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  • Graça Morais ganha meio milhão de euros em duas encomendas públicas

    Graça Morais ganha meio milhão de euros em duas encomendas públicas

    Apenas duas encomendas garantiram à pintora Graça Morais a façanha de facturar meio milhão de euros em cinco meses. E engana-se quem pense que se trata de encomendas feitas por bancos ou outros patronos ricos do sector privado. O gasto é público e é superior ao valor investido no ano passado pelo Estado na compra das 12 peças de arte proposta pela Comissão para a Aquisição de Bens Culturais para os Museus e Palácios Nacionais, que envolveu 428 mil euros.

    No caso das encomendas à pintora de 77 anos, membro da Academia Nacional de Belas Artes, os mecenas que abriram generosamente os cordões à bolsa são duas entidades públicas: o Município de Oeiras e a Provedoria da Justiça, que vão desembolsar 420 mil euros, que com o IVA ultrapassarão meio milhão de euros.

    Graça Morais / Foto: Egidio Santos/Centro de Arte Contemporânea Graça Morais

    A primeira encomenda, e a mais valiosa, no valor de 300 mil euros (excluindo o IVA), foi feita pela autarquia liderada por Isaltino Morais. Por ajuste directo, assinado a 22 de Novembro do ano passado, o munícipio assume a despesa milionária para a “aquisição da prestação dos serviços para criação, aquisição e trabalhos de um Mural Artístico em Caxias/Oeiras, no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril”.

    Como é habitual, o caderno de encargos deste ajuste directo não está disponível na plataforma de contratação pública, o Portal Base, contrariando a legislação e as melhores práticas de transparência. Assim, não são conhecidos todos os contornos e condições da encomenda, cujo contrato é válido por 289 dias. O ajuste directo foi justificado com o facto de ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual“. Mas não é referido como foi seleccionado o nome da pintora.

    Em Abril do ano passado, a autarquia divulgou uma publicação nas redes sociais sobre as iniciativas do município relacionadas com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Nessa publicação, destaca “o mural ‘Passeio da Democracia’, em homenagem à Revolução do 25 de Abril, dedicado aos presos políticos que estiveram no Forte de Caxias, da autoria da artista Graça Morais” e avança que “este mural irá gravar os 10 mil nomes de homens e mulheres que por ali passaram”.

    Isaltino Morais num discurso sobre as iniciativas de Oeiras no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. / Foto: Captura de imagem de vídeo da autarquia de Oeiras

    Na mesma publicação, é divulgado um vídeo com o edil de Oeiras, Isaltino Morais, a afirmar que “a Graça Morais vai fazer um monumento escultórico, um mural alusivo à revolução e depois vamos ter um grande mural, um painel, um memorial, onde irão ser gravados os nomes de 10 mil homens e mulheres que passaram pela prisão de Caxias”.

    No contrato consultado pelo PÁGINA UM é referido que a encomenda artística será paga através da dotação orçamental com a classificação económica “artigos e objectos de valor” e “sistemas de solidariedade e segurança social”. Refere ainda que “a repartição plurianual de encargos no presente contrato foi autorizada por deliberação da assembleia municipal”.

    Em representação da pintora no contrato com a autarquia de Oeiras a assinatura é do advogado Francisco Teixeira da Mota. Da parte da autarquia, Emanuel Gonçalves, vice-presidente da Câmara Municipal de Oeiras. O PÁGINA UM apurou que a primeira tranche do contrato, no valor de 60.000 euros (73.800 euros, incluindo o IVA), foi paga à pintora na altura da adjudicação, com a factura-recibo emitida com data de 5 de Dezembro de 2024.

    blue hair brushes in vase

    Cinco meses depois, a pintora voltou a ‘cair nas graças’ de uma entidade pública. Desta vez, foi a Provedoria de Justiça que decidiu fazer uma encomenda a Graça Morais. O contrato por ajuste directo, no valor de 120 mil euros (excluindo o IVA), foi celebrado a 15 de Abril e visa a “aquisição de serviços de produção de obra de arte”, tendo um prazo de execução de 168 dias. Neste caso, a justificação para ter sido efectuado o ajuste directo é o facto de o “objeto do procedimento” ser “a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espetáculo artístico“.

    Tudo indica que a encomenda foi feita no âmbito das comemorações dos 50 anos da existência da Provedoria de Justiça. Outra hipótese, menos provável, seria a encomenda de um retrato para a galeria de retratos de antigos provedores, que foi inaugurada a 18 de março de 2015, graças “à generosidade da Fundação Engenheiro António de Almeida, presidida por Fernando Aguiar-Branco, e ao traço do pintor João Freitas”.

    Mas não foi possível confirmar o motivo da encomenda porque o caderno de encargos deste ajuste directo também não está disponível ao público, com a Provedoria de Justiça a incorrer na mesma falta de transparência de que padecem muitas entidades públicas que omitem detalhes de contratos do Portal Base. A Provedoria de Justiça, contactada pelo PÁGINA UM, também se escusou a explicar o motivo da encomenda e como foi escolhido o nome da pintora.

    A provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, numa audição na Comissão Eventual para o Acompanhamento Integrado da Execução e Monitorização da Agenda Anticorrupção no Parlamento, em Fevereiro de 2025. / Foto: Captura de imagem a partir do vídeo da audição

    Na secção ‘Observações’ no Portal Base, a Provedoria de Justiça justificou que a aquisição da encomenda à pintora foi efectuada “por total ausência de número de trabalhadores e de competências internas para a realização do serviço em causa”. No caso desta contratação, a pintora recebeu 48.000 euros na assinatura do contrato e receberá a verba restante aquando da entrega da obra encomendada, segundo os termos do contrato.

    Curioso é facto de, apesar de ser uma pintora muito conceituada, no Portal Base apenas se encontram estes dois contratos feitos directamente com Graça Morais, desconhecendo-se se haverá outros adjudicados à pintora mas em nome de uma empresa, ou se possam ter sido feitos mas não terem passado pela plataforma de contratação pública.

    No entanto, pelo menos duas obras de Graça Morais foram já compradas por entidades públicas: em 2023, a Direção-Geral do Património Cultural comprou por 60 mil euros a pintura ‘O Bordel’, para expor no Museu do Côa; e em 2013 a autarquia de Loulé comprou uma obra de arte não especificada por 10 mil euros.

    A provedora de Justiça numa visita à galeria de retratos de antigos provedores com a presença do então líder do PSD, Rui Rio, durante a Semana da Justiça. / Foto: D.R.

    Sendo actualmente a pintora ainda no activo mais valorizada em Portugal, os 420.000 euros (516.600 euros com IVA incluído à taxa de 23%) que Graça Morais vai arrecadar em apenas duas encomendas, a desenvolver em menos de seis meses, aparenta ser ‘obra’. Com efeito, em diversos leilões realizados nos últimos anos em Portugal, apenas algumas das suas pinturas ultrapassam a fasquia dos 10 mil euros, sendo um dos casos a pintura ‘Sophia e o Anjo‘, um acrílico sobre papel vendido por 18 mil euros em 2018.

    No  Centro de Arte Contemporânea de Bragança, que tem o seu nome, está exposta uma parte importante do seu espólio artístico constituída por mais de 120 obras. Em 2021, a pintora transmontana, nascida em Vila Flor, doou um conjunto de 70 pinturas a este centro, atribuindo ao lote um valor de meio milhão de euros, ou seja, um valor médio um pouco acima de sete mil euros.

  • Gouveia e Melo ‘despachado’ das fileiras da Nova School of Law após protocolo com a Marinha

    Gouveia e Melo ‘despachado’ das fileiras da Nova School of Law após protocolo com a Marinha

    Sem honra nem glória, e num recato institucional pouco habitual para quem tanto celebrara em tempos a sua “contratação”, a NOVA School of Law – nome pomposo e anglicizado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – apagou silenciosamente o antigo Chefe do Estado-Maior da Armada, Henrique Gouveia e Melo, das suas fileiras docentes.

    Esta saída discreta – o nome do putativo candidato a Belém deixou de constar no site da instituição universitária – surge após dois anos em que o agora Almirante na reserva ocupou, de forma irregular e à margem da legalidade, a regência da cadeira de Segurança Marítima no mestrado em Direito e Economia do Mar. O nome de Gouveia e Melo chegou a constar como regente e professor ainda num documento interno da Nova School of Law ainda no final de Dezembro passado.

    Nobre de Sousa na aula inaugural da unidade curricular de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de LIsboa. A Marinha, com um protocolo, tenta ‘apagar’ um acordo informal que transformara o anterior Chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, um distinto professor universitário sem sequer dar uma aula durante dois anos lectivos. Foto: NSL

    A situação insólita de uma “contratação” sem base legal, sobretudo por ser cometida por uma instituição universitária de Direito, foi revelada em primeira mão pelo PÁGINA UM em Dezembro do ano passado. No auge da sua popularidade na liderança do Estado-Maior da Armada, em Fevereiro de 2023 anunciou, com pompa, que “uma das novidades deste ano [lectivo, de 2023/2024]” seria “a leccionação da cadeira Maritime Security a cargo da Marinha Portuguesa, sob a regência do Almirante Gouveia e Melo”. E acrescentava ser “com enorme satisfação que recebemos o ex-coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a covid-19 em Portugal, que se juntou à NOVA School of Law no seguimento do nosso empenho em robustecer o nosso corpo docente com os/as melhores e mais talentosos/as profissionais, contribuindo para a excelência deste mestrado”.

    O “nosso empenho”, o da Faculdade de Direito da UNL, devia ler-se como empenho da ala do CDS nesta instituição universitária pública. Com efeito, todo o processo de convite foi conduzido pela então directora da Faculdade, Mariana França Gouveia – que actualmente preside ao Conselho Científico – e pela coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, que também lidera a Comissão Científica do mestrado. Além das suas ligações umbilicais ao CDS, estas duas advogadas, amigas de longa data, gravitam numa das mais importantes sociedades de advogados com milionários contratos públicos: a Vieira de Almeida.

    Apesar de o mais recente processo de acreditação pela A3ES ser completamente omisso sobre a entrada de militares de carreira sem currículo académico na regência de uma cadeira e a prestar aulas, não foi cumprida qualquer das regras previstas no rigoroso Estatuto da Carreira Docente Universitária, que não permite, por razões óbvias, a contratação de qualquer pessoa mesmo sob convite e mesmo se tivesse um currículo académico invejável, o que não é o caso de Gouveia e Melo.

    Assunção Cristas (segunda a contar da direita),antiga ministra do Ambiente, do Mar e da Agricultura tratou de ‘convidar’ Gouveia e Melo em 2022 para ser professor convidado mas sem cumprir formalismos legais. A ala do CDS na Nova School of Law permitiu que o antigo líder da Armada fosse regente sem sequer colocar os pés nas aulas. Foto: NSL

    As revelações do PÁGINA UM geraram visível desconforto quer na NOVA School of Law, quer no seio da Marinha, que, nos últimos meses, trabalharam discretamente para “corrigir” um evidente atropelo às normas legais e académicas vigentes. Em todo o caso, nos horários revelados pela instituição universitária pública no dia 30 de Dezembro para as unidades curriculares do segundo semestre, Gouveia e Melo ainda continuava a ser indicado como regente, mesmo tendo abandonado a liderança da Marinha dias antes.

    A solução encontrada para mitigar um cada vez maior embaraço institucional foi a celebração de um protocolo de cooperação – que nunca antes se formalizara – e que se concretizou ontem numa “cerimónia pública” da primeira aula de Segurança Marítima, carregada de solenidade e cuidadosamente encenada, com a presença do novo Chefe do Estado-Maior da Armada, Jorge Manuel Nobre de Sousa, bem como do novo regente, Armando Valente Tinoco, que tem o posto de Comodoro, hierarquicamente abaixo de Contra-Almirante, sendo já um oficial general.

    Ao contrário de Gouveia e Melo, o regente agora indicado pela Marinha – que já surge na lista de professores da Nova School of Law, ‘destronando’ o agora desaparecido Gouveia e Melo – tem larga experiência em Segurança Marítima. Com uma carreira de quase duas décadas, foi recentemente comandante dos Fuzileiros (2023-2024) e desempenhou as funções de Force Commander da European Union Naval Force Atalanta (Comandante da Task Force 465) entre Outubro e Dezembro do ano passado. A Task Force 465 é uma operação militar da União Europeia que visa proteger os navios mercantes, em especial os do Programa Alimentar Mundial, das ameaças de pirataria ao largo da costa da Somália e no Oceano Índico, tendo também funções de vigilância das actividades marítimas naquela região.

    Margarida Lima Rego, directora da Nova School of Law, ontem na aula inaugural do presente semestre da unidade curricular de Segurança Marítima, com o novo regente, Comodoro Valente Tinoco. Do anterior regente, Gouveia e Melo, nunca foram reveladas provas de que tenha entrado numa sala de aula para ensinar Segurança Marítima. Foto: NSL

    Apesar deste formalismo – com a presença de Nobre de Sousa na aula inaugural, na presença das várias responsáveis pela anterior “contratação” de Gouveia e Melo (Assunção Cristas e Margarida Lima Rego), ‘eternizadas’ em várias das 12 fotografias do evento –, o protocolo agora firmado acaba por se converter numa confissão pública das irregularidades cometidas.

    Com efeito, sendo este protocolo inédito, significa então que, durante dois anos, a Marinha colocou os seus meios e efectivos – nomeadamente militares que, de facto, asseguraram as aulas da cadeira de Segurança Marítima nos anos lectivos de 2022/2023 e 2023/2024 – ao serviço de uma instituição de ensino superior, sem que houvesse qualquer instrumento jurídico que enquadrasse e legitimasse essa colaboração. Além disso, nunca foram revelados publicamente os documentos que deveriam ter formalizado a aceitação de Gouveia e Melo como docente convidado, acto que deveria ter sido aprovado no Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Por outro lado, houve militares da Armada que deram aulas em nome e sob a regência formal de Gouveia e Melo, que, sem ter aparecido numa única sessão, beneficiou do estatuto de professor convidado da NOVA School of Law, numa situação que fere a legalidade e a ética académica. A Marinha, aliás, mantém-se em silêncio quanto à identidade dos militares que leccionaram estas aulas, apesar de ter sido novamente instada ontem, pelo PÁGINA UM, a esclarecer publicamente quem foram os oficiais destacados para estas funções e ao abrigo de que fundamentos legais.

    O Chefe de Estado-Maior da Armada esteve presenta na aula inaugural de Segurança Marítima acompanhado pelo novo regente, Valente Tinoco, e mais três oficiais da Marinha. Da anterior equipa da Marinha que, sob regência oficial de Gouveia e Melo, esteve a dar aulas, através de um ‘acordo de café’, não se conhece qualquer cara nem nome.

    A celebração deste protocolo procura agora dar um lustro de legalidade a um passado recente repleto de opacidade. O documento, segundo foi anunciado, assegura a continuidade da regência da cadeira de Maritime Security, no âmbito do mestrado em Direito e Economia do Mar. Segundo nota da NOVA School of Law, a nova parceria – que só existe quando formalizada, porque estas questões não são passíveis de informalidade de uma “mesa de café” ou de uma sede partidária – não se limita à componente lectiva, prevendo-se também iniciativas complementares, como visitas dos estudantes às instalações da Marinha, acesso a bibliotecas e recursos para investigação, estágios curriculares e a atribuição de prémios de excelência académica.

    Porém, a Marinha não respondeu ao pedido do PÁGINA UM para lhe enviar uma cópia do protocolo, desconhecendo-se assim se existem “matérias secretas” e pagamentos envolvidos. O acesso a um protocolo que deveria ser público, ademais depois de dois anos de irregularidades, só deverá, eventualmente, ser acedido pelo PÁGINA UM através de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – uma situação que começa a fazer “escola” numa Administração Pública cada vez mais opaca.

  • Força Aérea faz contratos de 59 milhões com empresa condenada no ‘Cartel del Fuego’

    Força Aérea faz contratos de 59 milhões com empresa condenada no ‘Cartel del Fuego’

    A Força Aérea Portuguesa celebrou, na semana passada, três contratos de meios aéreos de combate aos incêndios rurais no valor de 59 milhões de euros com uma empresa de capitais espanhóis – a Agro-Montiar –, cuja ‘holding’ (Avialsa, hoje Titan) foi condenada em Fevereiro passado num mega-processo judicial envolvendo corrupção, prevaricação, peculato e falsificação.

    O processo conhecido por ‘Cartel del Fuego’ teve o seu desfecho numa sentença do passado dia 5 de Fevereiro, que levou à condenação de doze réus – acusados ​​de formação de cartel em contratos públicos de combate a incêndios no sector de navegação aérea entre 2001 e 2018 – a penas de prisão entre dois anos e três meses e seis meses. De entre os condenados está o ex-delegado do Governo na Comunidade Valenciana, bem como dirigentes de diversas empresas aeronáuticas que concertavam preços.

    Foto: D.R.

    A sentença da Audiência Nacional confirma que, entre 1999 e 2018, um grupo de empresários do sector de navegação aérea de combate a incêndios rurais compartilharam geograficamente as licitações públicas abertas, e que “em colaboração com autoridades ou agentes públicos”, estabeleceram “acordos clandestinos prévios e com fins lucrativos”, impondo “às administrações contratantes preços superiores aos que resultariam de uma concorrência livre e transparente, por meio de repartição fraudulenta de mercado”.

    Em concreto, de acordo com a sentença, a Avialsa – dona da Agro-Montier, através da Aviación Agricola de Levante – liderava uma rede de empresas que coordenavam ofertas em concursos públicos, garantindo que apenas uma delas apresentava proposta vencedora, enquanto as restantes faziam ofertas de cobertura para simular uma falsa concorrência. Além disso, o conluio incluiu falsificação de documentos, pagamento de subornos a funcionários públicos e contratos simulados entre as empresas envolvidas para inflacionar artificialmente os custos.

    O tribunal determinou que o fundador e administrador da Avialsa, identificado na sentença como “D. Salvador”, teve um papel central na organização do esquema, assegurando que os contratos eram distribuídos entre as empresas do grupo. Esta pessoa será Salvador Alapuz, que se manteve sócio da empresa enquanto exercia como funcionário público.

    Primeira página da sentença contra o ‘Cartel del Fueg’ pela Audiência Nacional em 5 de Fevereiro de 2025.

    Foram ainda identificadas práticas de corrupção, incluindo a oferta de vantagens indevidas a responsáveis administrativos das Generalitat Valenciana e Generalitat Catalana para favorecer adjudicações.

    A investigação, que levou à condenação dos responsáveis, foi impulsionada pelo testemunho de um ex-director-geral da Avialsa, que denunciou o esquema às autoridades, permitindo a recolha de provas cruciais. Este caso, considerado um dos maiores escândalos envolvendo contratos públicos em Espanha, ocorreu sobretudo nas Comunidades de Valência e Catalunha, os Ministérios da Agricultura e do Ambiente e, em menor grau, nas comunidades andaluza e castelhano-manchega.

    De uma forma inédita, a Audiência Nacional sentenciou também que as as seis empresas envolvidas sofressem um período de inibição de estabelecer contratos públicos em Espanha durante nove meses. Uma penalidade que pode custar várias dezenas de milhões de euros de facturação e permitir a entrada de concorrentes, causando danos potencialmente irreparáveis. Neste lote de empresas abrangidas pela proibição de contratos estão, além da Avialsa (actual Titan), a Trabajos Aéreos Extremeños (TAEXSA), a Martínez Ridao Aviación, a Servicios Aéreos Europeos y Tratamientos Agrícolas (SAETA), a TA Trabajos Aéreos Espejo, Compañía de Extinción General de Incendios (CEGISA) e a Pegasus Aviacion. Estas empresas também foram condenadas a pagar uma indeminização de 234 mil euros à Administração Geral do Estado. O processo ainda é passível de recurso.

    Foto: D.R.

    Em 2017, uma possível ramificação do ‘Cartel del Fuego’ foi investigada em Portugal, sobretudo porque em 2014 a Avialsa comprou a empresa portuguesa Agro-Montiar, inicialmente com sede no Montijo e que se deslocou depois para Tondela. Logo nesse ano, a Agro-Montiar recebeu um ajuste directo de 1,8 milhões de euros para disponibilizar duas aeronaves à Autoridade Nacional de Protecção Civil. Em Maio do ano seguinte ganharia um concurso público no valor de quase 5 milhões de euros para fornecimento de duas aeronaves para combate aos incêndios rurais por um período de três anos, não sendo reveladas no Portal Base quais as empresas que concorreram.

    Sobretudo a partir de 2018, através da Agro-Montiar, a Avialsa consolidou a sua presença no chorudo negócio do combate aéreos aos incêndios rurais. Nesse ano conseguiu ganhar dois contratos num valor global de 19 milhões de euros. Seria em 2020, porém, que chagariam os contratos mais avultados. O primeiro em Março, no valor de 43,4 milhões de euros, para quatro meios aéreos durante quatro anos, em que terá ‘derrotado’ nove concorrentes. E o segundo, no mesmo mês, no valor de 36,2 milhões de euros, em que ‘derrotou’ 10 concorrentes.

    Porém, em 2022, soube-se que a Agro-Montiar alugou duas das quatro aeronaves a uma das concorrentes que derrotara, a CCB Serviços Aéreos, com capitais de um dos envolvidos na ‘Cartel del Fuego’, Ángel Martinez Ridao, que controla a SAETA e a Martínez Ridao Aviación. No entanto, em Portugal, apesar dos gastos milionários no uso de meios aéreos no combate aos incêndios, com fracos resultados, nunca as autoridades encontraram as mesmas evidências confirmadas em Espanha pela Audiência Nacional.

    Foto: D.R.

    Em 2023 e 2024, a Agro-Montiar obteve mais três contratos similares no valor total de 19,4 milhões de euros. Com os três agora assinados na semana passada com a Força Aérea Portuguesa, a empresa de capitais espanhóis, cuja ‘holding’ encabeçava o ‘Cartel del Fuego’, totaliza contratos públicos em Portugal no valor de quase 186 milhões de euros, que com IVA ultrapassa os 228 milhões de euros. Desde 2020, o valor da facturação foi de 158,3 milhões de euros, que com IVA aproxima-se dos 195 milhões de euros, todos com a Força Aérea.

    O PÁGINA UM aguarda eventuais comentários do Ministério da Defesa sobre os contratos estabelecidos com a Agro-Montiar.

  • Quercus: Ministério Público arquiva inquérito contra ex-presidente expulso

    Quercus: Ministério Público arquiva inquérito contra ex-presidente expulso

    A luta pelo poder na associação ambientalista Quercus parecia ter-se ‘extinguido’ com a expulsão recente de quatro antigos dirigentes, mas a guerra prossegue, agora na Justiça. E ganhou novo fôlego com ‘vitórias’ judiciais obtidas por dois dos ex-dirigentes expulsos, João Branco e Paulo Mendes, na recente assembleia-geral da associação nascida em 1995 e que já foi uma das mais dinâmicas.

    Para a actual presidente da Quercus, Alexandra Azevedo, a polémica em torno das expulsões dos quatro antigos dirigentes ficou encerrada com a assembleia-geral. E, entretanto, já está agendada para 29 de Março a assembleia-geral eleitoral que vai eleger os órgãos sociais da Quercus para o mandato de 2025-2026. Porém, apesar de terem sido expulsos os quatro ex-dirigentes, ficando impedidos de concorrer a eleições, nem tudo são ‘favas contadas’.

    Numa das decisões judiciais recentes, o Ministério Público decidiu arquivar o inquérito que investigava João Branco, ex-presidente da Quercus, que foi acusado de cometer irregularidades e de má-gestão da organização não-governamental do ambiente (ONGA), através de uma denúncia anónima feita a 15 de Dezembro de 2017.

    As lutas da Quercus têm sido externas, em defesa do ambiente, mas também internas, com acusações cruzadas entre actuais e antigos dirigentes . A luta pelo poder deverá continuar, agora na Justiça.
    / Foto: D.R.

    A decisão de arquivamento, a que o PÁGINA UM teve acesso, foi assinada no passado dia 11 de Fevereiro pelo magistrado Joaquim Morgado, com o fundamento de que não foi possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes.

    No despacho de arquivamento, com 138 páginas, o procurador concluiu que “da apreciação crítica, conjunta e objetiva das provas indiciárias recolhidas em sede de inquérito, não nos foi possível formar a convicção de que, com os elementos de prova juntos aos autos, é mais provável que os arguidos venham a ser condenados pela prática dos imputados crimes, em sede de julgamento, do que o não venham a ser, razão pela qual entendemos que não se mostra reunida a indiciação exigida pelo artigo 283.º do Código de Processo Penal”.

    João Branco afirmou ao PÁGINA UM que avançou, entretanto, com uma providência cautelar para que seja anulada a sua expulsão da ONGA. O engenheiro florestal está confiante de que vai voltar a fazer parte da associação e quer mesmo concorrer à liderança da associação ambientalista..

    “A providência cautelar serve para defender a minha reputação, mas também o faço com a intenção de me candidatar à liderança a nível nacional”, disse o antigo presidente da Quercus. “Ninguém duvida que a decisão de me expulsarem foi tomada para me impedirem de me candidatar”, acusou.

    João Branco, ex-presidente da Quercus, foi um dos quatro sócios e antigos dirigentes da associação ambientalista que foram expulsos por deliberação da recente assembleia-geral extraordinária da ONG. / Foto: D.R.

    João Branco lamentou, de resto, que a sua expulsão já o tenha impedido de ser candidato à liderança do núcleo regional de Vila Real, cujas eleições decorreram no passado mês de Fevereiro. As eleições para a liderança nacional da Quercus deverão ocorrer nos próximos meses.

    Numa outra acção, segundo João Branco, a Quercus sofreu um outro revés. No passado, a ONG já tinha suspendido João Branco como sócio da organização, o que levou o engenheiro florestal a avançar com uma providência cautelar, a qual evoluiu para uma acção principal na Justiça. Numa audiência recente no âmbito deste processo, a Quercus procurou que a acção ficasse sem efeito, argumentando que o ex-presidente já foi expulso na recente assembleia-geral. Mas o juiz decidiu prosseguir com o caso, visto que a providência cautelar em curso pode resultar na anulação da expulsão do antigo dirigente da ONG.

    Num outro processo, um ex-dirigente que foi expulso, Paulo Mendes, antigo dirigente do núcleo regional de Braga da associação, obteve uma vitória judicial. O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa decidiu “anular a deliberação da direção nacional da associação ré [Quercus], tomada em 18/05/2023, que destituiu a direção do seu núcleo regional de Braga, eleito em 19/11/2022”.

    Foto: D.R.

    Segundo a sentença, assinada no passado dia 7 de Fevereiro, a decisão da destituição da direcção do núcleo regional de Braga foi “arbitrária, porque aleatória e fortuita”. O Tribunal indicou até que a destituição com base num dos fundamentos invocados — a alegada de falta de indicação do associado para iria presidir à assembleia de núcleo — “é contrária aos próprios estatutos [da Quercus] e, consequentemente, aos interesses da associação ré”.

    O Tribunal considerou ainda que a destituição efectuada com base num outro fundamento — o alegado não envio de actas de reuniões da assembleia de núcleo e da direção de núcleo e o relatório de atividades e de gestão, o orçamento e o plano de atividades — “é arbitrária e, até, desproporcional”.

    Paulo Mendes afirmou ao PÁGINA UM que ficou satisfeito com a decisão judicial, mas garantiu que não pretende voltar para a associação ambientalista. Até porque diz que foi ele próprio quem pediu à Quercus para deixar de ser sócio, tendo recebido da ONG a confirmação da sua exclusão enquanto associado antes da assembleia-geral que deliberou a sua expulsão.

    Alexandra Azevedo, presidente da Quercus. / Foto: D.R.

    Contactada, a presidente da direcção nacional da Quercus escusou-se a comentar os últimos desenvolvimentos que surgiram após a assembleia-geral. Alexandra Azevedo indicou ao PÁGINA UM que o caso relativo aos quatro antigos dirigentes ficou encerrado com a deliberação da assembleia-geral e prefere concentrar-se nas comemorações do 40º aniversário da ONG, que se celebra este ano.

    Resta saber se os últimos desenvolvimentos, a que se somam outras acções a correr na Justiça em torno da associação ambientalista, não trarão prendas indesejadas para a histórica organização que há precisamente 10 anos ficou ‘amputada’ após a saída de membros para fundarem a ‘rival’ Zero.

    Notícia actualizada às 16H00 para acrescentar o anúncio do agendamento da assembleia-geral eleitoral que vai elegar os órgãos sociais da Quercus para o mandato de 2025-2026.

    N.D.: Como é referido na Declaração de Transparência do PÁGINA UM, o director do jornal, Pedro Almeida Vieira, foi dirigente da Quercus, tendo desempenhado funções de vogal na direcção nacional no período de 1993-1995. Actualmente, não é sócio da Quercus. Também foi sócio-fundador da Zero (sem qualquer actividade).

  • Negócios de canábis medicinal do ministro-sombra ‘esfumaram-se’ nos últimos meses

    Negócios de canábis medicinal do ministro-sombra ‘esfumaram-se’ nos últimos meses

    Considerado uma espécie de ‘Richelieu da Saúde’ – aludindo à sua influência nos corredores do Ministério da Saúde, liderado por Ana Paula Martins –, Eurico Castro Alves tem vindo a coleccionar nos últimos anos um impressionante portefólio empresarial bastante diversificado, com investimentos nos sectores do imobiliário, consultoria, saúde e até canábis medicinal.

    Porém, numa investigação do PÁGINA UM, com excepção da WiseHS – que, em breve, merecerá uma análise mais detalhada –, grande parte das empresas que criou ou ajudou a criar nos anos recentes foram descartadas ou acabaram por se ‘esfumar’ literalmente – como foi o caso da empresa Atlantiquality Unipessoal, criada em Abril de 2023 para “o exercício das actividades de cultivo, fabrico, comércio por grosso, importação, exportação, transporte e circulação de medicamentos, preparações e substâncias à base de planta da canábis para fins medicinais, médico-veterinários e de investigação científica”.

    green leaves in close up photography

    No mês passado, no dia 16, foi publicado o anúncio da dissolução desta ‘aventura’ de Castro Alves. As contas de 2023, apresentadas apenas em Novembro do ano passado, mostram uma actividade nula: apenas uma despesa de 5.400 euros e sem qualquer receita.

    Sector bastante atractivo, embora burocrático e oneroso por exigir morosas autorizações do Infarmed e investimentos avultados, a produção e comercialização de canábis medicinal tem atraído muitos investidores nacionais e internacionais, desde que foi legalizada através de um diploma de 2018. De acordo com um artigo de análise publicado no jornal Cannareporter, a ascensão de Portugal na indústria global da canábis tem sido uma história de sucesso.

    De um início modesto após a legalização da canábis medicinal em 2018, Portugal mostra-se agora uma potência no sector, apenas atrás do Canadá, estimando-se que as exportações no ano passado tenham ultrapassado as 25 toneladas, reflectindo uma taxa de crescimento anual composta superior a 80% durante este período. O negócio mostra-se bastante atractivo, podendo ser vendido sob a forma de flor ou óleo, com efeitos benéficos comprovados em dores crónicas, efeitos colaterais de quimioterapia, doenças neurodegenerativas e diversos transtornos mentais e psiquiátricos.

    Eurico Castro Alves.

    Castro Alves – que foi presidente do Infarmed entre 2012 e 2015 – estava bem colocado neste sector emergente, e logo em 2018 a sua empresa WiseHS começou a desenvolver acções de formação no sector da canábis medicinal, elaborando mesmo relatórios regulares.

    Porém, ao invés de usar a WiseHS, da qual é o sócio exclusivo, acabou por optar por criar uma empresa específica – a Atlantiquality, mas recorrendo a uma outra empresa que criou: a Interbuscon. Fundada em 2018, a Interbuscon tem um capital social de 1.000 euros, distribuído entre Eurico Castro Alves (75%) e Maria Amélia Pelicano Paulos, uma antiga inspectora coordenadora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

    Pessoa próxima do ‘ministro-sombra’ da Saúde, Amélia Pelicano Paulos foi até finais de Dezembro a directora-geral da WiseHS, e o seu endereço que surge em documentos comerciais é, por regra, o mesmo que o de Castro Alves, uma habitação numa zona residencial nas imediações do Bairro de Bessa Leite, na freguesia de Lordelo do Ouro e Massarelos.

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    Apesar de objectos sociais muito distintos, em termos formais, a Atlantiquality foi ‘filha’ da Interbuscon – que tem uma actividade bastante residual, com receitas de menos de 43 mil euros em 2022. As contas de 2023 não foram ainda depositadas. Seja como for, a Atlantiquality teve ainda pior sorte, e nem sequer terá conseguido obter qualquer licença junto do Infarmed, não constando da base de dados das entidades do circuito da distribuição e da produção e aquisição directa de canábis medicinal, que integra actualmente 41 empresas.

    Apesar de nunca ter constado como sócio, Eurico Castro Alves terá tido uma segunda ‘aventura’ na canábis medicinal que se ‘esfumou’. A sua sócia Amélia Pelicano Paulos também co-fundou em 2019 uma outra empresa neste sector, a Canfimed, detendo uma quota de 23% e tendo sido mesmo gerente. A Canfimed anunciou também no início de Janeiro passado a sua dissolução, e é aqui que existe a ligação a Eurico Castro Alves, porque é o seu nome que surge como depositante, bem como o endereço da WiseHS.

    Aliás, mesmo tendo-se ‘esfumado’ estas duas empresas de canábis medicinal associadas directa ou indirectamente a Castro Alves, com ‘morte inglória’, ainda há mais três que lhe estarão associadas. A primeira é a Cannatech, formalmente detida por três residentes londrinos (Sangeeta Mittal, Shristi Mittal e Vartika Mittal Goenka), que comunga a sua sede com a WiseHS. Não existe, porém, qualquer informação comercial e económica sobre esta empresa desde Dezembro de 2020.

    A WiseHS, a principal empresa de Castro Alves, chegou a dinamizar diversas acções sobre a canábis medicinal, mas foi através de outras empresas que o ‘ministro sombra’ da Saúde tentou entrar no negócio.

    E ainda há mais duas empresas com ligações a Amélia Pelicano Paulos, embora os objectos sociais sejam mais amplos, incidindo no cultivo, transformação e comercialização de plantas medicinais e farmacêuticas. A primeira, a Serioustendency, foi criada em 2019 e tem a sócia de Eurico Castro Alves como detentora de um terço do capital social. Um ano mais tarde, essa novel empresa criou a Serioustendency Madeira, com uma quota de 75% de um capital social de apenas 400 euros, tendo como parceira a Valsa das Ninfas.

    O PÁGINA UM colocou diversas questões a Eurico Castro Alves sobre a sua actividade empresarial. No caso das empresas encerradas e a encerrar, Castro Alves diz apenas, laconicamente, que se relacionam “com projetos que não chegaram a concretizar-se”.

  • Historiadora de arte ganha quase 300 mil euros para festejos que incluem ‘gincanas’

    Historiadora de arte ganha quase 300 mil euros para festejos que incluem ‘gincanas’

    O aniversário é de Sintra, mas a prenda será recebida por uma historiadora de arte cuja empresa unipessoal arrecadará 294 mil euros (IVA incluído) sem ter tido o ‘incómodo’ de passar por concurso para organizar, entre outras acções culturais e pedagógicas, como ‘gincanas’ e ‘escape room‘. Alegando tratar-se de uma programação com “direitos de autor”, a empresa Spira, detida integramente por Catarina Valença Gonçalves, a empresa pública Parques de Sintra – Monte da Lua decidiu celebrar um ajuste directo para um contrato ao longo deste ano.

    Os eventos a organizar inserem-se no 30º aniversário da elevação da ‘paisagem cultural’ de Sintra a Património Mundial, pela UNESCO. Para celebrar este marco, a Parques de Sintra – Monte da Lua abriu os cordões à bolsa e a ‘sorte grande’ saiu à Spira, que teve a fortuna de ter sido a única empresa que a administração da empresa pública se terá lembrado de convidar para organizar as comemorações, mesmo se o montante em causa deveria, em princípio, levar à realização de um concurso público.

    Foto: D.R.

    A Parques de Sintra – Monte da Lua justifica a opção pelo ajuste directo pelo facto de se tratar de uma “criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espectáculo artístico”. Neste caso, a Spira terá criado o programa de festejos ‘PH30’ que prevê a realização de 30 iniciativas ao longo de 12 meses, entre Dezembro de 2024 e o final deste ano.

    Mas esse expediente é uma inversão dos procedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos. Com efeito, havendo necessidade de organizar eventos comemorativos, a entidade pública ou define o caderno de encargos (com uma programação provisória), lançando um concurso público para a sua execução, ou opta então por um concurso de ideias, garantindo depois a sua execução, por ajuste directo, ao vencedor. Ora, a Parques de Sintra-Monte da Lua ‘curto-circuitou’ o procedimento, convidando a empresa de Catarina Valença Gonçalves para lhe propor uma programação e ‘legalizando’ o ajuste directo concedendo-lhe à posteriori alegados “direitos de autor”.

    De acordo com o anúncio público das celebrações, a programação foi concebida com um “foco especial nos jovens” e promete ser “inovadora, divertida, desafiante e digital”, trazendo “aos parques e monumentos iniciativas inéditas”. No programa, seguindo o caderno de encargos, constam ainda actividades como ‘gincanas’ e ‘escape room‘, mas também ‘murder mistery‘ e ‘ghost experience‘.

    Site com a programação ‘Sintra PH30’.

    Questionada pelo PÁGINA UM sobre a ausência de um concurso público, a Parques de Sintra diz que se pretendeu “adquirir uma programação que envolve um conceito artístico específico, que resultará em vários espectáculos que decorrerão no período de um ano”. E acrescenta que este conceito foi desenvolvido pela “empresa que se convidou [a Spira], ficando a cargo desta, não apenas a concepção e ideia artística, como a produção e logística que envolverá todo este evento”. A empresa terá ainda a seu cargo a comunicação relacionada com o programa.

    Para defender a sua opção, a Parques de Sintra destacou o facto de a Spira ser uma empresa “especializada em concepção, execução e produção de projectos de revitalização patrimonial, Turismo Cultural e de Lazer, consultoria na área de Gestão do Património, actividades de animação-pedagógica e formação de técnicos da área da Gestão do Património, autora de projetos como a Rota do Fresco, a primeira rota de turismo cultural em Portugal, ou a Bienal Ibérica do Património Cultural, evento de referência do sector do Património Cultural”.

    Catarina Valença Gonçalves. Foto: DR.

    Na missiva enviada ao PÁGINA UM acrescenta-se que empresa da historiadora de arte entregou “à Parques de Sintra uma proposta global que contempla a programação para os diversos públicos, assim como a produção integral de todas as actividades e iniciativas”.

    Porém, mostra-se bastante duvidoso que a Spira fosse a única empresa capaz de programar e organizar eventos desta natureza, incluindo ‘gincanas’, ‘escape room‘,’murder mistery’ e ‘ghost experience‘, o que coloca em causa a legalidade do contrato. Com efeito, a norma do Código dos Contratos Públicos escolhida pela Parques de Sintra – Monte da Lua, para evitar o concurso público, refere expressamente que só pode ser usada quando “as prestações que constituem o objecto do contrato só possam ser confiadas a determinada entidade” por se estar perante “a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espectáculo artístico.” Esta norma é, por regra, usada quando uma entidade pública compra uma escultura ou pintura de um artista específico ou quando decide contratar, por exemplo, os Xutos & Pontapés ou o Tony Carreira.

    Esta não é a primeira vez que a Spira ‘tem sorte’ junto da Parques de Sintra. Aliás, este ajuste directo para as comemorações é uma espécie de déjà vu. Em Julho de 2018, a empresa já tinha facturado 236.710 euros com um contrato para a programação do Ano Europeu do Património. Nesse caso, foi usado como argumento para o ajuste directo o facto de não existir concorrência “por motivos técnicos”, sem se dar a conhecer no Portal Base como se chegou a essa conclusão.

    Foto: D.R.

    Mas o envolvimento da Parques de Sintra com a Spira vai para além destes dois ajustes directos. A fundadora e gerente da empresa, Catarina Valença Gonçalves, é a directora do programa avançado em gestão de património cultural da Universidade Católica, uma formação que conta com o apoio da Parques de Sintra. Uma prova de que a Spira, e a sua fundadora, têm na Parques de Sintra um bom aliado.

    Além disso, de entre os 46 contratos que a empresa angariou junto de entidades públicas, os dois mais valiosos foram a Parques de Sintra. No total, dos cerca de 2,8 milhões de euros que a Spira já facturou em contratos públicos, mais de 586 mil euros (com IVA) vieram da Parques de Sintra, ou seja, cerca de 20% do total.

  • Ambiente ‘tóxico’ na Quercus

    Ambiente ‘tóxico’ na Quercus

    Esta notícía foi alvo de um direito de resposta de Aline Pinheiro Rodrigues, que pode ser lido aqui.

    No ano que completa o seu 40º aniversário, a associação ambientalista Quercus prepara-se para tomar uma medida drástica e inédita: expulsar quatro associados, incluindo o ex-presidente João Branco e uma antiga dirigente de um núcleo regional, Aline Pinheiro, que até já fora expulsa em 2008 mas mais tarde readmitida.

    A proposta será votada em Assembleia Geral Extraordinária (AGE) agendada para este sábado, e surge na sequência de uma ‘guerra fraticida’ que envolve processos de antigos e actuais dirigentes. [Os quatro associados acabaram mesmo por ser expulsos após a votação em AGE].

    Foto: D.R.

    Esta medida é o culminar de anos de polémicas e disputas internas na histórica associação ambientalista, fundada em 31 de Outubro de 1985, que já incluiu processos judiciais contra o seu antigo presidente João Branco. Por sua vez, o líder da Quercus entre 2015 e 2019 avançou com uma participação junto do Ministério Público contra diversos dirigentes e associados da organização.

    Segundo a convocatória da AGE, são cinco os pontos na ordem de trabalhos nesta reunião de associados que se realizará num formato híbrido, na sede da Quercus, em Lisboa, e também online. O ponto um diz respeito à designação do presidente da comissão arbitral. Os restantes quatro pontos são relativos à proposta de expulsão dos quatro associados: Aline Pinheiro, que, no passado, presidiu ao Núcleo da Quercus em Lisboa; Cláudia Monteiro, ex-presidente do Núcleo do Algarve; João Branco, antigo presidente; e Paulo Mendes, ex-dirigente do Núcleo Regional de Braga e autor de uma providência cautelar, intentada no início de 2024, para destituir a actual direcção nacional da associação, alegando ter havido irregularidades na convocatória da assembleia-geral em Abril de 2023.

    Alexandra Azevedo, presidente da Quercus, reconheceu, em declarações ao PÁGINA UM, que a proposta de expulsão dos quatro sócios e ex-dirigentes se trata de uma medida inédita, e que, pelo menos desde 2008, é a primeira vez que são expulsos associados. Segundo a actual líder, a expulsão foi “proposta pela direcção nacional”, tendo a “comissão arbitral feito a instrução do processo e o relatório final”. Alexandra Azevedo escusou-se a revelar pormenores dos processos. A decisão final cabe agora aos associados que votarão a proposta de expulsão dos quatro associados.

    Alexandra Azevedo, presidente da Quercus. / Foto: D.R.

    Para João Branco e Paulo Mendes, a expulsão é uma manobra para eliminar eventuais candidatos em futuras eleições para a liderança da organização ambientalista. Segundo João Branco, com esta proposta “a actual direcção afasta a concorrência”.

    No resumo dos processos disciplinares que o PÁGINA UM consultou, Paulo Mendes considerou que “o procedimento disciplinar não tem qualquer fundamento e que não passa de um lamentável exercício destinado a afastar da Quercus um sócio incómodo e, nomeadamente, de o impedir de se candidatar às próximas eleições para os órgãos sociais”.

    Por sua vez, João Branco avançou com uma participação junto do Ministério Público contra diversos membros dos corpos sociais e organismos da Quercus, designadamente a actual presidente da associação ambientalista. Na participação, Alexandra Azevedo é acusada de actos que lesaram a Quercus no âmbito de uma obra de construção e ainda de ter beneficiado associados no pagamento de quotas em atraso em troca do seu voto nas eleições em assembleia-geral. Acusa ainda a dirigente de ter falsificado os relatórios e contas de 2020 e 2021 para obter resultados positivos.  

    João Branco. / Foto: D.R.

    A expulsão de João Branco, associado n.º 13447 e presidente da Quercus nos mandatos de 2015-2017 e 2017-2019 consta do quarto ponto na ordem de trabalhos da AGE. O antigo dirigente nacional da associação ambientalista foi processado pela Quercus, designadamente devido a acusações de má gestão financeira durante o seu mandato como presidente. Essas acusações incluem a alegada utilização indevida de fundos da associação para fins pessoais, o que motivou a abertura de um processo disciplinar.

    Na Justiça, João Branco foi alvo de três processos judiciais, no total. No primeiro, foi acusado de falsificar actas, tendo o processo sido arquivado, segundo informações do próprio ao PÁGINA UM, e indicou ainda que os outros dois processos estão em curso: um por alegada má gestão; e outro por se ter apropriado da conta da Quercus no Facebook.

    No caso do processo em que é acusado de má gestão, um parecer de Julho de 2018 do Núcleo de Assessoria Técnica do Ministério Público destacou a existência de operações e pagamentos que exigiam mais informações, designadamente gastos de deslocação em viatura própria e a compra de um fato, que foi classificada como despesa de representação. Mas também concluiu que, com base na informação do ROC da Quercus, “a certificação legal de contas do ano de 2018 confirma a melhoria da situação da associação, invertendo-se assim a situação dos anos anteriores, não identificando, caso se realizem os projectos iniciados, qualquer incerteza quanto à sua continuidade – em 2018 apresenta um resultado líquido de 100.225,91 euros”.

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    No processo disciplinar interno, João Branco é acusado de “falsificação de actas” da direcção nacional; “má gestão financeira e patrimonial”; “despesas não documentadas”; “contratação de serviços a empresas com relações familiares directas”; “acesso ilegítimo ao Facebook oficial da Quercus”; e “uso abusivo do nome, logótipo e marca ‘Quercus’”.

    A comissão arbitral concluiu que “o comportamento do associado para além de ser abusivo, é uma traição, uma afronta e uma deslealdade para com a Quercus”.

    Segundo a comissão arbitral, “os documentos constantes do presente procedimento disciplinar mereceram total credibilidade e corroboram os factos alegados na proposta fundamentada apresentada” pela Direcção Nacional, “mormente a Auditoria Forense realizada, que foi um trabalho externo, imparcial e preciso, elaborado por profissionais independentes. Todos os factos e documentos não foram impugnados pelo associado”.

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    João Branco, além de refutar as acusações, diz que solicitou o relatório da auditoria e que nunca lhe foi enviado. No caso da página da Quercus no Facebook, o engenheiro florestal garante que “não se apropriou da página da Quercus”.

    O segundo ponto da ordem de trabalhos da Assembleia Geral deste sábado inclui também a expulsão de Aline Pinheiro, que presidiu ao Núcleo da Quercus em Lisboa. No seu curriculum refere ainda que “criou e coordenou a temática da Construção Sustentável”, na associação e que “é autora do Projecto Edifício Verde – Edifício demonstrativo de construção sustentável, que implementou”. A arquitecta tinha sido expulsa em 2008, mas foi reintegrada quando João Branco liderou a associação.

    Segundo o resumo dos processos disciplinares, Aline Pinheiro é acusada de ter feito um “contacto à Gestora de Conta da Quercus da Caixa Geral de Depósitos (CGD), sem legitimidade e alegando motivos falsos, que resultaram na suspensão da decisão deliberada e aprovada, por unanimidade, a concessão de um empréstimo de 150.000 euros” por parte do banco “à Quercus, essencial para garantir a segurança financeira” da associação, “bem como para cumprimento de obrigações fundamentais”.

    Também é acusada de ter tido um “padrão de intervenções escritas desta associada numa linha de clara deslealde para com a Quercus, enviando e-mails a terceiros e/ou com conhecimento de terceiros”. A actual Direcção Nacional alega também a existência de “fortes indícios” de que Aline Pinheiro “esteve a dispor de “grande parte dos activos financeiros deixados pela Direção anterior do Núcleo, no valor de cerca de 20.000 euros, para benefício próprio, com diversas transferências para a empresa de que é sócia – Bongreen”.

    Aline Pinheiro. / Foto: D.R.

    Segundo o documento, “desde o ano de 2019, [Aline Pinheiro] recebeu através de pagamento á empresa Bongreen – Consultoria, Formação e Arquitectura, Lda., da qual era sócia maioritária, um total de 17.904,01 euros, dos quais 16.467,37 euros utilizando indevidamente a conta bancária do Núcleo Regional de Braga”. Adianta que “todos os factos e documentos não foram impugnados pela associada”, que num e-mail, em 20 de Maio de 2023, respondeu à associação: “Por favor! O que é isto? Eu estou-me a cagar para a Quercus ou para aquilo que vocês pensam de mim. (…)” .

    Para a Quercus, “a associada agiu, de forma voluntária, reiterada e com dolo directo, contra o bom nome e prestígio da Associação, e contra o cumprimento do consignado na Declaração de Princípios, Estatutos e Regulamentos, zelo e diligência nos cargos/funções que ocupava”. Na proposta final de sanção disciplinar, a comissão arbitral diz que “considera adequado e proporcional a aplicação da sanção disciplinar de expulsão da associada [Aline Pinheiro].”

    Cláudia Monteiro, ex-presidente do Núcleo do Algarve, eleita em 2020, é também um ‘alvo a abater’. Está acusada de ter feito um contacto ilegítimo com a Agência Portuguesa de Ambiente (APA) que resultou na suspensão da inscrição da Quercus no Registo Nacional das Organizações Não-Governamentais de Ambiente. Cláudia Monteiro respondeu à acusação por escrito, em Janeiro de 2024, “invocando a prescrição e caducidade do direito de acção disciplinar”, refutando as acusações e defendendo que sua actuação mais não foi do que “o exercício efectivo das competências que à data lhe assistiam enquanto Presidente do Núcleo Regional do Algarve, manifestando a sua discordância com a forma como a DN [direcção nacional] vinha exercendo as suas funções”.

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    O quinto e último potencial sócio expulso é Paulo Mendes, que foi dirigente do Núcleo Regional de Braga. O jurista foi o autor de uma providência cautelar, intentada no início de 2024, para destituir a actual direcção nacional, alegando ter havido irregularidades na convocatória da assembleia-geral da Quercus em Abril de 2023, na qual foi eleita a actual direcção presidida por Alexandra Azevedo para um segundo mandato. A providência cautelar acabou por ser revogada.

    Paulo Mendes é acusado pela Quercus de utilização indevida do nome de domínio ‘quercus.com.pt’. Mesmo depois de lhe ter sido pedido que cessasse a utilização do domínio, o antigo dirigente regional do Núcleo de Braga continuou a fazê-lo. Também é acusado de ter enviado informações confidenciais e de notas de imprensa no âmbito da providência cautelar que intentou.

    Em resposta às acusações, Paulo Mendes considerou que “o procedimento disciplinar não tem qualquer fundamento e que não passa de um lamentável exercício destinado a afastar da Quercus um sócio incómodo e, nomeadamente, de o impedir de se candidatar às próximas eleições para os órgãos sociais”. Também refutou as acusações e, sobre o uso do domínio, argumentou que “a palavra ‘quercus’ se reporta a um género de árvores” e que “pela consulta à base de dados do INPI, utilizam a marca ‘Quercus’ diversas entidades”. E diz que se “prontificou a oferecer à Quercus a titularidade do domínio ‘quercus.com.pt’”.

    Paulo Mendes “impugnou toda a matéria da acusação e os documentos que a acompanham”, peticiona o associado, a final, o arquivamento do procedimento,” e chegou a arrolar testemunhas”. Mas nenhuma testemunha chegou a ser ouvida e o associado continuou a usar o e-mail com domínio ‘quercus.com.pt’. Para a comissão arbitral, “o associado pretendeu, de forma clara, denegrir a imagem da Quercus, colocando em causa o seu bom nome e prestígio perante o público”.

    Apesar destas expulsões, o ‘ambiente tóxico’ entre os actuais antigos dirigentes da Quercus deverá continuar a prevalecer já que prosseguem processos em Tribunal, havendo ainda a possibilidade de haver nova litigância judicial no futuro após a confirmação da expulsão dos quatro associados.

    A Quercus é, desde há décadas, uma das mais activas associações ambientalistas de âmbito nacional, embora tenha ‘perdido’ parte dos seus ‘activos humanos’, depois da saída de vários destacados membros, que viriam a formar em 2015 a Zero, liderado por Francisco Ferreira.

    Mesmo com uma intervenção menos activa, a Quercus contava em 2023 com 2.897 associados, o valor mais baixo dos últimos 15 anos, mas vive actualmente uma situação financeira mais desafogada depois de anos de aflição. Nas contas de 2023 apresentou activos de cerca de 2,6 milhões de euros, rendimentos (sobretudo de donativos e apoios estatais) ligeiramente superior a um milhão de euros e contabilizou um lucro de 215 mil euros, contando com 15 funcionários.

    Notícia actualizada para adicionar a confirmação da expulsão dos quatro associados da Quercus, no 2º parágrafo.

    N.D.: Como é referido na Declaração de Transparência do PÁGINA UM, o director do jornal, Pedro Almeida Vieira, foi dirigente da Quercus, tendo desempenhado funções de vogal na direcção nacional no período de 1993-1995. Actualmente, não é sócio da Quercus. Também foi sócio-fundador da Zero (sem qualquer actividade).

  • ‘Dados biométricos ‘sacados’ pelo Estado vão parar às mãos de duas empresas estrangeiras

    ‘Dados biométricos ‘sacados’ pelo Estado vão parar às mãos de duas empresas estrangeiras

    São dados sensíveis que permitem a identificação de cidadãos através de características físicas, como o reconhecimento facial ou a impressão digital, mas estão a ser recolhidos por equipamentos fornecidos por empresas estrangeiras. Mas não existem garantias de que estejam a ser recolhidos e armazenados em segurança, e quais os níveis de acesso, manuipulação e uso por parte dos técncos de empresas privadas.

    Numa análise do PÁGINA UM aos contratos registados na plataforma de contratação pública, o Portal Base, observou-se que duas empresas estrangeiras estão já a dominar os chorudos contratos públicos relativos ao fornecimento de equipamentos e serviços relacionados com a recolha de dados biométricos: a sueca Speed Identity e ainda a Vision Box, uma empresa inicialmente portuguesas, financiada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e por outros programas da União Europeia, mas acabou vendida no ano passado à espanhola Amadeus, uma gigante ligada ao sector do turismo.

    Estas duas empresas arrebataram contratos que superaram, no total, os 14 milhões de euros (sem IVA), na sua maioria sem passar por concurso público. E também sem se saber qual o uso que as empresas privadas poderão dar ao dados biométricos que forem recolhidos no âmbito desses contratos, até porque está explícito que existe também uma prestação de serviços com técnicos e informáticos.

    O acesso a informação pessoal e sensível − como dados biométricos dos cidadãos − levanta sempre riscos em matéria de soberania, segurança e privacidade. Num mundo cada vez mais digital, a informação pessoal sensível é um produto que vende, mas também pode ser uma arma e uma ferramenta para eventuais roubos e fraudes.

    Segundo a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), a lei permite que entidades públicas ou privadas subcontratem serviços relacionados com recolha ou tratamento de dados respeitando as condições previstas na lei, designadamente as que estão previstas no artigo 28 do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), que estabelece a possibilidade de subcontratação. Contudo, apesar de todos os contratos que possam existir, acaba por ser uma questão de confiança, já que nem todas as entidades têm a capacidade para auditar a prestação do serviço prestado pelas empresas contratadas.

    A questão do acesso de terceiros a dados pessoais sensíveis é um tema que já levou a vários escândalos e à aplicação de multas aos infractores. Recorde-se que em Dezembro de 2022, a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) multou o Instituto Nacional de Estatística (INE) em 4,3 milhões de euros “pela prática de cinco contraordenações”. A condenação surgiu na sequência de um contrato adjudicado pelo INE à polémica empresa norte-americana Cloudflare, a qual teve acesso aos dados dos portugueses que responderam ao inquérito relativo ao Censos de 2021.

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    Um caso internacional que causou muita polémica envolveu a maior rede social do mundo, o Facebook, da Meta, e a Cambridge Analytica. O escândalo envolveu o acesso a dados sensíveis de quase 90 milhões de utilizadores da rede social pela consultora britânica, durante a década de 2010. A Cambridge Analytica usou os dados para fins de propaganda política sem o consentimento dos utilizadores.

    O Facebook foi obrigado a pagar 500 mil libras (quase 600 mil euros) ao Reino Unido por ter exposto os dados dos seus utilizadores a riscos graves. Quanto à consultora, declarou falência em 2018. Nos Estados Unidos, a Federal Trade Comission, cuja missão abrange a protecção dos consumidores, aplicou ao Facebook uma coima recorde de 5 mil milhões de dólares (cerca de 4,8 mil milhões de euros).

    Em Portugal, no ano passado, registaram-se, ao todo, cerca de 40 contratos públicos de aquisição de equipamentos e serviços de recolha daqueles dados sensíveis. Dois deles foram os maiores de sempre, referentes a tecnologias de recolha de dados biométricos.

    Foto: Vision Box / D.R.

    Os dois maiores contratos registados no Portal Base, foram adjudicados no ano passado à Speed Identity, um por via de ajuste directo e outro através de concurso público. No total, esta empresa facturou 4,2 milhões de euros (5,2 milhões de euros, com IVA), com três contratos celebrados em 2024 com entidades estatais portuguesas.

    O maior contrato envolvendo equipamento de identificação e leitura de dados biométricos foi adjudicado pela secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), em Julho último, para o fornecimento, “instalação, manutenção e assistência técnica de equipamentos controlo manual de fronteiras e de equipamentos de recolha de dados biométricos”. O negócio foi entregue à empresa sueca, através de concurso público, ascendendo a 2,4 milhões de euros com um prazo de execução de três anos.

    No passado dia 13 de Novembro, a PCM fez novo contrato com a Speed Identity, através de um ajuste directo no valor de 1,6 milhões de euros para “Aquisição, instalação, assistência técnica e manutenção de 75 equipamentos móveis de recolha de dados biométricos”. Não se conhecem os detalhes do negócio, já que o caderno de encargos não está disponível.

    Foto: D.R.

    A justificação para o ajuste directo foi a habitual “urgência imperiosa”, uma ardilosa forma de não realizar concurso público. Por regra, somente se pode alegar “urgência imperiosa” para justificar um ajuste directo se ocorrerem “acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, [e] não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Ora, quase nunca essa invicação surge justificação.

    Este contrato foi celebrado ao abrigo de uma disposição na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, que prevê que os contratos cujo valor seja superior a 950 mil euros e tenham sido celebrados por motivo de urgência imperiosa, podem entrar em vigor antes do visto ou declaração de conformidade do Tribunal de Contas.

    Já em Março, a sueca tinha ganho um concurso da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), no montante de 211.541 euros, para “aquisição equipamento para recolha de dados biométricos (10 impressões digitais)”.

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    Mas a empresa que obteve o maior valor em contratos do género foi a Vision Box. Em 2024, a Vision Box angariou contratos de 5,6 milhões de euros (6,9 milhões de euros, com IVA) junto de entidades públicas, na maioria através de ajustes directos. Entre as entidades que adjudicaram contratos a esta tecnológica estão a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), a Secretaria-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), Agência para a Modernização Administrativa e Qualidade do Serviço ao Cidadão e a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).

    No caso da PCM, fez um ajuste directo recente à Vision Box para a “aquisição de 54 leitores de documentos, no âmbito do Sistema de Controlo de Fronteiras”, no valor de 306.770 euros. O Governo também fez outros ajustes directos recentes com outras entidades no âmbito do projecto ‘Smart Borders’, designadamente um no valor de 541.266 euros, com a Claranet, no dia 30 de Dezembro, e um no montante de 154.325 euros, com a Integrated Biometrics, no dia 26 de Dezembro. Também nestes casos, os respectivos cadernos de encargos não estão acessíveis, uma quebra de regras de transparência na contratação pública. Questionada sobre os contornos destas compras, a PCM não respondeu às questões colocadas pelo PÁGINA UM.

    Também o Ministério dos Negócios Estrangeiros fez ajustes directos para a aquisição do mesmo tipo de equipamentos e serviços. O MNE efectuou, no dia 26 de Dezembro, um ajuste directo com Vision Box, no valor de 744.375 euros, para “aquisição de estações móveis para recolha de dados biométricos”. O prazo de execução é de 21 meses.

    A justificação para não ter sido feito concurso foi, neste casos, os direitos de propriedade intelectual. Os detalhes do negócio não são, porém, conhecidos. Apesar de ser disponibilizado no Portal Base um ‘link” para se aceder às peças deste procedimento, a ligação remete para uma página que indica “acesso não autorizado”, pelo que não se conseguem visualizar os documentos, nomeadamente o caderno de encargos.

    Em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM, o MNE justifica a realização deste contrato com o facto de que a “empresa Vision Box fez parte da equipa que desenvolveu este projeto”, tendo “desenvolvido a solução de recolha de dados biométricos K-PEP (e agora também M-PEP) num processo de parceria com as entidades governamentais portuguesas, designadamente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do Ministério da Administração Interna e o Instituto de Registos e do Notariado (IRN) do Ministério da Justiça”.

    O Ministério também explicou que, “entretanto, há cerca de três anos, foi criado um grupo de trabalho com todos os intervenientes (IRN, MNE, Casa da Moeda) para estabelecerem requisitos específicos de melhoria das funcionalidades dos quiosques tanto ao nível da usabilidade e portabilidade como ao nível da Segurança”.

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    Os dados biométricos são considerados dados sensíveis, existindo o risco de poderem ser usados para roubos e fraudes. / Foto: D.R.

    No entanto, “o MNE, aguardando os resultados deste grupo de trabalho, tem vindo a assegurar os serviços nos Postos Consulares apenas com os quiosques antigos (a[c]tuais), que necessitam invariavelmente de reparações, com todas as implicações que daí advêm tais como custos de reparações e outros custos de transportes”, salientou.

    Contudo, as conclusões do grupo de trabalho criado há três anos nunca mais chegam, Segundo o Ministério liderado por Paulo Rangel, “face ao significativo atraso destes resultados, aos vários pedidos dos Postos, e não podendo pôr em causa os serviços prestados no estrangeiro, o MNE terá de adquirir alguns quiosques para, enquanto não se obtêm resultados para as novas especificações técnicas, minimizar as faltas já existentes e que põem em causa o bom funcionamento dos serviços consulares no Estrangeiro”.

  • Conselho Superior da Magistratura promete, finalmente, acatar a lei do acesso aos documentos administrativos

    Conselho Superior da Magistratura promete, finalmente, acatar a lei do acesso aos documentos administrativos

    Após mais de três anos de litígios, João Cura Mariano, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e por inerência do Conselho Superior da Magistratura (CSM), manifestou ontem ao final da tarde a intenção de acatar a sentença proferida no passado dia 14 de Janeiro pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, que obrigou a cúpula da justiça portuguesa de disponibilizar e permitir a cópia em fotografia do inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês. Através de mensagem de correio electrónico, foi solicitado ao PÁGINA UM que indicasse “o dia em que pretende proceder à consulta requerida, nas instalações do CSM”.

    O caso remonta a finais de 2021, tendo sido a primeira de uma longa lista de mais de duas dezenas de intimações já colocadas pelo PÁGINA UM nos tribunais administrativos, com o apoio financeiro dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Em causa estava então o acesso ao inquérito do CSM sobre a distribuição do processo da Operação Marquês, entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre. Este inquérito, que revelou irregularidades como a ausência de sorteio electrónico, foi mantido secreto pelo CSM, apesar de ser classificado como documento administrativo. Após uma recusa inicial e um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), o CSM continuou a negar o acesso, alegando questões de confidencialidade.

    Sede do Conselho Superior da Magistratura, em 2 de Agosto de 2023, quando o director do PÁGINA UM se deslocou para consultar o relatório do inquérito da Operação Marquês, após um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. A recusa de obtenção de cópia nessa data implicou nova ‘batalha judicial’ somente concluída mais de 17 meses depois.

    A resistência do CSM levou o PÁGINA UM a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa, onde, em Junho de 2022, uma primeira sentença favorável ordenou a entrega integral dos documentos, sem restrições. O CSM apelou da decisão, mas o Tribunal Central Administrativo do Sul confirmou, em 2023, a sentença inicial. Apesar disso, o CSM dificultou o acesso integral, impedindo que fosse fotografados os documentos, e mutilando partes consideráveis do texto em fotocópias então disponibillizadas, o que levou o PÁGINA UM a recorrer novamente ao Tribunal Administrativo. Se o CSM não acatasse agora a nova sentença deste mês, o juiz conselheiro João Cura Mariano seria pessoalmente responsável pelo pagamento de 50 euros por dia de atraso.

    Este desfecho marca uma vitória histórica para o PÁGINA UM, que, desde a sua fundação, tem lutado pela transparência e pelo acesso à informação. No entanto, este caso também levanta questões cruciais sobre a responsabilização individual de altos dirigentes em situações de incumprimento de decisões judiciais e sobre o papel das instituições judiciais no respeito pelos princípios democráticos e pela liberdade de imprensa.

    Recorde-se, aliás, que o PÁGINA UM tem em curso outros dois casos absurdos de incumprimento de acórdãos dos tribunais administrativos superiores. O primeiro caso refere-se à consulta da base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH), que inclui toda a informação dos internamentos, sem qualquer identificação de pessoas, há muito prevista nas próprias competências da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Apesar de uma ‘luta jurídica’ iniciada em Setembro de 2022, que culminou em três decisões judiciais, incluindo um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo em 1 de Junho de 2023, a ACSS mutilou completamente a base de dados, eliminando ou agrupando variáveis, comprometendo toda a integridade da informação. O pedido de intervenção ao Tribunal Administrativo ainda não teve um epílogo.

    João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do Conselho Superior da Magistratura, a cumprimentar o Presidente da República: sentença do Tribunal Administrativo aplicou uma sanção pecuniária compulsória de 50 euros por dia se não fosse satisfeito integralmente o pedido do PÁGINA UM.

    O outro caso envolve a base de dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19, um processo iniciado também no final de 2021, e que teve um acórdão favorável do Tribunal Central Administrativo do Sul ao PÁGINA UM em 11 de Julho do ano passado. Esse acórdão, que alterara uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, ordenava que se facultasse o acesso aos dados pretendidos no Portal RAM. Mas o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo, enviou os elementos mas mutilando informação, agregando variáveis e escondendo outras variáveis, incluindo a causalidade. Embora o PÁGINA UM tenha já feito diversas insistências para que Rui Santos Ivo deixe de esconder intencionalmente essa informação, ainda não se conseguiu reverter a postura obscurantista de um funcionário público que não cumpre decisões dos tribunais administrativos.

    Um outro caso pode ainda juntar-se a estes dois. O presidente do Instituto Superior Técnico, Rogério Colaço, ainda não manifestou intenção de cumprir um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul do passado dia 12 de Dezembro que ordenou a disponibilização de 51 relatórios desta instituição universitária sobre a pandemia, que alimentaram o contínio alarme social nos anos de 2021 e 2022. Recorde-se que, para tentar não mostrar ao PÁGINA UM estes trabalhos supostamente científicos, o IST chegou a referir cada relatório era afinal “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

  • Banco de Portugal já gastou 1.052.650,52 euros só em andaimes e lonas em ‘obra de Santa Engrácia’

    Banco de Portugal já gastou 1.052.650,52 euros só em andaimes e lonas em ‘obra de Santa Engrácia’

    Num quarteirão da Avenida Almirante Reis, em plena Lisboa, crescem plantas e prosperam ervas à sombra de andaimes e lonas que há quase anos ‘embrulham’ a fachada do emblemático edifício do Banco de Portugal. Não se vê ali qualquer movimento de obras nem de trabalhadores de construção civil, mas isso não significa que não haja fluxos financeiros, Há, sim, e não são poucos: a factura de lonas e andaimes já vai em 1.052.650,52 euros, IVA incluído. E isto sem sequer ali ter entrado um martelo, um saco de cimento nem uma colher de pedreiro. Foi mesmo só para andaimes e lonas; nada mais.

    Em quase quatro anos, de acordo com a investigação do PÁGINA UM, o Banco de Portugal fechou três contratos por ajuste directo com a Tubos Vouga que, sem ‘mexer uma palha’ − só mexeram em andaimes, que ali ficaram − soma receitas atrás de receitas, mesmo obras. Isto num edifício que o Banco de Portugal vai deixar de usar em breve, já que vai transferir temporariamente os serviços que ali funcionam para o Edifício Marconi, em Entrecampos, situado ao lado do antigo terreno da Feira Popular, pertencentes à chinesa Fidelidade. Segundo uma notícia do jornal Eco de Outubro passado, o Banco de Portugal pondera vir a construir um edifício-sede para concentrar os seus quadros.

    primeiro contrato de montagem de andaimes foi assinado a 10 de Maio de 2021, por um prazo de dois anos, e teve o valor de 206.521 euros. O ajuste directo foi a “urgência imperiosa”. Mas se havia urgência imperiosa para montar andaimes, não houve para avançar com a obra. E assim, mais de dois anos depois, em 27 de Outubro de 2023 houve segundo contrato no montante de 163.244,16 euros, por um prazo de um ano. Foi mais um ajuste directo, e aí a justificação foi a inexistência de concorrência por motivos técnicos.

    mais recente contrato é 28 de Junho do ano passado, e vigora por um período de cerca de três anos, envolvendo uma verba de 486.047,29 euros. Neste caso, houve concurso público, tendo concorrido a Tubos Vouga e a Catari Portugal. Venceu a Tubos Vouga sem surpresa: pôde apresentar melhores ‘condições’ porque já lá estavam os seus andaimes. Se tivesse sido a Catari Portugal, seria necessário desmontar os andaimes da Tubos Vouga e montar outros da nova empresa. E a obra em concreto parada.

    O Edifício Portugal situa-se na Avenida Almirante Reis/Rua Febo Moniz, em Lisboa. (Abril de 2024) / Foto: PÁGINA UM

    As obras neste edifício do Banco de Portugal mostraram-se necessárias depois da queda de pedaços de elementos que compõem a fachada no início de 2021, que levou à colocação dos andaimes em Junho de 2021. Seguiu-se um relatório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, de Fevereiro do ano seguinte, que chegou à conclusão de que partes a estrutura da fachada tinham atingido “o tempo de vida útil”.

    Assim, desde essa altura, a zona envolvente ao edifício ficou acondicionada pelas estruturas dos andaimes e das lonas, apesar de a Câmara Municipal de Lisboa ter indicado ao PÁGINA UM que apenas autorizou a “ocupação da via pública em Maio de 2024”. Não se sabe se o Banco de Portugal foi alvo de alguma multa ou repreensão por eventual ocupação indevida da via pública, mas certo é que há três anos e meio que a situação se arrasta, sem obras à vista ou escondidas.

    Finalmente, no mês passado, no dia 9 de Dezembro, o Banco de Portugal adjudicou à empresa Struconcept um contrato para a elaboração do “projecto para reparação dos elementos de fachada em betão armado do Edifício Portugal”, num contrato por ajuste directo no montante de 59.750 euros. O absurdo desta situação é que este projecto para saber como se vai recuperar a fachada tem um prazo de conclusão de 392 dias. Ou seja, são mais 392 dias com andaimes sem obras.

    Fotos divulgadas pela Tubos Vouga, em Junho de 2021, quando concluiu a instalação dos andaimes na fachada voltada para a Rua Febo Moniz (as duas fotos da esquerda) e dos andaimes suspensos na fachada virada para a Av. Almirante Reis (foto da direita). / Foto: D.R.

    O Edifício Portugal, na Avenida Almirante Reis, foi originalmente projectado em 1973 pelo reputado arquitecto Maurício de Vasconcelos, dono de um vasto portfólio de obras públicas e privadas. Foi responsável, por exemplo, pelos projectos de remodelação do Cinema Avis e do Restaurante Gambrinus, e da sede da Sociedade Portuguesa de Autores, bem como diversos empreendimentos do sector do turismo. Também coordenou vários planos urbanísticos e projectos em autarquias, designadamente em Lisboa e em Almada.

    Em 1985, a Pardal Monteiro – Arquitectos realizou um projecto de ampliação do Edifício Portugal até à Avenida Almirante Reis e desenhou também os interiores e o mobiliário. Foi nessa altura que se instalou também, neste edifício, um painel de azulejo do famoso artista plástico Querubim Lapa, o qual lhe valeu o Prémio Municipal de Azulejaria de Lisboa. Com cerca de 47.000 metros quadrados de área útil, o edifício integra uma área de 18.500 metros quadrados destinada a escritórios, um refeitório e cozinha, um auditório e salas de reuniões, um salão polivalente e ainda uma zona de armazéns e arquivos.

    Manuel Cottinelli Telmo Pardal Monteiro, um arquitectos responsável por aqueles projectos, disse ao PÁGINA UM que desconhecia que tinha sido adjudicado o projecto de reparação de elementos da fachada do edifício. “Não sabia. É natural que haja obras de conservação em edifícios”, disse o arquitecto que confirmou que não foi consultado nem deu o seu parecer, o que não teria de fazer, tratando-se de mera manutenção. Este arquitecto confirmou que o edifício não está classificado nem sequer é considerado de interesse municipal, algo que veria com bons olhos se viesse a acontecer.

    Painel de azulejo de Querubim Lapa. / Foto: D.R.

    Para já, desconhece-se o destino e o futuro deste edifício, que eventualmente mudará de mãos quando o Banco de Portugal deixar aquelas instalações, o que já está em preparação.

    Além do milionário custo dos andaimes, o Banco de Portugal tem assumido outras despesas, sobretudo correntes, com o edifício que será para desocupar. Por exemplo, em Junho de 2022 o Banco de Portugal gastou 90 mil euros na “aquisição de serviços de manutenção de floreiras e canteiros, interiores e exteriores, do Edifício Portugal”. O negócio foi entregue à empresa Jardins Tesouro, por um prazo de três anos.

    Teve também gastos com a manutenção do edifício. Por exemplo, num contrato celebrado em Outubro de 2022, o Banco de Portugal contratou a empresa Rioboco. para fazer a “prestação dos serviços de manutenção das instalações” de dois dos seus dos edifícios, incluindo o situado na Avenida Almirante Reis, e um outro, nos Olivais. O contrato válido por cinco anos envolveu uma despesa de 3.844.700 euros. Este contrato, realizado na sequência de um concurso público, abrangeu, designadamente, a manutenção da rede eléctrica e iluminação das instalações, mas exclui a manutenção de outros elementos, como os elevadores, que consubstanciam uma despesa à parte. Como não existe caderno de encargos no Portal Base, não se sabe quais foram os custos específicos do Edifício Portugal.

    O Edifício Marconi, na Av. Álvaro Pais, será uma casa temporária para os serviços que o Banco de Portugal tem a funcionar no Edifício Portugal, na Av. Almirante Reis. / Foto: PÁGINA UM

    Um mês antes, em Setembro de 2022, o Banco de Portugal tinha contratado, por 600 mil euros, a empresa unipessoal José Jesus Cardoso para fazer a “remodelação interior de espaços nos edifícios do distrito de Lisboa”, incluindo o edifício situado na Avenida Almirante Reis, ou seja, sem envolver a fachada.

    Em todo o caso, as despesas com este e outros edifícios do Banco de Portugal são ‘peanuts‘ comparando com as largas centenas de milhões de euros que terá de eventualmente desembolsar se avançar com a compra do terreno e a construção do novo edifício para centralizar todos os serviços. Sendo que o Banco de Portugal é dono de um terreno pelo qual pagou 37 milhões em 2018, onde planeava concentrar os serviços que tem dispersos por quatro edifícios diferentes em Lisboa, o que nunca chegou a acontecer.

    O PÁGINA UM questionou o Banco de Portugal, ainda no ano passado, sobre o calendário das eventuais obras de conservação e de restauração, bem como sobre o futuro do Edifício Portugal, mas por telefone o gabinete de comunicação da instituição liderada por Mário Centeno disse que não seriam dadas quaisquer informações.