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  • Subsídios de doença custaram quase mil milhões de euros em 2024

    Subsídios de doença custaram quase mil milhões de euros em 2024

    Os valores pagos pelo Estado em subsídios de doença aproximaram-se, no ano passado, da fasquia de mil milhões de euros. De acordo com os dados hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, as prestações de apoio ao longo de 2024 atingiram os 962,1 milhões de euros – o valor nominal mais elevado desde que há registo.

    Esta subida foi acompanhada também por um aumento expressivo de beneficiários, que ultrapassaram os 845 mil, o que representa mais 131 mil pessoas do que em 2020, o primeiro ano da pandemia, quando foi comum a atribuição de subsídio de doença a pessoas que, mesmo sem sintomas, mas com teste positivo à covid-19, tinham de permanecer em casa. O envelhecimento da população activa e os problemas de acesso aos cuidados de saúde ajudam a explicar esta tendência, mas uma coisa é certa: os seus impactos são estruturais para a sustentabilidade da Segurança Social.

    person lying on gray sofa

    Com efeito, a evolução dos números, tanto das prestações como do número de beneficiários, não deixa margem para dúvidas quanto ao agravamento estrutural deste tipo de despesa pública: em apenas quatro anos registou-se um crescimento superior a 18%. Já o montante total subiu 15,5% no mesmo período: de 832,7 milhões de euros em 2020 para os actuais 962,1 milhões. Face ao período pré-pandémico, a subida é ainda mais acentuada: em 2019, o valor pago tinha sido de 692,6 milhões de euros, com 650.958 beneficiários.

    Embora o valor médio por beneficiário se tenha mantido relativamente estável – cerca de 1.139 euros por pessoa em 2024, face a 1.167 euros em 2020 –, o número crescente de indivíduos a recorrer a este apoio tem tido um impacto significativo nas contas públicas. E tudo indica que o fenómeno poderá não ser transitório, mas sim reflexo de transformações profundas no mercado de trabalho e na estrutura etária da população portuguesa.

    Entre os factores explicativos identificados por analistas e especialistas em segurança social, destacam-se quatro causas principais: o envelhecimento da população activa, as alterações no mercado de trabalho, os problemas de acesso a cuidados de saúde primários e hospitalares e, mais recentemente, a normalização do recurso ao subsídio de doença em contextos menos graves.

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    Desde 2011, tem-se verificado um crescimento sustentado da população activa com mais de 55 anos, em contraste com a redução dos grupos mais jovens. Ora, esta faixa etária tem naturalmente maior probabilidade de sofrer doenças crónicas, lesões incapacitantes e períodos prolongados de baixa médica, o que contribui directamente para o aumento dos subsídios atribuídos.

    Por outro lado, a precarização das relações laborais em alguns sectores e o desgaste emocional associado a profissões altamente exigentes – como as ligadas à saúde, educação ou transportes – geram um contexto propício ao aumento do absentismo.

    A existência de ambientes laborais tóxicos, o burnout e os distúrbios de ansiedade são hoje factores relevantes para compreender os padrões de incapacidade temporária. No entanto, não é possível, com os dados disponibilizados pelo INE, destacar qual a tipologia de doenças e afecções que mais têm crescido.

    Evolução do número de beneficiários de subsídio de doença por ano desde 1990. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Todavia, mostra-se evidente que tem aumentado o número de horas inactivas nos últimos anos. Segundo os dados do INE, em 2024 foram processadas 42.750.697 horas de ausência por doença, valor ligeiramente inferior ao de 2023 (44,3 milhões) e ao de 2020 (44,6 milhões), mas muito superior ao verificado entre 2013 e 2019, período durante o qual a tendência de crescimento foi praticamente contínua: de 25,5 milhões de horas em 2013 para 38,8 milhões em 2019, num aumento superior a 50% em apenas seis anos. Nos últimos cinco anos, desde a pandemia da covid-19, têm sido processadas, em cada ano, mais de 42 milhões de horas de ausência por doença.

    Este crescimento não é proporcional ao aumento da população activa, nem ao crescimento da população imigrante residente em Portugal.

    Com efeito, a população activa total em Portugal cresceu apenas cerca de 10% entre 2013 e 2024, e o número de imigrantes com actividade profissional tem registado aumentos relevantes, mas longe de justificar isoladamente a duplicação do esforço financeiro do Estado com este tipo de apoio social. Isto significa que o absentismo por doença cresce a um ritmo autónomo e estrutural, exigindo análise e respostas políticas.

    Evolução das prestações sociais por subsídio de doença desde 1999, em milhares de euros. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM

    A tudo isto soma-se a fragilidade dos cuidados de saúde primários. A ausência de médicos de família para milhões de portugueses, as longas listas de espera para consultas e exames e a falta de resposta atempada nos hospitais levam a que muitos doentes permaneçam em situação de baixa por mais tempo do que seria necessário se tivessem acesso a um diagnóstico e tratamento céleres. A gestão ineficiente da doença, mesmo quando não grave, pode prolongar a incapacidade e acentuar a despesa.

    Comparando com o início da série estatística, a diferença é ainda mais relevante: em 1999, o número de beneficiários era de 417.486 e o montante pago ascendeu a 417,5 milhões de euros, o que corresponde a cerca de mil euros por pessoa. Ou seja, em 25 anos, o número de pessoas apoiadas duplicou e o valor pago também – um crescimento sem paralelo em outras áreas da protecção social.

  • Surpreendente: Lisboa foi o concelho com mais novos residentes nos últimos três anos

    Surpreendente: Lisboa foi o concelho com mais novos residentes nos últimos três anos

    Lisboa está a renascer — ou a gerar novos problemas. Depois de quase meio século de declínio demográfico — e de sucessivos diagnósticos que a davam como cidade em esvaziamento crónico —, o concelho da capital portuguesa voltou, com inesperada força, a crescer em população.

    Entre 2021 e 2024, Lisboa foi o município do país com maior atractividade e registou um aumento de 24.425 residentes, passando de 547.010 para 571.435 habitantes, segundo a análise do PÁGINA UM aos dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE). Nenhum outro concelho português registou um crescimento absoluto tão expressivo neste curto intervalo de três anos, o que representa, em média, mais 22 pessoas por dia — um valor ainda mais notável se considerarmos que o saldo natural de Lisboa continua fortemente negativo.

    Este dado, que à primeira vista poderá parecer auspicioso para quem defende o repovoamento das cidades, levanta, no entanto, questões prementes quanto à sustentabilidade urbana, à coerência das políticas municipais e à capacidade de resposta dos serviços públicos e das infra-estruturas.

    O crescimento abrupto ocorre num concelho cuja estratégia nas últimas décadas assentou sobretudo na promoção do turismo, na requalificação urbana orientada para o investimento imobiliário externo e numa política habitacional que, na prática, favoreceu o arrendamento de curta duração, a alienação de imóveis a estrangeiros e a gentrificação de bairros populares. A crise habitacional numa cidade em crescimento populacional, sobretudo associado à imigração pouco qualificada, tende a criar ainda mais problemas de degradação das condições de vida.

    De facto, a pressão sobre o parque habitacional intensifica-se, os transportes públicos dão sinais de saturação e os equipamentos sociais — escolas, centros de saúde, serviços municipais — revelam limitações perante esta nova realidade. Longe de ser o resultado de um plano urbanístico estruturado, este crescimento demográfico parece atropelar uma cidade que ainda não digeriu o seu passado recente como “resort urbano” de milhões de turistas.

    A título histórico, importa recordar que os números actuais de Lisboa continuam abaixo dos registados há quase um século. Nos Censos de 1930, a cidade contava com 591.939 habitantes e atingiu o seu pico em 1981, com 807.937 residentes — embora já estivesse então em curso um processo de despovoamento iniciado nos anos 60 e apenas atenuado nos anos 70 pela chegada de milhares de retornados após a descolonização. Mas essa era uma fase em que as famílias se ‘amontoavam’ em residências com poucas condições.

    Desde então, Lisboa entrou numa trajectória demográfica descendente, alimentada pela suburbanização, pelo envelhecimento demográfico e pelo êxodo da classe média para os concelhos periféricos. Os Censos de 2021 fixaram a população alfacinha em 545.796 residentes, traduzindo uma quebra acumulada de quase 33% desde 1981.

    O recente crescimento populacional de Lisboa — como o de Portugal em geral — não assenta num rejuvenescimento interno. O país continua a registar um saldo natural negativo, com mais mortes do que nascimentos. Ainda assim, entre 2021 e 2024, a população residente aumentou quase 287 mil pessoas, passando para um total de 10.694.681 habitantes, o que corresponde a um acréscimo médio de 262 pessoas por dia.

    Imigração tem sido o grande motor da recuperação demográfica de Lisboa, mas tem criado tensões sociais.

    Este crescimento deve-se, exclusivamente, ao saldo migratório, uma vez que o saldo natural continua a afundar-se. Em 2023, segundo o INE, morreram mais 33.824 pessoas do que as que nasceram, agravando o já elevado défice de 2022, que se fixara em 32.596. Ou seja, em três anos, o saldo migratório terá sido próximo das 400 mil pessoas.

    Os maiores crescimentos populacionais absolutos verificaram-se sobretudo nos municípios urbanos. A larga distância de Lisboa — com os já referidos 22 residentes adicionais por dia — surge o concelho do Porto, que, não obstante também registar um saldo natural negativo, viu a sua população crescer em 16.290 pessoas no último no triénio, o equivalente a mais 16 por dia.

    Seguem-se Sintra (mais 10 por dia), Braga, Seixal e Amadora (7), Maia (6), e depois Vila Nova de Gaia, Cascais, Matosinhos, Odivelas, Loures, Leiria, Aveiro, Valongo e Oeiras, todos com cerca de cinco novos residentes diários. Em comum, estes concelhos integram áreas metropolitanas e beneficiam de dinâmicas urbanas, oferta de emprego, habitação mais acessível ou atracção universitária.

    Abrantes foi o concelho de país que mais população perdeu no último triénio. Foto: CMA.

    Apesar da tendência de crescimento agregada, cem concelhos — quase um terço do total nacional — perderam população entre 2021 e 2024. Em termos absolutos, os maiores recuos ocorreram em Abrantes (menos 575 residentes), Felgueiras (menos 523) e Portalegre (menos 494). Também a cidade da Guarda, sede de distrito, perdeu habitantes: menos 190 face a 2021. Este decréscimo não é apenas estatístico, mas evidencia a persistência das assimetrias entre litoral e interior, bem como o falhanço das políticas de coesão territorial.

    Em termos relativos, o maior crescimento verificou-se em concelhos com forte presença de imigração laboral ligada ao sector agrícola. O caso mais extremo é o de Odemira, que viu a sua população crescer 11% em apenas três anos, passando de 30.186 para 33.495 residentes — um acréscimo de 3.309 pessoas.

    Seguem-se Sobral de Monte Agraço, no distrito de Lisboa, com uma subida de 10,7%, Óbidos e Vila Nova da Barquinha (10,5%), Arruda dos Vinhos (9,0%), Porto Santo (8,9%), Corvo (8,7%), Entroncamento e Bombarral (8,4%), Albufeira (8,1%), Oliveira do Bairro (8,0%), Benavente e Alenquer (7,9%), Lourinhã (7,4%), Ílhavo e Salvaterra de Magos (7,1%), Porto (7,0%), Vagos (6,9%) e São João da Madeira (6,8%).

    Odemira, com as suas estufas, tem atraído bastante população: cresceu 11% nos últimos três anos.

    Estes aumentos percentuais, por vezes mais discretos em números absolutos, são, ainda assim, relevantes. Assinalam novas dinâmicas locais, associadas à atracção de mão-de-obra estrangeira, a políticas de habitação menos especulativas ou à retoma económica pós-pandemia.

    Porém, muitos destes territórios não dispõem de recursos, serviços públicos nem planeamento urbanístico suficientes para absorver, com qualidade, uma população em crescimento acelerado.

  • Até com polémico ‘balão de oxigénio’ do Governo, Santa Casa da Misericórdia do Porto atinge décimo ano de prejuízos contínuos

    Até com polémico ‘balão de oxigénio’ do Governo, Santa Casa da Misericórdia do Porto atinge décimo ano de prejuízos contínuos

    Há sete anos, a Associação Portuguesa de Ética Empresarial decidiu distinguir António Tavares com uma Medalha de Mérito. O então — e ainda — presidente da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP) foi considerado um exemplo de Ética, Responsabilidade Social e Sustentabilidade. É provável que, à época, não existissem elementos suficientes que colocassem em causa a justeza da distinção no plano da ética pessoal. Porém, no campo da gestão, António Tavares — também professor na Universidade Lusófona e antigo deputado do PSD — dificilmente receberá algum dia um galardão, excepto se for um Prémio Razzie, os famosos anti-Óscares de Hollywood, aplicados ao sector da Economia.

    Com efeito, nos últimos dez anos, a SCMP — sob direcção ininterrupta de António Tavares desde 2011 — acumulou um buraco de 30,4 milhões de euros. Desde 2014 que não sabe o que é apresentar lucros. Em catorze anos de gestão, Tavares conheceu apenas dois exercícios positivos: em 2011 e em 2014.

    A cada ano, os resultados têm vindo a escavar mais fundo o fundo patrimonial da instituição: o que eram 234,8 milhões de euros em 2011 são hoje cerca de 138,5 milhões. Ou seja, o capital próprio da SCMP — para usar o jargão empresarial — emagreceu 96,3 milhões de euros sob a gestão de António Tavares, o que representa uma queda de 41%. A “sustentabilidade” — outro dos termos inscritos na distinção de 2017 — parece ter desaparecido por completo do léxico da Misericórdia do Porto.

    O ano de 2024 deveria ter sido o momento da inversão, até pela bênção do Governo de Luís Montenegro. Em Agosto do ano passado, um Conselho de Ministros autorizou um reforço de verbas para o Hospital da Prelada, propriedade da SCMP, no âmbito da criação de um Centro de Atendimento Clínico (CAC) para receber doentes não urgentes dos hospitais de São João e de Santo António.

    Por outras palavras, o Estado passou a pagar à Misericórdia do Porto para aliviar as urgências do SNS — o que, na prática, representou uma injecção directa de dinheiro numa unidade hospitalar deficitária há anos.

    De acordo com o relatório e contas de 2024, analisado pelo PÁGINA UM, este reforço de financiamento especificamente dirigido ao Hospital da Prelada foi substancial. Se em 2023 esta unidade hospitalar teve receitas de vendas e prestações de serviços de 34,1 milhões de euros, em 2024 essa rubrica subiu para quase 38,7 milhões — ou seja, um aumento de quase 14%. Teria servido, em teoria, para “limpar” a instituição de uma linha contínua de prejuízos.

    Mas não deu, porque as despesas também aumentaram. E há sobretudo um departamento, denominado Serviços Partilhados, que insiste em apresentar mais de quatro milhões de euros de prejuízos anuais. Em suma, o “balão de oxigénio” concedido pelo Governo de Luís Montenegro — de cerca de 4,6 milhões de euros — serviu apenas para reduzir o prejuízo global em cerca de 1,5 milhões de euros.

    Curiosamente, no mesmo dia em que o Diário da República oficializava o reforço de verbas para o Hospital da Prelada, o primeiro-ministro Luís Montenegro encontrava-se a gozar férias no Brasil, numa casa pertencente a Eurico Castro Alves — o coordenador da task force do Plano de Emergência da Saúde (autor do modelo dos CAC) e, até há poucos meses, membro suplente da Mesa Administrativa da SCMP.

    Membros da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia com ‘obra feita’: 10 anos de prejuízos consecutivos.

    Não é apenas António Tavares e Eurico Castro Alves que mantêm ligações ao PSD. Manuel Pinto Teixeira, membro efectivo da Mesa Administrativa da SCMP e antigo chefe de gabinete de Rui Rio na Câmara Municipal do Porto, também aparenta ter bom trânsito entre os sociais-democratas.

    O relatório e contas de 2023 associa-o directamente à tutela do Hospital da Prelada. Entre Julho de 2020 e Julho de 2022, Pinto Teixeira integrou a Comissão Política Nacional do PSD — onde se sentava ao lado de Ana Paula Martins (actual ministra da Saúde) e de Joaquim Miranda Sarmento (actual ministro das Finanças). A proximidade é de tal ordem que, mesmo em tempos de contenção orçamental, se arranja sempre dinheiro para os amigos do Porto.

    Não há memória recente de qualquer medida de reestruturação significativa na Misericórdia do Porto. Pelo contrário: os gastos com fornecedores e serviços externos continuam a subir. Em 2011, ascendiam a 13,2 milhões de euros; em 2023, já ultrapassavam os 19,5 milhões; e, no ano passado, subiram para 21,6 milhões de euros.

    Também os gastos com pessoal aumentaram: entre 2023 e 2024, o acréscimo foi de 7,1%, passando de 34 milhões para quase 36,5 milhões de euros. O salário médio dos 1.261 trabalhadores da SCMP é de 2.065 euros mensais, calculado em catorze meses. A SCMP, tal como uma empresa pública em fim de ciclo, mantém a estrutura e o esbanjamento — na expectativa de que o Estado a venha salvar no fim.

    Hospital da Prelada, um sorvedouro de dinheiros públicos, mas que nem assim faz a SCMP sair do ‘vermelho’.

    Saliente-se que, ao contrário da sua congénere lisboeta, a SCMP não tem receitas provenientes dos jogos. Vive, por isso, exclusivamente da sua actividade empresarial e de acordos com o Estado. Entre 2008 e 2023, o Ministério da Saúde transferiu cerca de 500 milhões de euros para a Misericórdia do Porto. Só no último quinquénio, foram aproximadamente 160 milhões. Mas, nem assim, a SCMP conseguiu apresentar lucros.

    O PÁGINA UM contactou a SCMP para obter comentários sobre a situação financeira da instituição, bem como para saber se António Tavares considera manter condições para continuar em funções após o décimo ano consecutivo de prejuízos. A resposta foi lacónica: “Não nos será possível enviar as respostas solicitadas no prazo definido, uma vez que, por motivos de agenda, não foi possível obter em tempo útil os contributos necessários para o efeito.”

  • Lisboa tem uma dezena de mesquitas (em condições precárias)

    Lisboa tem uma dezena de mesquitas (em condições precárias)

    Fez lembrar um slogan pós-25 de Abril sobre soldado para África, mas deturpado com um leve travo identitário excludente (use-se o eufemismo, que não quiser usar a palavra xenófobo): “Nem mais uma mesquita em solo português.”

    A frase, lançada pelo líder do Chega, André Ventura, surgiu como reacção à polémica provocada por uma recomendação aprovada na 8.ª Comissão Permanente da Assembleia Municipal de Lisboa — com votos do PS, Bloco de Esquerda, Livre e PAN — sugerindo à autarquia encontrar um local adequado para a construção de uma mesquita no eixo da Avenida Almirante Reis, entre o Martim Moniz e a Alameda. Uma recomendação, recorde-se, não é uma deliberação vinculativa. Mas bastou para incendiar o habitual discurso político identitário do Chega, porque o seu representante absteve-se.

    Mesquita informal na Rua Alves Torgo, na zona da Praça do Chile.

    E, no entanto, se muitos lisboetas pensam que a capital tem apenas uma mesquita — a Mesquita Central de Lisboa, situada na zona de Sete Rios —, a realidade é bem mais difusa. Em Lisboa, existem formalmente 11 locais de culto islâmico, embora a maioria funcione em condições precárias, improvisadas em antigas lojas ou apartamentos devolutos.

    Aliás, um destes locais, situado na Rua Maria Andrade, na zona dos Anjos, foi encerrado pela Câmara Municipal de Lisboa em Janeiro deste ano, por questões de segurança, por estar defronte à linha do eléctrico 28. O espaço — que acolhia a Associação Cultural Pontos & Capítulos e dispunha de uma ampla sala de oração — era frequentado por uma comunidade significativa. Encerrado sem alternativa, deixou mais uma vez a nu a escassez de condições de dignidade para o culto islâmico.

    Exceptuando a Mesquita Central — um edifício construído com apoio de fundos estrangeiros, e inaugurado em 1985 —, os restantes locais de culto são soluções transitórias, improvisadas em espaços exíguos e por vezes pouco seguros. Entre os mais movimentados destacam-se dois na zona do Martim Moniz e da Rua do Benformoso: a Jam-e-Masjid (“Mesquita Congregacional”, em urdu), situada na Rua do Terreirinho; e a Baitul Mukarram Masjid (“Mesquita da Casa Bendita”), na Calçada Agostinho de Carvalho, que acolhe também o Centro Islâmico do Bangladesh.

    Mesquita na Rua Maria Andrade foi encerrada pela autarquia de Lisboa em Janeiro deste ano.

    Na Graça, mais precisamente na Travessa da Senhora da Glória, funciona o Baitur Rahman Jame Masjid (“Mesquita da Misericórdia de Deus”), instalado no rés-do-chão de um prédio de habitação, sem qualquer sinalização exterior visível.

    Do outro lado da colina, na zona dos Anjos, próximo do Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes, localiza-se outro espaço de culto, discreto e modesto, na Rua da Palmira. Pelas imagens disponíveis online, percebe-se que o interior é apertado, cabendo talvez uma centena de fiéis

    Mais acima, junto ao Banco de Portugal, na Avenida Almirante Reis, ergue-se um edifício algo singular. No número 20 da Rua Passos Manuel, num prédio que alberga também um espaço da Junta de Freguesia de Arroios, está indicado o funcionamento de mais uma mesquita.

    No entanto, o espaço situa-se numa cave, acedida por uma porta lateral. O PÁGINA UM visitou o local e encontrou um espaço desarrumado, com objectos pessoais, mas sem presença de fiéis. Poderá funcionar como mesquita, como dormitório improvisado — ou ambos.

    Subindo até às imediações da Praça de Chile, surge talvez o espaço de maiores dimensões, pelo menos à primeira vista: o Masjid Baitur Rahim (“Mesquita da Casa do Clemente”) na Rua Alves Torgo, acolhe dezenas de fiéis mesmo a meio da tarde, como pôde constatar o Página Um. Já na Rua Quirino da Fonseca, na zona da Alameda, situa-se a Alameda Jame Masjid, outra mesquita reconhecida pela comunidade muçulmana e instalada numa área residencial, sem sinalização exterior que denuncie a sua função.

    Espaço referido como sendo uma mesquita na Rua Passos Manuel.

    Além destas, existem em Lisboa mais duas mesquitas: uma na Portela e outra na zona das Galinheiras. Na Amadora conseguiu-se identificar pelo menos três em funcionamento. De acordo com o Instituto Halal de Portugal estão identificadas 54 mesquitas e outros locais de culto em território nacional.

    A verdade é que este tipo de soluções — espaços improvisados em prédios residenciais, garagens ou antigas lojas — não é exclusivo da religião islâmica. Outras comunidades religiosas, com menor implantação histórica em Portugal, seguem caminhos semelhantes, sobretudo nas grandes áreas urbanas. E nenhuma é tão profusa nesse modelo como a miríade de igrejas evangélicas que têm proliferado em Lisboa nas últimas décadas.

    Tal como acontece com os locais de culto islâmico, também a proliferação de igrejas evangélicas em Lisboa segue uma lógica de improvisação e ocupação de espaços originalmente não destinados à prática religiosa. O PÁGINA UM identificou mais de quatro dezenas de igrejas evangélicas activas na cidade, muitas das quais instaladas em antigas lojas, garagens, andares residenciais ou edifícios de escritórios.

    Na zona da Rua do Benformoso existem duas mesquitas mas em condições precárias.

    A maior parte destas comunidades tem origem no Brasil, embora algumas provenham dos Estados Unidos, da China e até do Nepal. A diversidade de nomes reflecte uma pulverização denominacional — Baptistas, Pentecostais, Assembleia de Deus, Igreja Cristã Maranata, entre outras — mas a realidade urbana é semelhante: a religião instala-se onde pode, não onde deve. Exemplo disso é a Assembleia de Deus Paço de Jacó, situada num quinto andar de um prédio de escritórios junto à Praça do Chile, onde no primeiro piso funciona a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa.

    Noutras zonas da cidade, igrejas como a Embaixada Cristã Portugal, a Cidade de Refúgio Lisboa, a Igreja Batista Renovada ou a Igreja Pentecostal Deus é Amor adaptaram lojas devolutas, espaços comerciais desactivados ou pisos de edifícios mistos, partilhando muitas vezes o quarteirão com cafés, cabeleireiros ou pequenas mercearias. A United Nepali Christina Church Portugal é outro caso curioso: situa-se numa antiga loja defronte à igreja Católica da Nossa Senhora do Resgate, nos Anjos.

    Igrejas evangélicas pululam por Lisboa ocupando espaços de antigas lojas. Hámais de quatro dezenas.

    Nomes como Igreja Verbo da Vida, Igreja Cristã Internacional, Igreja dos Santos Doze Apóstolos e da Sua Rainha ou Terceira Igreja Evangélica Baptista de Lisboa confirmam a vitalidade destas comunidades, mas também a ausência de uma política urbana coerente que permita o seu enraizamento em condições dignas.

    O fenómeno não é exclusivo da fé evangélica, mas nesta atinge uma expressão visível: igrejas em série, dissimuladas entre as montras comerciais da cidade, quase sempre sem placa nem fachada. A fé, aqui, vive de improviso — e reza entre paredes alugadas.

  • Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

    Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

    No espaço de apenas um mês, foram divulgados dois conjuntos de informação que, apesar de não terem merecido uma única manchete nos jornais do regime, encerram uma tragédia silenciosa com implicações gravíssimas para a política de saúde pública e o ordenamento do território.

    Com poucas semanas de intervalo, o INE publicou, por um lado, os tempos medianos (no sentido de abranger 50% da população) no acesso em automóvel ligeiro ao hospital com urgência mais próximo, e, por outro, as taxas de mortalidade por doenças do aparelho circulatório (que por simplificação se denominará por doenças cardiovasculares), ambas discriminadas por concelho. São, ao todo, os 308 concelhos de Portugal.

    Patient in hospital bed with heart monitor showing blood pressure and heart rate.

    À primeira vista, parecem variáveis inconciliáveis — como quase tudo o que se publica com etiquetas burocráticas. A mortalidade cardiovascular, dirão os especialistas, depende de múltiplos factores: grau de envelhecimento da população, prevalência de diabetes, hipertensão, obesidade, estilos de vida, hábitos alimentares, níveis de pobreza, isolamento, rede de cuidados primários, acesso a medicamentos.

    Tudo verdade. Mas o PÁGINA UM colocou uma questão que parece, à partida, ingénua ou até simplista: e a distância até à urgência hospitalar — só por si — será um factor determinante, ou sequer relevante, para as variações da mortalidade por doenças do aparelho circulatório?

    A resposta estatística é directa e inegável: sim. E o que se segue é a demonstração dessa evidência — sem alarme gratuito, mas com o peso sereno dos números. Recorrendo aos dados disponíveis, o PÁGINA UM cruzou as duas variáveis — tempo de acesso às urgências por veículo para 50% da população (2.º quartil) e taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — e construiu um modelo de regressão linear simples.

    Distribuição do tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório nos concelhos portugueses. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O resultado pode surpreendeu até os mais cépticos: a correlação (de Spearman) é estatisticamente significativa e robusta (ρ = 0,60), indicando uma associação moderadamente forte entre as variáveis, mesmo sem pressupor linearidade. E com outro modelo estatístico — o de regressão por mínimos quadrados — constata-se que o tempo mediano de acesso à urgência explica, isoladamente, 30,5% da variabilidade das taxas de mortalidade entre concelhos.

    Trata-se de um valor elevado, sobretudo tratando-se de um modelo univariado — ou seja, sem controlar factores como idade, rendimento ou prevalência de doenças crónicas. Em estudos populacionais, raramente uma única variável explica tamanha parte da variação. Este resultado revela, por si só, a força preditiva da distância até ao hospital.

    Traduzido em linguagem comum: a Estatística comprova que, quanto mais longe está o hospital com urgência, maior tende a ser a taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares — como enfartes do miocárdio, tromboses ou acidentes vasculares cerebrais (AVC). E esta relação não é simbólica: é mensurável. Na prática, o modelo do PÁGINA UM mostra que cada minuto adicional no tempo de acesso está associado a um aumento médio de 0,053 mortes por mil habitantes por ano. Ou noutra perspectiva, mesmo se de forma simplista, cada minuto a mais na chegada à urgência ceifa 567 vidas por ano em Portugal.

    Mas se isto ainda parece uma visão abstracta, passemos ao concreto. Aplicando a taxa de agravamento calculada pelo modelo, é possível estimar o impacto dessa diferença em diversos cenários.

    Por exemplo, se todo o país tivesse tempos de acesso às urgências semelhantes aos da Grande Lisboa — cerca de 7,6 minutos —, a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório desceria de 2,8‰ para 2,53‰, evitando-se cerca de 2.900 mortes por ano. Pelo contrário, se os tempos se agravassem para os valores médios da Beira Baixa (29,7 minutos) ou do Baixo Alentejo (35,2 minutos), essa taxa subiria para 3,70‰ e 3,99‰, o que significaria mais 9.600 e 12.700 mortes anuais, respectivamente.

    Com efeito, os valores tornam-se ainda mais expressivos quando se observam as desigualdades territoriais. Muitos concelhos com elevadas taxas de mortalidade cardiovascular são aqueles onde o tempo mediano de acesso às urgências ultrapassa largamente os 30 minutos, em alguns casos mais de uma hora. De entre os 94 concelhos com taxas de mortalidade 50% acima da média nacional — ou seja, com taxa superior a 4,2‰ —, 53 têm tempos medianos de mais de 30 minutos. Ou seja, quase seis em cada 10 concelhos (56%) com taxas de mortalidade elevada para este tipo de doenças súbitas têm grande parte da sua população a mais de 30 minutos de uma urgência.

    brown concrete houses on mountain
    Viver numa aldeia pode ser paradisíaco, mas fatal em caso de doenças súbitas.

    Estes concelhos dispersam-se sobretudo entre o Alentejo profundo, as serranias do Centro, os vales raianos e as franjas da Madeira, e merecem destaque: Penalva do Castelo, Castro Daire, Montemor-o-Novo, Vila de Rei, Sátão, Resende, Portel, Redondo, Sertã, Estremoz, Nisa, Aljezur, Aljustrel, Gavião, Fornos de Algodres, Alvito, Manteigas, Arganil, Santana, Castro Verde, Vila Nova de Paiva, Almeida, Sabugal, São Pedro do Sul, Vieira do Minho, Vinhais, Coruche, Proença-a-Nova, Penamacor, Serpa, Idanha-a-Nova, Alandroal, Góis, Vimioso, Avis, Sousel, Oleiros, Porto Moniz, Monção, Ourique, Aguiar da Beira, Montalegre, Mêda, Mértola, Pampilhosa da Serra, Mora, Moura, Mogadouro, Sernancelhe, Figueira de Castelo Rodrigo, Alcoutim, Melgaço e Freixo de Espada à Cinta

    Têm em comum o mesmo fardo estrutural: o afastamento dos equipamentos de saúde. Mas o problema não é exclusivo de aldeias esquecidas. Mesmo concelhos de média dimensão — como Castelo Branco, Viseu, Évora, ou zonas periféricas de Coimbra e Leiria — enfrentam tempos medianos de acesso superiores a 30 minutos. A dispersão populacional, a escassez de serviços de atendimento permanente e o desinvestimento em redes viárias e extensões hospitalares contribuem para essa penalização.

    Em sentido inverso, a análise aos 63 concelhos com tempo de acesso inferior a 10 minutos confirma o efeito protector da proximidade: apenas 21 ultrapassam a média nacional de mortalidade (2,8‰), e destes só três — Elvas, Beja e Abrantes — apresentam taxas de mortalidade 50% acima da média nacional, ou seja, mais de 4,2‰. Ou seja, estes casos isolados não invalidam a tendência dominante.

    Silhouette of a person with a glowing red neon heart in the dark, symbolizing love.

    E essa tendência é ainda mais clara nos grandes centros urbanos. Lisboa com 4,3 minutos de distância mediana até ás urgências regista 3,1‰ de taxa de mortalidade é a excepção, embora seja um concelho bastante envelhecido (quase um quarto da população tem mais de 65 anos), o que permite aferir o desastre que seria se os tempos fossem maiores.

    De resto, todas as principais cidades estão abaixo da taxa de mortalidade e abaixo da média do tempo mediano: Porto (5,5 min), 2,7‰; Oeiras (6,0 min), 2,6‰; Coimbra (6,6 min), 2,5‰; Cascais (7,1 min), 2,6‰; e Vila Nova de Gaia (7,2 min), apenas 2,1‰. Mesmo com uma população envelhecida e elevada carga de doenças crónicas, estes concelhos têm mortalidade cardiovascular bastante abaixo da média nacional. A explicação é simples: chegam ao hospital mais cedo — muitas vezes, a tempo de serem salvos.

    Num país que se gaba de ter um Serviço Nacional de Saúde universal e igualitário, a geografia continua a ser um factor de desigualdade brutal. Viver em Alvito, Nisa ou Montalegre não devia ser, por si só, uma ameaça cardiovascular. Mas é. E essa ameaça não decorre apenas de heranças do passado: resulta de opções políticas recentes, de centralizações disfarçadas de modernização e de cortes orçamentais que não chegam à opinião pública, mas chegam às portas fechadas dos centros de saúde.

    black sand

    A distância, neste caso, mata. Mata com estradas estreitas, com ambulâncias em falta, com urgências encerradas, com extensões sem capacidade de estabilização. Mata com o silêncio estatístico da negligência. Mas os números não mentem. Nem se comovem. Apenas revelam.

    E estes apenas pelo PÁGINA UM servem para apelar para a necessidade análises estatísticas mais rigorosas e modelos mais refinados, de modo a se conseguir isolar outros factores determinantes da mortalidade, permitindo identificar com precisão onde as desigualdades são mais profundas e como podem ser eficazmente combatidas. Porque saúde pública não se faz apenas despejando dinheiro em medidas genéricas ou politicamente vistosas — faz-se, antes de tudo, com estudo, método e sabedoria na aplicação dos recursos.

    ***

    N.D. Os resultados apresentados neste artigo — com destaque para a associação estatisticamente significativa entre o tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — assentam em modelos estatísticos simples e transparentes, construídos a partir de dados oficiais. No entanto, cumpre assinalar que se trata de um modelo univariado, ou seja, não ajustado para outros factores relevantes como o envelhecimento demográfico, a prevalência de doenças crónicas, a distribuição dos cuidados de saúde primários ou os níveis socioeconómicos locais.

    Neste sentido, a associação estatística identificada não deve ser confundida com uma prova de causalidade directa, embora a evidência científica internacional reconheça, de forma robusta, que a rapidez no acesso a cuidados médicos especializados é determinante na sobrevivência em situações de doença súbita, como enfartes agudos do miocárdio ou acidentes vasculares cerebrais.

    O objectivo desta análise foi, por isso, identificar padrões territoriais de risco que justificam estudos mais aprofundados, com modelos multivariados e abordagens geoestruturais, permitindo orientar a política pública com base em evidência e não apenas em pressupostos administrativos ou igualitarismos abstractos.

  • Estados Unidos: 199 mortes por relâmpagos numa década não dá para brincar

    Estados Unidos: 199 mortes por relâmpagos numa década não dá para brincar

    Pela segunda vez, um jogo do Benfica no Mundial de Clubes foi interrompido nos Estados Unidos devido à aproximação de uma trovoada. Depois da suspensão por cerca de duas horas ao intervalo da partida frente ao Auckland City, em Orlando, na Florida, foi agora o encontro de ontem frente ao Chelsea, disputado no Bank of America Stadium, em Charlotte, na Carolina do Norte, a ser interrompido — desta feita ao minuto 85 — e apenas retomado duas horas depois. O jogo, que acabou com a derrota do Benfica por 4-1, começou pelas 21h00 deste sábado e só acabou perto da 1h40 desta madrugada, hora de Lisboa, depois de um prolongamento..

    Tratou-se já do sétimo jogo suspenso por motivos idênticos nesta edição da competição. À primeira vista, sob uma perspectiva mediterrânica ou europeia, a ideia de interromper partidas por “relâmpagos ao longe” pode parecer um exagero ou uma excentricidade legal típica dos Estados Unidos. No entanto, este tipo de decisão – prática comum e tecnicamente obrigatória – está sustentada por dados meteorológicos e regras de segurança apertadas. O motivo é simples: nos Estados Unidos, os relâmpagos matam — e com frequência. Entre 2015 e 2024, segundo dados oficiais da NOAA – National Oceanic and Atmospheric Administration, morreram 199 pessoas nos EUA vítimas de descargas atmosféricas, num total de incidentes que atingiram quase todos os estados.

    lightning wallpaper

    A Carolina do Norte, palco da partida entre Benfica e Chelsea, surge em quarto lugar no ranking nacional, com 11 mortes por relâmpago durante esse período. Já a Florida, onde o Benfica enfrentara o Auckland dias antes, lidera de forma destacada, com 50 mortes em dez anos. Seguem-se o Texas (20 mortes) e o Alabama (15 mortes), estados do sul norte-americano com clima quente e húmido, onde o número de dias com trovoadas por ano ultrapassa largamente a média europeia. Surgem depois os estados da Carolina do Norte (11), Colorado (8), Nova Iorque (7), Pensilvânia (7) e Missouri (6). Mesmo estados considerados menos propensos, como a Louisiana, Ohio, Arizona ou Califórnia, registaram 4 a 5 mortes cada.

    Este risco não é apenas estatístico, mas também operacional. Por isso, em solo americano, qualquer sinal de trovoada nas imediações — mesmo sem chuva, vento ou relâmpagos visíveis — activa os protocolos de emergência. A chamada regra dos “30-30” estabelece que, se o tempo entre o avistamento de um relâmpago e o som do trovão for inferior a 30 segundos, todos os eventos ao ar livre devem ser imediatamente suspensos. A retoma só é autorizada 30 minutos após o último trovão audível.

    Estas regras aplicam-se de forma transversal: desde os campeonatos escolares e universitários até às grandes competições internacionais. E mais: nos estádios, a decisão não depende dos árbitros nem dos treinadores — cabe às autoridades meteorológicas locais ou aos oficiais de segurança, que dispõem de sistemas de monitorização em tempo real.

    Situação meteorológica em redor do Bank of America Stadium, em Charlotte, obrigou à suspensão do jogo entre Benfica e Chelsea deste sábado (que se prolongou por domingo).

    Em Portugal, o risco de trovoadas é muito inferior, e a cultura de prevenção quase inexistente. O número de mortes por relâmpago é muito baixo — menos de uma por ano, em média, e quase sempre em contextos agrícolas, montanhosos ou isolados. Nessa medida, não existe qualquer regulamentação específica para a suspensão de jogos devido a trovoadas, nem protocolos operacionais em eventos desportivos. Por isso, quando os adeptos portugueses vêem um jogo suspenso por “relâmpagos invisíveis”, a reacção instintiva é de espanto, quando não de troça.

    Nos Estados Unidos, a maioria das vítimas são homens, entre os 15 e os 45 anos, envolvidos em actividades ao ar livre: pesca, golfe, caminhadas, trabalhos agrícolas ou desportos. Mas também se registam mortes em eventos escolares e recreativos, incluindo treinos de futebol ou atletismo. Em muitos casos, a vítima não é atingida directamente, mas sim por correntes de solo, que podem propagar-se a dezenas de metros a partir do ponto de impacto, especialmente em terrenos húmidos ou em contacto com estruturas metálicas.

    A ideia de que a ausência de chuva torna o ambiente seguro é, de facto, um mito perigoso. A maior parte dos acidentes fatais ocorre antes da chegada da chuva, durante a chamada “fase seca” da trovoada. Os relâmpagos podem atingir o solo até 15 quilómetros de distância da ‘nuvem-mãe’, o que justifica o elevado nível de alerta meteorológico nos Estados Unidos.

    Interrupções por razões meteorológicas não depende das decisões dos árbitros.

    Por isso, aquilo que para muitos portugueses pareceu um excesso, ou um exagero americano, é, na verdade, o resultado de décadas de experiência, investigação científica e centenas de mortes que moldaram a política de prevenção. “When thunder roars, go indoors” — quando se ouve trovão, procurar abrigo — é mais do que um slogan: é uma medida que salva vidas. E, num país que regista quase 200 mortes por década, não há espaço para facilitismos.

    A suspensão dos jogos do Benfica — primeiro em Orlando, depois em Charlotte — deve, assim, ser entendida como o reflexo de um modelo de segurança pública que prefere adiar o espectáculo em vez de acelerar funerais. Um modelo que, apesar de estranho para os portugueses, tem um mérito inquestionável: reconhecer que nem sempre é o que se vê que mata — mas sim aquilo que se desvaloriza.

  • CMTV arrisca multa de 150 mil euros por ‘vender’ Lidl e aparelhos de audição

    CMTV arrisca multa de 150 mil euros por ‘vender’ Lidl e aparelhos de audição

    A fronteira entre informação, entretenimento e publicidade continua perigosamente diluída na grelha da CMTV, canal detido pela Medialivre – grupo de comunicação social com Cristiano Ronaldo entre os seus accionistas de referência. E, desta vez, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu não ficar indiferente: após analisar uma emissão do programa Manhã CM, transmitida em directo no passado dia 3 de Março, instaurou um processo de contra-ordenação por violação grave da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido (LTSAP).

    Em causa está a promoção encapotada da inauguração de um supermercado Lidl em Odivelas, sem qualquer aviso aos telespectadores de que se tratava de conteúdo publicitário. A coima prevista poderá atingir os 150 mil euros, conforme estipulado pela legislação aplicável.

    Num estilo de reportagem jornalística, a CMTV nem avisou os telespectadores de que se tratava de publicidade. A ‘brincadeira’, se a lei se aplicar com rigor, pode custar-lhe 150 mil euros.

    A rapidez da deliberação – cerca de um mês – é invulgar e revela a gravidade atribuída pela ERC à infracção. No documento a que o PÁGINA UM teve acesso, a entidade reguladora descreve em detalhe a forma como a CMTV transformou um suposto momento de entretenimento matinal numa acção promocional descarada. Em directo do novo espaço comercial, uma apresentadora do canal, com pose de jornalista, exaltou o local como “um espaço moderno, totalmente renovado”, afirmando ainda que “esta loja conta com um investimento de nove milhões de euros (…). Já sabe que é aqui que pode encontrar a melhor qualidade ao melhor preço”.

    Durante a emissão, a apresentadora entrevistou clientes visivelmente seleccionados, cujos testemunhos reforçavam o tom publicitário: “Está muito bem, está muito grande e com muita variedade de produtos”. As imagens mostravam o interior da loja, produtos nas prateleiras e respectivos preços, acompanhadas de mensagens no ecrã como “Lidl Portugal”, “Nova loja em Odivelas”, “Frutas e legumes sempre frescos” e “Investimento de 9 milhões de euros”.

    O programa não se ficou por aí. Pouco depois, foram exibidas imagens de um aparelho de audição da marca Philips, que ocupava cerca de metade do ecrã, com a legenda: “Audição com estilo? Sim, é possível”. Em momento algum foi identificado que se tratava de publicidade, colocação de produto ou ajuda à produção – exigências legais obrigatórias.

    A inauguração do Lidl de Odivelas em Março deste ano está ainda no medialivre Boost Solution, dedicado a publicidade, mas a emissão não avisou que era publicidade e ‘deu ares’ de se tratar de uma peça jornalística.

    A análise da ERC é taxativa: as referências exibidas tinham inequívoco carácter promocional, utilizavam linguagem elogiosa e destacavam vantagens comerciais. Mais grave ainda, essas inserções ocorreram sem qualquer enquadramento legal. O regulador recorda que a publicidade televisiva deve ser “facilmente identificável como tal e claramente separada da restante programação”. E sublinha que a colocação de produto “não pode influenciar os conteúdos e a sua organização na grelha de programas (…) de modo que afecte a responsabilidade e a independência editorial do operador de televisão”.

    Apesar da possível coima, o episódio parece antes indicar uma prática reiterada da Medialivre, que, sob pretextos informativos ou lúdicos, tem acumulado casos de ilegalidade e promiscuidade. Ainda recentemente, o PÁGINA UM revelou que, sob o disfarce de um ciclo de debates intitulado “Uma Cidade para Todos”, a Câmara Municipal de Lisboa pagou 147.600 euros à Medialivre por “serviços” que incluíram a presença do próprio director editorial do grupo, Carlos Rodrigues.

    A jornalista Daniela Polónia desempenhou o papel de ‘mestre-de-cerimónias’ e o jornalista João Ferreira assumiu funções de moderador contratualizado, num evento que não contou com qualquer representante da oposição a Carlos Moedas.

    Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV, na conferência paga pela Câmara Municipal de Lisboa á sua empregadora, a Medialivre. A jornalista Daniela Polónia, ao seu lado, foi a ‘mestre-de-cerimónias’: eis as novas funções, cada vez mais banalizadas, de jornalistas num mercado em que os reguladores tudo permitem.

    No ano passado, a ERC instaurou igualmente um processo de contra-ordenação à Medialivre por uma campanha de autopromoção do Correio da Manhã disfarçada de reportagem jornalística. O episódio decorreu numa papelaria e foi protagonizado por uma jornalista estagiária, em violação flagrante das normas editoriais, onde se falava de cupões de desconto.

    Ainda mais grave foi, em 2023, a celebração de 11 contratos com autarquias para as comemorações dos 10 anos da CMTV. Neste caso, o canal por cabo da Medialivre recebeu mais de 200 mil euros para promover municípios em programas de entretenimento e informação. A troco de valores entre os 20 mil e os 25 mil euros, as autarquias puderam indicar locais e pessoas a entrevistar – incluindo os próprios autarcas –, e até foram definidos os horários dos blocos noticiosos, como previsto nos cadernos de encargos consultados pelo PÁGINA UM. Nessas emissões, o jornalista Francisco Penim, ex-director de programas da SIC e também da CMTV, conduziu os programas, acompanhado da jornalista Sofia Piçarra. Nenhuma sanção conhecida foi aplicada a estas promiscuidades por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ).

    Em 2023, os jornalistas Sofia Piçarra e Francisco Penim foram os mestre-de-cerimónias de 10 emissões pagas por autarquias, elogiando os concelhos e entrevistando autarcas e outras pessoas indicadas pelas Câmaras Municipais, que pagaram os programas de informação, onde ficaram explicitadas as horas dos directos. A ERC e a CCPJ ainda não tomaram decisões definitivas sobre estas promiscuidades que descredibilizam o jornalismo.

    O exemplo mais extremo de promiscuidade registou-se no programa informativo Falar Global, onde o então jornalista Reginaldo Rodrigues de Almeida promovia entidades que, simultaneamente, contratavam os seus serviços através da empresa Kind of Magic. O conflito de interesses era total: jornalistas a fazerem contratos privados com fontes de informação para lhes dar visibilidade num espaço supostamente editorial.

    A reincidência é, pois, notória. Mas o verdadeiro problema reside sobretudo na complacência institucional: mesmo perante actos reiterados de promiscuidade e publicidade disfarçada, as sanções concretas tardam – o que, na prática, legitima o jornalismo vendido ao melhor patrocinador. Com efeito, nenhum dos referidos processos de contra-ordenação à Medialivre, levantados ainda sob liderança de Sebastião Póvoas, foram concluídos pelo Conselho Regulador da ERC agora liderado por Helena Sousa.

  • Distância às urgências: há quem demore menos de dois minutos; e outros mais de hora e meia

    Distância às urgências: há quem demore menos de dois minutos; e outros mais de hora e meia

    Há números que desmentem de forma irrefutável o discurso político da coesão territorial. E o acesso aos serviços de urgência, através do tempo gasto entre a residência e o hospital mais próximo, é um dos mais eloquentes. Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados este mês e relativos ao ano de 2022, um quarto da população portuguesa demora mais de 21,5 minutos de automóvel ligeiro a chegar ao hospital com urgência mais próximo. A mediana nacional, que representa o tempo abaixo do qual está metade da população, situa-se nos 12,7 minutos.

    Mas estes valores médios são como o caso do frango comido por uma só pessoa, enquanto outra passa fome, porque, de forma enganosa, a Estatística diz que cada uma comeu meio frango. De facto, os valores nacionais na rapidez de acesso às urgências escondem realidades profundamente assimétricas entre regiões, distritos e concelhos. Por exemplo, considerando o tempo mediano de 12,7 minutos, na verdade há 87 concelhos em que esse tempo é inferior, mas 222 municípios onde é superior; em alguns casos mais de cinco vezes superior.

    red vehicle in timelapse photography

    Nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, a resposta hospitalar está à distância de um curto passeio de carro. Em Lisboa, por exemplo, a mediana é de apenas 4,3 minutos, enquanto no Porto é de 5,5 minutos. Ou seja, metade da população destes concelhos demorava, no máximo, esse tempo para chegar a uma urgência hospitalar.

    Um total de 11 municípios apresentava tempos inferiores a 5 minutos de distância para metade da população: Amadora e Barreiro (4,8 minutos), Lisboa, Elvas e Lagoa, nos Açores (4,3), Espinho (4,2), São João da Madeira (3,7), São Brás de Alportel (3,5) e Sines (2,7). Este concelho alentejano é, aliás, aquele que melhor situação apresenta a nível nacional, uma vez que somente 25% da população gasta mais de 4,2 minutos para chegar à urgência hospitalar. Esse indicador é mesmo melhor do que o de Lisboa, já que este tempo diz respeito ao terceiro quartil.

    Em contraste, em muitas regiões de concelhos mais rurais e de baixa densidade populacional, particularmente no interior Norte, Centro e Sul do país, as distâncias para as urgências hospitalares tornam-se obstáculos que podem ser fatais.

    person lying on bed and another person standing

    A região do Alentejo apresenta o quadro mais grave. A mediana de acesso é de 30,6 minutos, e 25% da população demora mais de 40,5 minutos a alcançar cuidados urgentes. Este cenário estende-se ao interior Centro — sobretudo nas Beiras e na Serra da Estrela — e a vários concelhos da região Norte oriental.

    O problema agudiza-se ao nível concelhio. Um total de 15 concelhos portugueses regista tempos medianos superiores a 45 minutos, o que significa que metade da população nesses territórios está a mais de 45 minutos de um hospital com urgência. São os casos de Barrancos (distrito de Beja), Freixo de Espada à Cinta (Bragança), Miranda do Douro (Bragança), Moura (Beja), Pampilhosa da Serra (Coimbra), Odemira (Beja), Mértola (Beja), Ourique (Beja), Mogadouro (Bragança), Alcoutim (Faro), Figueira de Castelo Rodrigo (Guarda), São João da Pesqueira (Viseu), Penedono (Viseu), Sernancelhe (Viseu) e Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

    Estes territórios, localizados em regiões de fraca densidade populacional e débil investimento público, representam zonas de alto risco em termos de equidade no acesso à saúde. Mas o retrato é ainda mais inquietante quando se analisa o terceiro quartil (Q3), que indica o ponto abaixo do qual se encontra 75% da população. Em dez concelhos, pelo menos 25% da população vive a mais de uma hora de um hospital com urgência. São os casos de Barrancos (Beja), Freixo de Espada à Cinta (Bragança), Miranda do Douro (Bragança), Moura (Beja), Mogadouro (Bragança), Alcoutim (Faro), Figueira de Castelo Rodrigo (Guarda), Penedono (Viseu), Sernancelhe (Viseu) e Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

    No caso de Barrancos, o cenário é extremo: toda a população demora cerca de 90 minutos para chegar a uma urgência. Nos concelhos de Freixo de Espada à Cinta, Miranda do Douro e Melgaço, mais de 75% da população demora uma hora a chegar às urgências. Com tempos entre 45 minutos e uma hora estão ainda mais de 75% da população dos concelhos de Alcoutim (58,6 minutos), Penedono (57,8), Figueira de Castelo Rodrigo (57,2), Sernancelhe (56,3), São João da Pesqueira (52,2), Vila Nova de Foz Côa (51,7), Mogadouro (49), Odemira (44), Moura (47,5), Mora (51,1), Pampilhosa da Serra (44,7), Mourão (51,3), Mértola (45), Mêda (48,6), Montalegre (40,8), Aguiar da Beira (47,9), Ourique (46,1), Monção (45,7), Porto Moniz (41,8), Oleiros (44,7), Sousel (44,4) e Almodôvar (45,8).

    Apesar de este ser um indicador pouco relevado quando se analisam as políticas de saúde pública — e sobretudo a expectativa de vida em função da residência —, estas discrepâncias colocam em causa o princípio constitucional da igualdade de acesso à saúde.

    Quando uma pessoa que sofre um enfarte em Lisboa pode estar, em minutos, numa sala de hemodinâmica, enquanto outra em Penedono depende de um percurso de mais de uma hora por estradas sinuosas, a universalidade do Serviço Nacional de Saúde revela-se uma ficção estatística.

    A estas disparidades somam-se outros factores, como a carência de transportes públicos nas zonas mais afectadas, o encerramento progressivo de unidades hospitalares periféricas, e a centralização cada vez maior de recursos humanos e técnicos nos grandes centros urbanos.

  • 90 mil euros: custo de ‘retiro’ de 25 dirigentes de Isaltino daria para férias nas Maldivas

    90 mil euros: custo de ‘retiro’ de 25 dirigentes de Isaltino daria para férias nas Maldivas

    Cada vez mais as organizações apostam em acções de motivação dos seus líderes e funcionários. Na Câmara Municipal de Oeiras essa aposta é em grande, pelo menos no que toca a quadros dirigentes. É que o município contratou uma empresa unipessoal desconhecida no meio para efectuar um retiro de ‘team building‘ para 25 líderes na autarquia.

    Esta acção motivacional custou aos contribuintes quase 100 mil euros. Mais precisamente, o município pagou 89.175 euros para “motivar” 25 dos seus quadros dirigentes.

    Engaged adults playing tug of war, showcasing teamwork and fun outdoors.
    Foto: D.R.

    A empresa escolhida para levar a cabo esta acção para animar e fortalecer o espírito de equipa dos “25 líderes” do munícipio foi a Atmosférica Unipessoal, uma empresa detida por Maria Ermelinda Varela Carvalho. A empresa foi criada em 28 de Março do ano passado, não tem ainda contas apresentadas nem curriculum conhecido, designadamente no campo de acções de ‘team building‘. O PÁGINA UM pesquisou e não conseguiu encontrar um site da empresa na Internet ou sequer um contacto.

    A sociedade foi selecionada através de um processo de consulta prévia, mas o registo do procedimento que consta no Portal Base é omisso sobre se mais alguma empresa foi consultada pelo município no âmbito desta contratação.

    Uma pesquisa pelo nome da proprietária da Atmosférica Unipessoal também não detecta nenhum curriculum ou experiência profissional nesta ou outra área.

    O presidente da Câmara Municipal de Oeiras numa inauguração. / Foto: D.R. | CMO

    O que se sabe é que foi esta empresa a ser contratada no dia 17 de Junho para “a prestação de serviços de Teambuilding – Retiro para 25 Líderes”. O valor do contrato é de 89.175 euros, com IVA incluído.

    O contrato é omisso quanto aos contornos desta acção de ‘team building‘, designadamente se o preço inclui estadia em hotel ou transportes para levar os 25 líderes para algum local específico.

    O que é certo é que esta acção motivacional vai ficar em 3.567 euros por cada um dos participantes que vão beneficiar da experiência. Como termo de comparação, se o município de Oeiras decidisse antes enviar aqueles “25 líderes” numa viagem de 10 dias às Maldivas, com voo, hotel e refeições incluídas, iria gastar praticamente o mesmo valor.

    Silhouette of a group of friends jumping on a beach at sunset, expressing joy and freedom.
    Foto: D.R.

    Apesar de a proprietária da empresa Atmosférica não apresentar publicamente curriculum na área de ‘team building‘, o seu nome surge ligado a outro sector. É que já foi dona de uma empresa de construção, a DCHJ.

    Actualmente, esta empresa é detida pela World Templet – Gestão e Investimentos, que teve como sócia, até 2023, Maria Ermelinda Varela de Carvalho. A World Templet é agora detida por um seu familiar, Hermenegildo Varela de Carvalho – que já teve pelo menos duas outras empresas de construção insolventes -, e um outro sócio, Carlos Garcia Ribeiro.

    A DCHJ efectuou 26 contratos com entidades públicas num valor global de 454 mil euros. Desses, 20 foram contratados com o Município de Oeiras, todos por ajuste directo, sendo que o último data de Janeiro de 2022. No total, a DCHJ facturou 292 mil euros com a autarquia.

    Floating colorful plastic balls in a sunlit swimming pool, creating a vibrant and playful scene.
    Foto: D.R.

    A maioria dos contratos públicos foram obtidos em 2015, 2016 e 2017, sendo que a empresa também efectuou reparações e obras no Palácio das Necessidades, em contratos efectuados por ajuste directo pela secretaria-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

    Da construção de paredes para o ‘team building‘, certo é que a proprietária da empresa Atmosférica encontrou no município de Oeiras um cliente generoso que não poupa a esforços para motivar os 25 líderes que vão beneficiar de uma experiência rica. Nem que seja pelo preço.

  • Força Aérea paga 80 mil euros para uma empresa mostrar drones luminosos

    Força Aérea paga 80 mil euros para uma empresa mostrar drones luminosos

    Se hoje o primeiro-ministro Luís Montenegro prometeu aos seus parceiros da NATO, na cimeira realizada nos Países Baixos, que Portugal passaria a investir “acima de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em Defesa” já em 2025 — com a mira apontada a uns futuros 3,5% até 2035 —, a Força Aérea Portuguesa já deu mostras de estar em voo picado para esse gasto orçamental. Por isso, e para celebrar a nova rota da soberania nacional, vai dar um espectáculo de luzes no céus da Figueira da Foz. Com os drones a voar, também voará dos cofres públicos cerca de 80 mil euros, incluindo IVA.

    Com efeito, no âmbito das celebrações do Dia da Força Aérea, este ramo militar achou boa ideia mostrar o seu potencial contratando a empresa Ignitionconcept para a realização de um espectáculo artístico com drones luminosos a partir dos últimos minutos da próxima segunda-feira na praia do Forte do Cabedelinho, na Figueira da Foz. No dia anterior, também pelas 23h55, haverá um “treino” geral da exibição. E mesmo não se sabendo quantos drones participarão, nem tampouco o tipo de imagens ou efeitos visuais que serão projectados no céu atlântico, porque o contrato por ajuste directo divulgado no Portal Base não integra, como deveria, o caderno de encargos.

    Cartaxo Alves, ao centro, é o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea.

    Em todo o caso, esta contratação marca um salto vertiginoso nos custos destes eventos: a mesma empresa Ignitionconcept realizou em 2024 um espectáculo similar para a Força Aérea em Portimão, mas cobrando 30 mil euros (já com IVA), o que representa, assim, um aumento de 167% no preço final. Uma subida muito acima da própria trajectória do investimento em Defesa prometido pelo Governo, que passará, em termos relativos, de 2% para 3,5% do PIB, o que significará ‘apenas’ um acréscimo de 75%. A criatividade orçamental, pelos vistos, está a ganhar asas mais rápido do que os caças F-16.

    Criada em 2019 na Charneca da Caparica, a Ignitionconcept apresenta-se como uma empresa de entretenimento e marketing, dedicada à criação de “espectáculos de drones de luz personalizados, adaptados especificamente para a ocasião”, onde se promete “transformar a sua visão em realidade”. Num dos vídeos promocionais do seu site, surge uma exibição durante o festival NOS Alive de 2024, onde dezenas de drones desenham no céu o logótipo de uma marca de cerveja. Também tem realizado espectáculos para entidades privadas, tanto em Portugal como no estrangeiro. A componente artística pode ser discutível, sendo uma nova moda alternativa à pirotecnia, mas a publicitária é inegável.

    Nos últimos dois anos, esta empresa garantiu, entretanto, uma dezena de contratos públicos, todos por ajuste directo, a maioria deles com municípios, totalizando quase 378 mil euros com IVA. O primeiro foi com a autarquia de Óbidos, em Maio de 2023, para um espectáculo de dois dias, no valor de 19.900 euros (acrescidos de IVA à taxa de 23%), o que totaliza cerca de 24.477 euros. No mesmo ano, o município da Lagoa contratou a Ignitionconcept por 32.546 euros (IVA incluído).

    No ano passado, a empresa reforçou a sua presença no sector público com sete contratos — e destaque para Lisboa, onde conseguiu dois ajustes directos com a Câmara Municipal e com a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC), por um valor total de cerca de 82 mil euros, que envolveu quatro eventos. O maior desses contratos, segundo os registos públicos, inclui espectáculos no 25 de Abril, nas Festas de Lisboa e no Natal. O outro, realizado directamente com a autarquia lisboeta, serviu para anunciar os finalistas dos prémios “Lisboa Innovation for All” — uma iniciativa no âmbito da Capital Europeia da Inovação.

    Além disso, a Câmara Municipal do Porto também recorreu aos serviços desta empresa para celebrar os 10 anos da marca “Porto”, pagando um pouco mais de 58 mil euros. Já Vila do Conde fechou o ano com um espectáculo natalício aéreo da Ignitionconcept, por 18.450 euros.

    Imagem do espectáculo dos drones luminosos no ano passado no Dia da Força Aérea na Praia da Rocha, em Portimão. Foto: EMFA.

    Ainda assim, nenhum dos contratos celebrados até hoje se aproxima do valor de 80 mil euros (IVA incluído) agora adjudicado pela Força Aérea Portuguesa. Uma verba que, em si mesma, daria para repetir duas vezes o espectáculo de 2024 e ainda sobraria para uma largada de pombos ou para um evento de porco de espeto muito superior ao que Gouveia e Melo levou para comemorar o Dia da Marinha quando se tornou líder do Estado-Maior da Armada.

    Destaque-se que o contrato da Força Aérea carece também de transparência ao nível do nome do oficial que assinou o contrato, pois este surge ocultado no Portal Base, surgindo apenas a indicação genérica “COR/ADMAER”, com a justificação de estar a actuar “no exercício das competências subdelegadas pelo Vice-Chefe do Estado-Maior da Força Aérea”. Esta ocultação de assinaturas tem sido sistematicamente permitida pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), a entidade pública que gere o Portal Base. De facto, não existe qualquer fundamento legal para rasurar a identidade dos outorgantes, uma vez que se está perante actos administrativos no exercício de funções públicas.

    Seja como for, e embora a Defesa Nacional não tenha (ainda) comprado drones armados ou de reconhecimento militar, parece estar bastante empenhada no ramo do entretenimento aéreo nocturno. O espectáculo de dia 30 de Junho, às 23h55, será assim um prenúncio luminoso das novas prioridades estratégicas de Portugal no seio da NATO: mais investimento, mais voos — e mais luzes.

    Apesar de possuir ‘equipamentos’ que enchem o olho, a Força Aérea achou que pode fazer voar 80 mil euros do erário público para mostrar drones que nem são seus. Foto: EMFA.

    De acordo com uma consulta do PÁGINA UM, o preço de um drone profissional para espectáculos desta natureza está compreendido entre 2.000 e 5.000 euros, dependendo do modelo, sistema de iluminação e autonomia de voo. Um espectáculo médio pode envolver entre 50 a 200 drones, o que significa que o custo de aquisição dos equipamento pode variar entre 100 mil e 1 milhão de euros, embora as empresas prestadoras usualmente operem em regime de aluguer ou leasing, diluindo os custos por evento.

    Assim, um espectáculo com 150 drones pode custar, em média, 30 a 50 mil euros, o que coloca o valor pago pela Força Aérea no patamar superior do mercado. Mas a questão que se coloca será mais esta: será que a Força Aérea já tem tão pouca coisa para mostrar que necessita de um empresa para fazer um ‘foguetório’ efémero?