Diz-se que filho de peixe sabe nadar. No caso de Luís António Sousa Uva Durão Barroso, filho do antigo primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso, talvez seja mais adequado dizer que “filho de cherne” sabe mover-se furtivamente por entre cardumes governamentais. O seu percurso recente nos gabinetes ministeriais dos Governos Montenegro é um caso exemplar de como a burocracia portuguesa consegue transformar o simples em rocambolesco, criando um enredo de despachos assinados em dias diferentes, com efeitos retroactivos absurdos e publicações desencontradas no Diário da República.
Comecemos pelo ponto de partida: em Abril de 2024, Luís Durão Barroso – nascido em 1983 e que entrou directamente para os quadros do Banco de Portugal em 2014 depois de terminar o doutoramento em Direito em Londres – foi contratado como técnico especialista do ministro das Finanças, Miranda Sarmento.
´Luís Durão Barroso em foto do seu perfil do LinkedIn.
Este ano, por força das eleições, e mantendo-se Miranda Sarmento no cargo, surgiram os despachos de recondução para os membros do gabinete que o ministro assim entendeu. Deste modo, no passado dia 27 de Junho, Luís Durão Barroso foi reconduzido como assessor através de um despacho ministerial, indicando que tinha efeito a 5 de Junho – ou seja, o dia de posse do segundo Governo Montenegro. Essa decisão só foi publicada em letra de forma no Diário da República no dia 3 de Julho.
Até aqui, aparentemente nada de estranho – sucede com dezenas de outros casos. Mas o detalhe está num pormenor: quando o despacho de Miranda Sarmento foi assinado no dia 27 de Junho, já Durão Barroso não trabalhava nas Finanças, uma vez que já tinha dado um salto para outro ministério. Com efeito, a 16 de Junho de 2025, o filho do antigo presidente da Comissão Europeia tornou-se chefe de gabinete da ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral. E, para aumentar a confusão burocrática, esse despacho da antiga provedora de Justiça foi igualmente assinado no dia 27 de Junho.
Portanto, no mesmo dia em que Miranda Sarmento reconduzia Luís Durão Barroso como assessor nas Finanças, estava Maria Lúcia Amaral a selar a sua nomeação para a chefia do gabinete, embora a publicação tivesse saído no Diário da República apenas a 10 de Julho.
Miranda Sarmento assinou despacho de recondução quando já sabia que filhode Durão Barroso estava exonerado de facto.
Temos, portanto, o seguinte quadro: no Diário da República de 3 de Julho, Luís Durão Barroso aparecia ainda reconduzido nas Finanças; no Diário da República de 10 de Julho, surgia já como chefe de gabinete da ministra da Administração Interna; e só no Diário da República de 4 de Agosto é que se publicou a exoneração do cargo nas Finanças, salientando que tinha sido “a pedido do próprio”, assinada a 14 de Julho por Miranda Sarmento. Mas essa exoneração, para não destoar, também tinha efeitos retroactivos: 16 de Junho, o mesmo dia em que começara funções na Administração Interna.
Na verdade, na data em que Miranda Sarmento reconduziu Durão Barroso Jr., já este estava de facto exonerado, porque tomara posse entretanto como chefe de gabinete da ministra Maria Lúcia Amaral. Só mais tarde, o despacho com as retroactividades habituais tentaram limpar a confusão.
Em resumo, nesta nebulosa novela em novelos: Luís Durão Barroso foi oficialmente reconduzido nas Finanças a 5 de Junho; passou a chefe de gabinete da Administração Interna a 16 de Junho; foi reconduzido por despacho assinado a 27 de Junho, publicado a 3 de Julho; foi nomeado chefe de gabinete em despacho assinado também a 27 de Junho, mas só publicado a 10 de Julho; e foi exonerado das Finanças a 14 de Julho, com efeitos retroactivos a 16 de Junho, despacho esse apenas publicado a 4 de Agosto. Um verdadeiro carrossel administrativo onde cada data parece desmentir a anterior.
A imprensa, como não podia deixar de ser, tropeçou na confusão. Por exemplo, o Correio da Manhã, na sua edição do passado dia 5 de Agosto, noticiou apenas a exoneração do filho de Durão Barroso das Finanças para a chefia do gabinete do Ministério da Administração Interna, sublinhando que a saída se dera “a seu pedido”. Porém, o jornal não reparou que, quando deu a notícia, Luís Durão Barroso já estava há quase dois meses no gabinete de Maria Lúcia Amaral.
Este episódio mostra mais do que a ligeireza de uma redacção apressada: revela a própria natureza da gestão da “coisa pública”. O cruzamento de despachos assinados no mesmo dia com efeitos diferentes, publicações em datas desencontradas e exonerações retroactivas compõem um retrato fidedigno da opacidade e da desorganização que grassam na administração portuguesa. É um jogo de papéis em que ninguém parece preocupado com a transparência ou a clareza. Aquilo que importa é que, no fim, os lugares se acomodem — e os nomes, sobretudo se tiverem peso histórico, encontrem sempre poiso.
Maria Lúcia Amaral, ministra da Administração Interna, nomeou
Para completar a ironia, há ainda a memória do percurso paterno. José Manuel Durão Barroso, antes de chegar a ministro e a primeiro-ministro, e depois a presidente da Comissão Europeia, passou precisamente pelo Ministério da Administração Interna: em 1985, foi secretário de Estado Adjunto do ministro Eurico de Melo, no primeiro governo de Cavaco Silva. Mas o Durão Barroso sénior contava então 29 anos. Quarenta anos depois, o filho repete a presença no mesmo ministério, mas apenas como chefe de gabinete e já com 42 anos. Mesmo assim, ainda a tempo de singrar na política…
Enfim, se o leitor se sente confuso, é natural: essa é a consequência da forma como os governos portugueses fazem da burocracia um labirinto. Quem entra, nunca sai sem se perder. E no caso de Luís Durão Barroso, filho de um peixe que nunca se afoga, parece que a travessia entre Finanças e Administração Interna foi feita sem ondas — mesmo que o rasto no Diário da República seja digno de uma novela kafkiana.
A catástrofe confirma-se: 2025 já será garantidamente o pior ano desde o fatídico ano de 2017, quando arderam cerca de 540 mil hectares e morreram 114 pessoas. Na primeira quinzena de Agosto já arderam mais de 105 mil hectares, sendo que quase tudo (91 mil hectares) se concentrou na última semana, numa sequência de fogos sobretudo nos distritos de Viana do Castelo, Vila Real, Coimbra, Viseu, Guarda e Castelo Branco que permitiram suplantar os já preocupantes números do ano passado.
De acordo com os dados estatísticos ainda provisórios do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), até ontem terão ardido 142.234 hectares, colocando 2025, de forma irreversível, na lista dos anos negros que pontuam a história dos incêndios rurais em Portugal. E ainda existem grandes incêndios por debelar e uma meteorologia (mediterrânica) que não dá tréguas a anos de incúria na gestão dos espaços rurais.
E como em tantos outros anos, a geografia da catástrofe não se espalhou por igual. Os dados mostram que bastaram alguns concelhos para concentrar uma fatia substancial da destruição. À cabeça surge Trancoso, onde o fogo terá consumido quase na íntegra este concelho do distrito da Guarda, que tem três vezes e meia a dimensão de Lisboa.
Os dados provisórios do ICNF até indicam ainda uma impossibilidade: uma área ardida superio à superfície do municípios. Em todo o caso, garantidamente que Trancoso terá superado os 30 mil hectares, a que se junta a área consumida nos concelhos de Arganil (16.787 hectares) e Sátão (13.737 hectares), confirmando a tendência histórica de reincidência dos mesmos territórios no mapa do fogo.
Entre os dez concelhos mais atingidos encontram-se ainda Ponte da Barca (7.478 hectares), Vila Real (7.133 hectares), Arouca (6.201 hectares), Guarda (4.918 hectares), Sabrosa (3.449 hectares) e Penamacor (2.893 hectares), deixando claro que os distritos do interior centro e norte continuam a carregar o fardo das chamas.
Área ardida desde 2021 por ano, incluindo 2025 com dados provisórios até 15 de Agosto. Fonte: ICNF.
O padrão é conhecido: em Portugal, os incêndios raramente são uma calamidade homogénea. Concentrando-se em determinados concelhos, deixam atrás de si um retrato de devastação localizada mas profunda.
Este comportamento está longe de ser mero acaso. Resulta, em grande medida, de um ciclo perverso que tem acompanhado o país há décadas: anos de destruição em larga escala sucedem-se a períodos de relativa calma, não porque a prevenção funcione, mas porque os territórios já queimados funcionam como tampão, impedindo que novos fogos encontrem combustível fácil. Assim foi em 2003, 2005 e 2017, anos de catástrofe, e assim se repete agora em 2025. As condições meteorológicas e o caos prevêem que venham a ser ultrapassados os 200 mil hectares.
A cada novo grande incêndio, repete-se, a par de acusaçoes de incendiarismo, o diagnóstico estrutural de décadas: a falta de uma política integrada de gestão florestal, a excessiva fragmentação institucional, a sobrecarga de responsabilidades em corpos de bombeiros voluntários, muitas vezes pouco articulados e sem meios técnicos adequados, e a ausência de uma estratégia de prevenção sustentada. O resultado é uma dependência quase exclusiva de operações de combate, onde o heroísmo individual de bombeiros e populações substitui o que deveria ser uma resposta coordenada, profissionalizada e eficaz.
Área ardida por dia desde 1 de Julho de 2025 contabilizada em função da data da ignição. Fonte: ICNF.
Num país onde a política de ordenamento florestal permanece refém de interesses contraditórios – entre o peso do eucalipto, a falta de rentabilidade do minifúndio e a fragilidade das estruturas públicas de gestão –, o fogo continua a ser a última e mais brutal forma de reconfiguração da paisagem. E aquilo que não é retirado pelas políticas é devorado pelas chamas.
A sucessão de anos catastróficos e anos de “trégua” aparente alimenta a ilusão de que os problemas estão resolvidos. Mas a estatística desmente essa ilusão: em pouco mais de duas décadas, Portugal acumulou dezenas de milhares de hectares ardidos em picos devastadores, seguidos de descidas abruptas apenas explicáveis pela ausência de combustível imediato. Não há gestão, apenas o acaso do calendário ecológico.
Enquanto isso, os números deste ano voltam a colocar Portugal no centro do mapa europeu dos incêndios. A dimensão da tragédia de 2025 já ultrapassa em larga escala a média registada entre 2018 e 2024, aproximando-se a passos largos dos cenários mais negros da história recente. As consequências sociais, económicas e ambientais são devastadoras: aldeias evacuadas, habitações destruídas, investimentos florestais reduzidos a cinzas e ecossistemas inteiros condenados a décadas de recuperação.
Um país vergado aos incêndios. Foto: Pedro Nasper / mediotejo.net
Apesar de tudo, mantém-se o discurso oficial da eficácia. Fala-se em meios aéreos contratados, em planos operacionais sofisticados, em novas tecnologias de monitorização. Mas a realidade, demonstrada em concelhos como Trancoso, Arganil ou Sátão, mostra que nada disso substitui uma política estrutural de prevenção, que só poderá nascer de uma reforma profunda do modelo assente na dispersão de competências e no voluntarismo heroico mas insuficiente.
Os fogos de 2025 não são apenas a repetição de um fenómeno natural. É o espelho da incapacidade política de gerir um problema conhecido, estudado e anunciado. É também a confirmação de que Portugal continua preso num ciclo em que as chamas ditam a agenda e a memória colectiva, até à próxima vez que o acaso da meteorologia e da geografia voltar a alinhar-se contra a ineficácia de um país que se verga à sua própria incompetência.
Ano após ano, a discussão sobre a origem dos incêndios rurais regressa, mas a fotografia das causas parece saída de um carrossel que dá sempre a mesma volta. Em 2025, os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) mostram que, das 2.876 ocorrências já investigadas — que representam menos de metade das ignições registadas —, o “vandalismo” — definido como a “utilização do fogo por puro prazer de destruição” — surge como a principal causa isolada mais frequente.
Até agora, de acordo com a informação consultada esta tarde pelo PÁGINA UM, foram 489 ignições imputadas ao vandalismo, representando 17,0% do total.
Incêndios destruidores não dependem da causa. Foto: Paulo Jorge de Sousa
Mas se o vandalismo se destaca como causa no sistema de codificação do ICNF, a negligência, considerada de forma agregada, é a causa maioritária das ignições contabilizadas: quase seis em cada dez (58,2%) resultam de actos pouco cuidadosos que, não tendo dolo, podem ainda assim ser tipificados como crime.
Neste vasto lote incluem-se queimadas para renovação de pastagens, limpeza de restolho, queima de matos, borralheiras ou outros usos semelhantes, que só este ano já somam 802 ocorrências, equivalentes a 27,9% do total com causa conhecida — mais de um quarto.
Entre as causas negligentes mais inusitadas destacam-se incidentes ligados a transportes e comunicações, incluindo falhas diversas (81 ocorrências), o uso imprudente de alfaias agrícolas (79) e outras situações acidentais não especificadas (77). Surgem também, com frequência, queimadas extensivas para limpeza de caminhos, acessos e instalações (49), operações inseguras com maquinaria diversa (40) e a queima clandestina de amontoados de lixo (35).
O simples acto de fumar a pé foi responsável por 32 ocorrências, seguido do uso de máquinas agrícolas (31) e do lançamento legal ou ilegal de foguetes (37), bem como incêndios provocados por tubos de escape de veículos (22) e fogueiras improvisadas para confecção de comida (21). Até acidentes de viação (9) e brincadeiras de criança (8) entram nesta lista. Saliente-se que o grau de destruição de um incêndio rural não depende da causa da ignição.
Considerando os grandes grupos, somente 32,0% das ignições foram classificadas, por agora, como dolosas (intencionais), sendo que o incendiarismo sem indicação da imputabilidade regista 3% do total (86 casos), enquanto a piromania representa 0,4% (11 casos) e as vinganças 0,6% (17 casos). Um grupo relevante de ignições (293 casos, equivalentes a 10,2% do total) foi classificado como intencional imputável com motivações diversas.
Uma outra componente particularmente perigosa são os reacendimentos — fogos que voltam a ganhar força depois de extintos e que podem originar vários focos —, representando 8,4% do total em 2025. Já as causas naturais, como a queda de raios, não chegam a 1,3%.
Este retrato repete-se quase ao detalhe quando comparado com 2024: no ano passado, o vandalismo também liderou as causas conhecidas do ponto de vista da codificação, com 17,9% (778 ignições), sendo que o total de ignições de origem intencional ficou ligeiramente acima dos números relativos de 2025 — 37,9% contra 32%. As diversas tipologias de negligência ficaram, em 2024, nos 52,5%, os reacendimentos mantiveram-se nos 8,6% (373 ignições) e as causas naturais em 0,9%.
Note-se que, por agora, o ICNF reporta este ano um total de 6.253 ignições, mas 2.472 ainda nem sequer foram investigadas ou tiveram conclusão, muitas por serem recentes, havendo ainda outras 905 que, apesar de investigadas, acabaram classificadas como “indeterminadas” por falta de elementos objectivos. Ou seja, menos de metade (46%) dos incêndios de 2025 têm, neste momento, uma causa oficial atribuída. O resto está num limbo estatístico que, por ausência de investigação ou de prova, não permite perceber de onde vem o fogo.
O sistema de classificação do ICNF é hierárquico e contém dezenas de códigos que agrupam causas em grandes blocos: “uso do fogo” (onde entram as queimadas e fogueiras), “acidentais” (máquinas, linhas eléctricas, acidentes), “estruturais” (conflitos de uso do solo, danos provocados por vida selvagem), “incendiarismo” (dolo, incluindo vandalismo) e “naturais” (raios). Dentro de cada bloco, a especificidade é extrema: por exemplo, as queimadas têm nove subtipos, desde a limpeza de terrenos agrícolas à penetração em zonas de caça.
Esta multiplicidade revela que o fogo em Portugal não tem uma única origem nem um único culpado. Temos incendiários que ateiam fogos por “puro prazer de destruição” e agricultores que continuam a recorrer ao fogo para limpar campos ou renovar pastagens. Temos negligência, temos dolo, temos reacendimentos que denunciam fragilidades no combate e temos causas acidentais ligadas a máquinas e infra-estruturas.
É um mosaico complexo que, ao longo dos anos, mantém uma espantosa estabilidade nos seus padrões percentuais. Aliás, tal como as deficiências na gestão dos espaços rurais, os problemas de desertificação, os problemas crónicos na estrutura de prevenção e combate – tudo, na verdade, está interligado para o desastre cíclico.
Em Portugal, surge o calor, surgem os incêndios; surgem os incêndios, surgem as acusações de incendiarismo. Por mais que se conheçam as causas e o regime dos fogos devastadores em Portugal, todos os anos aos primeiros fogos com alguma dimensão, além do pânico cada vez maior, sobretudo após as mortandades de 2017, aparece uma miríade de «comentadores de bancada» apontando quase exclusivamente o dedo ao São Pedro (leia-se, clima mediterrânico, com os seus Verões quentes e secos, por vezes ventosos) e aos malévolos incendiários, como se os fogos de grande dimensão, e só esses, tivessem um ADN próprio.
Viu-se isto esta semana, não pela boca apenas de um bombeiro mais extenuado ou de um autarca mais estouvado, mas do próprio primeiro-ministro, Luís Montenegro, que prometeu “ir atrás” dos criminosos e dos “interesses que sobrevoam” os incêndios florestais. Encontrar um ‘inimigo’ vago, mas que apela à emoção popular, é uma típica estratégia da ‘falácia do espantalho’, que servia, aliás, na perfeição para não discutir como foi possível não se ter encerrado a tempo a A1. Foi um milagre não ter ocorrido uma tragédia pior do que a de Pedrógão Grande em 2017.
No meio disto, culpa-se sempre a floresta “desregrada”, mas as mudanças espoletadas pelos Governos, desde os anos 90, quando se agravou a incidência destrutiva, e sobretudo desde os trágicos anos de 2003, 2005 e 2017, são pouco mais do que incipientes e conjunturais. Nada se muda de estrutural, nada se modifica. É tudo para fazer de conta, como os “pechisbeques” dos kits de protecção anti-fogos comprados a uma empresa de turismo, e que afinal eram os primeiros a arder – uma situação tão ridícula que até causa vergonha alheia.
Incêndio em Vale da Carreira, Sardoal. Foto: Paulo Jorge de Sousa/mediotejo.net
Infelizmente, esta irritante tendência dos políticos de “fazer que fazem”, e dos portugueses em geral a culpar entes diabólicos ou a opinar com base na ignorância – vulgo, a dar bitaites –, constituem os principais factores sociopolíticos para não se mudar o paradigma de gestão da floresta e dos espaços florestais.
Afinal, porquê mudar se tudo estaria bem sem os incendiários a colocar fogos? Não bastaria apanhá-los todos e metê-los na prisão? E não bastava que os proprietários “limpassem” os matos? Infelizmente, a resposta é não.
Procurarei, em traços muitos breves, neste texto, apresentar algumas reflexões.
Comecemos, assim, por «desculpabilizar», desde já, o clima mediterrânico. Na verdade, a Natureza é como é. Em termos de risco, o clima mediterrânico está para Portugal como os terramotos estão para o Japão. Não quer isto dizer que são situações similares, mas apenas que o Japão soube ao longo do tempo minimizar os riscos (através da construção anti-sísmica e planos de prevenção e acção). O Japão não se queixa dos deuses por causa dos terramotos e, apesar de quando em vez serem graves, não causam agora as mortandades que se registavam até ao início do século XX.
A analogia nem sequer é muito feliz, porque o clima mediterrânico tem inegáveis vantagens que os terramotos obviamente não têm. Além de nos beneficiar com uma meteorologia que inveja meio mundo, e que fornece matéria-prima para o turismo, o clima mediterrânico concede à nossa floresta – e à vegetação em geral – condições quase únicas para um elevado crescimento, e portanto um elevado potencial económico, se bem gerido.
De acordo com um recente estudo internacional, Portugal é o país mediterrânico que, potencialmente, maior riqueza no sector florestal pode extrair por hectare (344 euros por ano). Por exemplo, França regista 292 euros e Espanha apenas 90 euros. Devíamos agradecer à Natureza este clima; não “amaldiçoá-la”.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017) Foto: Paulo Jorge de Sousa
Sendo incontornável que haverá sempre incêndios, porque o mundo não é perfeito, vejamos onde está o cerne do problema em Portugal. Sobretudo nas últimas três décadas, o regime do fogo tem estado sobretudo associado a dinâmicas antropogénicas, tanto ao nível de acções danosas (negligência à cabeça, e algum dolo) e da (in)capacidade de supressão de incêndios, como ao nível da gestão de combustíveis e de planeamento territorial.
No entanto, embora exista uma forte correlação entre número de ignições e a densidade populacional em regiões mediterrânicas – por exemplo, o distrito do Porto é historicamente aquele que regista mais ignições –, tal já não se verifica entre o número de ignições e área ardida. Com efeito, são factores como a orografia, a precipitação fora da época de estiagem e a percentagem de área inculta que apresentam maiores correlações positivas com a área ardida total.
Os efeitos dos incêndios apresentam-se assim, numa base regional, como problemas de distinta intensidade e dimensão. Mais população significa maior número de ignições, mas a maior área ardida observa-se sobretudo em regiões de menor densidade demográfica. Exemplo paradigmático dessa “dualidade” regional observa-se num dos períodos de recrudescimento dos incêndios florestais, entre 1996 e 2005, período sobre o qual me debrucei com detalhe quando escrevi o ensaioPortugal: O Vermelho e o Negro‘, publicado em 2006, mas que ainda hoje, retirando a parte estatística mais ‘datada’ mantém uma infeliz actualidade.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017) Foto: Paulo Jorge de Sousa
Tendo sido contabilizadas, neste intervalo, cerca de 284 mil ignições e uma área ardida de quase 1,64 milhões de hectares, a distribuição foi a seguinte: 39,2% do total das ignições (cerca de 111 mil) concentraram-se em apenas 25 concelhos (quase todos do litoral, mais densamente povoado), mas ardeu aí apenas 10,3% do total nacional (menos de 170 mil hectares); e nos 25 concelhos com menor número de ignições (todos do interior despovoado) registaram-se apenas 10,7% do total (pouco mais de 30 mil) mas contribuíram em 39,0% (cerca de 640 mil hectares) para o total da área ardida.
O êxodo rural em Portugal, iniciado nos anos 60 e agravado significativamente a partir de meados da década de 1980, mostra-se, sem dúvida, como uma das principais causas para o surgimento de fogos devastadores. Um dos efeitos da perda demográfica especialmente sentida nas aldeias, após a implementação da Política Agrícola Comum, foi a eliminação quase total e imediata de práticas e usos tradicionais associados à agricultura, pastorícia e silvicultura, que contrariavam a ocorrência e a propagação dos incêndios.
A sociedade rural, imagem de marca de Portugal durante séculos, modificou-se de forma abrupta em poucas décadas, levando simplesmente ao abandono de vastas áreas agrícolas e florestais, sem a ocorrência de qualquer transferência relevante de direitos de propriedade para quem não seguiu esse êxodo para as cidades e litoral. A população empregada no denominado sector primário tradicional passou de expressivos 47,6% em 1950 para apenas 2,8% em 2011.
Como reverso dessa “moeda de modernidade”, foi colossal a redução de actividades permanentes no espaço rural: em 2011 eram apenas 120 mil pessoas com emprego no sector primário, enquanto em 1950 suplantavam 1,5 milhões. Paradoxalmente, apesar dessa evolução, e por via de planos directores municipais demasiado permissivos, aumentaram as habitações em espaço florestal ou contíguo, sobretudo de segunda residência, levando não só a uma maior probabilidade de procedimentos negligentes causadores de fogos como também a um agravamento da complexidade do combate.
Efectivamente, muitos dos grandes incêndios tomaram proporções incontroláveis porque o sistema de combate, bem como os investimentos de prevenção, tem tido como prioridade a defesa de bens (habitações e equipamentos) em detrimento da protecção da floresta. O problema desta estratégia é de aumentar a probabilidade de incêndios devastadores, que assim destroem mais floresta e, provavelmente, mais casas.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
O aparente paradoxo patente na ocorrência de uma maior destruição pelos incêndios onde mais se reduziu a quantidade de pessoas – sabendo-se serem estas que causam os fogos –, explica-se facilmente. O surgimento de incêndios devastadores sobretudo desde o início do século XXI decorre do incremento muito significativo da biomassa vegetal nos espaços florestais, tanto horizontal como verticalmente, em virtude das mudanças socioeconómicas – que levaram ao desaproveitamento de subprodutos florestais (e.g., lenha, matos, etc.) – e do forte abandono agrícola e florestal.
Em 2010 a área agrícola era a menor desde o início do século XX e a área e mato (com pastagens) estava em vias de ultrapassar a área florestal, algo que não acontecia desde a década de 1940. Entre 1950 e 2010, a área de matos e pastagens quase quadruplicou, passando de 885 mil hectares para um pouco acima de três milhões de hectares, o valor mais elevado desde a década de 1920.
Por outro lado, a política florestal a partir dos anos 80 – que coincidiu com o agravamento do problema dos incêndios – privilegiou sobretudo a substituição de áreas de pinhal, algumas afectadas pelos fogos, por eucaliptais (ambas espécies altamente combustíveis), mantendo-se na generalidade dos casos uma deficiente gestão antrópica, enquanto ao redor desses espaços florestais medraram matagais.
Para agravar a situação, aumentaram os fenómenos meteorológicos extremos, bem patentes no ano de 2017, com dois devastadores períodos a ocorrerem fora do Verão (Junho e Outubro). As condições meteorológicas do mês de Setembro deste ano foram também muto agressivas, e localizadas em regiões restritas, bem patente em destruições que, por vezes, ultrapassam meia centena de milhar de hectares, ou mesmo mais, em apenas um dia. Isso é uma consequência não apenas meteorológica. Com uma floresta mesclada com matagais e densos estratos vegetais, por vezes intransponíveis, também pela orografia, e sem o “obstáculo” das outrora zonas agrícolas – que serviam de zonas-tampão –, os fogos encontram agora extenso e contínuo combustível para galgarem milhares e milhares de hectares.
Outro aspecto particularmente grave, que se tem vindo a intensificar, é a recorrência do fogo, i.e., a maior susceptibilidade de determinadas regiões a serem percorridas ciclicamente por incêndios, retirando-lhes assim qualquer possibilidade de rentabilidade económica, o que incentiva a manutenção deste status quo.
Por exemplo, um estudo desenvolvido pelo Instituto Superior de Agronomia para um período de 16 anos (entre 1990 e 2005) apurou que quase 300 mil hectares arderam duas vezes, cerca de 83 mil hectares três vezes e uma área de 28 mil hectares foram afectados pelo menos quatro vezes, estando essa recorrência associada a queimadas para pastagens. Torna-se assim absurdo, com tamanhas recorrências, tentar encontrar interesses, urbanísticos ou mineiros, como causa para os fogos. Até porque a eliminação das árvores não traz sequer vantagens, a não ser em zonas periurbanas, para a construção, além de que, no caso de explorações mineiras, a autorização nunca estará condicionada à existência ou não de cobertura arbórea na zona a licenciar.
Nas análises sobre os incêndios florestais em Portugal um outro factor que sempre surge é o alegado contributo do regime de propriedade, marcadamente de minifúndio sobretudo a norte do rio Tejo e no Algarve. Embora os dados oficiais sejam pouco precisos sobre o cadastro e a propriedade rústica em Portugal, e sobretudo em relação às propriedades com uso silvícola, sabe-se que Portugal está, segundo a FAO, entre os 10 países do mundo com maior percentagem de área florestal privada, ocupando a primeira posição a nível europeu.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Os valores geralmente apontados para caracterizar o regime fundiário na floresta portuguesa baseiam-se em estimativas ou em amostragens, ou também em informação dos recenseamentos agrícolas. Por esse motivo, embora a Autoridade Tributária e Aduaneira indique a existência de 11.578.124 prédios rústicos no ano de 2015, ignora-se os que são ocupados por floresta, e nem se sabe se este número corresponde à realidade, uma vez que nem existe coincidência entre os registos do Cadastro Predial, da Matriz das Finanças e do Registo Predial. Esta ignorância é também demonstrativa do desleixo geral do país relativamente a um problema crucial. A criação do Balcão Único do Prédio (BUPi) tem contribuído para inverter esta situação, mas também tem revelado uma tenebrosa realidade: há uma parte substancial dos prédios rústicos sobre os quais ninguém reivindica a propriedade. Ou seja, estão ao abandono, são ‘pasto de chamas’, e se arderem levam muitas outras áreas atrás.
Em todo o caso, grosso modo estima-se que as propriedades públicas, incluindo os baldios (com gestão conjunta do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas), agrega cerca de 540 mil hectares, estando assim a restante área ocupada por proprietários privados.
Na região a norte do Tejo, onde se localiza a esmagadora maioria da área de pinheiro e eucalipto, e se concentra o minifúndio, cerca de 54% da área florestal encontra-se distribuída por povoamentos com menos de 10 hectares. No caso do pinheiro, 63% dos povoamentos têm áreas inferiores a 10 hectares e 25% áreas inferiores a dois hectares, enquanto no caso do eucalipto cerca de metade dos povoamentos têm dimensão inferior a 10 hectares.
Há cerca de uma década, aquando da elaboração da Estratégia Nacional para as Florestas, estimou-se que cerca de 61% do total dos proprietários florestais possuíam parcelas com menos de cinco hectares, embora apenas detivessem cerca de 26% da área florestal do país, dando assim uma ideia clara da predominância do regime de minifúndio.
Com efeito, cerca de 10% da área florestal era formada por parcelas com menos de um hectare e 16% por parcelas entre um e cinco hectares, significando isto ser muito frequente um proprietário possuir, de forma disseminada, um elevado número de parcelas de reduzidíssima dimensão.
Para agravar a situação, grande parte das propriedades com área inferior a cinco hectares possuíam povoamentos dominados por pinheiro, dimensão onde impera geralmente ausência de investimento, e também pouca expectativa de obtenção de rendimento. Numa postura optimista, estas minúsculas parcelas florestais – que podem representar, em manchas contínuas, centenas de milhar de hectares – constituem, individualmente, meros fundos de poupança para satisfação de necessidades económicas conjunturais. No caso das propriedades inferiores a um hectare não existia mesmo qualquer produção, tanto mais que numa percentagem significativa os proprietários nem sequer sabem identificar nos terrenos as suas parcelas.
Nas ciências económicas, a denominada Teoria dos Jogos mostra, infelizmente, que a melhor decisão de um qualquer agente numa parcela de “floresta” rodeada por proprietários absentistas é não fazer qualquer gestão, porque a probabilidade de arder gastando ou não dinheiro é praticamente a mesma, e assim optando por não fazer gestão, pelo menos “poupa-se” nesses custos.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Ou seja, não há receitas mas também não há custos, logo não há prejuízo. Claro, o prejuízo vem para a sociedade, através da destruição dos incêndios, i.e., de uma externalidade negativa. Esta é a triste realidade portuguesa: face à ausência de associativismo florestal, a inacção de diversos agentes causa uma generalizada inacção, porquanto o risco de um investimento se “esfumar” com um incêndio, proveniente da ausência de gestão em redor, acaba por determinar, como estratégia dominante, ninguém fazer gestão.
No caso do eucalipto, a situação era um pouco melhor, tendo em consideração que grande parte da sua área se situava em propriedades com dimensão entre os cinco e os 20 hectares (12% do total da área florestal) e entre os 20 e os 100 hectares (7% do total). Nestes casos verificava-se já uma presença de investimento e gestão, tendo a exploração um rendimento relevante para os proprietários. A restante área (55%), agregando 15% dos proprietários, possuía uma dimensão superior a 100 hectares, embora dominada por sobreiros e azinheiras, portanto sobretudo localizadas a sul do Tejo e em herdades do distrito de Santarém.
Porém, este cenário, que desde 2007 não se terá alterado, pode induzir a uma conclusão precipitada. Sendo certo que uma estrutura de minifúndio pode conduzir mais rapidamente à ineficiência económica, será imprudente generalizar e determinar uma correlação imediata entre incêndios e minifúndios. De facto, mostra-se conveniente investigar antes esta questão por duas novas perspectivas, complementares.
Primeiro, deve analisar-se diacronicamente o regime fundiário português para determinar se ocorreu algum fenómeno que tenha alterado a estrutura da propriedade típica e que per si justifique um agravamento dos incêndios florestais a partir da década de 1980.
Segundo, comparar a afectação das áreas ardidas em função da tipologia dos proprietários, ou seja, pôr em paralelo o grau de destruição das áreas de gestão pública, de gestão pelas empresas de celulose (que gerem áreas de maior dimensão) e as restantes áreas privadas que incluem o minifúndio.
No primeiro caso, analisando a informação disponível em diversas fontes, verifica-se que o fraccionamento da propriedade rústica é um fenómeno antigo e já bastante estabilizado. Com efeito, a génese do minifúndio surge no decurso de um processo político iniciado nos anos 30 do século XIX, com a instauração da Monarquia Constitucional, que resultou na desamortização de grandes propriedades então pertencentes à nobreza e à Igreja.
Posteriormente, teve ainda um maior impulso com a definitiva abolição dos morgados e a entrada em vigor do Código Civil de 1867, quando estabeleceram sem excepção direitos de herança a todos os filhos. Uma década depois existiam cerca de 5,05 milhões de prédios rústicos, manifestando-se já nesse período excessiva fragmentação, sobretudo na região do Noroeste, com efeitos perniciosos em termos de desenvolvimento agrícola.
Apesar de várias tentativas políticas para evitar o contínuo fraccionamento por via das heranças, somente nos anos 20 do século XX, quando o número de prédios rústicos já ultrapassara os 10,7 milhões, se criou legislação para o estancar, através do Decreto nº 16731 (vd. artigo 107º) que decretou a nulidade de qualquer partilha de prédios com menos de um hectare ou que daí resultassem parcelas inferiores a meio hectare. Esta medida travou fortemente o fracionamento, embora não o impedisse na totalidade.
Se até 1930, em comparação com o último quartel do século XIX, numa parte considerável dos distritos a norte do Tejo mais que duplicou o número de prédios rústicos, a partir dessa década o ritmo estancou. Em 1960 verificou-se até um decréscimo de cerca de 2% em relação ao início do Estado Novo.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
A partir dessa década registou-se um novo crescimento no fracionamento, mas mesmo assim suave, atingindo-se um máximo de 11,17 milhões de prédios em 1971. A partir da instauração da democracia, em 1974, o acréscimo foi ligeiro, da ordem dos 0,12% por ano até 2015, estando nessa data contabilizados cerca de 11,58 milhões de prédios rústicos.
Sendo assim, outros factores, e não (apenas) o minifúndio, terão determinado a perda de interesse económico da floresta nas pequenas parcelas e a eclosão de incêndios catastróficos. Uma explicação encontra-se por via sociológica. Durante o Estado Novo, com uma sociedade marcadamente rural, as vivências sociais permitiam um uso comum das propriedades florestais privadas. Ou seja, de modo informal mas cooperativo, os proprietários concediam livre acesso aos não-proprietários para estes, graciosamente, recolherem alguns produtos (e.g., lenha, caruma, matos, etc.), para uso doméstico e agropecuário, «recebendo» em troca uma gestão de combustíveis.
A presença de pessoas nas florestas constituía também uma vigilância quase contínua e dissuasora de comportamentos dolosos ou negligentes por parte de terceiros. Além disso, tendo presente que, durante o Estado Novo, a produção de resina constituía um importante suplemento económico dos pinhais, fica-se com uma ideia clara dos motivos muito prováveis para que, neste período, mesmo os minifúndios florestais fossem rentáveis e estivessem longe de constituir um factor de risco de incêndios. Na verdade, as condições sociais e de cooperação tradicional, que então se viviam nas zonas rurais portuguesas, parecem ter constituído um sistema benigno de interligação entre regime privado e comunal por via da cooperação entre agentes que visam a um equilíbrio sustentável.
Deixando de existir esse ténue equilíbrio, por força do êxodo rural e da perda económica dos pinhais, a gestão de combustíveis foi desaparecendo, redundando num aumento do risco de incêndio, desincentivador de investimentos e promotor de absentismo.
Na análise desta evolução não podem dissociar-se as reestruturações neste sector pela Administração Pública a partir dos anos 80, que contribuíram decisivamente para retrocessos na prevenção silvícola e na eficácia e eficiência do sistema de combate aos incêndios.
Nesse aspecto convém destacar o diagnóstico traçado em 2012 na Estratégia para a Gestão das Matas Nacionais, promovida por técnicos da própria Administração Pública onde se apontam os principais factores que contribuíram para a degradação da protecção das florestas e espaços florestais: a diminuição dos condicionamentos de acesso às matas nacionais e da fiscalização dos guardas florestais (a partir de 1974), a transferência do combate aos incêndios dos Serviços Florestais para as corporações de bombeiros voluntários (a partir de 1981), o encerramento das administrações florestais a nível regional (a partir de 1996), bem como, mais recentemente, o desligamento das tarefas de gestão do corpo de guardas e mestres florestais, e a transferência da competência de análise e decisão dos projectos florestais para o actual Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) e outros organismos sem vocação nem técnicos nas áreas silvícolas.
O esvaziamento dos Serviços Florestais (com distintas denominações), criados no início do século XX, intensificou-se desde a década de 1990, passando em poucos anos de cerca de quatro mil funcionários para menos de mil. Inclui-se neste lote o Corpo Nacional de Guardas Florestais – que tradicionalmente viviam no interior dos espaços florestais em cerca de mil casas de função –, cuja estrutura foi extinta em 2006, tendo sido integrados os trezentos elementos remanescentes nos Serviços de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Estas alterações políticas resultaram, sem dúvida, num aumento do risco de incêndio e da susceptibilidade das florestas e dos espaços florestais em geral, mas também particularmente das matas nacionais e perímetros florestais (que integram os baldios), geridas pelos Serviços Florestais. Essa situação mostra-se evidente quando se comparam os registos da área ardida das florestas sujeitas a regime público até à década de 1970 e posteriores à década de 1980.
A situação apresenta contornos catastróficos nos últimos anos. Por exemplo, nos anos de 2016 e 2017 cerca de 20% da área sob gestão pública foi afectada por fogos, sendo que em 18 perímetros e matas nacionais se registaram destruições superiores a 70% das respectivas áreas, estando aqui incluído o secular Pinhal de Leiria.
Lamentavelmente, a destruição das florestas públicas desde 2001 (4,62% em média por ano) ultrapassa largamente os valores das propriedades das celuloses (2,33%) e mesmo da restante área privada (2,28%), que inclui o minifúndio.
Por todos estes motivos, a análise da perda de sustentabilidade da floresta portuguesa e os prejuízos recorrentes das externalidades negativas, encabeçadas pelos incêndios, não deve ser feita de forma simplista face à complexa teia de factores: a quebra dos vínculos sociais informais nos meios rurais, o abandono de actividades agroflorestais tradicionais, a emigração e êxodo rural, a perda da sustentabilidade da agricultura de minifúndio, etc.. Porém, quando se recomendaria que o Estado, perante estas variáveis, tivesse uma intervenção determinante para corrigir falhas de mercado, sucedeu o oposto: um desinvestimento no sector florestal. O único sector com orçamento reforçado foi o do combate aos incêndios.
As autoridades nacionais portuguesas somente a partir de meados da década passada começaram a contabilizar os custos directos e prejuízos resultantes dos incêndios, incluindo uma parte das externalidades, embora recorrendo a métodos muito simplistas, que requerem alguma reserva. Antes desse período, a Universidade Católica de Lovaina, no âmbito da Emergency Disasters Database, estimara que os prejuízos dos fogos de 2003, que destruíram cerca de 425 mil hectares, ascendiam aos 1,5 mil milhões de euros.
Nos trabalhos preparatórios realizados em 2006 para a Estratégia Nacional para as Florestas estimou-se que os incêndios representavam uma externalidade negativa de cerca de 380 milhões de euros por ano, reduzindo em 30% a riqueza anual produzida pelas florestas. E, de acordo com dados oficiais, os incêndios rurais entre 2000 e 2016 provocaram perdas da ordem dos 5.232 milhões de euros. No ano de 2017, o pior desde a existência de registos estatísticos, os prejuízos ter-se-ão aproximado dos mil milhões de euros.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Até recentemente estes aspectos eram ignorados pelas autoridades oficiais, e mesmo os custos de supressão – associados às infraestruturas e equipamentos, aluguer de aeronaves e pagamentos aos bombeiros – eram vistos como investimento, e um Governo considerava ser-lhe favorável politicamente conceder acréscimos sucessivos à componente de combate.
Contudo, a realidade demonstra, infelizmente, que os gastos públicos na vigilância e supressão dos incêndios florestais têm estabilizado em torno dos 100 milhões de euros por ano, mas sem quaisquer efeitos positivos. Os prejuízos dos incêndios mostram variações aleatórias sem relação com os gastos em combate. Esse cenário demonstra que, na verdade, os gastos na prevenção e em equipamentos e meios humanos para controlar os incêndios (supressão) não têm um efeito determinante na área ardida e, portanto, nos prejuízos, evidenciando-se que o actual modelo de gestão se mostra insustentável.
A solução para este grave problema económico, social e ambiental, que já se mostra tragicamente crónico, terá de passar, na minha opinião, pela assumpção da defesa da floresta como um bem público (no conceito das ciências económicas), implementando, a partir daí, uma reforma administrativa intersectorial já defendida por diversos especialistas.
No entanto, considero que, ao contrário daquilo que têm sido os recentes sinais de política económica para este sector, o Estado deveria deixar de desempenhar apenas um papel de mero coordenador, regulador e redistribuidor de recursos financeiros; antes sim deveria passar a exercer uma função interventora de gestão directa dos espaços florestais, incluindo obviamente, até para dar exemplos de boas práticas, as florestas de regime público.
Isto não significa a privatização das florestas, antes sim assumir-se que o Estado é indubitavelmente a única entidade com capacidade de intervenção global para implementar, gerir e executar um modelo centralizador para a gestão dos espaços florestais. Note-se que existe uma distinção entre floresta – bens privados – e os espaços florestais – conjunto de parcelas que fornecem externalidades positivas, como ar limpo, paisagem e outros benefícios para a sociedade, e por isso são bens públicos, na visão económica do termo –, e daí necessitam de abordagens distintas.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Distinguir estes dois bens que, na verdade, coexistem – e, por vezes, se confundem por «comungarem» do mesmo espaço físico – serve sobretudo para colocar, de um lado, um bem sobretudo privado (floresta) que, por razões complexas, tem vindo a criar externalidades negativas (incêndios); e, do outro lado, um bem público (espaços florestais) que criam benefícios para a sociedade.
Ora, actualmente, porque estes benefícios não são convenientemente remunerados (ou compensados) acabam por ser «lesivos» para todos. Com efeito, o conjunto de proprietários que produz esse benefício para a sociedade nada recebe, e, em alguns casos, até tem de suportar mais encargos para proteger bens alheios.
Face ao carácter de minifúndio das propriedades, a ausência de uma compensação aos proprietários florestais por essa externalidade positiva para a sociedade contribui para o agravamento da sustentabilidade económica dessas parcelas e induz a um maior absentismo. Ou seja, a existência de uma externalidade positiva (porque um serviço ambiental não é pago pela sociedade) pode estar na origem de uma externalidade negativa (os incêndios). E havendo incêndios, não apenas ocorrem danos económicos e sociais directos como se perdem os benefícios fornecidos pelos espaços florestais. Daí a necessidade de intervenção directa do Estado, bem diferente daquela que até agora tem sido, para equilibrar aquilo que se chama uma “falha de mercado”.
Justifique-se, com um simples mas elucidativo exemplo, as razões para se defender uma intervenção directa do Estado, e não apenas reguladora e distribuidora de fundos. Quando, como actualmente sucede, o Governo determina administrativamente (e sem critério técnico, por vezes) que sejam os proprietários das florestas a proceder e a assumir os custos da desmatação e desarborização em redor de habitações (das quais, por vezes, nem são os proprietários), não está a seguir princípios de eficácia, de eficiência e de equidade.
Por um lado, porque essa obrigação quase nunca é eficaz nem eficiente, uma vez que não se baseia em estratégias de prevenção nem em estudos que definam adequadamente faixas de gestão de combustíveis, nem existe a garantia, face ao absentismo de muitos proprietários, de que essas operações sejam executadas. Por outro lado, obrigando apenas certos proprietários a assumir esse ónus, o Estado beneficia free-riders, i.e., os proprietários das habitações em redor (muitas das quais autorizadas após a existência da floresta) e os vizinhos florestais isentos dessas operações.
E mesmo que este controlo de vegetação fosse eficaz para eliminar a externalidade negativa (incêndios), manter-se-ia a iniquidade, porquanto o proprietário responsável pela operação de limpeza não fora compensado por esse serviço – i.e., a criação de uma externalidade positiva – com a agravante de ainda ter uma perda de rendimento potencial por redução de biomassa florestal.
Não se está a advogar um Estado a gerir as florestas privadas, mas sim a exercer a gestão dos espaços florestais, podendo eventualmente «entrar» em áreas privadas, como já sucede em outros casos, através de servidões administrativas, de modo a corrigir externalidades, sempre também com uma visão nas funções de redistribuição e mesmo de estabilização.
Assim, de uma forma muito sucinta, por via de um reforço da Administração Pública do sector florestal, proporia a criação de um denominado Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF) numa instituição estatal autónoma que deveria agregar equipas de técnicos, vigilantes e sapadores florestais, com a missão de executar no terreno as operações necessárias de gestão de combustíveis (biomassa), de vigilância e controlo de acessos, e ainda supressão de incêndios. Por outro lado, no âmbito deste modelo, deveria ser criado um mecanismo de compensação económica ou fiscal, através de um sistema de perequação, para benefício dos proprietários dos terrenos florestais onde se fizessem intervenções de controlo de vegetação.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
No sentido de o Estado financiar este sistema como uma provisão de um bem público – e sem necessidade de contabilizar os rendimentos de um previsível aumento das receitas dos impostos (IRC e IRS) associados à melhoria da produtividade das actividades silvícolas por eliminação das externalidades – poder-se-ia apostar em três fluxos financeiros: separando-o do mastodóntico Fundo Ambiental, um reforço no Fundo Florestal Permanente (cujas receitas, para além do actual adicional ao ISP, poderiam ser provenientes de um «imposto» específico similar a aplicar aos produtos de origem silvícola, sendo assim uma forma de internalização pela sociedade das externalidades positivas concedidas pelos espaços florestais); um adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis rústicos (aplicando uma taxa regressiva por prédio rústico em função da área, também como incentivo ao emparcelamento e/ou como penalidade à manutenção de áreas improdutivas); e uma denominada Taxa de Protecção de Espaços Florestais (sob a forma de taxa fixa por prédio urbano e veículo).
Um sistema deste género implicaria elevados investimentos, mas esse montante será incomensuravelmente menor do que as externalidades negativas existentes.
A versão original, sem a actualização agora realizada, foi publicada na revista PONTO – revista do mediotejo.net, em 2021, acessível aqui. O PÁGINA UM apresenta os agradecimentos à directora do Médio Tejo, Patrícia Fonseca, e ao fotógrafo Paulo Jorge de Sousa.
No dia 25 de Julho, o PÁGINA UM publicou uma reportagem sobre o estado de degradação em que se encontrava o Jardim da Cerca da Graça, em pleno centro da capital. Na última semana, uma equipa de limpeza esteve a executar uma acção de limpeza do espaço, mas também numa colina próxima do Jardim, junto à Calçada do Monte. A acção durou vários dias e resultou em dezenas de sacos de lixo que acabaram por ser retirados da zona
O PÁGINA UM regressou esta quinta-feira ao local e comparou o que vimos na reportagem anterior com a situação presente.
Durante vários dias, uma equipa esteve a fazer uma acção de limpeza no Jardim da Cerca da Graça e na Calçada do Monte. Na foto, é visível uma carrinha com vários sacos de lixo e um funcionário a subir a escadaria da entrada principal do Jardim carregando sacos.
Encontrámos um jardim significativamente mais limpo. Também as tendas de sem-abrigo que se encontravam no parque infantil já não estavam lá. E também não vimos nenhuma seringa, nem cartões bancários e carteiras roubadas, ao contrário do que aconteceu na primeira reportagem.
Contudo, apesar dos esforços da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para melhorar e limpar o espaço, já começam a ser visíveis focos de lixo e latas espalhadas pelo chão. No parque dos cães, mantêm-se cobertores e edredons pendurados. Numa das “ruas” do parque, onde se encontravam tendas, estão agora alguns pertences de sem-abrigo que se voltaram a instalar no mesmo local.
Por outro lado, apesar de a CML ter efectuado uma limpeza no parque infantil, o mesmo não parece estar em condições para ser frequentado por crianças. No escorrega dos mais pequenos, encontrámos um pedaço de papel absorvente sujo e sinais de que o espaço é usado por adultos. Ao lado do escorrega, era visível uma base de cartão no chão.
Na zona do parque infantil já não há tendas de sem-abrigo.No parque dos cães, permanecem cobertores e edredons, num abrigo improvisado que serve da “casa” a sem-abrigo que se instalaram naquele Jardim.No escorrega dos mais pequenos, encontrámos um pedaço de papel absorvente sujo, havendo sinais de que o pequeno abrigo de madeira é usado por adultos. Ao lado, um pedaço de cartão jazia no chão.
No escorrega das crianças mais crescidas, o “abrigo” de madeira com escadas que dão acesso ao escorrega já não tinha seringas nem cartões bancários ou carteiras roubadas. Mas encontrava-se com algum lixo, incluindo muitas beatas.
Na zona reservada a brincadeiras com “areia”, o que resta de uma porta de correr jazia no chão, onde também eram visíveis beatas e outros lixos.
As colinas mais acessíveis do jardim também foram limpas na recente acção de limpeza. Mas a colina de mais difícil acesso — cuja entrada era a que dava acesso ao antigo parque de estacionamento da EMEL — tem ainda mais lixo, incluindo malas de viagem velhas e sujas. O tipo de objectos que se encontram no local aparentam ser de tendas de sem-abrigo que residiam na parte de cima do parque e que terão sido retiradas recentemente.
Quando os turistas descem a Calçada do Monte, é esta a primeira imagem do Jardim da Cerca da Graça que levam consigo: uma colina cheia de lixo. Perto, também vislumbram sem-abrigo a dormir rodeados de caixas de cartão.
As escadas por onde as crianças sobrem para andar no escorrega maior ainda apresentam lixo variado. Mas já não havia lá seringas nem carteiras roubadas. Nesta nossa segunda visita ao Jardim, observámos que uma antiga porta de correr ocupava uma parte do chão do parque destinado a brincadeiras com areia. Havia beatas espalhadas pelo recinto dedicado aos mais novos.A primeira imagem que os turistas encontram do Jardim da Cerca da Graça é esta: lixo diverso, incluindo malas de viagem sujas, “descem” colina abaixo e já fazem parte da paisagem, ao lado de figueiras e outras árvores e arbustos.
Ao descer a Calçada, continuam no mesmo sítio as garrafas e latas colocadas nos diversos orifícios que se encontram no muro que desce aquela via. E são visíveis, no chão, vidros de viaturas, que terão sido assaltadas recentemente.
O que se torna evidente, é que todo o esforço da CML em limpar a zona esbarra num problema: a toxicodependência e os sem-abrigo que ali buscam o ‘produto’ e lá acabam por ficar a residir. Acresce a pressão turística e o número elevado de pessoas que se deslocam àquela zona, e por ali ficam a consumir bebidas, a ver a vista da cidade.
As tendas foram retiradas do Jardim da Cerca. Mas os sem-abrigo e os toxicodependentes permanecem por ali. Bem como o risco de roubos e assaltos.
Logo em frente à entrada principal do Jardim da Cerca, do outro lado da estrada, uma “tenda” improvisada com cartão ocupou o espaço onde até hoje existiam abrigos para uma colónia de gatos. São visíveis malas de viagem e outros objectos no local. As tigelas de comida e água dos gatos, aparentemente, desapareceram. Mas os gatos continuam a deambular pela Calçada, agora que perderam a sua “casa”.
Na Calçada do Monte, havia vestígios de assaltos recentes a viaturas que estiveram estacionadas naquela via que é abrangida pela EMEL.Alguns sem-abrigo transferiram-se do Jardim da Cerca para o outro lado da estrada, na Calçada do Monte. Ocupam agora o espaço que até agora era o local onde estavam os abrigos da colónia de gatos residente no local. Na colina da Calçada do Monte, a CML levou a cabo uma grande acção de limpeza há poucos dias. Mas já são visíveis garrafas e latas. Um sem-abrigo também dormiu no local algumas noites.
O que observámos levanta a questão sobre a viabilidade de a CML conseguir resolver sozinha o problema da degradação da zona. A conclusão é que não.
Por mais equipas que a CML desloque para o local, para efectuar acções de limpeza, rapidamente, o lixo começa a aparecer. As tendas são substituídas por abrigos improvisados pela zona.
Há seres humanos ali, a consumir droga, a viver uma vida sem dignidade. E se estão ali é porque há ali quem venda droga. Sem resolver o problema da venda e consumo de droga e álcool no local, não será possível travar a espiral de degradação da zona, que tem sido afectada por criminalidade contra pessoas e estabelecimentos.
Esperar que a CML resolva isto sozinha é ingénuo. O Jardim da Cerca da Graça e a colina junto à Calçada do Monte estão agora mais limpos. Mas até quando?
Lisboa merece um tratamento melhor. Os lisboeta merecem melhor. E, sobretudo, aqueles seres-humanos que ali estão a viver sem dignidade e condições, merecem melhor. E o problema de fundo, da toxicodependência que leva à criminalidade e gera sem-abrigo, não se resolve sem que haja uma intervenção concertada e eficaz.
Sem isso, resta à CML ir enviando equipas de limpeza para, temporariamente, melhorar o aspecto e salubridade da zona.
A colina da Calçada do Monte está visivelmente mais limpa, após a acção de limpeza da CML.Esta foi uma das zonas do Jardim da Cerca onde o PÁGINA UM encontrou seringas no chão. Hoje estava visivelmente mais limpa, sem lixos no chão nem na colina que desce para o relvado do Jardim.
Pelo menos hoje, já se sentia um ambiente melhor no Jardim. Mais leve. Ouvia-se música. Um cão corria pelo relvado destinado a lazer e piqueniques. O quiosque estava vazio, mas o calor também era intenso.
Resta esperar para ver qual o caminho que, daqui em diante, aquele espaço central da capital vai seguir. Se vai voltar a ser um Jardim com festas de aniversário de crianças e brincadeiras entre família e amigos. Ou se vai manter-se na espiral de tráfico e consumo de droga e álcool, crime e decadência. Esperemos que siga pelo primeiro.
Entre hoje, 4 de Agosto, e a próxima quarta-feira, 6 de Agosto, Portugal estará, segundo os modelos oficiais do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) e do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), sujeito a um cenário de catástrofe térmica — ou, em linguagem técnica, a um surto de mortalidade em escala alarmante. Os dados do chamado Índice ÍCARO, actualizados diariamente e utilizados como base para alertas de saúde pública e planos da protecção civil, projectam para este período níveis de risco sem paralelo desde 2012.
A previsão para quarta-feira aponta um valor de 1,57 no Índice ÍCARO — o mais elevado dos últimos treze anos —, o que representa, segundo a própria definição estatística do modelo, um aumento expectável de 157% na mortalidade diária face a condições sem calor excessivo. Traduzido em termos concretos: se a mortalidade média no Verão ronda os 280 óbitos por dia, um índice de 1,57 corresponderá a cerca de 720 mortes num só dia. Um valor que implicaria mais 440 óbitos do que o habitual — o equivalente, em termos proporcionais, a um acidente ferroviário catastrófico por dia durante três dias consecutivos.
Também os valores previstos para segunda-feira e terça-feira se apresentam extremamente elevados: 1,21 e 1,30, respectivamente. Estes índices implicam, segundo o modelo, 619 e 644 mortes diárias. Assim, e apenas com base no Índice ÍCARO, o total de mortes previstas para este trio de dias aproximar-se-ia das duas mil mortes, ou seja, mais 1100 óbitos acima da média esperada para o mesmo período — se o modelo estivesse calibrado com precisão.
Contudo, a realidade será eventualmente menos aterradora, embora possa atingir níveis de gravidade relevante. Desde o dia 25 de Julho, os valores do índice têm-se mantido positivos, mas ainda assim bastante abaixo do limiar de 1. A mortalidade registada tem oscilado dentro de valores ligeiramente superiores ao padrão sazonal, com uma média próxima dos 320 óbitos diários — o que representa um acréscimo de cerca de 15% face à mortalidade-base.
Evolução dos valores do Índicfe ICARO desde 23 de Julho. Fonte: INSA / Portal da Transparência do SNS.
Este pequeno aumento, aliás, pode estar também relacionado com um Inverno particularmente ameno, o que terá poupado parte da população mais vulnerável, agora exposta a condições extremas. Desde o início de Janeiro, os níveis de mortaldiade global têm estado alinhados com os do anos passado.
Mas o que mais fragiliza a confiança no modelo para valores mais elevados é o que se passou neste domingo. O valor do Índice ÍCARO — inicialmente estimado para 1,44, mas que foi entretanto corrigido para 0,87 —, significaria um acréscimo de 87% na mortalidade, ou seja, cerca de 524 mortes. No entanto, os dados provisórios do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) apontam para apenas 290 óbitos, um número perfeitamente dentro do padrão estival. Aqui poderá estar, paradoxalmente, uma boa notícia: o Índice ÍCARO exagera os cenários quando os valores se tornam mais elevados — em suma, é estruturalmente catastrofista.
Criado em 1999 pelo Observatório Nacional de Saúde do INSA em colaboração com o IPMA, o modelo do Índice ÍCARO assenta numa equação estatística simples: estima-se a diferença entre o número de óbitos esperados com o efeito do calor e o número médio de óbitos em condições meteorológicas normais, com base em séries temporais da temperatura máxima observada e prevista. A variável central do modelo é a chamada “sobrecarga térmica acumulada”, definida como o número de dias em que a temperatura máxima ultrapassa os 32ºC, ponderado pelo excesso registado acima desse limiar.
O modelo tem mérito técnico, e foi pioneiro nos sistemas de vigilância meteorológica com implicações em saúde pública. Contudo, como já reconheciam os próprios autores no artigo fundador publicado em 1999 na Revista Portuguesa de Saúde Pública, o sistema foi deliberadamente concebido com uma orientação catastrofista: privilegia a sensibilidade (detectar todos os sinais de risco possíveis) à custa da especificidade (evitar alarmes falsos).
Como se lê nesse artigo: “Em termos de especificidade, isto é, na sua capacidade para evitar falsos alarmes, [o modelo] está longe de ser perfeito. Mas, claramente, num sistema de alerta não pode sacrificar-se a sensibilidade à especificidade. A ocorrência de falsos alarmes num sistema de alerta não é um problema grave desde que o sistema denote uma muito boa sensibilidade”. E acrescentam que o índice ÍCARO “parece mostrar uma boa capacidade de detectar todas as ondas de calor de que temos conhecimento e avaliar a severidade do seu impacto na mortalidade”.
Na prática, isto significa que o modelo está concebido para soar o alarme perante qualquer sequência de dias muito quentes, mesmo que não exista uma correspondência real em termos de aumento da mortalidade. Acresce que os valores mais recentes do índice se baseiam exclusivamente em previsões meteorológicas a três dias, sem cruzamento com dados demográficos, clínicos, alimentares ou epidemiológicos. Como se tem constatado, nem sequer ajusta as suas previsões em função da evolução real da mortalidade recente.
Em todo o caso, o resultado é um índice com uma tendência demasiado alarmista do ponto de vista estrutural, que esta semana atinge o paroxismo ao prever valores superiores ao dobro da mortalidade de base, durante três dias consecutivos. O PÁGINA UM contactou esta tarde o presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Fernando de Almeida, colocando questões sobre a validação empírica do modelo, possíveis actualizações ou recalibrações feitas nos últimos anos, os limiares que justificam a emissão de alertas, e as medidas concretas que estão a ser tomadas com base nestas previsões. Até ao fecho desta edição, não foi recebida qualquer resposta.
Apesar disso, o Índice ÍCARO continua a ser utilizado como fundamento para activar planos de contingência da Protecção Civil, emitir orientações clínicas e influenciar decisões políticas e mediáticas. Ainda no final desta tarde, a Direcção-Geral da Saúde emitiu um comunicado sobre medidas preventivas.
A comunicação de valores como 1,57 — que, num quadro meramente estatístico, implica quase 750 mortes num só dia — não pode ser feita de forma acrítica nem sem escrutínio técnico. Quando o modelo falha sistematicamente e de forma ampla, e ainda assim continua a ser divulgado sem qualquer contextualização crítica, o risco deixa de estar no calor extremo: passa a residir no próprio sistema de alerta.
Contactado pelo PÁGINA UM, Francisco Ferreira, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e presidente da associação ZERO, sublinha que, embora não conheça em detalhe o funcionamento do Índice ÍCARO, “este tipo de modelos serve sobretudo como alerta prévio para se introduzirem medidas preventivas que evitem a mortalidade em excesso prevista”. Tal como sucede com os modelos de previsão da qualidade do ar, temática da qual é especialista, Francisco ferreira acrescenta que se “tratam de indicações de risco potencial que devem ser mitigadas ou atenuadas”.
O problema, como mostram os números das previsões, é quando o risco previsto não existe, a sociedade é condicionada por alarmes sem substância. E quando existe mas se mostra demasiado alarmista, os políticos depois vêm cobrar um sucesso que nunca existiu.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu arquivar uma participação contra o canal Biggs, dedicado ao público juvenil, na sequência da emissão de um episódio da conhecida série juvenil Morangos com Açúcar, transmitido às 21h00 no passado dia 10 de Maio, que inclui uma cena sugestiva de um encontro sexual a três entre adolescentes.
Agora em canal por cabo operado por uma empresa detida pela NOS e a empresa norte-americana AMC Networks, esta é um ‘reboot’ da série criada em 2003 na TVI, e que se prolongou até 2012, lançando actores como João Catarré, Benedita Pereira, Pedro Teixeira, Cláudia Vieira, Sara Matos, Lourenço Ortigão, Diogo Amaral, Gabriela Barros e Isaac Alfaiate, entre muitos outros.
Cartaz do ‘reboot’ na Biggs da série ‘Morangos com Açúcar’.
A deliberação sobre o polémico episódio de um ‘ménage à trois’, a que o PÁGINA UM teve acesso, aprovada por unanimidade no passado dia 16 de Julho, considera que não existem indícios de violação da Lei da Televisão, que estabelece limites à liberdade de programação no que diz respeito a conteúdos susceptíveis de influírem negativamente na formação da personalidade de crianças e adolescentes.
A cena em causa, com uma duração total de 1 minuto e 38 segundos, distribuída por dois momentos no final do episódio, mostrava três adolescentes – dois rapazes e uma rapariga – numa cama, a beijarem-se alternadamente, a despirem-se parcialmente, com exibição dos troncos nus dos rapazes e das costas nuas da rapariga. A sequência integrava um enredo narrativo em que um casal de namorados convidava um terceiro jovem a juntar-se a eles, sendo mais tarde percebido tratar-se de uma alusão a um ménage à trois.
A participação à ERC foi apresentada por uma espectadora, que manifestou indignação com o conteúdo transmitido às 21h00, criticando a exibição de “rebeldia injustificada” e “uso e abuso de sexo infantil”, e associando esse tipo de cenas a fenómenos como bullying, consumo de álcool e gravidezes na adolescência. A espectadora classificou o programa como um exemplo de conteúdos que poderiam ser imitados por crianças e adolescentes.
Em resposta, o canal Biggs, operado pela Dreamia – que também detém os canais Hollywood e Panda, entre outros na televisão por cabo –, defendeu que o programa está classificado como “12AP” – para maiores de 12 anos, com aconselhamento parental – e que o seu público-alvo são adolescentes dos 12 aos 18 anos, sustentando que, ao contrário do que se aplica à programação infantil, o conteúdo dirigido a adolescentes pode abordar temas como a sexualidade, desde que o seu tratamento seja adequado às diferentes fases.
A empresa salientou que os conteúdos emitidos seguiam o Acordo de Classificação de Programas de Televisão, além de ter sido este subscrito pelas principais operadoras privadas e reconhecido pela ERC. O canal acrescenta ainda que “no contexto actual, os jovens têm acesso a uma panóplia de conteúdos audiovisuais, seja através das redes sociais e plataformas over-the-top (OTT), em que muitas vezes são confrontados com cenas de nudez, linguagem ofensiva, violência e representação de actos sexuais significativamente mais explícitos, frequentes e detalhados do que aqueles que se encontram em discussão”.
Na deliberação, a ERC acompanha em grande parte os argumentos do canal, considerando que a cena não inclui nudez explícita nem representação de actos sexuais, surgindo como parte integrante da narrativa do episódio.
O regulador, presidido por Helena Sousa, concorda que “os conteúdos de natureza sexual fazem parte do quotidiano, e é pouco razoável esperar que os pré-adolescentes e adolescentes não tomem contacto com aspectos da sexualidade ou com a exibição da nudez no espaço mediático actual”.
E conclui que a emissão das cenas implícitas de um ménage à trois entre adolescentes numa série juvenil “não são susceptíveis de influir de modo negativo na formação da personalidade de crianças e adolescentes, nem serão de difícil descodificação por parte do público-alvo do canal Biggs”, ou seja, espectadores entre os 12 e os 18 anos.
São espectáculos realizados a convite de autarquias que visam promover os municípios — e os autarcas. Uma das bandas que tem facturado no último ano com concertos deste género é a banda britânica James, liderada por Tim Booth — tio da actriz portuguesa Maya Booth. Os seus concertos têm sido noticiados nos media como sendo de entrada “grátis”. Mas, na realidade, são pagos por todos os contribuintes. E não saem nada barato.
No caso da banda britânica — que actua este Sábado em Penamacor —, no último ano, os seus três concertos de entrada “grátis” a convite de municípios custaram aos contribuintes a quantia de 518.937 euros.
Os James actuaram em Vila Real no dia 5 de Julho. O concerto custou 194.832 ao erário público, mas a entrada era “grátis”. / Foto: D.R.
O espectáculo desta banda — a qual se tornou popular nos anos 90 — que saiu mais caro aos bolsos dos contribuintes foi o que se realizou no dia 5 de Julho em Vila Real, a propósito das comemorações do centenário de elevação de Vila Real a cidade.
Só este concerto garantiu aos James uma receita de 194.832 euros, com IVA incluído. A contratação feita pelo município de Vila Real foi fechada no dia 27 de Março, com a assinatura de um contrato por ajuste directo com a empresa Malpevent, Consultadoria e Produção de Eventos.
De resto, como o PÁGINA UM noticiou, os custos dos eventos a realizar este ano no âmbito da comemoração do centenário de Vila Real iam já em meio milhão de euros no mês de Março e ainda havia contratos por publicar no Portal Base, a plataforma de registo das compras públicas.
A banda britânica vai actuar hoje a convite da autarquia de Penamacor. Os contribuintes pagaram 183.270 euros por este concerto. Mas a entrada é “grátis”. / Foto: D.R.
Um mês depois do concerto em Vila Real, os James actuam em Penamacor. O concerto está agendado para este sábado, dia 2 de Agosto, inserido na anual Feira Terras do Lince.
A contratação foi formalizada no dia 30 de Junho através de um contrato por ajuste directo adjudicado pelo município de Penamacor à empresa Malpevent, Consultadoria e Produção de Eventos. O preço do concerto dos James ficou em 183.270 euros. É esse o valor pago pelos contribuintes para alguns poderem assistir a este concerto “grátis”.
A autarquia de Penamacor, de resto, abriu os cordões à bolsa e, em pleno ano de eleições autárquicas, contratou ainda, para a Feira Terras de Lince de 2025, outro nome sonante. Os Gipsy Kings, com Nicolas Reys, actuaram ontem no evento pela “módica” quantia de 162.975 euros. A contratação foi efectuada no dia 2 de Julho num contrato por ajuste directo também adjudicado à empresa Malpevent.
Foto: D.R.
Em resumo, os contribuintes pagaram um total de 346.245 euros por estes dois concertos contratados pelo município de Penamacor, que tem apenas 4.797 habitantes. Ou seja, significa que estes dois concertos “grátis” custaram, na verdade, 72 euros por cada habitante do município.
Os valores cobrados este ano pelos James aos municípios de Penamacor e Vila Real são mais elevados do que os cobrados à autarquia do Crato, no Verão do ano passado.
A banda britânica actuou no dia 30 de Agosto de 2024 no Festival do Crato. A contratação da banda foi fechada a 19 de Junho de 2024, através de um contrato por ajuste directo adjudicado à empresa Bam! Bookings Management Unipessoal. O concerto gerou uma receita de “apenas” 140.835 euros para os James, que saiu dos bolsos dos contribuintes. Mais uma vez, segundo a imprensa, o concerto teve entrada “grátis”.
Foto: D.R.
Este ano, a banda ainda vai actuar, pelo menos, mais uma vez, em Portugal. Os James integram o cartaz do Festival de Vilar de Mouros e vão subir ao palco no dia 20 de Agosto. Mas aqui a entrada não é paga por todos os contribuintes. Só mesmo os que querem assistir é que terão de desembolsar o custo do bilhete diário do Festival, de 53,50 euros.
Mas mesmo sem a receita obtida em Vilar de Mouros, os James já levaram mais de meio milhão de euros para casa graças a três generosos municípios portugueses.
Assim, não é de espantar se no Verão do próximo ano houver mais concertos “grátis” da banda de Manchester a convite de municípios, apesar de 2026 não ser ano de eleições autárquicas. Basta que haja centenários para comemorar pagos pelos contribuintes e Feiras anuais com orçamento de luxo. Os James agradecem.
Com vastas áreas do país a arder, a Força Aérea está a alugar, à pressa, mais cinco helicópteros para reforçar o dispositivo aéreo de combate aos fogos por um valor que, no total, deverá chegar aos 3,7 milhões de euros.
O primeiro contrato, assinado ontem, alegando “urgência imperiosa”, prevê a operacionalização de um helicóptero médio a partir de amanhã e até 15 de Outubro, pagando a Força Aérea 892 mil euros. Este contrato foi adjudicado à empresa Avincis Aviation Portugal por ajuste directo.
Foto: D.R.
Este é o lote 3 de 5 previstos no caderno de encargos de um procedimento que visa alugar cinco helicópteros, sendo que os outros lotes ainda não têm os respectivos contratos publicados no Portal Base. Neste procedimento são ainda mencionadas as empresas Helibravo Aviação, Avincis Aviation Iberia e Gesticopter Operations. Contudo não é referido se estas são as empresas às quais foram adjudicados outros lotes.
A Força Aérea tinha avançado com um concurso para o recrutamento de mais cinco meios aéreos de combate aos fogos, segundo noticiou o Correio da Manhã (CM) no dia 15 de Julho. Mas aquela entidade admitiu ao CM, na altura, que apenas conseguiu contratar 71 dos 76 meios aéreos previstos no Dispositivo Especial de Combate aos Incêndios Florestais (DECIR) para 2025. O procedimento para a contratação dos últimos cinco helicópteros teria ficado vazio de propostas.
Portugal registava, às 18H50 de hoje, um total de 86 fogos e incêndios rurais activos, dos quais: 11 em despacho; nove em curso; 15 em resolução e 51 em conclusão. Para estas ocorrências, foram mobilizados 22 meios aéreos, 1.008 meios terrestres e 3.176 operacionais, segundo informações disponibilizadas pelo Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais.
Mapa de fogos e incêndios rurais activos em Portugal Continental, às 18H50 de 31 de Julho. / Foto: Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais.
Em cinco dias, a área ardida em Portugal duplicou e equivale a três vezes a cidade de Lisboa, noticiou o Público. Esta quarta-feira, à saída de uma reunião com o conselho executivo da Liga dos Bombeiros Portugueses, em Lisboa, o secretário de Estado da Protecção Civil, Rui Rocha afirmou que estão a ser feitas “todas as diligências” necessárias “para garantir o efectivo de 76 meios aéreos que estão previstos”.
Segundo Rui Rocha, a partir de 1 de Agosto, vão ser disponibilizadas 72 aeronaves, depois de a Força Aérea Portuguesa recorrer a um ajuste directo para contratar dois meios aéreos, e que a eficácia destes está dependente das características dos incêndios.
Hoje, à saída de uma reunião com a Liga dos Bombeiros, o secretário de Estado da Protecção Civil, Rui Rocha, já informara que estavam a ser feitas “todas as diligências” para garantir um efectivo de 76 meios aéreos previstos, embora apenas 72 estivessem já operacionais a 1 de Agosto, depreendendo-se assim que se venham a concretizar novos ajustes directos nos próximos dias.
Rui Rocha, secretário de Estado da Protecção Civil. / Foto: ANEPC | D.R.
Embora a resposta política imediata às crises associadas aos incêndios rurais seja quase sempre a contratação adicional de meios aéreos, sabe-se que não existe uma correlação directa entre a eficácia do combate e o maior uso desses meios, nem tampouco se tem verificado uma redução da área ardida quando há reforço de aeronaves.
As causas principais das crises cíclicas dos incêndios rurais em Portugal residem sobretudo na desordenamento florestal, na proliferação de matos (agravado pelo abandono de áreas agrícolas que antes serviam de ‘tampão’) e de espécies altamente inflamáveis (como o eucalipto e o pinheiro-bravo), bem como na ineficácia estrutural da política de prevenção, frequentemente subordinada a uma lógica reactiva e mediática centrada no combate.
Foto: D.R.
Para a Avincis Aviation Portugal, este novo contrato vem somar aos dois concursos públicos que ganhou este ano junto da Força Aérea, no âmbito do reforço de meios aéreos relativos ao DECIR. Num dos concursos, cujo contrato foi assinado no dia 4 de Junho, a empresa facturou 30,2 milhões de euros. Num anterior concurso, cujo contrato foi assinado a 8 de Maio, encaixou 2,9 milhões de euros.
No total, só este ano, a Avincis facturou assim 34 milhões de euros em contratos públicos para o fornecimento de meios aéreos para combate aos incêndios.
Enquanto os incêndios não dão tréguas e se apela a São Pedro por uma trégua meteorológica, a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC) tem sido, por sua vez, generosa em “ajudinhas” à conhecida sociedade de advogados Sérvulo & Associados para assessoria jurídica em contratos de meios aéreos que dão para o torto.
Na passada segunda-feira, caiu mais um contrato por ajuste directo — sem qualquer concurso — nas mãos da sociedade fundada pelo advogado Sérvulo Correia e onde pontifica, como um dos sócios principais, Rui Medeiros, ex-ministro da Modernização Administrativa do efémero Governo de Passos Coelho, em 2015. O valor do novo contrato, publicado no Portal BASE, ascende a 123 mil euros (com IVA incluído), e tem como objecto declarado a “aquisição de serviços jurídicos para apoio no âmbito de uma acção administrativa comum instaurada pela Heliportugal”.
José Manuel Moura é presidente da ANEPC desde Janeiro deste ano.
Contudo, a leitura do contrato revela um conteúdo muito mais vasto e específico do que a genérica descrição pública: o documento estipula uma panóplia de tarefas, desde o levantamento e análise de quatro acções arbitrais anteriores e de três processos administrativos ainda em curso entre a ANEPC e a Heliportugal; à análise das acções da empresa Everjets e da documentação relativa aos autos de desconsignação de peças aeronáuticas; passando pela avaliação técnica da documentação trocada entre as partes; até à elaboração de todas as peças processuais — incluindo contestação, reconvenção, réplica e alegações finais —, bem como a preparação das audiências, das testemunhas e da instrução do julgamento.
Ou seja, a minúcia do contrato é tal que estipula sete categorias distintas de tarefas e prevê ainda a criação de uma “bolsa de 305 horas” para fazer face a alegadas necessidades futuras de contratação, que, por não estarem ainda concretizadas, permitirão eventuais prorrogações ou novos ajustes directos.
Porém, apesar deste detalhe — que indicaria a existência de condições para lançar um concurso público ou, no mínimo, uma consulta prévia — a ANEPC invocou uma norma de excepção do Código dos Contratos Públicos (CCP) para justificar o ajuste directo. Esta norma permite a contratação directa apenas quando “a natureza das respectivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas”.
No entanto, como se verifica na cláusula segunda do contrato, essa suposta impossibilidade é desmentida pelo próprio documento, onde as tarefas são descritas em detalhe e os tempos de trabalho quantificados. Em suma, a prestação não só está objectivamente definida como também é mensurável.
Um advogado especialista em contratação pública, que pediu anonimato por receio de represálias institucionais, disse ao PÁGINA UM que este “é um caso típico de torção do Direito à medida da prática administrativa”, salientando ainda que “a norma de excepção foi pensada para serviços genuinamente imprevisíveis — pareceres inovadores, estudos exploratórios, criações intelectuais livres —, pelo que, quando temos um contrato com bolsa de horas e sete blocos de tarefas jurídicas claramente especificadas, não há justificação para dispensar a concorrência.”
Para além da fragilidade legal da norma invocada, acresce o facto de muitas das tarefas agora contratualizadas já constarem de contratos anteriores com a Sérvulo & Associados. Desde 2021, a ANEPC celebrou seis contratos por ajuste directo com esta sociedade num total que ultrapassa agora os 722 mil euros (com IVA). Os valores individuais variam entre 22 mil e 214 mil euros, estando pelo menos três desses contratos directamente ligados a processos arbitrais com a empresa Everjets. Um dos contratos, datado de Dezembro de 2024, refere-se à “conclusão” da “3.ª arbitragem Everjets”, o que levanta dúvidas sobre se se tratam de fases distintas de um único processo ou de adjudicações redundantes e sucessivas.
Sérvulo Correia, quando recebeu uma condecoração em 2018, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa. Foto: Presidência da República.
O caso da Everjets arrastou-se desde 2017 em tribunal arbitral, com acusações mútuas entre a empresa privada e a ANEPC por causa dos famigerados helicópteros Kamov. O acórdão do tribunal arbitral em 2022 concedeu à ANEPC, representada pela Sérvulo & Associados, o direito de ser indemnizada em apenas 2,5 milhões de euros por incumprimentos contratuais, mas também a ter de pagar à Everjects uma compensação de 140 mil euros por ter fechado, sem razão, em 2018, o hangar onde estavam os Kamov, expulsando os funcionários e pondo em causa a reputação da empresa.
Contas feitas, como só em serviços da Sérvulo & Associados, a ANEPC pagou mais de 577 mil euros, significa que a indemnização ficou em menos de 1,8 milhões de euros.
O contrato agora assinado refere também expressamente a análise de quatro acções arbitrais anteriores, o que reforça a suspeita de que a sociedade Sérvulo & Associados poderá estar a ser remunerada mais de uma vez pela análise de documentação e procedimentos em acções executadas no passado.
Este padrão de contratação directa, sistemática e reiterada com o mesmo escritório de advogados, não se limita ao caso da ANEPC. Têm vindo a generalizar-se em múltiplos organismos públicos, incluindo câmaras municipais, institutos públicos e direcções-gerais, contratações por ajuste directo de sociedades de advogados próximas de decisores políticos, quer por vínculos partidários, quer por relações pessoais com membros do Governo, autarcas ou altos quadros da administração.
O subterfúgio jurídico é quase sempre o mesmo: invoca-se a suposta impossibilidade de definição objectiva do serviço jurídico, mesmo quando o contrato — como no caso presente — é exaustivamente descritivo e quantificado. Este expediente tem permitido escapar às regras de concorrência e abrir espaço para adjudicações por convite, em moldes juridicamente frágeis e eticamente questionáveis. Em muitos casos, nem sequer é possível apurar se os serviços foram efectivamente prestados, dado o carácter imaterial das prestações, a ausência de relatórios públicos e a opacidade dos resultados.
Tudo isto se faz nas ‘barbas’ do Tribunal de Contas, cuja actuação tem sido, no melhor dos casos, burocraticamente conformista. O controlo prévio, quando existe, limita-se a verificar o cabimento orçamental e a legalidade formal do acto administrativo, mas raramente escrutina o fundamento substantivo da contratação nem a plausibilidade da norma invocada para contornar a concorrência pública.
Assim, sobretudo para a contratação de sociedade de advogados, esta norma de excepção do CCP, criada para situações excepcionais, transformou-se num atalho administrativo com aparência legal, mas usado à margem do seu espírito original.
Este expediente tornou-se tão rotineiro que até o actual primeiro-ministro, Luís Montenegro, dele beneficiou. Em Janeiro de 2022, o Banco Português de Fomento contratou por ajuste directo a sociedade Sousa Pinheiro & Montenegro — da qual era sócio — por 100 mil euros, alegando igualmente a impossibilidade de definição objectiva do serviço. O PÁGINA UM tem pendente no Tribunal Administrativo de Lisboa uma intimação contra o Banco Português de Fomento para obter acesso a documentação que comprove a efectiva prestação de serviços (pareceres, relatórios, minutas, etc.) nesse contrato.
Perante esta prática generalizada, a excepção transformou-se em regra, o direito em pretexto, e a transparência num véu de linguagem jurídica cuidadosamente redigida para encobrir favorecimentos. No Estado português, aparentemente nem São Pedro ajuda a apagar este tipo de incêndio.