Uma campanha publicitária de prevenção de incêndios rurais, que foi aprovada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) no mês de Maio, só agora viu a luz do dia. Foi assinado ontem o contrato que pode já não vir a tempo de prevenir alguns grandes incêndios, mas, que vem mesmo a calhar para empresas de comunicação social, sedentas de receitas.
Em causa está uma verba de 589.900 euros, (ou 725.577, com IVA) que sai dos cofres do ICNF e vai direitinha para a comunicação social para a “difusão de publicidade institucional, no âmbito da campanha de sensibilização para a redução dos incêndios rurais”. Trata-se de uma campanha publicitária que arranca com dois meses de atraso, face ao previsto. Isto numa altura em que há uma forte pressão mediática em relação aos incêndios rurais, dado o acumular de tragédias e a grande dimensão da área ardida este ano.
Foto: D.R.
O contrato foi adjudicado à empresa Nova Expressão, através de concurso público — sem ser divulgado se houve mais concorrentes. A decisão de adjudicação foi tomada pelo ICNF no dia 4 de Agosto e, segundo as condições do procedimento, o contrato entrou em vigor no 11º dia após aquela data, ou seja, no dia 19 deste mês. Isto apesar de o contrato só ter sido assinado ontem, segundo a data que consta na plataforma de registo de contratos públicos, o Portal Base.
O contrato vai vigorar durante cinco meses “não devendo a respectiva vigência estender-se para além de 31/12/2025, incluindo eventuais prorrogações dos prazos de execução contratualmente previstas”.
Os principais beneficiários desta “chuva” de anúncios — e de receita — serão os canais de televisão generalista de âmbito nacional, os quais irão arrecadar entre 59% e 61% dos anúncios, de acordo com o caderno de encargos consultado pelo PÁGINA UM. “A difusão da campanha [a nível nacional] deve utilizar preferencialmente os canais ‘free-to-air’ (FTA) RTP 1, SIC e TVI, atingindo, no mínimo, 85,00 % da população-alvo”, refere o documento.
O contrato do ICNF de distribuição de publicidade pela comunicação social foi assinado no mesmo dia em que a ministra do Ambiente e da Energia, Maria da Graça Carvalho, visitou as áreas protegidas da Serra do Açor afetadas por incêndios rurais. Fizeram parte da comitiva ministerial Nuno Sequeira, vogal do conselho diretivo do ICNF , e Paulo Farinha Luís, diretor regional da Conservação da Natureza e das Florestas do Centro. / Foto: ICNF
Mas o ICNF admite que “podem ser utilizados outros canais de televisão, de abrangência nacional, desde que não seja prejudicada a performance pretendida”.
A comunicação social regional e local também vai receber entre 39% e 41% do ‘bolo’ que vai ser distribuído nesta receita publicitária, designadamente rádios e imprensa. Aqui enquadram-se estações de rádio de grandes grupos de media. “A difusão da campanha [em rádios regionais] deverá considerar as seguintes estações: Rádio M80 e Rádio TSF, com um mínimo de 200 spots em cada uma”, diz o mesmo documento.
Serão ainda beneficiadas “pelo menos, 30 estações a nível local” e “um mínimo de 40 jornais regionais e ou locais”, com o foco nos que cobrem os concelhos e freguesias de risco prioritário em matéria de fogos.
Foto: ICNF
Esta campanha de prevenção de incêndios estava prevista ser feita em três fases, sendo que a primeira, dedicada ao tema das “queimadas”, deveria ter tido início 15 de Junho e terminado a 24 de Junho, de acordo com o caderno de encargos.
A segunda fase da campanha, sobre o tema “fogos de artifício, churrascos e beatas”, deveria ter arrancado a 25 de Junho e prolongar-se até 23 de Setembro. Por fim, a terceira fase da campanha, dedicada ao tema das “máquinas” tinha data marcada de início para 24 de Setembro e iria terminar a 31 de Outubro. Contudo, o próprio caderno de encargos já previa que pudesse vir a haver um ajustamento das datas das três fases, dependendo da data de adjudicação.
A “chuva” de anúncios milionária que vai cair no “colo” de alguma comunicação social nacional surge depois de Portugal registar o pior incêndio rural de sempre — em Arganil — e quando a área ardida do país está em níveis recorde da última década.
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Segundo dados provisórios do Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais, até hoje, 27 de Agosto, a área ardida em espaços rurais atingiu os 251.131 hectares, com o registo de 6.939 ocorrências. O ano de 2025 é, assim, o pior da década em matéria de incêndios rurais.
Esta distribuição de verbas pelos media, sobretudo pelos três grandes canais de televisão, surge quando os fogos ocupam quase diariamente a abertura dos telejornais, com imagens de tragédias e desolação, com serras, casas e campos pintados de negro ou ainda em chamas.
Anúncio de sensibilização do ICNF divulgado na sua página no Facebook. / Foto: ICNF
Mas, se é certo que a campanha de prevenção de incêndios rurais do ICNF começa tarde, não começa a más horas. Pelo menos para as empresas de media que vão ter receita extra graças a esta oportuna campanha do ICNF.
O PÁGINA UM contactou o presidente do ICNF, Nuno Banza, que remeteu esclarecimentos para o departamento de imprensa daquele organismo. Até à hora de publicação desta notícia, ainda não foi possível obter um comentário do ICNF sobre este contrato publicitário.
O anúncio espalhou-se rapidamente entre jovens fãs portugueses: um popular youtuber brasileiro, cujo canal foi banido no YouTube, surge num vídeo onde anuncia que pondera mudar-se para Portugal. O objectivo do streamer é poder escapar a nova legislação que o impede de gravar conteúdos com a participação de menores, sem autorização judicial prévia.
Trata-se do influencer Felipe Sápio, conhecido como Taspio, que arrecadou 12 milhões de seguidores nas redes sociais junto do público infanto-juvenil, sobretudo com a publicação de vídeos em que participavam crianças e adolescentes.
O influencer brasileiro Taspio tinha 12 milhões de seguidores nas redes sociais antes de o seu canal no YouTube ter sido fechado por alegadamente violar a lei, após denúncias feitas na plataforma. / Foto: D.R./ Instagram
O anúncio de Taspio surgiu após vários streamers brasileiros que publicam vídeos no YouTube em que participam crianças e adolescentes terem visto os seus canais serem apagados pela plataforma. O canal de Taspio foi um deles, mas não foi o único. A plataforma também eliminou os canais dos populares streamers brasileiros João Caetano e Paty e Dedé, com a justificação de que violavam as políticas de segurança infantil. A decisão do YouTube foi confirmada ao portal de notícias da Globo, g1.
Os três canais banidos pelo YouTube pertenciam a criadores de conteúdos residentes no estado do Paraná, no Brasil, e são conhecidos precisamente por produzirem vídeos com a participação de crianças e adolescentes. Os jovens que apareciam nos vídeos e em publicações nas redes sociais dos streamers eram organizados em grupos informais e chamados de “tropas”.
Os canais foram banidos na noite de quarta-feira, 20 de Agosto, e permanecem inactivos. O YouTube indicou ao g1 que as denúncias que motivaram a remoção dos canais foram feitas de forma anónima na plataforma.
João Caetano. O streamer brasileiro tornou-se uma celebridade junto do público mais jovem, graças aos seus vídeos. / Foto: D.R. / Instagram
Os streamers estão agora a procurar reverter a decisão do YouTube. Num comunicado enviado ao g1, os influencers banidos garantiram que “não houve qualquer notificação prévia” por parte do YouTube e que a eliminação dos canais foi “em desacordo com a lei, uma vez que não oportunizou aos influenciadores o direito de resposta”.
Mas os streamers ponderam uma alternativa. Num vídeo aparentemente feito em directo (‘live‘) na plataforma TikTok, e que tem sido republicado por várias contas nas redes sociais, Taspio sugere que, se não for possível voltar a gravar e a publicar vídeos com menores no Brasil, Portugal será o “plano B”. “Como isso é uma lei que aconteceu no Brasil, caso não dê certo (o recurso da decisão do YouTube e a reversão de legislação), a gente vai, todo o mundo, se mudar para Portugal, morar em Portugal e começar do zero em Portugal; são outras leis, outro mundo”, afirmou no vídeo feito em directo.
Os canais destes streamers agora banidos do YouTubearrecadavam, em conjunto, dezenas de milhões de seguidores numa altura em que crianças e jovens trocaram há muito a televisão por conteúdos no YouTube e nas redes sociais. Entre crianças e adolescentes portugueses, os populares streamers brasileiros são muito conhecidos, com as suas casas com piscina, carros topo de gama e vídeos apelativos.
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A decisão do YouTube surge após um caso polémico e também na sequência de uma decisão judicial no Paraná. Recorde-se que o Ministério Público (MP) do Estado do Paraná, obteve uma decisão judicial que proíbe influencers e empresas da cidade de Londrina, no Paraná, de produzir, gravar, divulgar ou partilhar conteúdos com crianças e adolescentes sem autorização judicial prévia.
A decisão formalizada em Junho surgiu a partir de uma investigação iniciada em Abril, após o MP ter recebido denúncias sobre conteúdos audiovisuais considerados sensíveis e inadequados, envolvendo a participação de menores. A decisão também se aplica a conteúdos produzidos fora da cidade, desde que realizados por influencers e empresas sediados em Londrina.
Entre os temas apontados nas publicações analisadas estavam violência física, sequestros, afogamentos, sexualização e relações precoces, bem como exposição de seminudez, bullying em público, consumo de álcool e tabaco, uso de armas – reais ou simuladas-, e tentativas de homicídio.
João Caetano numa das suas publicações no Instagram. / Foto:
Desde 2020 que o streamer publicava vídeos de menores com “cenas de namoro” e danças de teor sexual. Os dois streamers foram detidos depois do influencer Felca ter denunciado perfis que usam crianças e adolescentes para promover a “adultização infantil”. As suas contas nas redes sociais foram encerradas mas o canal do Spotify continua activo, como o PÁGINA UM verificou. O single ‘Empina essa bunda’ conta com mais de 9 milhões de audições.
Estes casos no Brasil estão a colocar novos holofotes no tema dos limites da exposição de menores na Internet e no papel das gigantes tecnológicas na regulação de conteúdos sensíveis para crianças e jovens.
Hytalo Santos e o companheiro encontram-se detidos acusados de tráfico humano e exploração sexual de menores. / Foto: D.R. / Instagram
Mas não só. segundo o advogado Miguel Santos Pereira, caso algum, ou vários, dos populares influencers brasileiros se mudem de armas e bagagens para Portugal, vai também ser colocada na agenda o tema da exploração de menores em produção de conteúdos, sejam eles emitidos na Internet — redes sociais e plataformas — ou em outros media, como a televisão.
“Pode mesmo haver um debate sobre a alteração da lei para melhor proteger os menores”, disse Santos Pereira. Isto porque “os pais, quando recebem dinheiro para os filhos participarem em produções, são beneficiários e podem não proteger os melhores interesses dos menores”, disse Santos Pereira.
Um dos casos que em Portugal tem merecido críticas é a popular série Morangos com Açúcar – que está agora a reposição num canal por cabo – por acusações de exploração de menores e adultização de crianças e adolescentes.
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Recentemente, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu arquivar uma participação contra o canal Biggs, dedicado ao público juvenil, na sequência da emissão de um episódio da conhecida série juvenil, que inclui uma cena sugestiva de um encontro sexual a três entre adolescentes, como o PÁGINA UM noticiou.
Em todo o caso, o debate em torno do tema da adultização de menores na produção de conteúdos, bem como da responsabilização dos pais, pode ganhar nova força em Portugal, com a polémica em torno dos streamers no Brasil. Sendo que a transferência do exercício dos poderes parentais para as mãos do poder judicial, no caso de autorização para um menor participar em produção de conteúdos, levanta muitas questões.
Seja como for, o debate sobre os limites da exposição de menores em vídeos e encenações e as questões sobre os efeitos da adultização de crianças e adolescentes estão, cada vez mais, na ordem do dia. Bem como o tema do acesso do público infanto-juvenil a certo tipo de conteúdos tanto na Internet como na televisão.
Foto: D.R.
Na Austrália, foi anunciado, no final de Julho, que o YouTube será incluído na proibição das redes sociais para menores de 16 anos, na nova legislação que deverá entrar em vigor em Dezembro e que tem gerado forte polémica. Inicialmente, o Governo australiano tinha excluído a plataforma da proibição, a qual irá abranger o TikTok, o Instagram, o Facebook, o X e o Snapchat.
A legislação está a ser tanto aplaudida como contestada por eventuais violações de privacidade, já que todos passarão a ter de provar a sua idade para aceder àquelas plataformas digitais.
Por outro lado, há a dúvida sobre se menores de 16 poderão continuar a ter acesso a conteúdos naquelas plataformas, através de televisões, ou mesmo que não tenham conta. Além disso, poderão continuar aceder a outras plataformas e redes como o LinkedIn, o WhatsApp e o Roblox, que também apresentam perigos.
Mais de 14,6 milhões de euros de subvenção estatal no ano passado, 221 jornalistas no quadro, uma editoria de fotografia com orçamento próprio de quase 600 mil euros – e, no entanto, enquanto o país ardia, a agência noticiosa Lusa decidiu retratar a participação de imigrantes no combate aos incêndios rurais com uma reportagem preguiçosa, redigida a partir de uns telefonemas, da “cópia” parcial de um artigo do Dhaka Post e ‘enfeitada’ por fotografias de arquivo .
Nada de repórteres no terreno, nada de fotografias tiradas por fotojornalistas, nada de confronto com os protagonistas principais, nada de validação junto das entidades responsáveis. Acrescia a tudo isto um tom laudatório, quase missionário, ao qual se somava um pormenor inadmissível até num estagiário de jornalismo: alguns dos imigrantes referidos pela Lusa eram identificados apenas com um nome. A peça acabou reproduzida sem pestanejar pelo Expresso, que — mais uma vez — demonstrou ser apenas correia de transmissão de uma informação mal apurada. E ainda fez pior: em vez de fotografia de arquivo (como fez a Lusa), alguém se lembrou no Expresso de ‘enfeitar’ uma reportagem manca (por ter sido feita ao telefone nem sequer ter sido enviado um fotojornalista) com imagens de má qualidade pescadas nas redes sociais.
Reportagem ‘original’ do Expresso, via Lusa.
Analise-se as ‘imagens’ usadas pelo Expresso – e aqui aplica-se o ditado de que uma imagem vale por mil palavras, embora neste caso signifique que uma má imagem pode destruir a credibilidade de mil palavras. A dúvida saltava à vista.
Numa, um grupo de 14 homens com camisolas amarelas posa sentado a uma mesa de madeira, com garrafas de Coca-Cola e copos de plástico. Na outra, vê-se um conjunto de sapadores de capacete amarelo e fato anti-fogo laranja e verde segurando uma mangueira, alinhados em plena serra, mais um a olhar para a câmara de uniforme amarelo e verde e chapéu, enquanto um pequeno fogo de mato lavra a alguns metros de distância.
Na primeira fotografia, os traços dos sapadores denotavam a sua origem étnica, mas a qualidade da imagem e diversos elementos causavam estranheza. Na segunda, além da fraca qualidade, a aparente descontração do elemento que olhava para a câmara levantava dúvidas num cenário de fogo activo, embora também pudesse tratar-se de uma acção preventiva de fogo controlado noutra época do ano.
Fotografia usada pela ‘reportagem’ do Dhaka Post e depois usada pelo Expresso.
Seriam fotografias ilustrativas de equipas de sapadores? Eram, afinal, imagens autênticas ou fruto das manipulações correntes em tempos de inteligência artificial? Foi o que muitos começaram a questionar nas redes sociais — e até um deputado do Chega, Rui Paulo Sousa, aproveitou para lançar suspeitas sobre a veracidade da reportagem. Ao longo do dia de ontem, a rede social X inundou-se de publicações a pôr em causa a autenticidade das fotos – e, por arrasto, da própria reportagem –, não faltando análises sobre a probabilidade de recurso a inteligência artificial que a classificavam como altamente suspeita.
Esta polémica não teria nascido, sublinhe-se, se a Lusa e o Expresso tivessem feito o mínimo trabalho jornalístico: produzir as suas próprias imagens – é para isso que existem fotojornalistas numa agência que teve rendimentos no ano passado de mais de 18,8 milhões de euros – ou, na pior das hipóteses, confirmar a origem das fotografias, ouvir responsáveis da associação que supostamente emprega os homens retratados e garantir que as declarações encaixavam no contexto real. Mas nada disso foi feito.
Na pseudo-reportagem da Lusa, depois amplificada pelo Expresso com uso de imagens não validadas, não surge uma única palavra de Vasco Campos, presidente da Caule – Associação Florestal Beira Serra, uma das mais dinâmicas da região Centro e alegado empregador dos sapadores florestais retratados. Não há confirmação, não há enquadramento, não há sequer números. Apenas uma narrativa romanceada sobre imigrantes da região do Indostão que estariam “na linha da frente” do combate às chamas.
Segunda fotografia da polémica ‘reportagem’.
Perante a quantidade absurda de reacções sobre a eventual manipulação de imagens e de informação usada pela Lusa e Expresso, o PÁGINA UM fez aquilo que se exige a quem leva o jornalismo a sério: foi ouvir Vasco Campos. E, embora tenha lamentado que o jornalista da Lusa (e o Expresso) não o tenha contactado, este dirigente da associação com sede no concelho de Oliveira do Hospital confirmou ao PÁGINA UM, sem rodeios, que as fotos eram verdadeiras, embora captadas antes dos incêndios recentes com recurso a um telemóvel antigo — daí a fraca qualidade — e que 70% dos seus sapadores florestais são hoje estrangeiros.
Na verdade, fundada em 2001, a Caule possui actualmente seis equipas de cinco elementos cada, portanto 30 pessoas, não incluindo técnicos, a proteger cerca de seis mil hectares de floresta nos concelhos de Oliveira do Hospital e Seia. “Sobretudo a partir de 2019, foi esta a solução que encontrámos. Estou muito satisfeito”, afirma. Entre os trabalhadores, predominam, conforme destaca, cidadãos do Bangladesh, Paquistão e Índia, a que se juntam alguns africanos, incluindo dois angolanos e um marroquino.
Os números são, portanto, claros, apesar de omitidos na pseudo-reportagem da Lusa: de 30 sapadores da Caule, duas dezenas são imigrantes. E a experiência, garante Vasco Campos, tem sido positiva. “Na generalidade, são excelentes trabalhadores, cumpridores e cordatos. Sentam-se à mesma mesa que eu”, diz, frisando que a integração local é boa e que várias famílias já vivem na região, com filhos, alguns já nascidos em Portugal. “Aqueles que andam na escola são muito bons alunos”, acrescenta ainda, notando com graça que alguns dos mais jovens até bebem uma cerveja de vez em quando, ou fumam, “mas às escondidas dos mais velhos”.
Publicação no X do deputado Rui Paulo Sousa.
O verdadeiro problema para a manutenção destas equipas multiétnicas, admite Vasco Campos, é financeiro: “Não conseguimos pagar mais do que o salário mínimo nacional. O salário bruto ronda os 1.500 euros, mas reduz-se no líquido porque há descontos pesados para impostos, segurança social e seguros, que são caríssimos nesta profissão de alto risco.” Os apoios estatais cobrem menos de metade das despesas, e muitas tarefas de silvicultura têm de ser asseguradas como contrapartida. Em todo o caso, vários destes elementos estão em casas disponibilizadas pela associação e os membros isolados juntaram-se para alugar habitações em aldeias próximas. Nestas condições, um salário mínimo numa aldeia de Oliveira do Hospital vale muitíssimo mais do que o mesmo rendimento numa cidade como Lisboa, o que permite a estes imigrantes pouparem dinheiro para enviarem para os seus países, como aliás sucedeu com as remessas dos emigrantes portugueses que rumaram sobretudo para países europeus e americanos a partir da década de 60 do século passado.
Na frente de combate, a eficácia destas equipas de sapadores que integram imigrantes ficou demonstrada nos incêndios recentes: ainda arderam cerca de 1.500 hectares de terrenos florestais da associação Caule, mas a intervenção dos sapadores foi decisiva para travar a propagação em zonas críticas. “Trabalhámos noite dentro, que é quando as condições meteorológicas são mais favoráveis para um ataque ao fogo em zonas bem geridas”, acrescenta Vasco Campos.
Conclusão: de facto, há equipas de sapadores maioritariamente estrangeiros, como a da Caule — mas também se fica a saber como a desinformação nas redes sociais, criticada rudemente pela imprensa, é afinal muitas vezes gerada paradoxalmente a partir de má informação da própria imprensa.
Ontem, rapidamente circularam no X diversas publicações a atribuírem manipulação de imagens por inteligência artificial.
Quando a principal agência de notícias do país publica uma reportagem sem fotografias próprias in loco, sem validar fontes e sem ouvir quem devia ouvir, o resultado é um produto jornalístico frágil, permeável a dúvidas legítimas e combustível perfeito para suspeições populistas. A verdade passa a ser refém do amadorismo. E quando depois um jornal que se autoproclama de referência ‘saca’ fotos de má qualidade e coloca como créditos as redes sociais, sem identificar sequer a fonte em concreto, não se pode queixar da perda de credibilidade, que o afecta a si, mas também a todo o jornalismo.
Este caso ilustra uma tendência cada vez mais preocupante: o jornalismo português, mesmo aquele subsidiado com milhões de euros do erário público, prefere poupar nos custos mais elementares — deslocar repórteres, enviar fotojornalistas, gastar combustível — para se refugiar na comodidade do telefone e no saque às redes sociais. As redacções deixam de fazer trabalho de campo e transformam-se em escritórios de copy-paste. A diferença entre notícia e boato, entre reportagem e comentário laudatório, esbate-se perigosamente.
Neste caso em concreto, além das falhas na reportagem, destaca-se o uso de fotografias obtidas em redes sociais, sem qualquer validação, em vez de serem feitas por um fotojornalista, ainda mais relevante por se tratar, supostamente, de uma reportagem, que nem sequer faz sentido ser feita a partir de uma secretária.
Agência Lusa fez uma reportagem ser ir ao local. O Expresso republicou e decidiu ir ‘pescar’ fotos amadoras nas redes sociais sem sequer identificar correctamente a fonte.
E aqui remete-se para um problema que começa a ser crónico: a perda da relevância da fotografia como elemento fulcral do jornalismo, e sobretudo na reportagem jornalística, no seio da imprensa mainstream. Até porque se pensa que, agora, com a democratização dos smartphones com câmaras fotográficas, se generalizou a ideia de que a fotografia pode ser obtida de qualquer forma.
José Manuel Ribeiro, um dos mais reputados fotojornalistas portugueses, afirma que “o primeiro problema é que os cursos de comunicação social e jornalismo têm vindo a eliminar o ensino de fotografia”, algo que se agravou com a crise financeira na imprensa.
“Com a redução das redacções, são pessoas impreparadas profissionalmente que estão a escolher as fotografias a publicar”, salienta este antigo fotojornalista da Lusa, Público e Reuters, que lamenta que “os órgãos de comunicação social tenham deixado de ter editorias de fotografia”. Para José Manuel Ribeiro, agora “o tratamento das fotografias é mau; antes, a foto era uma garantia de autenticidade e dava credibilidade às notícias e reportagens.”
Alegadamente, o próprio Grok atribuiu manipulação nas fotografias. A possibilidade de ‘falsos positivos’ aumenta, contudo, quando fotos amadoras são tiradas com telemóveis mais antigos.
Para agravar, hoje existe uma tendência na imprensa, que não ocorria há alguns anos, de se usar material da Lusa sem validação posterior. Assim, no caso da “reportagem” sobre os sapadores imigrantes, o Expresso publicou-a tal como estava, como quem despeja mercadoria numa banca, sem edição crítica, sem escrutínio. E coloca a cereja em cima do bolo do descrédito: usa fotos amadoras fazendo crer que estavam na reportagem original da Lusa.
Este é o retrato de uma dependência estrutural: o jornal que em tempos se quis referência torna-se refém de uma agência que lhe serve material pronto a usar, mesmo que esse material seja deficiente. Resultado: os leitores foram confrontados com uma reportagem que não esclareceu, não quantificou e não contextualizou — apenas contribuiu para a cacofonia em torno dos fogos e da imigração.
Em suma: sim, é verdade que hoje em Portugal há equipas de sapadores florestais compostas maioritariamente por estrangeiros. Sim, eles são protagonistas na prevenção e no combate inicial aos fogos. Mas aquilo que a Lusa e o Expresso entregaram ao público foi uma pseudo-reportagem sem rigor, com fotografias duvidosas, sem protagonistas ouvidos e sem dados fiáveis. O debate público sobre imigração e incêndios não precisa de peças romantizadas; precisa de factos sólidos, de vozes directas, de números verificados.
Brigadas de sapadores florestais da Caule. O PÁGINA UM falou ontem com o presidente desta associação, Vasco Campos. Fonte: Caule – Associação Florestal da Beira Serra
Este episódio mostra como nasce e se propaga a desinformação: não da sombra obscura das redes sociais, mas do coração de órgãos que deviam ser guardiões da informação fidedigna. Quando os meios de referência falham no básico, abrem caminho ao boato, ao populismo e à descrença.
A desinformação, neste caso como em tantos outros, começa não no X ou no Facebook ou no WhatsApp, mas sim em redacções preguiçosas, com a chancela oficial da agência nacional de notícias. E o aplauso da imprensa generalista que, com as reportagens da Lusa, fica satisfeita por encher chouriços.
Agosto de 2025 ficará gravado como o mês mais negro na já longa história do combate aos incêndios rurais em Portugal. E não por pouco. Embora o número de ocorrências não seja particularmente elevado – 2.255 registos, muito aquém dos mais de 10.486 ignições em Agosto de 2003 (o pior mês de sempre, em que arderam 312 mil hectares em 31 dias) –, a devastação ultrapassa qualquer parâmetro aceitável em termos de eficácia na extinção.
Até ao dia de hoje, de acordo com dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), os 211.240 hectares de floresta, matos e áreas agrícolas já consumidos pelas chamas desde o dia 1 de Agosto farão deste mês o terceiro pior, assumindo que os 212.917 hectares dizimados em Agosto de 2005 serão ultrapassados.
Se a última semana do mês em curso não piorar os valores, Agosto de 2025 ficará apenas aquém dos tristemente lendários meses de Agosto de 2003 (312 mil hectares) e de Outubro de 2017 (289 mil hectares), neste caso ardidos em pouco mais de 24 horas devido a fenómenos meteorológicos absolutamente atípicos.
Contudo, a tragédia de Agosto de 2025 atinge proporções históricas na ineficácia do combate, que nunca foi tão baixa, revelando fragilidades profundas no modelo português de resposta aos incêndios.
De facto, se o retrato absoluto já assusta, o retrato relativo é ainda mais chocante. Em Agosto de 2003, o primeiro mês dantesco da triste história dos fogos rurais em Portugal, cada incêndio destruiu, em média, cerca de 105 hectares, a primeira vez que se superou a fasquia dos 100 hectares. Esse valor manteve-se sempre como um triste recorde até Outubro de 2017, em que, por virtude de uma área ardida de 289 mil hectares em apenas pouco mais de 1.500 incêndios, se atingiu uma média de 189 hectares.
Evolução mensal da área média ardida por incêndio rural (excluindo fogachos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 339 hectares por incêndio, muito acima dos anteriores picos de Outubro e Junho de 2017, Setembro de 2024 e Agosto de 2003. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Se Outubro de 2017 teve condições meteorológicas atípicas, que dificultavam o combate, já Setembro do ano passado devia ter sido mais um sinal do colapso do actual modelo de combate. Esse mês concentrou quase toda a área ardida de 2024 e cada incêndio (num total de 821) destruiu, em média, 154 hectares, um valor também absurdamente elevado.
Mas em Portugal, o absurdo pode sempre ser ultrapassado, mesmo com valores estratosféricos. No mês de Agosto de 2025, ainda em curso, cada incêndio consumiu em média 339 hectares – ou seja, quase 80% acima do recorde negativo anterior. E o número de ignições acima de um hectare (622) fica muito aquém dos três piores meses em área ardida: Agosto de 2003 contabilizou 2.980 incêndios (ocorrências com mais de um hectare), Outubro de 2017 contabilizou 1.531 e Agosto de 2005 teve 4.518. Ou seja, nesses períodos, o sistema de combate teve provas de fogo e falharam; agora, com menor intensidade de combate alargado, ainda falharam pior.
Mesmo quando se incluem os chamados fogachos (ignições de reduzida dimensão, inferiores a um hectare), a imagem é igualmente devastadora no presente mês de Agosto: cada ocorrência, mesmo contabilizando as mais pequenas, resultou em quase 94 hectares de área ardida em Agosto de 2025, ultrapassando largamente os 81 hectares de Outubro de 2017 e, sobretudo, os outros meses mais negros. Por exemplo, em Agosto de 2003, ainda o pior mês em área ardida, registaram-se 10.486 ignições (cerca de quatro vezes mais do que em Agosto de 2025), pelo que a média por ocorrência se fixou em 30 hectares.
Evolução mensal da área média ardida por ocorrência (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 94 hectares por ocorrência, muito acima dos anteriores picos (Outubro de 2017 e Setembro de 2024). Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Este contraste entre o número relativamente baixo de ignições em Agosto de 2025, sobretudo em comparação com 2003 e 2005, e a dimensão catastrófica dos danos não pode ser explicado pela meteorologia ou pelo acaso. O PÁGINA UM analisou todos os registos mensais desde Janeiro de 2001 até ao presente, e a conclusão é inequívoca: a máquina de combate está em colapso, mesmo com uma tendência de redução de ignições, e Setembro do ano passado já foi o primeiro sinal.
O país enfrenta hoje menos ignições do que há vinte anos – reflexo provável de maior sensibilização da população, menor incidência de actos dolosos e de práticas negligentes –, mas o dispositivo de supressão não conseguiu impedir que fogos de média e grande dimensão se transformassem em verdadeiros monstros incontroláveis.
A explicação para esta deriva não reside apenas nas condições de calor extremo ou na acumulação de combustível vegetal, factores que são comuns a outras épocas. O problema mostra-se estrutural: Portugal mantém um modelo de combate anacrónico, assente numa miríade de corporações pseudo-voluntárias, dependentes de subsídios e apoios, mas sem verdadeira coordenação estratégica.
Evolução do número de ocorrências (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é apenas o 80.º mês com mais ocorrências desde Janeiro de 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Multiplicam-se as associações e estruturas locais, cada uma a reclamar mais meios e mais recursos, mas sem um planeamento central eficaz nem uma doutrina clara para debelar incêndios em regiões de risco acrescido, como o Centro e o Norte Interior, onde se concentram vastas manchas de povoamentos florestais, matos e áreas agrícolas abandonadas.
O país investe anualmente centenas de milhões de euros em meios aéreos, máquinas e dispositivos, mas falha naquilo que é essencial: prever e neutralizar os incêndios que, pela sua localização e condições, têm alta probabilidade de atingir grandes dimensões. Ao invés de uma estratégia nacional que privilegie o ataque inicial rápido e coordenado nos focos críticos, continua-se a gastar energias e recursos numa guerra de desgaste, em que milhares de homens são mobilizados para fogos já fora de controlo, enquanto os decisores políticos se escudam em discursos inflamados sobre a “coragem dos bombeiros”.
Agosto de 2025 é, por isso, um mês-síntese das contradições portuguesas: menos fogos do que no passado, apesar da tentativa de criar uma percepção diferente, mas incêndios cada vez mais devastadores; mais meios, mas menos eficácia; mais discursos de exaltação, mas menos resultados concretos. Se em 2003 e 2005 o drama pôde ser explicado pela combinação de um número extraordinário de ignições com condições meteorológicas extremas, e se em 2017 a tragédia se deveu ao caos de coordenação e falhas operacionais, o que hoje se observa é ainda mais inquietante: o sistema está, pura e simplesmente, a perder eficácia estrutural.
Indicadores dos 20 piores meses desde 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Portugal habituou-se a viver com a retórica do “combate heroico” e com a lógica cíclica da “economia do fogo”: cada ano de desastre é seguido de promessas de reformas e investimentos, que logo se dissolvem na espuma das estações. As corporações locais, dependentes de subsídios, clamam por mais recursos, os fornecedores de meios aéreos multiplicam contratos milionários, e os políticos exibem-se nos “postos de comando” a debitar palavras de circunstância. Entretanto, a floresta arde, os solos erodem e as aldeias do interior esvaziam-se, ano após ano, numa espiral de abandono e desolação.
A tragédia de Agosto de 2025 não é, por isso, apenas o resultado de um verão quente. É o espelho de um modelo esgotado, incapaz de se adaptar à realidade contemporânea. O país reduziu drasticamente as ignições ao longo das últimas duas décadas, sinal de que já não somos a mesma sociedade de descuido e fogo posto dos anos 80 e 90. Mas, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão mal preparados para enfrentar os grandes incêndios que, inevitavelmente, surgem em zonas críticas.
Os desastrosos números da eficácia no combate – e há ainda outros indicadores que permitiriam reconfirmar este desastre, se forem disponibilizados – são um retrato fiel da falência do sistema. Não estamos perante um azar estatístico, mas perante um falhanço nacional que exige reflexão séria e reformas profundas.
Caso contrário, o próximo mês de Setembro, ou um outro qualquer em época de risco, poderá não ser apenas o pior em eficácia: poderá ser, pura e simplesmente, o pior de sempre em todos os indicadores. Com este modelo, todos os recordes negativos são possíveis de bater.
Adenda (25/8/2025): como complemento a esta notícia de 22 de Agosto, neste domingo (dia 24) saíram as colocações para o ano lectivo de 2025/2026 que confirmam a pouca atractividade das licenciaturas em Engenharia Florestal. No total, foram abertas 60 vagas em três instituições – Escola Superior Agrária de Coimbra, Instituto Superior de Agronomia (Lisboa) e Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro –, mas apenas 13 lugares foram ocupados. Em Coimbra entraram seis alunos (em 20 vagas), em Lisboa apenas quatro (em 20 vagas) e em Vila Real três (em 20 vagas), sobrando 47 vagas para as fases seguintes, o que corresponde a uma taxa de ocupação de apenas 22%. A situação deste ano ainda piorou mais face ao cenário exposto no título desta notícia.
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Portugal continua a arder, ano após ano – e este será pelo menos o quarto pior de sempre, com mais de 210 mil hectares já consumidos – numa espécie de ritual estival que junta a indiferença política ao conformismo social. Ardem os pinhais, ardem os eucaliptais, ardem os soutos e os matos que crescem sem dono e sem regra, ardem as aldeias que se esvaziam de gente e ardem as memórias de um país rural que já poucos querem lembrar.
No meio das cinzas, regressa sempre a mesma ladainha: lamentar a floresta maltratada. Mas essa dor é superficial, quase litúrgica, porque a verdade é que a floresta nem sequer é amada de verdade. Prova disso está num pormenor que deveria envergonhar qualquer governante: já quase nenhum jovem português quer estudar ciências florestais.
Até aos anos 90 ainda havia entusiasmo. Em 1997, por exemplo, o Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa, abriu 55 vagas em Engenharia Florestal: todas preenchidas, oito em primeira opção. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real, ofereceu 60 vagas, também todas preenchidas, 11 em primeira escolha.
A rede de escolhas era então vasta, ainda antes do Processo de Bolonha: além das licenciaturas de cinco anos, a Escola Agrária de Coimbra tinha um bacharelato em Engenharia das Operações Florestais; a de Bragança oferecia Gestão de Recursos Florestais; a de Castelo Branco tinha Engenharia da Produção Florestal; e ainda havia cursos em Viseu e na Escola de Tecnologia de Bragança.
Nos institutos politécnicos sobravam algumas vagas, mas por regra os bacharelatos – que tinham então a mesma duração das actuais licenciaturas – não eram, em todas as áreas, muito apetecíveis. O país formava então engenheiros e técnicos florestais em abundância, como se soubesse que o futuro da paisagem e a defesa contra os incêndios dependeriam deles.
Escola agrária e florestal por excelência, o Instituto Superior de Agronomia teve todas as suas 55 vagas em Engenharia Florestal ocupadas na primeira fase em 1997; no ano passado só 11 das 20 abertas.
Mas o entusiasmo esfumou-se depressa. Em 2006, já apenas três cursos sobreviviam, todos licenciaturas de três anos: em Lisboa, Vila Real e Coimbra – e mesmo aí a procura começou a escassear. O mundo urbano afastou-se do mundo rural, a política afastou-se das aldeias, e a floresta foi ficando sem quem a conhecesse de perto. Os anos mais recentes são um retrato cruel: os fogos intensificaram-se, mas o interesse pelas florestas desmoronou ainda mais.
Nos últimos cinco anos a crise tornou-se abissal. Em 2020, Coimbra ainda conseguiu preencher as suas vagas, mas a UTAD ficou reduzida a três alunos. Em 2021, de 26 lugares em Vila Real, só três foram ocupados. Em 2022, o desastre repetiu-se: apenas dois alunos escolheram a UTAD, enquanto ISA e Coimbra resistiam com as vagas preenchidas. Em 2023, já nem isso: dos 15 lugares disponíveis em Coimbra, só cinco foram ocupados; em Lisboa, dos 19 lugares, só 10; e em Vila Real, três alunos para 15 vagas.
E o último ano lectivo confirmou o declínio: 15 vagas em Vila Real, apenas duas preenchidas; 20 em Lisboa, só 11 ocupadas; 19 em Coimbra, apenas duas. No total, abriram-se 54 vagas em todo o país e entraram apenas 15 estudantes. Menos de um terço. O curso que formava os profissionais de que a floresta precisa para não arder ficou reduzido a estatística residual. No caso particular da UTAD, somente um regime de excepção por interesse nacional impede o encerramento definitivo da licenciatura.
“Os jovens são urbanos e o rural tem conotações negativas; na mente colectiva a floresta é vista ora como uma desgraça, apontando-se os eucaliptos e os fogos, ora surge romantizada, numa visão lírica de um espaço intocado. Quem tiver essas visões fugirá de um curso florestal e, quando muito, aqueles que tiverem a visão romantizada vão para Biologia”, destaca Paulo Fernandes, professor da UTAD e um dos principais especialistas nacionais em dinâmica de fogos rurais.
Na mesma linha, Teresa Ferreira, professora e presidente do Conselho Científico do ISA, releva que as ciências agrárias, incluindo as florestais, não conseguem cativar uma população jovem cada vez mais urbana, exactamente por causa da perda da ligação ao mundo rural. “Neste momento, quase só os jovens com ligações a famílias com propriedades rurais seguem estes cursos”, acrescenta, sublinhando também as dificuldades que estes sectores das universidades portuguesas têm tido em se modernizar e tornar os cursos mais atractivos.
Certo é que, apesar da escassez – ou, provavelmente, por causa da falta de novos licenciados –, os poucos diplomados não têm qualquer dificuldade em termos de saídas profissionais, mas quase todos seguem para as grandes empresas do sector florestal.
Em suma, Portugal lamenta os fogos quando eles consomem aldeias e serras, mas não investe na floresta antes de ela arder. O divórcio é total: entre o mundo urbano que exige protecção contra incêndios e o mundo rural que já não tem quem cuide das árvores; entre a política que promete reformas e as aldeias que definham; entre os discursos inflamados e os cursos universitários vazios.
A floresta portuguesa, cada vez mais abandonada, é o espelho de um país que se habituou a viver entre cinzas. E quando passa a época dos fogos, os jovens urbanos continuam insensíveis.
Os assaltos a apartamentos durante a noite, enquanto as famílias dormem, começam a ser um flagelo cada vez mais relatado e que deixa marcas e traumas nas vítimas. Umas acordam e deparam-se com os ladrões em casa. Outras só dão conta do assalto quando acordam, de manhã.
Mas tanto num como noutro caso, ficam com marcas e durante algum tempo algumas das vítimas têm dificuldade em adormecer. Nos casos em que havia bebés ou crianças pequenas em casa, na altura do assalto, os pais ficam sobressaltados.
Foto: D.R.
Desde que o PÁGINA UM noticiou este tipo de assaltos, têm-nos chegado mais casos. Em algumas situações, as vítimas acordaram e os assaltantes fugiram. Noutros, as vítimas só de manhã, quando acordaram, é que descobriram que tinham sido assaltadas.
Procurámos saber, afinal, quantas famílias residentes na capital foram assaltadas enquanto dormiam, desde o início do ano. A resposta que obtivemos é que não se sabe.
A Polícia de Segurança Pública (PSP) não consegue indicar quantos assaltos com as famílias a dormir ocorreram este ano em Lisboa. Questionada pelo PÁGINA UM sobre o número de ocorrências deste tipo que foram registadas desde Janeiro, o gabinete de comunicação da PSP foi lacónico: “não nos será possível facultar-lhe uma resposta, tendo em conta a especificidade dos dados que pretende”.
Foto: D.R.
Nos casos que relatámos recentemente, as famílias vítimas de assalto não apresentaram queixa formal, mas as que chamaram a PSP não viram nenhuma prova a ser recolhida nem esperam que sejam investigados os assaltos e detidos os assaltantes. Isto porque, para as autoridades policiais, se não existir sinais de arrombamento nem ameaças ou agressões, então os casos são, de certa forma, desvalorizados.
Esta prática arrisca dar um sinal forte aos assaltantes: podem continuar a invadir casas durante a noite que não serão procurados nem importunados.
Para as famílias, fica uma sensação de impotência perante a invasão do seu lar. Para os assaltantes, fica o sentimento de impunidade. E os assaltos sucedem-se, tanto a residências como a estabelecimentos comerciais. Entrando por janelas abertas ou mal fechadas, trepando varandas, passando por cima de estendais.
Ainda esta semana nos chegaram mais relatos, desta vez de apartamentos assaltados com recurso a arrombamento. Só na Rua Leite Vasconcelos, em Lisboa, no mesmo prédio, dois apartamentos foram assaltados na mesma noite. Neste caso, não estava ninguém em casa.
Foto: D.R.
Certo é que, por haver arrombamento, estes assaltos são vistos com mais seriedade, aos olhos da lei – e da PSP. Seria de repensar se, o facto de haver assaltos a ocorrer com famílias a dormir não seriam de ser levados mais a sério. Porque, ao bens que são roubados, somam-se as marcas psicológicas que ficam nas vítimas. E essa quebra de confiança na segurança que fica não se pode reportar à seguradora.
Em alguns casos, mesmo pondo trancas às portas e alarmes nas janelas, o sentimento de insegurança permanece. Não se saber qual o número de famílias que são vítimas deste tipo de assalto não ajuda a restaurar o sentimento de que é seguro estar em casa.
O pior ainda não passou, mas 2025 já regista, e de longe, a pior eficácia no combate a incêndios florestais de todo o século XXI. Até 19 de Agosto, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos dados do Instituto Nacional da Conservação e das Florestas (ICNF), cada incêndio tem destruído, em média, 89 hectares, um valor nunca antes observado e que ultrapassa largamente os anos mais negros da tragédia dos fogos, como 2003 (50,6 ha/incêndio), 2005 (17,6 ha/incêndio) e sobretudo 2017 (56,2 ha/incêndio), quando morreram mais de uma centena de pessoas em duas vagas de incêndios devastadores.
Este indicador – que exclui os fogachos, isto é, as ignições apagadas antes de se atingir um hectares (100 por 100 metros) – revela que, quando os fogos não cedem à primeira intervenção, a capacidade de resposta do sistema nacional de protecção civil mostra-se estruturalmente incapaz de os travar, sobretudo quando ultrapassam os mil hectares, ficando o controlo dependente quase exclusivamente da evolução meteorológica.
Os números oficiais, compilados até 19 de Agosto, confirmam uma realidade alarmante. Em 2025, já arderam 215.988 hectares, uma área em crescimento que coloca o ano na linha da frente das piores catástrofes florestais desde 2001, mesmo sem se ter atingido ainda o final do período crítico. O total de incêndios registados até agora, excluindo fogachos, é de 2.426, ainda um dos valores mais baixos de sempre, mas com consequências devastadoras: menos fogos, mas muito mais destruição.
Ou seja, comparativamente a anos anteriores, e sobretudo aos da primeira década do século, o sistema até tem tido menos ignições e também, em consequência, menos incêndios (com mais de um hectare), mas falha redondamente, em demasiados anos, em grandes incêndios no interior do país. A baixa frequência de fogos contrasta, assim, com a altíssima intensidade e extensão dos que acabam por escapar ao controlo.
Se compararmos com outros anos, percebe-se a dimensão da falha de 2025, mesmo quando comparado com os três anos com maior aárea ardida. Em 2017, o ano mais catastrófico, apesar dos 9.626 incêndios registados, a eficácia do combate ficou em 56,2 ha/incêndio. Em 2003, foram 9.320 incêndios para um rácio de 50,6 ha/incêndio. Em 2005, o rácio foi de 17,6 com quase 20 mil incêndios.
Área ardida por hectare, considerando apenas incêndios (ocorrências com mais de um hectare). Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Já no ano passado, com os grandes incêndios a concentrarem-se em Setembro, este indicador mostrou sinais de descoordenaçao, com um rácio de 50,1 hectares por incêndios, apesar de ter sido o ano deste século com o menor número de ignições a ultrapassarem um hectare (2.745).
Estes números connstituem uma demonstração inequívoca de que o sistema de combate em Portugal não está desenhado para enfrentar situações em que os fogos, superando a barreira psicológica e operacional dos mil hectares, assumem proporções incontroláveis.
A questão da “eficácia do combate” tem sido, ao longo das últimas décadas, um verdadeiro tabu político e institucional. Desde a primazia concedida às corporações de bombeiros voluntários – pilares comunitários com forte ligação às câmaras municipais e a redes de influência local – que o combate aos incêndios assenta numa miríade de entidades, de difícil articulação e disciplina operacional.
Número de incêndios (ocorrências com mais de um hectare) desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Maio. Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.
O peso emocional é determinante: os bombeiros são vistos pelas populações como heróis, símbolo de abnegação e de proximidade, o que torna politicamente delicada qualquer tentativa de reestruturação, profissionalização efectiva – com todas as vantagens de instrução, treino e preparação de equipas coordenadas – e consequente responsabilização.
Mas a verdade é que o actual sistema dito voluntário mas com pagamentos do Estado acaba por ser sistema semi-profissionalizado, mas com baixa capacidade de avaliação e regulação. É um sistema que se tornou anacrónico perante as exigências dos grandes incêndios florestais do século XXI.
Aliás, nenhum outro sector fundamental do Estado – da segurança pública à educação, passando pela saúde ou pelo sistema prisional – assenta numa lógica semelhante à do combate aos fogos rurais. É impensável conceber a segurança interna dependente de centenas de associações privadas dispersas pelo território, algumas sofrendo de escassez de população jovem, com escassa coordenação centralizada.
Área ardida total desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Agosto. Fonte: ICNF.
No entanto, é precisamente esse o modelo que subsiste no essencial da protecção civil contra incêndios florestais em Portugal: mais de três centenas de corporações de bombeiros voluntários, articuladas de forma precária com os meios da GNR, da Força Especial de Protecção Civil e da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil.
O resultado é a crónica dificuldade em coordenar meios em cenários de grande dimensão, em que a rapidez e a disciplina hierárquica são cruciais. Por exemplo, em incêndios de grandes dimensões, que ultrapassam mil efectivos, é habitual estarem, no denominnado ‘teatro das operações’, bombeiros de mais de uma centena de corporações, sem sequer haver uma logística bem implementadas.
Os sucessivos Governos, de diferentes cores partidárias, têm evitado enfrentar esta questão estrutural. Em Espanha, a solução foi encontrada em praticamente todas as comunidades autónomas: criação de corpos profissionais de bombeiros-sapadores florestais, integrados nos serviços regionais de protecção civil, com treino permanente, vínculo laboral e disciplina operacional semelhantes às forças militares.
Nessa organização, os bombeiros voluntários assumem um papel complementar, sobretudo na protecção dos perímetros urbanos e na salvaguarda de habitações, deixando a resposta de primeira linha no espaço florestal para equipas profissionais do Estado. Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.
Também em Itália e França prevalece um modelo profissionalizado. Itália possui o Corpo Nazionale dei Vigili del Fuoco, uma estrutura estatal com efectivos treinados para diferentes cenários de risco, incluindo os incêndios florestais. Em França, a protecção civil assenta numa combinação de bombeiros profissionais e voluntários, mas com um comando centralizado e meios aéreos fortemente integrados, que asseguram resposta rápida e disciplinada em grandes fogos, sobretudo na região mediterrânica.
A Grécia, sobretudo após a catástrofe de 2007 e o desastre de Mati em 2018, também avançou para a criação de brigadas profissionais florestais, integradas no Serviço de Incêndios, com forte ligação ao exército e à guarda nacional, assumindo que a escala dos incêndios modernos exige uma estrutura permanente, estável e profissional. Existe voluntariado, mas numa percentagem inferior a 20% dos efectivos, que somente em situações especiais são accionados.
Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.
A história repete-se com o mesmo dramatismo e a mesma sensação de impotência. Portugal ultrapassou esta noite a mítica fasquia dos 200 mil hectares de área ardida em 2025, segundo os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), consultados e analisados pelo PÁGINA UM.
São já 203.422 hectares queimados, número que reconfirma este ano como o quarto pior desde que existem registos estatísticos, iniciados na década de 1940. A dimensão da tragédia equivale a 20 vezes a área da cidade de Lisboa, um valor simbólico que marca uma fronteira que todos sabiam ser possível, mas que se esperava, talvez ingenuamente, que pudesse ser evitada.
Até agora, a barreira dos 200 mil hectares só tinha sido superada em três ocasiões, todas já neste século XXI. A primeira foi em 2003, quando o fogo reduziu a cinzas 471.813 hectares. Dois anos depois, em 2005, voltou-se a cair no mesmo abismo, com 346.731 hectares devastados. Mais recentemente, em 2017, registou-se o pior ano de sempre, com 540.654 hectares queimados, uma ferida ainda aberta na memória colectiva.
O facto de 2025 se juntar a esta curta lista mostra que, apesar de duas décadas de planos estratégicos, de reestruturações sucessivas proclamadas na Protecção Civil e de discursos políticos inflacionados, Portugal continua incapaz de quebrar o ciclo da devastação.
A fotografia estatística de 2025 tem um rosto particularmente sombrio: o distrito da Guarda. Com 79.586 hectares destruídos, este é já o pior registo distrital do século XXI, correspondendo a cerca de 15% do território total do distrito. Em termos relativos, é uma tragédia que não encontra paralelo recente, deixando claro que o Interior profundo, despovoado e envelhecido, continua a ser o palco principal da catástrofe florestal. A Guarda, sozinha, concentra quase 40% da área ardida de todo o país.
Mas a devastação não se fica por aqui. Em Coimbra arderam 41.247 hectares, em Viseu foram 21.489 hectares, e em Bragança o fogo consumiu 13.877 hectares. Estes quatro distritos somam mais de três quartos da área ardida de Portugal em 2025, revelando uma desigualdade territorial chocante: enquanto os distritos do Interior vivem um cenário de catástrofe, no Litoral e no Sul quase nada se registou.
No extremo oposto, Lisboa conta apenas 63 hectares, Faro 32 e Leiria 26, números residuais que contrastam violentamente com os da Guarda. O país arde, mas arde sobretudo sempre nos mesmos sítios, como se a repetição fosse um destino inevitável.
Se os números anuais já seriam suficientes para definir 2025 como ano negro, o retrato mensal não deixa espaço para dúvidas: este mês de Agosto, ainda por terminar, é já o quarto pior mês deste século, com 166.316 hectares consumidos em apenas 19 dias.
Supera de longe qualquer outro Agosto da última década e só é ultrapassado por Agosto de 2003 (312.411 hectares), Outubro de 2017 (289.126 hectares) e Agosto de 2005 (212.917 hectares). Com quase duas semanas ainda pela frente, a perspectiva de que este Agosto suba no ranking da destruição é elevada, colocando em risco a estabilidade do país não apenas em termos ambientais, mas também económicos e sociais.
A sucessão destes números devastadores revela a falência de políticas que, desde 2003, se anunciaram como redentoras. Do Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios às reorganizações das corporações de bombeiros, passando pelo investimento em meios aéreos e pelo reforço orçamental das campanhas de prevenção, tudo parece esbarrar no mesmo problema estrutural: uma paisagem desordenada, um mundo rural abandonado e um Estado que se limita a gerir emergências em vez de intervir na raiz.
O resultado é o que se vê: hectares atrás de hectares transformados em cinza, com os mesmos distritos sempre na linha da frente do sacrifício. E Lisboa política a assistir pesarosa, embora com muitas culpas no cartório.
Mais do que estatísticas, há uma realidade crua: no mês de Agosto em curso, por cada hora que passou ardeu em média 385 hectares, ou seja, 9.240 hectares por dia – são mais de 10 mil campos de futebol a arder. E não é apenas a floresta que se perde. São solos que se degradam, habitats que desaparecem, populações que se sentem sitiadas, e depois abandonadas nas cinzas, e economias locais que ficam amputadas. Quando a Guarda perde 15% do seu território para as chamas, não é apenas a natureza que é devastada: é uma parte inteira do país que se apaga.
No fundo, a ultrapassagem da fasquia dos 200 mil hectares em 2025 não é apenas um número redondo e trágico. É a prova de que, duas décadas depois dos anos infernais de 2003 e 2005, e oito anos após o horror de 2017, Portugal continua prisioneiro do mesmo ciclo de fogo, incapaz de transformar a memória das tragédias em prevenção efectiva. Os discursos oficiais repetem-se, os planos multiplicam-se, exaltam-se os bombeiros, transformam-se as vítimas em heróis, mas a floresta, já cada vez mais débil e sem sustentabilidade, continua a arder com a mesma fúria. E, pior ainda, com a mesma previsibilidade.
A derrocada da Global Notícias não surpreende, mas o estrondo atinge valores inimagináveis. Os dados provisórios entregues pela dona do Diário de Notícias — que já vende menos de mil exemplares por dia em banca — no Portal da Transparência dos Media mostram que a empresa colapsou no ano passado com resultados negativos de quase 26,5 milhões de euros, colocando-a em falência técnica.
E não se trata de meia dúzia de tostões: os capitais próprios estão agora negativos em 19,3 milhões de euros, ao mesmo tempo que os activos encolheram para apenas 21,5 milhões, aparentemente fruto da venda de títulos como o Jornal de Notícias, a TSF e O Jogo à obscura Notícias Ilimitadas, por um valor ainda desconhecido.
O colapso da empresa que ainda detém os títulos mais antigos do país — o Diário de Notícias e o Açoriano Oriental — é apenas a consequência de um rumo errático, marcado nos últimos anos por transacções pouco transparentes e polémicas infindáveis, incluindo a tentativa de controlo por um fundo das Bahamas, expediente que acabou por servir de argumento para desmembrar o grupo.
Nos últimos oito anos impressiona como as sucessivas administrações foram sangrando uma empresa que, em 2017, possuía activos superiores a 98 milhões de euros e capitais próprios de 31,4 milhões de euros. Desde então, acumulou mais de 76 milhões de euros de prejuízos. E até os anéis se foram: os edifícios emblemáticos do Diário de Notícias, em Lisboa, e do Jornal de Notícias, no Porto, foram vendidos, e o dinheiro rapisamente se esfumou. Hoje, aquilo que resta é uma carcaça que apenas um regulador conivente e um mundo político condescendente permitem continuar a animar. E a minar o jornalismo.
Com efeito, as receitas da Global Notícias estão em queda livre há anos, fixando-se em apenas 22,5 milhões de euros em 2024, menos 48% do que em 2017 — e isto apesar da alienação de títulos supostamente ainda lucrativos como o Jornal de Notícias.
A falência técnica — mas com valores de grandeza estratosférica — parece ser a estratégia para abrir caminho a uma futura intervenção estatal que salve o icónico Diário de Notícias, alienando-se o título e empurrando a Global Notícias para a insolvência, mas com credores e o próprio Estado a ficarem a ‘arder’. As demonstrações financeiras ainda não foram apresentadas na Base de Dados das Contas Anuais, e ignora-se se as dívidas ao Estado aumentaram ao longo do ano passado.
Recorde-se que, em 2024, a Global Notícias vendeu a maior parte do capital do Jornal de Notícias, da TSF e de outros títulos à igualmente opaca Notícias Ilimitadas — que também não apresentou contas — ficando apenas com uma participação de 30%. O negócio, celebrado como “salvação” por quem insistia em pintar o grupo com cores de optimismo, revelou-se afinal um mecanismo de liquidação encapotada. A operação foi autorizada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), mas com um pormenor gravíssimo: a existência de um acordo parassocial confidencial entre as partes, cujas cláusulas permanecem em segredo até hoje.
O Página Um apresentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar a ERC a mostrar esses documentos, mas apesar de uma sentença favorável, o regulador recorreu com efeito suspensivo. Tem sido norma da ERC, presidida por Helena Sousa, proteger os grandes grupos em dificuldades, negando acesso a informação considerada sensível e escondendo a gravidade da situação financeira.
Helena Sousa, presidente da ERC: regulador autorizou um estranho negócio de alienação, que esconde, contribuindo para a última estocada para o colapso (pouco involuntário) da Global Notícias.
As consequências da alienação à Notícias Ilimitadas não tardaram a mostrar-se. Se em 2021 a Global Notícias ainda conseguiu, por via de medidas excepcionais, apresentar um EBITDA ligeiramente positivo (1,1 milhões de euros), em 2023 regressou aos prejuízos e em 2024 desabou num abismo: o resultado operacional foi de -24,8 milhões de euros, mais do que todo o volume de negócios anual. Em rácios, a autonomia financeira caiu para -90% e a solvabilidade fixou-se em 0,53 — ou seja, os passivos superam largamente os activos.
Do ponto de vista estritamente económico, a Global Notícias já não existe como entidade viável. Qualquer tentativa de recuperação exigiria injecções de capital superiores a 25 milhões de euros, apenas para regressar a capitais próprios positivos e repor mínimos de autonomia financeira. Mas a realidade é que as fontes de receita encolheram e as marcas mais fortes — como o JN e a TSF — foram amputadas do perímetro da empresa.
Neste momento, existe um esqueleto feito de responsabilidades, passivos e nenhuma margem para sobreviver, sendo que o seu activo mais forte é um jornal emblemático mas de credibilidade ferida de morte, que vende já menos de mil exemplares em banca e nem mil assinaturas digitais possui.
Este quadro é tanto mais grave porque foi o próprio regulador a abençoar um negócio que ocultou regras de governação através de cláusulas secretas. Não é apenas a Global Notícias que está em colapso: é também o regime de transparência que deveria tutelar a comunicação social.
A falência técnica da Global Notícias, consagrada em 2024, não resulta apenas de maus resultados acumulados: resulta também da complacência cúmplice da ERC e da permissividade do Estado em relação a negócios pouco claros que moldam o panorama mediático português. É esta cadeia de decisões opacas que hoje conduz ao desfecho previsível: um grupo histórico transformado em ruína contabilística, amputado dos seus principais activos e protegido por uma cortina de sigilo regulatório.
Portugal vive uma tragédia anunciada sempre que chega o Verão. As imagens repetem-se, mas a dimensão de cada ano nem sempre fica gravada na memória colectiva pelos números finais. O ano horribilis de 2017 parece longínquo, quando arderam 540.654 hectares, números impressionantes mesmo para os mais pessimistas — e desses, 336 mil hectares arderam já depois da primeira metade de Agosto, sendo que a maior parte ocorreu com o Outono avançado, a 15 de Outubro.
Em 2025, quando ainda se está em pleno mês de Agosto, a contabilidade dos incêndios já atingiu 172.065 hectares de área ardida, segundo dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), sendo o quarto pior do século, somente atrás de 2017, de 2003 (471.813 hectares) e de 2005 (346.731 hectares). Estes três anos vieram, aliás, colocar o patamar da destruição dos incêndios rurais num nível impensável no século XX, quando um “ano mau” significava valores ligeiramente acima de 100 mil hectares.
O carácter errático da destruição, embora cíclica — porque após anos de grande devastação as áreas ardidas servem de tampão durante quatro ou cinco anos —, impede previsões com grande certeza. Porém, uma análise conduzida pelo PÁGINA UM às séries estatísticas desde 2001 mostra que, embora seja pouco provável que se atinjam os valores de 2017, 2003 e 2005, o ano de 2025 tem uma probabilidade significativa de chegar aos 283 mil hectares consumidos até Dezembro, sendo que o intervalo de confiança aponta para valores entre 208 mil, num cenário optimista, e 357 mil hectares, num cenário pessimista.
Em todo o caso, aquilo que torna a análise mais relevante é perceber que a tragédia de cada ano não se decide apenas no que ardeu até 17 de Agosto. Com efeito, a estatística mostra um padrão instável, por vezes surpreendente: a segunda metade do Verão e o início do Outono podem alterar radicalmente o balanço final. Em 2003, por exemplo, apenas 12,1% da área total ardeu depois de 17 de Agosto, mas em 2005 essa percentagem foi de 38,8%. Já em 2017, o cenário foi devastador: 62,2% da área ardida concentrou-se após essa data, quando Outubro trouxe condições meteorológicas explosivas, somadas aos fogos fora de época de Junho.
Este elemento estatístico é crucial para compreender o risco que ainda paira em 2025. Se, até 17 de Agosto, já se registaram mais de 172 mil hectares consumidos, a experiência histórica mostra que o “resto do ano” pode significar desde um pequeno acréscimo (como em 2003) até uma catástrofe desproporcionada (como em 2017). A variabilidade é enorme, o que torna a previsão mais um exercício de intervalos do que de certezas. A estatística serve aqui de alerta: em cerca de duas décadas e meia de registos, houve anos em que pouco ou nada aconteceu após Agosto e outros em que o pior ficou reservado para o fim.
Área ardida em cada ano desde 2001 (total e em dois períodos distintos). Fonte. ICNF. Análise: PÁGINA UM.
O PÁGINA UM aplicou um modelo estatístico rigoroso, mas explicado em termos acessíveis: partindo da série anual de 2001 a 2024, foi feita uma regressão para avaliar o que se pode esperar quando já se conhece a área ardida até 17 de Agosto. Esta técnica permite projectar, com base em padrões históricos, qual será a área total até ao final do ano. O modelo aponta para um valor central de 283 mil hectares, que corresponde a um acréscimo médio de 111 mil hectares até Dezembro, mas com a possibilidade de o valor oscilar entre mínimos de 36 mil e máximos de 185 mil hectares adicionais. É a matemática da incerteza aplicada à realidade das florestas portuguesas.
De todo o modo, 2025 já está condenado a figurar entre os piores capítulos desta história negra. Mesmo que não se repita um Setembro como o do ano passado, quando arderam quase 130 mil hectares, ou o de 2013, com mais de 100 mil, ou, pior ainda, o Outubro de 2017, o valor mínimo previsto garante-lhe o quarto lugar no ranking.
Mas, caso os próximos meses sejam particularmente severos, poderá aproximar-se do trágico patamar de 2005 e até ameaçar a barreira dos 300 mil hectares. O país continua, assim, refém de um destino florestal que se repete em ciclos, com variações de intensidade mas sempre com a mesma marca: o fogo que destrói território, património natural e vidas humanas.
Este diagnóstico é mais do que uma estatística: é um sinal de que Portugal não conseguiu quebrar o ciclo de catástrofes. E aquilo que se anuncia para 2025 é não apenas a confirmação de um ano terrível, mas a prova de que, passadas mais de duas décadas desde os grandes fogos de 2003, continuamos a oscilar entre anos mais benignos e anos catastróficos sem uma estratégia clara de contenção estrutural.
O futuro imediato, até ao final deste ano, permanece uma incógnita, mas a estatística avisa: o pior pode ainda estar para vir. E se não vier, o trágico é ficar-se a saber que se não arder mas este ano, certamente que arderá nos próximos, porque esse tem sido o destino dos espaços rurais em Portugal ao longo das últimas décadas.