar-se de “uma contra-ordenação económica muito grave”.

    Um mês mais tarde, a própria ERC, ainda sob o mandato do anterior presidente, Sebastião Póvoas, sustentou, através de deliberação formal, que o conteúdo em causa era inequivocamente promocional, salientando que “estes conteúdos visam um posicionamento das marcas e dos produtos, através de uma prática social encapotada, que não revela os malefícios dos produtos”, ao mesmo tempo que reforçava “a imagem de uma empresa socialmente consciente e atenta aos potenciais consumidores”. O regulador reiterava que, mesmo não se tratando de publicidade tradicional, o artigo promovia “o engagement do leitor com a marca”, o que se enquadraria numa violação clara da lei.

    Na resposta enviada ao regulador, o Público alegava então que os conteúdos patrocinados “não traduzem qualquer incentivo, publicidade ou mesmo promoção aos produtos de tabaco”, sublinhando que o objectivo seria “potenciar a notoriedade e posicionamento da marca ‘Tabaqueira’ enquanto entidade promotora de inovação tecnológica e do desenvolvimento sustentável”. A ERC, porém, descartou em 2022 esta linha de argumentação, recordando que não é admissível dissociar o conteúdo promocional do patrocínio por uma empresa cuja actividade é precisamente a venda de produtos de tabaco — sendo esse tipo de associação expressamente proibido pela legislação desde 2005 para a imprensa escrita.

    Mesmo de forma subliminar, as empresas de tabaco estão legalmente proibidas de fazer publicidade em órgãos de comunicação social, mas agora há sempre a possibilidade do Conselho Regulador da ERC ‘fechar’ os olhos e mandar arquivar em segredo os processos de contra-ordenação… ou, no futuro, nem sequer os abrir.

    Apesar de todos estes elementos, e das anteriores considerações desfavoráveis ao Público constantes no procedimento, a ERC optou deixou o processo de contra-ordenação em ‘banho-maria’ durante mais de 20 meses e em Agosto do ano passado tomou a decisão de arquivar o processo mas sem qualquer deliberação e sem disponibilizar o parecer técnico que suportaria tal decisão.

    Recorde-se que, na mesma semana em que o processo contra o Público foi anunciado, o regulador abriu igualmente processos de contra-ordenação ao grupo Global Media, por quatro inserções patrocinadas pela Tabaqueira: duas no Jornal de Notícias, uma no Diário de Notícias e outra no Dinheiro Vivo. Segundo a ERC, esse processo está na “fase final de tramitação”. Um outro porcesso similart, também de 2022, instaurado contra a Trust in News – que detém, entre outras publicações, a revista Visão – estará ainda a decorrer a fase “para apresentação da defesa escrita”.

    A atitude da ERC em esquecer — e praticamente apagar — um caso flagrante de violação da Lei do Tabaco surge num momento em que a indústria tabaqueira, com a Philip Morris (dona da Tabaqueira) como caso paradigmático, adopta uma estratégia mais subtil e insidiosa: pagar conteúdos comerciais em órgãos de comunicação social — e até participar em podcasts, como sucedeu na semana passada no jornal Sol — para se apresentar como promotora de sustentabilidade e inovação tecnológica.

    Com a ajuda da depauperada comunicação social, a Tabaqueira ‘vende’ hoje a sua imagem como empresa tecnológica, de inovação e até de promoção da saúde. A ERC ‘fecha os olhos’.

    Tudo isto enquanto, sub-repticiamente, promove produtos de tabaco sem combustão, numa tentativa clara de contornar o espírito e a letra da Lei do Tabaco de 2005.

    Neste contexto, o apagamento intencional de um processo de contra-ordenação e a recusa em divulgar de forma voluntária os seus fundamentos à imprensa revelam sinais preocupantes de opacidade por parte do actual Conselho Regulador da ERC — um caso lamentável de sinuosidade institucional, que mina a confiança pública e compromete o papel do regulador como garante da legalidade e da transparência no sector da comunicação social.

  • Anjos vs. Joana Marques: ano do vídeo polémico até foi o mais rentável do último quinquénio para os irmãos Rosado

    Anjos vs. Joana Marques: ano do vídeo polémico até foi o mais rentável do último quinquénio para os irmãos Rosado

    Limites da sátira, impacto económico do humor – mesmo que mau –, crises de acne, triatlo para combater a depressão e até lapsos de memória de um gerente. De tudo isto se falou na sessão de hoje do julgamento que coloca no banco dos réus a humorista Joana Marques, processada pela dupla musical Anjos, que reclama uma indemnização de 1.118.500 euros por alegados danos patrimoniais e não patrimoniais. Entre os prejuízos invocados contam-se o cancelamento de espectáculos e contratos de patrocínio, bem como danos à imagem e reputação dos irmãos Rosado.

    A polémica remonta ao dia 24 de Abril de 2022, quando os Anjos interpretaram o Hino Nacional antes da prova de MotoGP no Autódromo Internacional do Algarve. A actuação – marcada por problemas técnicos – gerou uma onda de críticas nas redes sociais, amplificada por Joana Marques, que publicou no Instagram uma montagem vídeo da performance dos Anjos intercalada com reacções negativas de jurados do programa televisivo Ídolos. Na legenda, acrescentou a provocatória frase: “Será que foi para isto que se fez o 25 de Abril?”

    Apesar de, na sessão de hoje, o pai dos irmãos Rosado – gerente da Angel Minds – ter manifestado lapsos de memória quanto à evolução dos rendimentos da empresa que gere a carreira dos músicos, o Página Um analisou as contas anuais da Angel Minds entre 2019 e 2023, último ano disponível. E, na verdade, se os Anjos têm motivo de queixa, será unicamente da pandemia, porque não se vislumbra qualquer impacto económico adverso derivado do vídeo de Joana Marques.

    Com efeito, apesar de a maior parte dos contratos de espectáculos ser formalizada através da empresa Senhores do Ar II –, detida pelo agente dos irmãos Rosado, é na Angel Minds que os artistas recebem os seus cachets líquidos.

    Ora, segundo as contas dessa sociedade, o melhor ano do quinquénio foi precisamente 2022, o ano da controvérsia com Joana Marques, registando vendas e prestações de serviços no valor de 448.571 euros – valor que representa uma recuperação significativa face aos dois anos pandémicos.

    Em 2019, último ano pré-covid, a Angel Minds tinha facturado cerca de 402 mil euros, mas esse valor caiu para menos de 90 mil euros em 2020 e apenas 105 mil euros em 2021, reflectindo os constrangimentos generalizados no sector cultural. Já em 2023, apesar de uma descida para 270 mil euros, não há qualquer indício que relacione esta quebra com o episódio humorístico.

    A actuação dos Anjos a cantar o hino em 25 de Abril de 2022 foi alvo da sátira de Joana Marques.

    Essa tese desfaz-se também ao analisar os contratos públicos de actuação dos Anjos, quase sempre celebrados com municípios. Entre 2019 e 2025, a dupla somou 63 espectáculos adjudicados por câmaras municipais ou empresas municipais, mantendo uma presença regular no circuito institucional.

    Em 2019, em plena normalidade, realizaram 19 espectáculos em municípios como Albufeira (com dois contratos distintos), Oeiras, Portel, Vieira do Minho, Beja, Penela, Aljezur, Lamego, Guarda, Batalha, Ourique, Calheta de São Jorge, Mealhada, Marco de Canaveses, Seixal, Ferreira do Zêzere, São Brás de Alportel e também com a empresa municipal Prazilândia, da Castanheira de Pêra. Este ano serve de referência para o nível de actividade pré-pandemia.

    Em 2020 e 2021, a pandemia reduziu drasticamente a actividade artística. Em 2020, realizaram apenas três espectáculos (Pinhel, Lagoa e Vila Franca de Xira); e em 2021 também três (Alandroal e duas vezes no Seixal).

    Chegado o ano de 2022, considerado de retoma, os Anjos celebraram 12 contratos públicos. E importa destacar que apenas um – com o município da Azambuja – foi assinado antes da publicação do vídeo de Joana Marques, a 25 de Abril. Todos os outros 11 contratos foram posteriores, incluindo actuações em Santarém (com um contrato de 60 mil euros), Moura, Fornos de Algodres, Corroios, Pombal, Paredes, São João da Pesqueira, Sabrosa, Estarreja, Miranda do Corvo e novamente Azambuja.

    Joana Marques

    Os valores por actuação em 2022 rondaram, por norma, os 17 mil euros, valor até ligeiramente superior ao verificado antes da pandemia. Além disso, os “fornecimentos e serviços externos” da Angel Minds – que reflectem sobretudo os cachets pagos aos artistas – atingiram em 2022 o valor recorde de quase 410 mil euros, face aos cerca de 285 mil euros em 2019, 82 mil euros em 2020 e 120 mil euros em 2021. Mesmo admitindo que alguns contratos pudessem ter sido cancelados, seria necessário um corte de mais de 50 espectáculos para justificar o valor de indemnização pedido pelos Anjos.

    Em 2023, embora tenha havido uma ligeira redução do número de contratos, os Anjos actuaram em 11 eventos públicos, com presença em Reguengos de Monsaraz, Lisboa, Borba, Ferreira do Alentejo, Moita, Vila Flor, Ílhavo, Águeda, Redondo, Tábua e Coruche. A actividade regular prosseguiu em 2024, com concertos em Braga, Moura, Vieira do Minho, Seixal, Portimão, Oeiras e Aljustrel, com cachets que, em regra, rondaram os 20 mil euros.

    Em 2025, os concertos já adjudicados incluem actuações em Chamusca, Vizela, Trofa, Estremoz, Póvoa de Varzim, Sesimbra e Amarante – neste último caso, a actuação realizou-se a 7 de Junho, com um cachet de 34.200 euros. Mas ainda não estão registados outros concertos já agendados. Só para este mês, segundo a sua página no Facebook, os Anjos têm agendados sete concertos, quatro dos quais em apenas uma semana.

    Sérgio e Nelson Rosado: os Anjos foram criados em 1999.

    Ou seja, apesar de uma ligeira redução no número de concertos, os valores contratados aumentaram, o que invalida qualquer narrativa de prejuízo reputacional ou boicote decorrente do vídeo humorístico.

    Acrescente-se ainda que, segundo as contas da Angel Minds, apesar de funcionar essencialmente como canal de recepção dos cachets dos irmãos Rosado, apresenta uma situação financeira sólida, com resultados transitados (lucros acumulados) na ordem dos 270 mil euros e saldos em depósitos bancários superiores a 300 mil euros.

  • Expo 2025 Osaka: institutos públicos pagam para ter cobertura noticiosa… e Cristina Ferreira no Japão

    Expo 2025 Osaka: institutos públicos pagam para ter cobertura noticiosa… e Cristina Ferreira no Japão

    A Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) recusa divulgar quanto custaram os convites a jornalistas e a “figuras públicas” — entre as quais a apresentadora Cristina Ferreira — para participarem na cobertura do Dia de Portugal na Expo 2025, que decorre na cidade japonesa de Osaka. Questionada pelo PÁGINA UM, a agência estatal liderada por Ricardo Arroja escusou-se ainda a responder, escudando-se num silêncio institucional pouco compatível com o dever de transparência na gestão de dinheiros públicos.

    Até ao momento, apenas dois órgão de comunicação social — o Expresso e Lusa— assumiu publicamente que a cobertura noticiosa do pavilhão português no passado dia 10 de Junho foi patrocinada por verbas públicas. Na peça assinada por Christiana Martins, com fotografia de Ana Baião, lê-se de forma explícita: “O Expresso viajou a convite da AICEP”. A jornalista do Expresso ainda aproveitou para entrevistar a comissária do pavilhão português, Joana Gomes Cardoso, nomeada pela AICEP, a entidade que pagou a viagem.

    A comissária teve, numa entrevista ao Expresso sob patrocínio da AICEP, com perguntas ‘fofas’, a oportunidade de relativizar a notícia do PÁGINA UM sobre a subserviência da língua portuguesa em parte da exposição, dizendo ter dificuldade de “responder ao absurdo”. E também pôde lamentar-se das exigências da contratação pública, apesar do Orçamento do Estado já ter permitido um regime de excepção à AICEP que, por exemplo, possibilitou a contratação por ajuste directo no valor de 220 mil euros de uma agência de comunicação sueca que tem, como um dos objectivos, conseguir que Joana Gomes Cardoso seja entrevistada por um jornal nipónico.

    No caso da Agência Lusa, detida pelo Estado, e que divulga os seus trabalhos para outros órgãos de comunicação social, também se diz que “os jornalistas viajaram a convite da AICEP“. Porém, os restantes órgãos, em número desconhecido, preferiram o manto do eufemismo ou a mais absoluta omissão.

    A RTP, por exemplo, apresentou os seus repórteres como “enviados especiais”, sem qualquer menção a custos ou convites. Na TVI, onde a jornalista Andreia Vale demonstrou evidente cumplicidade com a comissária do pavilhão, Joana Gomes Cardoso, chega-se ao ponto de lhe entregar o microfone para, em desafino colectivo, se cantar o hino nacional num coro improvisado. Tudo isto sem uma única referência sobre quem suportou os encargos da deslocação da equipa da estação de Queluz de Baixo ao Japão.

    O recurso a convites pagos para cobertura jornalística tornou-se prática rotineira — embora eticamente questionável — no relacionamento com empresas privadas. Mas começa agora a ser adoptado também por organismos públicos, o que representa uma preocupante erosão da independência editorial e do princípio de isenção informativa que deve nortear o jornalismo.

    Quando jornalistas aceitam viagens, estadias ou outros benefícios não por sua iniciativa, mas a convite de entidades públicas, estabelece-se uma relação de conivência susceptível de enviesar a cobertura, transformando o repórter num promotor institucional. Esta prática, já de si censurável no sector privado por poder configurar publicidade disfarçada de reportagem, torna-se ainda mais grave quando envolve recursos públicos. Cria-se um potencial conflito entre o dever de escrutínio do poder e a comodidade de uma cobertura favorecida. O desvio ético daí resultante afecta não só a qualidade da informação prestada, como também mina a confiança dos cidadãos nos órgãos de comunicação social, ao tornar mais difusa a linha que separa o interesse público do interesse promovido.

    Por outro lado, considerando a especial responsabilidade de isenção e de tratamento equitativo que se exige a instituições públicas, importa escrutinar os critérios de selecção dos media e das personalidades convidadas, bem como as contrapartidas esperadas. Saliente-se que não existe, actualmente, qualquer obrigação legal que imponha aos jornalistas ou órgãos de comunicação social a declaração dos montantes envolvidos, mesmo quando se tratam de viagens a destinos distantes como o Japão, cujo custo por participante poderá ascender a vários milhares de euros.

    Ricardo Arroja, presidente da AICEP: se a imprensa não vai à montanha, então pague-se à imprensa para ir à montanha… com dinheiros públicos.

    Situação paralela verifica-se com o pagamento a “figuras públicas” por parte de organismos do Estado — uma prática já vulgarizada no sector privado, onde se insere na lógica do marketing. Mas em instituições públicas, a promoção de marca suscita questões adicionais: faz sentido que entidades financiadas por dinheiros públicos invistam em notoriedade pessoal ou institucional, quando a sua missão não é competir no mercado, mas servir o interesse colectivo com transparência, rigor e parcimónia?

    A utilização de celebridades para reforçar a imagem de entidades públicas pode facilmente descambar para o culto da personalidade, a personalização de políticas ou a simples tentativa de conquistar simpatias populares sem substância efectiva. Acresce ainda o problema da selecção dessas figuras: com base em que critérios são escolhidas? Qual o impacto real da sua presença? E, sobretudo, quem retira verdadeiro benefício dessa associação — o cidadão ou a própria figura contratada, promovida à custa do erário público? Mais do que uma questão de comunicação, trata-se, pois, de um dilema ético e político: onde termina a informação institucional e começa a propaganda financiada pelos contribuintes?

    Entretanto, na chamada “imprensa cor-de-rosa”, multiplicam-se referências à presença de Cristina Ferreira na cerimónia do Dia de Portugal, apontando que terá sido convidada pelo Turismo de Portugal. A apresentadora da TVI, de resto, confirma esse convite na sua página no Instagram, prolongou a sua estadia em solo nipónico para férias — um luxo, ao que tudo indica, pelo menos parcialmente patrocinado com dinheiros públicos.

    Cristina Ferreira foi convidada especial para Osaka…e aproveitou a boleia para fazer férias no Japão.

    O PÁGINA UM questionou formalmente o Turismo de Portugal sobre quem convidou, quanto custou e se houve cachets envolvidos. Aguarda-se resposta. No Portal Base, contudo, não constam quaisquer contratos celebrados com agências de viagens ou despesas associadas a este tipo de deslocações. O mesmo se verifica relativamente à AICEP.

    Enquanto isso, a cobertura dos media portugueses tem omitido factos alarmantes sobre a própria Expo 2025 Osaka. Desde a semana passada, os níveis bacterianos de Legionella — bactéria que pode causar uma forma grave de pneumonia — situam-se 53 vezes acima do limite de segurança. Desde 28 de Maio, zonas como o Forest of Tranquility e a Water Plaza — palco de espectáculos aquáticos — foram encerradas para desinfecção, após confirmação da contaminação. A exposição, inaugurada a 13 de Abril, já enfrentara outros incidentes, incluindo ameaças de bomba, sobrevoos por drones não autorizados, falhas no metropolitano e mesmo receios de explosões de metano, dado situar-se sobre um antigo aterro sanitário.

    Segundo o Mainichi Broadcasting System, os primeiros testes positivos à presença de Legionella ocorreram em Maio, mas as autoridades só vieram a público semanas depois. A desinfecção inicial revelou-se ineficaz, e novos testes realizados a 7 de Junho voltaram a detectar concentrações 53 vezes acima do limite legal. Apesar do risco elevado para a saúde pública, nem a AICEP nem qualquer órgão de comunicação social português fizeram menção ao problema.

  • Mais de 600 mil: nunca houve tantos idosos em risco de pobreza e exclusão

    Mais de 600 mil: nunca houve tantos idosos em risco de pobreza e exclusão

    É o reverso da medalha do aumento da esperança média de vida — e também um sinal atroz de derrota civilizacional e das políticas sociais. Nos últimos cinco anos, o número de pessoas com mais de 65 anos a viver em risco de pobreza ou exclusão social em Portugal aumentou de forma alarmante.

    De acordo com cálculos efectuados pelo PÁGINA UM, com base nas percentagens divulgadas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e cruzando esses valores com as estimativas oficiais da população residente, verifica-se que entre 2019 e 2024 houve um acréscimo de mais de 100 mil idosos nesta condição de fragilidade socioeconómica. Em números absolutos, passaram de cerca de 560 mil para mais de 600 mil.

    an old woman with a scarf around her neck

    Este dado é tanto mais preocupante porque continua ausente das apresentações formais do INE, que se limita a publicar apenas as proporções percentuais. Além disso, fica ‘escondida’ de uma melhoria registada na população vista globalmente: pela primeira vez desde 2018, segundo os dados divulgados no final de Maio relativos ao ano de 2024, a percentagem da população residente em risco de pobreza ou exclusão ficou abaixo da fasquia dos 20% (19,7%), sendo que na faixa dos 18 aos 64 anos — que grosso modo corresponde à população em idade activa — essa percentagem é ainda mais baixa (17,8%).

    No entanto, aquilo que se os números relativos não mostram é que a população idosa tem vindo a crescer continuamente, e daí o número de vulneráveis acima dos 65 anos estar em contínuo crescimento desde 2018. Esta omissão de dados absolutos mascara o verdadeiro impacto social da evolução.

    Com efeito, os valores do INE, compilados no âmbito da meta europeia Europa 2030, indicam que 23,8% dos idosos se encontravam em 2024 em risco de pobreza ou exclusão social. Esta percentagem parece apenas ligeiramente superior aos 20,4% de 2019 — e até mais baixa do que em 2021, em plena pandemia —, mas em termos absolutos o aumento é muito relevante.

    clothes hanging out to dry on a clothes line

    De facto, como a população com 65 ou mais anos aumentou em cerca de 210 mil pessoas no último quinquénio, passando de 2.327.150 em 2019 para 2.537.740 em 2023 (ano usado como referência populacional, uma vez que o INE ainda não divulgou, estranhamente, as estimativas de 2024), o aumento percentual da exclusão e pobreza é ainda mais agravado pelo aumento populacional no grupo dos idosos.

    Ou seja, mesmo que a taxa se mantivesse constante, o número absoluto de pessoas afectadas teria subido. Como a taxa aumentou, o número de idosos pobres disparou para valores inéditos, estimando-se em 603.982 idosos em 2024, face a 560.843 em 2020 e 534.322 em 2021. A tendência é persistente e preocupante, sem sinais de reversão.

    A situação torna-se ainda mais grave quando analisada sob o prisma do sexo. Entre os homens com mais de 65 anos, o risco de pobreza em 2024 afectava 20,8%, valor já de si significativo. Mas entre as mulheres com a mesma idade, a percentagem ascende a 26,1%, o que equivale, segundo os cálculos do PÁGINA UM, a mais de 376 mil mulheres idosas em risco de pobreza ou exclusão social — um número que supera em muito os 227 mil homens idosos na mesma condição. A disparidade é estrutural: existe não apenas uma diferença de rendimentos ou protecção social, mas também uma assimetria demográfica.

    Evolução no último quinquénio da população idosa (homens e mulheres) em função do risco de pobreza e exclusão. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM. Nota: Uma vez que as estimativas de população de 2024 ainda não foram divulgadas pelo INE, os valores absolutos foram calculados em função do risco para o ano N e da população do ano -1. Isto significa que os valores até pecam por um ligeiro defeito.

    Em Portugal, como em quase todo o mundo, a esperança média de vida é mais elevada entre as mulheres, o que resulta numa sobre-representação feminina nas faixas etárias mais avançadas. Em 2023, por exemplo, havia cerca de 1,44 milhões de mulheres com mais de 65 anos, face a 1,09 milhões de homens — ou seja, cerca de 350 mil mulheres a mais.

    Este desequilíbrio demográfico agrava o impacto social do fenómeno da pobreza na velhice. Além disso, os números tornam claro que não estamos perante uma anomalia estatística, mas sim diante de uma tendência que compromete o tecido social e o próprio contrato intergeracional. Com o aumento progressivo da esperança de vida, aliado a carreiras contributivas interrompidas ou precárias — sobretudo no caso de muitas mulheres que trabalharam sem descontos ou em tarefas não remuneradas —, o sistema de pensões revela-se incapaz de garantir condições de vida dignas a uma parte substancial da população mais velha.

    Recentemente foi relevada uma análise da CGTP, com base em dados do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, em que se destacava que mais de metade dos pensionistas por velhice da Segurança Social (986.200 pessoas) recebia menos de 500 euros mensais — um valor inferior ao limiar de pobreza fixado nesse ano em 542 euros (em cálculo por rendimento anual dividido por 14).

    row of vegetables placed on multilayered display fridge

    Destes, cerca de 68 por cento são mulheres, o que reforça a constatação de que a pobreza na velhice afecta desproporcionalmente o sexo feminino. Somando os pensionistas que auferem até 750 euros mensais, o universo atinge quase 1,5 milhões de pessoas, representando 77% dos pensionistas da Segurança Social.

    Apesar de a média das pensões de velhice situar-se nos 666 euros mensais, o valor continua a rondar o limiar da pobreza. As pensões do regime geral atingem ligeiramente mais (524 euros), mas mesmo nesse contexto, as mulheres continuam a receber apenas cerca de 62% do valor dos homens. Esta realidade, como sublinha a CGTP, resulta de carreiras contributivas mais curtas e salários historicamente mais baixos, sendo o reflexo acumulado de desigualdades estruturais. O panorama traçado revela, pois, uma crise silenciosa que se adensa nos lares mais envelhecidos do país — e que permanece à margem das prioridades políticas.

  • Bairro Alto: onda de assaltos em restaurantes e bares

    Bairro Alto: onda de assaltos em restaurantes e bares

    Vidros partidos, fechaduras arrombadas, portas estragadas. O cenário repete-se de noite para noite, Nas últimas semanas, somam-se os assaltos a estabelecimentos situados no popular Bairro Alto, em Lisboa. Na Rua do Norte, numa só noite foram assaltados dois restaurantes, o Limoncello e a Adega Machado. Outros estabelecimentos não foram assaltados, mas os proprietários encontraram fechaduras e portas estragadas pela manhã. Foi o caso do restaurante Stasha, na Rua das Gáveas.

    Os proprietários de restaurantes e bares daquele conhecido bairro lisboeta de diversão nocturna fazem contas aos prejuízos causados pelos roubos e sentem-se sozinhos. Falam na existência de um certo desinteresse pelo tema por parte das autoridades, designadamente a Junta de Freguesia da Misericórdia. Sobretudo, nesta altura, pedem mais vigilância e patrulhamento policial na zona, durante a noite.

    Os assaltos a estabelecimentos no Bairro Alto têm acontecido pela madrugada. / Foto: D.R.

    “Quase todos os dias há um assalto ou uma tentativa de assalto a estabelecimentos aqui no Bairro. Sentimo-nos impotentes para parar isto”, disse um dos empresários da zona ouvidos pelo PÁGINA UM.

    “O problema aqui no Bairro não é a falta de segurança nas ruas, das pessoas, dos clientes, mas dos espaços e estabelecimentos. Tem havido uma onda imparável de assaltos. Era preciso haver mais vigilância e um reforço da presença da polícia durante a noite”, disse.

    Ainda não foi possível obter respostas da Polícia de Segurança Pública (PSP) e os empresários afectados desconhecem se já foram identificados ou detidos os assaltantes. Testemunhas têm apontado o dedo a dois estrangeiros, de nacionalidade argelina, como sendo os alegados autores de alguns dos assaltos.

    Policiamento no Bairro Alto, até há, mas da Polícia Municipal, e os empresários lamentam que seja, sobretudo, para visar os estabelecimentos e encontrar eventuais ‘falhas’, e não para afastar e travar o aumento dos assaltos.

    Um dos recentes assaltos no Bairro Alto. / Foto: D.R.

    Para Ricardo Tavares, presidente da Associação Portuguesa de Restaurantes, Bares e Animação Noturna, é incompreensível que não se consiga travar os assaltantes, noite após noite. “No Bairro Alto não há insegurança para as pessoas. Tem é havido assaltos a vários espaços”, disse. O empresário apontou que existe uma falta de solidariedade por parte da Junta de Freguesia da Misericórdia em relação à situação que insegurança que afecta os estabelecimentos daquele bairro histórico. E aponta o dedo a interesses que existem para acabar com o negócio da restauração na zona para instalar hotéis de luxo no bairro.

    O PÁGINA UM colocou hoje algumas questões sobre a onda de assaltos no Bairro Alto à Junta de Freguesia da Misericórdia e também à Câmara Municipal de Lisboa, e ainda não foi possível obter respostas.

    Contudo, não é só no Bairro Alto que os roubos a restaurantes e bares se avolumam. Nas zonas da Graça, Arroios, Anjos e Intendente, os empresários falam na existência de um clima de insegurança. Nunca sabem como vão encontrar o seu estabelecimento pela manhã. Alguns estabelecimentos foram assaltos várias vezes seguidas.

    Nas zonas da Graça, Arroios, Anjos e Intendente, dezenas de donos de estabelecimentos criaram um abaixo-assinado depois de terem sofrido assaltos e arrombamentos. Na imagem, é visível a fachada em vidro partida de um bar situado na Rua Damasceno Monteiro que foi assaltado no início deste ano. / Foto: D.R.

    Foi mesmo criada uma petição, reunindo assinaturas de dezenas de proprietários de estabelecimentos destas zonas, a pedir um reforço de segurança e policiamento. “Abrimos as nossas portas todas as manhãs, sem saber se seremos as próximas vítimas”, lê-se no texto da petição. “Esta onda implacável de crimes não só coloca em risco a nossa segurança e a de nossos colaboradores, mas também abala a confiança e a tranquilidade dos nossos clientes”, adianta.

    Os assaltantes, além de provocarem danos em portas e janelas, levam o que podem, desde dinheiro, tabaco, garrafas de bebidas alcoólicas, máquinas registadoras e pequenos electrodomésticos.

    Nenhum estabelecimento está imune a ser assaltado. Os roubos têm deixado um rasto de prejuízos que afecta desde o pequeno restaurante familiar até ao café ‘gourmet’ e ao bar popular, que atrai turistas em busca de esplanada e diversão.

    Estes empresários fizeram um apelo, “com urgência, que as autoridades responsáveis, como a Câmara Municipal de Lisboa, a Polícia de Segurança Pública e as Juntas de Freguesia de Arroios e Penha de França, tomem medidas imediatas e eficazes para combater a criminalidade na nossa área”.

    Vista de Lisboa a partir de um dos miradouros na Graça. Na zona, as receitas ganhas com turistas e clientes habituais não chegam, por vezes, para alguns estabelecimentos cobrirem os prejuízos deixados por assaltos sucessivos. / Foto: D.R.

    Tal como está a acontecer no Bairro Alto, os assaltos decorrem sobretudo de noite e nas primeiras horas da manhã, por isso, os proprietários de bares e restantes pediram um reforço do patrulhamento policial nesse período. Também pediram a instalação de câmaras de vigilância “em locais estratégicos para deter a atividade criminosa” e “apoio institucional e logístico para os proprietários de negócios que desejam reforçar a segurança dos seus estabelecimentos, como ‘gratificado’ ou ajuda financeira para poder contratar empresas de segurança para vigilância”.

    De resto, no caso da Graça, não há estabelecimento que não se queixe de roubos e assaltos, tanto aos estabelecimentos como a funcionários. Nem as farmácias escapam. De há uns meses para cá, a mais frequentada farmácia do Largo da Graça conta com um segurança presente logo à entrada. Um sinal dos tempos que se vivem nestes bairros turísticos de Lisboa.

    No caso do Bairro Alto, sem respostas das autoridades, aos donos dos estabelecimentos, resta-lhes, para já, enfrentar os prejuízos enquanto colocam mais trancas nas portas, sem saber quando vai chegar o próximo assalto.

  • Polígrafo mentiu para garantir que Rui Tavares só dizia verdades

    Polígrafo mentiu para garantir que Rui Tavares só dizia verdades

    O Polígrafo – o órgão de comunicação social dedicado ao fact-checking e que se arvora de “guardiã da verdade”, distribuindo selos, incluindo “pimenta na língua” – foi apanhado a martelar factos, classificando como verdadeira uma afirmação falsa de Rui Tavares, co-líder e deputado do Livre.

    Numa deliberação ontem divulgada, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) reconheceu formalmente que o Polígrafo violou o dever de rigor informativo ao validar, sem a devida contextualização, uma afirmação de Rui Tavares durante o debate televisivo para as recentes eleições legislativas, no qual confrontou André Ventura, presidente do Chega.

    a wooden statue with a white hat on top of it

    Para apurar quem faltara mais à verdade no frente-a-frente, o Polígrafo escolheu cinco afirmações dos dois políticos, tendo “sentenciado” que Ventura mentiu em duas, enquanto Tavares teria dito cinco verdades. Só que não. Tavares afirmou no debate que, durante o mandato de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, “até roubo de jóias houve”. Ora, o Polígrafo classificou tal afirmação como “verdadeira”, justificando-se com investigações em curso no Brasil relativas a jóias recebidas por Bolsonaro durante o exercício da presidência, para além da condenação de inelegibilidade por oito anos. Contudo, como se depreende da própria ERC, quem mentiu foi o Polígrafo.

    De acordo com a deliberação do regulador, é certo que “em Julho de 2024 foi tornado público e profusamente noticiado que a Polícia Federal [do Brasil] denunciara Jair Bolsonaro por apropriação indevida de jóias que recebera enquanto chefe de Estado, considerando que se trata de património público”.

    Porém, “o caso levou a uma decisão do Tribunal de Contas do Brasil (TCU), de Março de 2025, que considerou que presentes de uso pessoal, recebidos por presidentes e vice-presidentes, não são património público, podendo mantê-los ao saírem do cargo”, acrescentando ainda que se “aguarda, entretanto, parecer da Procuradoria-Geral da República que pode seguir diversas vias: denúncia ao Supremo Tribunal Federal – cuja decisão não é influenciada pela posição adoptada pelo TCU –, pedido de novas diligências ou arquivamento”.

    Aliás, nessa decisão de Março passado, acabou por fazer uma equivalência das ofertas recebidas por Bolsonaro ao que Lula da Silva tinha feito em 2005, quando ficou com um relógio oferecido enquanto líder do Estado brasileiro.

    Nada disso é referido na análise do Polígrafo. Ao invés, para fundamentar a classificação de “Verdadeiro” à frase de Rui Tavares, o Polígrafo escreveu: “Bolsonaro deveria ter entregue [sic] essas jóias ao Estado brasileiro assim que deixou o poder, uma vez que estas foram uma oferta institucional. De acordo com as investigações, porém, Jair Bolsonaro vendeu algumas dessas jóias através de intermediários.”

    Assim sendo, a ERC conclui ser “forçoso concluir que o Polígrafo incumpr[iu] o dever de rigor informativo na verificação de factos publicada”, embora destaque sobretudo a ausência de “contexto suficiente para que os leitores compreendam os contornos reais” da alegada apropriação e venda de jóias.

    Polígrafo, um verificador de factos que transforma mentiras em verdades.

    Em todo o caso, o regulador reforça a censura ao acto do Polígrafo tendo em conta o facto de este ser um “órgão de comunicação social reconhecido como verificador de factos certificado e assim apresentado aos olhos do público”, pelo que tem “o dever e a responsabilidade de manter os padrões que lhe são impostos, quer pela legislação e pela ética que impendem sobre o exercício da actividade jornalística, quer pelos padrões exigidos pelas organizações certificadoras de verificadores de factos IFCN – International Fact-Checking Network – e EFCSN – European Fact-Checking Standards Network”. Recorde-se que o Polígrafo tem o Facebook – que teve um papel fulcral na limitação da expressão durante a pandemia – como um dos seus principais financiadores.

    Esta deliberação da ERC não impõe sanções, limitando-se a um “alerta” ao Polígrafo. Mas a marca ficou.
    Para os cidadãos atentos, ficou provado que os verificadores também precisam de ser verificados. E que Rui Tavares, afinal, também mente. Aliás, uma outra frase do co-líder do Livre, no calor do debate, também está longe da verdade: por mais defeito que tenha, Bolsonaro não foi condenado (ainda) por corrupção, logo não é verdade que seja “o mais corrupto da América do Sul”.

  • ‘Sonhos de menino’: Tony Carreira deu uma borla a Luís Montenegro

    ‘Sonhos de menino’: Tony Carreira deu uma borla a Luís Montenegro

    A explicação oficial do Governo para o adiamento dos “momentos festivos” das comemorações oficiais do 25 de Abril foi a morte do Papa Francisco, mas, na própria tarde desse anúncio, o gabinete de Luís Montenegro estava já a ultimar as negociações do concerto de Tony Carreira para o dia 1 de Maio, no Palácio de São Belém.

    ‘Negociações’ é um termo lato, porque, na verdade, o Governo de Montenegro conseguiu aquilo que um dos artistas com mais contratos públicos raramente concede: uma borla. Com efeito, segundo documentos a que o PÁGINA UM teve hoje finalmente acesso, após intervenção da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), na tarde de 23 de Abril passado — na mesma altura em que o Governo anunciava o adiamento das festas da Revolução dos Cravos —, a Regiconcerto, empresa de Tony Carreira, confirmava as condições do espectáculo previsto para o dia 1 de Maio.

    Entre essas condições, “na sequência dos contactos mantidos” — conforme refere num e-mail a CEO da Regiconcerto, Filipa Ramires —, estava “a interpretação de, aproximadamente, seis temas”, sendo que “em termos de cachet artístico, e tal como falado, o Tony Carreira abdica do seu próprio cachet”. O acordo foi realizado ao mais alto nível, porque o e-mail da Regiconcerto é enviado directamente para, entre outros, Pedro Pinto, chefe de gabinete de Montenegro, para a assessora de imprensa Cátia Duarte Silva e até para um adjunto do ministro Pedro Duarte.

    Apesar da ‘borla’ de Tony Carreira, no acordo é indicado que deve haver um pagamentos, no valor de 4.700 euros (mais IVA), para os quatro músicos que acompanharam o cantor, três técnicos operadores, motorista e manager. Foi também apresentado um orçamento adicional para a montagem e desmontagem do espectáculo, a cargo de cinco elementos, mas essa documentação não foi ainda remetida pela Secretaria-Geral do Governo.

    Sem o adiamento das festividades do 25 de Abril, teria sido impossível a Luís Montenegro contar — e cantar o em dueto ‘Sonhos de menino’ — com Tony Carreira no Palácio de São Bento, em vésperas de eleições legislativas, criando-lhe um momento especial de visibilidade pública. No dito concerto — ou showcase —, o primeiro-ministro chegou mesmo a participar num dueto na canção “Sonho de Menino”.

    Acordo para o concerto de Tony Carreira foi feito no dia do anúncio do adiamento das comemorações do 25 de Abril, alegadamente por causa da morte do Papa Francisco. Nota: O PÁGINA UM rasurou os endereços de e-mail.

    Com efeito, a agenda de Tony Carreira encontrava-se já bastante preenchida há vários meses para os dias em torno das comemorações da Revolução dos Cravos. No dia 24 de Abril, o cantor actuou no Barreiro, ao abrigo de um contrato celebrado no dia 8 desse mês com a autarquia local, à qual cobrou 72.570 euros (com IVA). No dia seguinte, deu espectáculo no município norte-alentejano de Alter do Chão, que pagou 46.125 euros para cumprir um contrato assinado em 21 de Março.

    Não existe ilegalidade alguma num artista actuar gratuitamente num evento para agradar ao primeiro-ministro de um Governo em funções, mesmo em contexto de pré-campanha eleitoral. Porém, do ponto de vista formal, mesmo sem cachet artístico, a empresa de Tony Carreira celebrou um contrato oneroso sujeito às regras do Código dos Contratos Públicos (CCP), uma vez que houve prestações acessórias pagas a músicos, técnicos e outros profissionais, com valores que, somados, configuram inequivocamente uma prestação de serviços financiada por dinheiros públicos.

    Mais ainda, de acordo com os documentos obtidos, essa prestação foi objecto de contactos prévios e de uma confirmação formal de condições por parte da empresa Regiconcerto, em nome de Tony Carreira, na tarde de 23 de Abril. Ou seja, houve um contrato, ainda que não redigido por escrito.

    Agenda de Tony Carreira estava cheia para a noite de 24 de Abril, no Barreiro, e no dia 25 de Abril (na foto), em Alter do Chão.

    A consequência jurídica deste acto é evidente: tratando-se de um contrato de serviços com valor económico, impunha-se o seu registo no Portal BASE no prazo de 20 dias. Ora, tal registo ainda não foi efectuado, em clara violação do princípio da transparência.

    Na verdade, não fosse a insistência do PÁGINA UM junto da CADA, jamais teriam vindo a público quaisquer detalhes sobre os contornos deste contrato, do qual Montenegro colheu claros dividendos simbólicos e mediáticos. Acresce que a gratuitidade, numa situação desta natureza envolvendo o Governo, suscita inevitavelmente dúvidas quanto a eventuais benefícios futuros — tanto mais quando se sabe que, por regra, os espectáculos musicais de Tony Carreira estão longe de ser baratos, rondando, em média, os 50 mil euros, já com logística e montagem de palco.

    De acordo com o Portal BASE, desde Janeiro, Tony Carreira foi contratado por 16 autarquias, envolvendo montantes totais próximos dos 900 mil euros com IVA. Em 11 desses contratos, a entidade contratada foi a própria Regiconcerto, empresa do artista. Importa também sublinhar que, à luz desta amostra — e pelo menos por agora —, Tony Carreira revela-se um artista claramente mais requisitado por autarcas socialistas do que por sociais-democratas.

    Luís Montenegro, ‘quebrando a barreira de segurança’ no dia 1 de Maio para ir cantar um dueto com Tony Carreira, que lhe deu uma ‘borla’.

    Apesar de o PS liderar actualmente 48% das autarquias (149 em 308) e o PSD 37% (114), a distribuição dos contratos evidencia um claro enviesamento político: dos 16 contratos, 11 (ou seja, 69%) foram celebrados com câmaras municipais lideradas pelo PS — nomeadamente Chaves, Marco de Canaveses, Loures, Vila Velha de Ródão, Barreiro, Mértola, Estremoz, Vila Nova de Gaia, Tábua, Olhão e Vinhais —, enquanto apenas três envolveram autarquias do PSD (Ponta Delgada, Alter do Chão e Arganil) e um foi celebrado com uma autarquia independente (Oeiras).

    Ou seja, a “borla” pode muito bem ter funcionado como uma operação de charme de Tony Carreira para abrir caminho também junto dos executivos sociais-democratas. Porém, aparentemente, o ‘coração’ do artista aparenta bater ainda para o lado socialista, o particularmente para o novo líder do PS. Em Dezembro de 2023, o cantor romântico, cujo nome de nascimento é António Antunes, chegou a gravar um vídeo de apoio a José Luís Carneiro — aquando da corrida à liderança contra Pedro Nuno Santos —, considerando-o “uma pessoa com princípios muito bons, com os quais me identifico”.