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  • Jornal de Notícias introduziu nas eleições autárquicas um modelo inédito: debates patrocinados

    Jornal de Notícias introduziu nas eleições autárquicas um modelo inédito: debates patrocinados


    O Jornal de Notícias introduziu nesta campanha eleitoral uma “inovação”: a realização de debates patrocinados, em que a entidade que paga assume a escolha dos temas a debater. Para agravar, a entidade pagadora foi a secção regional do Norte da Ordem dos Engenheiros (OERN), que está impedida de condicionar a campanha eleitoral por se enquadrar no sector público, uma vez que exerce funções atribuídas pelo Estado.

    Apresentada como uma série de “debates com Engenharia”, promovida em conjunto pela OERN e pelo Jornal de Notícias — que publicou o conteúdo em formato informativo e com a participação de jornalistas, o que constitui uma incompatibilidade legal, já que estes não podem participar em eventos de índole comercial —, a iniciativa decorreu ao longo das últimas duas semanas, em plena campanha eleitoral. Realizaram-se quatro debates com candidatos às Câmaras Municipais do Porto, Braga, Viana do Castelo e Bragança, centrados sobretudo em dois temas escolhidos pela Ordem dos Engenheiros – Região Norte (OERN): habitação e mobilidade.

    Debate eleitoral em Braga pago pela Ordem dos Engenheiros.

    Para isso, a entidade liderada por Bento Aires dispôs-se a pagar quase 25 mil euros, com IVA, para ver – e ele aparecer – os candidatos a debaterem habitação e mobilidade. Presume-se que, se fosse a Confederação dos Agricultores de Portugal a financiar, poder-se-ia ter assistido a debates sobre a produção de couves de Bruxelas e de nabos. Ou, se o patrocínio viesse de uma coligação da Confraria da Alheira de Mirandela, da Confraria do Fumeiro, Salpicão e Linguiça de Vinhais e da Confraria do Bucho Raiano de Sabugal – que efectivamente existem – , talvez os candidatos discutissem o impacto dos enchidos no desenvolvimento regional. O Jornal de Notícias demonstra que tudo agora será possível se houver 25 mil euros.

    De facto, segundo o contrato celebrado entre a OERN e a Notícias Ilimitadas, proprietária do Jornal de Notícias, as condições desta esdrúxula relação comercial com vista à realização de um debate político determinavam que seriam convidados apenas os representantes dos partidos com assento na Assembleia Municipal de cinco concelhos — sendo que o debate previsto para Vila Real acabou por não se realizar. Esta cláusula restringia o número de participantes, levando à exclusão de várias candidaturas legalmente registadas nas eleições autárquicas de 2025.

    Assim, no Porto, onde existiam 12 candidaturas activas, apenas oito participaram no debate de 30 de Setembro. Ficaram de fora o Partido Liberal Social, o ADN, a CDU e o Partido Trabalhista Português. Em Braga, onde o debate se realizou no dia 1 de Outubro, estiveram presentes sete das dez listas concorrentes. Em Viana do Castelo, a CDU ficou igualmente excluída do debate de 29 de Setembro, e em Bragança, realizado no dia 25 de Setembro, participaram apenas quatro das sete candidaturas registadas.

    Debate eleitoral no Porto dinamizado pelo Jornal de Notícias e pago pela Ordem dos Engenheiros. Presidente da secção regional do Norte, Bento Aires, teve direito a foto de conjunto no meio dos candidatos.

    A própria OERN não escondeu as suas intenções nesta parceria: “colocar em evidência a influência da Engenharia e dos/as Engenheiros/as nas políticas locais e como as autarquias podem crescer e inovar quando a decisão é feita com Engenharia”. Contudo, em nenhum dos debates — disponíveis nos sites do jornal e da OERN — é feita qualquer referência a esta parceria ser remunerada, nem os diferentes candidatos terão sido informados de que a escolha dos temas resultou de um pagamento da Ordem dos Engenheiros ao Jornal de Notícias.

    Este inédito (ou pelo menos até agora desconhecido) modelo de debates patrocinados levanta questões legais e éticas. A Ordem dos Engenheiros é uma associação pública profissional, mas com um enquadramento jurídico que a equipara às entidades públicas, razão pelo qual tem de cumprir as regras de contratação pública.

    Uma vez que exerce “poderes públicos”, a Ordem dos Engenheiros está sujeita aos princípios da legalidade, imparcialidade e prossecução do interesse público, não podendo as suas actividades envolver interferência político-partidária nem favorecimento de interesses particulares, sendo obrigatória a neutralidade institucional. Assim, a celebração de um contrato comercial para promover debates políticos durante o período eleitoral pode violar estes princípios e colocar em causa a natureza pública e independente da instituição.

    Com 25 mil euros, Bento Aires pôde brilhar junto dos candidatos autárquicos.

    Por outro lado, a participação do Jornal de Notícias enquanto parceiro e beneficiário financeiro da iniciativa suscita dúvidas sobre a independência editorial e a necessária separação entre jornalismo e patrocínio institucional. O contrato previa que o jornal assegure a divulgação dos debates, seleccionando temas previamente acordados com a OERN, o que introduz uma clara condicionante à autonomia editorial. Os debates foram também moderados por um antigo jornalista, Paulo Ferreira, agora com funções de direcção-comercial. Paulo Ferreira é também investigador do Centro de Estudos de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, sendo assim colega da actual presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Helena Sousa. O regulador tem sido particularmente condescendente com a promiscuidades nos grupos de media,

    Questionado pelo PÁGINA UM sobre a eventual ilegalidade do contrato e sobre as exclusões verificadas, o presidente do Conselho Directivo da Região Norte da Ordem dos Engenheiros, Bento Aires, respondeu apenas por escrito, dizendo que a realização dos debates se deveu ao facto de que “a Engenharia está envolvida no desenvolvimento das autarquias em diferentes dimensões, como habitação, mobilidade, segurança e planeamento”. Acrescentou, apesar de ser contrariado pelo próprio contrato assinado entre as partes, que “todos os candidatos a Presidente de Câmara Municipal foram convidados atempadamente, tendo comparecido os que aceitaram o convite”, assumindo ainda que “os debates decorreram com total imparcialidade e isenção, sendo um contributo cívico para aprofundar o debate público das temáticas referidas.”

    O PÁGINA UM também contactou a Comissão Nacional de Eleições (CNE) para obter comentários sobre se a realização de debates patrocinados por entidades com funções públicas durante o período pré-eleitoral é compatível com a lei eleitoral, mas não obteve ainda resposta, embora o pedido tenha sido confirmado como recebido.

    Paulo Ferreira, ex-jornalista, agora com funções comerciais no Jornal de Notícias, foi o moderador dos debates. É também investigador do Centro de Estudos de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho.

    Além das dúvidas jurídicas, especialistas em ética dos media alertam que a introdução de debates patrocinados — onde o financiador define os temas e as regras de participação — compromete a independência jornalística e cria precedentes de condicionamento editorial por via contratual. Este caso ocorre num contexto em que a linha que separa jornalismo informativo e conteúdos pagos se tem tornado cada vez mais difusa, nomeadamente em iniciativas de branded content e “parcerias institucionais”.

    Contudo, ao envolver debates entre candidatos em plena fase eleitoral, a iniciativa da OERN e do Jornal de Notícias ultrapassa o domínio publicitário e entra na esfera da comunicação política condicionada, levantando questões sérias de transparência, legalidade e equidade democrática.

  • Mais de 13% da população activa: Mourão, Monforte e Moura lideram dependência do Rendimento Social de Inserção

    Mais de 13% da população activa: Mourão, Monforte e Moura lideram dependência do Rendimento Social de Inserção


    Três concelhos alentejanos concentram o epicentro da dependência social em Portugal. Mourão, Monforte e Moura são os municípios que largamente sobressaem quando se observa o mapa de 2024 do Rendimento Social de Inserção (RSI) em função da população activa, ontem divulgado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).

    A prestação social que deveria ser transitória mostra estar a enraizar-se em muitas regiões do país, constituindo uma espécie de indicador da pobreza estrutural portuguesa. Nestes três concelhos do Alentejo interior, de acordo com o INE, mais de 13% da população activa vive do RSI: 137,25 por mil em Mourão, 135,25 em Monforte e 133,66 em Moura. São valores mais de cinco vezes superiores à média nacional, que se situou no ano passado nos 24,22 por mil — ou seja, cerca de 2,4%.

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    O município da Ribeira Grande, nos Açores, com 100,29 beneficiários por mil habitantes activos — o equivalente a 10% da população — é o quarto concelho acima dos 10%, um número fortemente influenciado pela freguesia de Rabo de Peixe, símbolo histórico da exclusão social. No mesmo arquipélago, outros concelhos reforçam a gravidade da situação, ainda que com valores mais baixos: Nordeste (80,28), Povoação (77,56) e Santa Cruz da Graciosa (67,31). Estes dados evidenciam que, em várias ilhas açorianas, o RSI deixou de ser uma rede de segurança para se converter num pilar essencial da economia local.

    Ainda acima dos 6% da população activa destacam-se Elvas (65,84), Idanha-a-Nova (63,98), Serpa (63,62), Vidigueira (62,68) e Avis (61,49). A lista mantém-se quase toda no sul do país, reforçando o peso estrutural do Alentejo como território mais dependente de prestações sociais. Só Moimenta da Beira (61,44) rompe o padrão, surgindo como o primeiro concelho fora do Alentejo e dos Açores a ultrapassar a barreira dos 6%. Logo depois aparecem Santa Marta de Penaguião (59,94), Figueira de Castelo Rodrigo (58,89), Peso da Régua (58,59) e Murça (58,18), todos no interior norte, na zona de Trás-os-Montes e Douro.

    Mas a maior surpresa acaba por ser o peso do RSI na cidade do Porto. Segundo o INE, o rácio foi no ano passado de 58,04 por mil habitantes em idade activa — o equivalente a 5,8% da população —, o que significa que cerca de 6.400 pessoas beneficiaram desta prestação. Em números absolutos, este é o concelho do país com o maior número de beneficiários.

    Mourão, no Alentejo, lidera a dependência social em Portugal: acompanhada de Monforte e Moura, têm um rácio de RSI em função da população activa mais de cinco vezes a média nacional.

    Ponta Delgada (58,35) e Lagoa (54,50), nos Açores, e Campo Maior (53,69), Cuba (52,75), Reguengos de Monsaraz (51,48) e Beja (50,02), no Alentejo, fecham o grupo dos territórios onde mais de 5% da população activa depende do subsídio. O Baixo Alentejo, no seu conjunto, regista 52,79 beneficiários por mil habitantes activos — 5,3% da população —, ultrapassando mesmo a média dos Açores (49,07).

    No plano regional, o contraste é evidente. A média nacional situa-se nos 24,22 por mil, o que significa que 2,4% da população activa portuguesa vive com o RSI. Acima deste valor encontram-se o Baixo Alentejo (52,79) e os Açores (49,07), mas também, com índices de apoio social bastante elevados, o Alto Alentejo (37,52), o Douro (37,26), a Península de Setúbal (31,62), a Área Metropolitana do Porto (31,61), as Terras de Trás-os-Montes (30,93) e o Alto Tâmega e Barroso (30,90). São, pois, regiões que ultrapassam os 3% da população activa dependente.

    O padrão é claro: as áreas com menor diversificação económica e menor densidade populacional exibem rácios mais elevados, e as zonas industriais ou mais urbanizadas apenas escapam a esta regra quando enfrentam problemas estruturais de emprego e rendimentos baixos.

    Porto é o município que, em termos absolutos, mais população activa beneficia de apoio social

    No extremo oposto, há um outro país: um total de 38 concelhos contam com menos de 1% da população activa a receber RSI. A liderança positiva cabe a Vizela, onde apenas 0,47% da população é beneficiária — 4,71 por mil. Barcelos (5,23) e Esposende (5,86) seguem-se como os concelhos com maior autonomia social. O top 10 dos menos dependentes completa-se com Oliveira de Frades (6,72), Óbidos (7,00), Ponte de Lima (7,80), Sever do Vouga (7,31), São Roque do Pico (7,32), Vila Verde (7,51) e Mealhada (7,61). Todos apresentam uma economia mais diversificada, níveis de emprego estáveis e maior coesão social — factores que mitigam a necessidade de apoio público permanente.

    Outros concelhos com valores inferiores a 1% incluem Oleiros, Melgaço, Arruda dos Vinhos, Mira, Arraiolos, Condeixa-a-Nova, Terras de Bouro, Vale de Cambra, Monção, Mafra, Póvoa de Lanhoso, Santiago do Cacém, Oliveira de Azeméis, Anadia, Vouzela, Santa Cruz, Guimarães, Arcos de Valdevez, Nazaré, Murtosa, Ponte da Barca, Ourém, Caldas da Rainha, Vila do Bispo, Caminha, Sobral de Monte Agraço e Arouca.

    A dispersão geográfica destes concelhos demonstra que a baixa dependência do RSI não é exclusiva de regiões consideradas ricas: há concelhos rurais, com indústria ou agricultura robusta, que conseguem garantir uma autonomia económica mínima sem recurso massivo ao subsídio.

    Nas grandes metrópoles, o quadro não é favorável, sobretudo porque os valores absolutos são inquietantes. Em Lisboa, 36,46 por mil habitantes activos — 3,6% — recebem RSI, valor acima da média nacional, embora inferior ao de outras áreas metropolitanas. Sintra, curiosamente, está muito abaixo (16,47), enquanto a Amadora (24,45) se situa praticamente na média nacional. Cascais, símbolo de riqueza, apresenta 17,11 por mil, e Oeiras, o concelho com maior proporção de licenciados, ainda regista 10,86 — cerca de 1,1% da população. Ou seja, mesmo nos territórios mais prósperos, persistem bolsas de vulnerabilidade.

    Estes números traçam um retrato nítido de um país dividido. Por um lado, um Portugal que conseguiu diversificar a sua base económica e reduzir a dependência; por outro, um Portugal que permanece encurralado em ciclos de pobreza e exclusão social, onde o RSI deixou de ser uma ponte para a integração para se transformar num pilar de sobrevivência.

    Haverá, por certo, quem queira retirar “dividendos” políticos — por ver predominância dos apoios sociais em Mourão e Monforte, com comunidades ciganas relevantes —, mas a equação é mais complexa. A interioridade, o isolamento e a fragilidade produtiva continuam a ser factores determinantes, mas há igualmente um problema de cultura institucional: a prestação foi concebida como instrumento de inserção, mas em muitas zonas está a tornar-se uma condição permanente, por faltarem investimentos públicos que quebrem uma crónica debilidade socioeconómica.

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    Aliás, mais do que uma “geografia étnica”, a distribuição do RSI coincide, em larga medida, com uma geografia do despovoamento e da concentração desregulada. Concelhos envelhecidos, com baixa natalidade e pouca oferta de emprego, acabam por depender de mecanismos de redistribuição que perpetuam a inércia — embora cada vez se observem mais franjas urbanas, como o Porto e até Vila Nova de Gaia, com problemas que já não parecem conjunturais.

    Mas também há lições a retirar do outro extremo, mais favorável. Se considerarmos que o rácio de RSI em função da população activa indica sinais de menor ou maior prosperidade económica, verifica-se que as regiões menos dependentes de apoios sociais não são necessariamente as mais ricas, mas aquelas que mantêm uma actividade económica real — indústria, agricultura ou serviços — e uma relação mais equilibrada entre Estado e comunidade.

  • Sede da ‘polícia da bolsa’: Remodelações de interiores ‘às mijinhas’ custarão mais de oito milhões de euros

    Sede da ‘polícia da bolsa’: Remodelações de interiores ‘às mijinhas’ custarão mais de oito milhões de euros


    A ‘polícia da bolsa’ , o jargão usado para nomear a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), queixa-se frequentemente de falta de recursos humanos para melhor fiscalizar os mercados financeiros. Mas, como já se tornou hábito no sector público português, mesmo se os recursos humanos escasseiam, poucos decisores conseguem fugir à tentação de deixar obra feita, literalmente, com placa de inauguração à mistura.

    Neste tipo de cultura vigente, os membros do conselho de administração da CMVM, liderado por Luís Laginha de Sousa – que trouxe a ‘escola’ do Banco de Portugal, de onde foi administrador entre 2017 e 2022 – não fogem à regra e aprovaram um projecto de melhoraria de interiores da sua sede em Lisboa, junto ao Hospital Curry Cabral, que não tem fim à vista nem contas perfeitamente definidas. Mas pelo que se tem já gasto é possível estimar que custarão para cima dos oito milhões de euros,

    A remodelação da sede da CMVM prevê a criação zonas de lounge. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Só para a remodelação do piso técnico (onde se encontra maquinaria), do piso 1 e metade do piso 11, a CMVM está agora disposta, de acordo com um concurso público, a pagar um pouco mais de dois milhões de euros, que inclui um ginásio com balneários e ainda uma zona de gaming (jogos electrónicos) para os cerca de 220 trabalhadores. Note-se que esta remodelação é apenas de interiores, uma vez que o edifício do final dos anos 80 encontra-se em excelentes condições estruturais.

    No futuro, serão avançadas as remodelações das outras áreas de um edifício com 13 pisos à superfície, não havendo ainda previsão de custos finais. Isto porque a CMVM, para que os gastos possam passar de forma discreta, tem desenvolvido a remodelação por fases. No ano passado, foi adjudicada à Arfus em Abril a remodelação do piso 0, incluindo o auditório, com um custo total de 652 mil euros, com IVA incluído. Contudo, se se juntar os gastos anteriores, incluindo os projectos de arquitectura, para já a factura chega já ultrapassa os três milhões de euros.

    E a ‘procissão’ só agora vai no adro. Fazendo uma estimativa, atendendo às remodelações já adjudicadas e a concurso, que rondam cerca de 600 mil euros por piso, o custo global de melhorar todos os13 pisos aproximar-se-á dos oito milhões de euros, se não houver derrapagens.

    O processo de remodelação do edifício da CMVM iniciou-se há cinco anos. O primeiro contrato conhecido, datado de Maio de 2020, visou uma due diligence técnica ao imóvel, num investimento modesto de 9.450 euros, destinado a avaliar as condições estruturais e funcionais do edifício.

    Actualmente, os dois últimos pisos da sede da CMVM, que são usados pelos quadros de topo do regulador, apresentam uma decoração clássica, com madeiras nobres e tapeçarias. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Seguiram-se, em 2022 e 2023, novas empreitadas com valores progressivamente mais elevados, nomeadamente estudos prévios, projectos base de arquitectura e especialidades, bem como consultoria para renovação de espaços interiores, incluindo o hall de elevadores e zonas comuns.

    Este ano, o processo atingiu uma nova etapa, com a aquisição de serviços para automatização e controlo do edifício (SACE), sinalizando a transição de uma fase de planeamento e reabilitação física para uma vertente mais tecnológica e de eficiência operacional.

    Ao longo de cinco anos, a CMVM escolheu sucessivamente a Savills Portugal, uma sucursal de uma empresa britânica do sector imobiliário, para estas intervenções. Assim, os contratos celebrados desde 2020 somam 283.843 euros, valor que, acrescido do IVA a 23%, eleva o montante global já gasto para cerca de 349.127 euros.

    Agora, passou-se para a fase do concurso para a escolha da empresa de construção que vai executar o projecto de remodelação profunda da sede da CMVM já está em marcha com um preço base de 1,7 milhões de euros. Com IVA aumenta para os 2,09 milhões.

    Este será o aspecto futuro dos dois pisos superiores da sede da CMVM, após as obras de remodelação. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Segundo o projecto de remodelação, consultado pelo PÁGINA UM, o objectivo da obra é actualizar os interiores do edifício, criar espaços de trabalho abertos e modernizar os espaços que se encontram “datados”, embora em boas condições.

    Também os dois andares mais altos do edifício, 11º e 12º, que são usados pelos quadros de topo da CMVM, serão alvo de um “extreme makeover“: as madeiras nobres, o mobiliário clássico e as tapeçarias serão substituídos por uma decoração de interiores sofisticada, com um toque de estética escandinava — mas num país sem os recursos financeiros daquela região do Mundo, conforme das imagens que acompanham os documentos de procedimento concursal.

    No final desta remodelação extrema, a sede da CMVM ficará irreconhecível. A intervenção abrange assim a reconstrução dos interiores de 13 pisos – do piso 1 ao 12.º e ainda um piso “técnico”. Cada piso tem cerca de 514 metros quadrados, sendo que o primeiro serve diversos fins, dispondo, por exemplo, de uma cafetaria que será ampliada.

    A “nova” sede da CMVM vai contar com espaço multiusos dedicado ao exercício físico e dois balneários. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Segundo os documentos do concurso com a “memória descritiva” do projecto de remodelação, “a construção do edifício data do ano de 1989, pelo que a sua linguagem arquitectónica é marcada por uma sobriedade nas formas e volumes, combinada com uma certa ousadia na utilização das cores, tanto no exterior, como no interior”.

    Actualmente, os pisos “encontram-se organizados com base nos critérios de utilização, função, grau de confidencialidade e nível
    hierárquico dos utilizadores”, sendo que “esta lógica é reflectida na compartimentação dos espaços e nos materiais utilizados em cada piso”. Assim, os pisos destinados a quadros de topo têm actualmente materiais nobres e mobiliário clássico. Os restantes pisos, estão decorados de forma mais austera e “fria”.

    O documento destaca ainda que “os dois últimos pisos do edifício apresentam uma organização espacial distinta dos demais, onde a nobreza dos materiais se destaca”, mas “a reduzida incidência de luz natural e o pé direito baixo conferem a estes espaços uma atmosfera mais escura e pesada do que o desejável”.

    Em resumo, o objectivo da remodelação é eliminar o aspecto “antiquado” dos espaços e criar interiores com mais luz e espaços abertos.

    O edifício-sede da CMVM, na Rua Laura Alves, 4, em Lisboa. / Foto: D.R. | CMVM

    Todas as zonas no edifício vão ser renovadas, dos gabinetes da administração às casas-de-banho. No piso 1, a cafetaria vai ser “substancialmente expandida, com o intuito de acomodar um maior número de utilizadores” tendo o novo espaço sido “concebido com uma diversidade de ambientes acolhedores, promovendo a interação e o convívio, incluindo, também, uma zona de gaming, para fomentar a dinamização entre os colegas”.

    Também no piso 1, o espaço multiusos será “significativamente ampliado e relocalizado numa zona mais reservada, proporcionando um ambiente propício à prática de exercício físico, complementado por balneários de apoio”.

    Já que a CMVM tem meios escassos, o regulador concluiu que não precisa de tanto espaço e libertará três pisos, que ficarão disponíveis. Segundo a documentação disponibilizada no concurso. “constatou-se que a utilização integral do edifício pela CMVM se revelava excessiva, decorrente da ineficiência do
    layout dos pisos, da área desproporcionalmente alocada à circulação e da existência de espaços que, face às novas necessidades, se tornaram obsoletos”.

    Nesse sentido, “foi possível determinar que a ocupação necessária poderia ser optimizada, libertando três pisos para um novo inquilino”.

    A nova ‘cantina’ da CMVM. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Deste modo, na remodelação, os três pisos que serão “libertados” — entre os piso 2 e 4 — vão ser renovados “com os acabamentos básicos de um espaço interior, incluindo as infraestruturas técnicas essenciais”, uma configuração, “frequentemente descrita como uma “tela em branco”, oferece ao futuro ocupante a flexibilidade de adaptar o espaço às suas necessidades específicas”.

    Com este “libertar” de espaço no edifício, o conselho de administração da CMVM consegue encontrar, assim, um argumento para promover esta obra de renovação como trazendo eficiência. Resta saber se o papel do regulador da Bolsa como polícia dos mercados financeiros vai beneficiar com este “extreme makeover” da sede. Uma coisa é certa: os ‘scores‘ dos funcionários nos jogos electrónicos vão melhorar.

  • Banco Português de Fomento vai oferecer ‘carros desportivos’ aos directores de topo

    Banco Português de Fomento vai oferecer ‘carros desportivos’ aos directores de topo


    Numa sociedade guiada por valores materiais e ‘status’, um banqueiro tem de “parecer bem” e não pode ser visto num carro de gama baixa. Mas em Portugal basta ser director intermédio de um banco estatal, mesmo pequeno, para almejar sorte similar. Para quê ser austero quando se pode conduzir um topo de gama pago pelo erário público?

    Talvez tenha sido esse princípio de ouro da hierarquia social, de mostrar que se tem “status”, que fez com que o Conselho de Administração do Banco Português de Fomento (BPF), que é um banco estatal, lançasse um concurso público para encomendar, através de um contrato de aluguer de longa duração (ALD) de um total de 23 viaturas SUVs para a sua direcção de topo.

    Foto: D.R.

    O BPF é um banco estatal de apoio ao investimento, mas de pequeníssima dimensão face à mastodôntica Caixa Geral de Depósitos. Apesar de serem instituições financeiras muitíssimo distintas, basta dizer que a CGD teve um lucro de 1.735 milhões de euros no ano passado, enquanto o BPF teve resultados positivos de de 18 milhões de euros.

    Mas isso pouco parece importar na hora de mostrar ‘status’. O BPF vai desembolsar perto de 1,2 milhões de euros (981 mil euros, acrescido de IVA) para o aluguer de longa duração de 21 viaturas para dirigentes de topo, por cinco anos, e mais duas de luxo, por quatro anos, que incluirão vários extras.

    O concurso do banco público está, neste momento, a decorrer até finais deste mês, encontrando-se divido em cinco lotes, o que significa que pode ser entregues a diferentes empresas.

    Uma das viaturas que o BFE pretende alugar será da categoria deste Mercedes. / Foto: D.R.| Mercedes

    Segundo o caderno de encargos, consultado pelo PÁGINA UM, não são esquecidos alguns pormenores de luxo e distinção. O primeiro lote a concurso refere-se à encomenda de “uma viatura tipo SUV, com motorização híbrido plug-in/gasolina, tração integral, cinco portas” com uma potência combinada de 455 cavalos, de cor “preto ónix”.

    O equipamento mínimo obrigatório inclui “lotação máxima: sete lugares; cinco portas; depósito combustível 71 litros, pintura metalizada, tecto panorâmico, câmara 360º, vidros traseiros escurecidos”. A cor interior exigida é “nórdico acolchoado em carvão, jantes 21″ com 5 raios múltiplos pretos, corte em diamante”.

    Só este veículo terá um custo base de aluguer de 62.400 euros (76.752 euros com IVA), ou 1.600 euros por mês. A este valor acresce a despesa 3.150 euros com custos administrativos e operacionais.

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    Foto: D.R.

    O lote 2 abrange a encomenda de uma viatura sedan/limousine de cor “metalizada preto Obsidian”, com motorização híbrido plug-in/gasolina, de cinco portas, e potência de 280 kw – 381 cv. O custo desta viatura será de 65.067 euros, com uma renda mensal de 1.356 euros, a que se somam custos administrativos e operacionais de 2.600 euros.

    As especificidades mínimas obrigatórias incluem “pintura metalizada, jantes liga leve 18″, Apple car play, bancos dianteiros ajustáveis eletricamente”. Os interiores têm de ser em “couro Artico/microcut preto”. A encomenda exige ainda como extras um “pack desportivo premium, jantes 5 raios 18”, vidros traseiros
    escurecidos”.

    O lote 3 abrange 16 viaturas “tipo SUV, motorização híbrido plug-in/gasolina, cinco portas”. O custo será de 767.520 euros, com rendas mensais por viatura de 799 euros, num total de 12.784 euros, a pagar durante cinco anos.

    Estas viaturas têm de ter transmissão automática de
    oito velocidades, tracção às quatro rodas, barras de tejadilho (talvez para meter pranchas de surf, bicicletas ou caiaques), volante desportivo e bancos dianteiros também desportivos. Presume-se que são os “essenciais” para qualquer profissional “financeiro”. Como extras obrigatórios, o BFE exige ainda um “pack desportivo e vidros com protecção solar”.

    Das 16 viaturas, oito terão de ser de cor “cinza prata Space” e oito de cor “preto Sapphire metalizada”, enquanto os interiores ostentarão uma “combinação de Alcantara M/Veganza, preto/pesponto de contraste em azul”.

    Este novo modelo da Volvo encaixa nas exigências do BFE para uma das viaturas que vai alugar. / Foto: D.R.

    O lote 4, por sua vez, diz respeito a quatro veículos tipo SUV, de motorização híbrido/gasolina, com cinco portas, pintura metalizada e equipadas com sensores de estacionamento, cruise control adaptativo, jantes de liga leve de 17 polegadas, Apple Car Play, faróis led, câmara de assistência ao estacionamento, caixa automática e barras de tejadilho. Duas serão de cor “cinza Vapour” e duas de cor “preto Ónix”. Os interiores já serão mais “baratinhos”, apenas revestidos com “tecido antracite”. No caso deste lote, a despesa ficará em 191.880 euros, com uma renda global de 3.198 euros.

    Por fim, o lote 5 abrange uma viatura “SUV, híbrido/gasolina, cinco portas, sete lugares” com um custo de 47.970 euros e uma renda mensal de 799 euros. As especificidades mínimas obrigatórias incluem “pintura metalizada, barras de tejadilho, sistema de
    estacionamento traseiro e câmara traseira, vidros eléctricos
    condutor e passageiro, ar condicionado automático, luzes de
    circulação diurna em led, limpa vidros automático, faróis led e jantes de liga leve”.

    Como é habitual, o ALD de viaturas por entidades públicas é feito com o argumento de que a despesa engloba encargos com seguros, impostos e serviços de manutenção. Contudo, os veículos não ficam na posse do Estado, não podendo assim ser disponibilizados a outras entidades públicas após alguns anos de uso.

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    Numa sociedade orientada para o “estatuto”, qualquer executivo que se preze conduz um carro topo de gama, mesmo que o mesmo seja pago pelo erário público. / Foto: D.R.

    Note-se que a despesa que o BPF pretende agora fazer com aluguer de viaturas para dirigentes contrasta com os 599.335 euros que o banco público gastou nos últimos cinco anos para o mesmo tipo de contratação, segundo dados do Portal Base.

    Com efeito, em 2021, o BPF gastou 165.970 euros (sem IVA) num contrato de aluguer de nove viaturas para os seus quadros. Em 2023, efectuou três contratos de 130.216 euros, 140.006 euros e 19.800 euros. Por fim, em 2024, fez um novo contrato para o aluguer de uma viatura de 31.272 euros. No total, estes contratos resultam na soma de 599.335 euros (com IVA).

    Assim, nos últimos cinco anos, somando todos os contratos, o BPF assumiu uma despesa de mais de 1,8 milhões de euros no aluguer de veículos para os seus quadros.

  • Vacinação contra a covid-19 associada a um aumento do risco de vários cancros

    Vacinação contra a covid-19 associada a um aumento do risco de vários cancros


    Um estudo de grande escala publicado na sexta-feira passada na prestigiada revista científica Biomarker Research – integrada no grupo editorial Springer Nature – veio reacender um debate que as autoridades sanitárias em Portugal e na Europa têm preferido silenciar no pós-pandemia da covid-19.

    A investigação de cientistas sul-coreanos, de diversas instituições de Seul, abrangeu mais de 8,4 milhões de cidadãos, com dados recolhidos entre 2021 e 2023, e, na comparação dos riscos entre vacinados e não vacinados – utilizando modelos estatísticos ajustados por múltiplas variáveis –, encontrou uma possível associação entre pessoas vacinadas e um aumento da incidência de vários tipos de cancro ao fim de um ano. Os resultados apontam para aumentos estatisticamente significativos no risco de cancro da tiroide (risco relativo de 1,35), do estômago (1,33), do cólon (1,28), do pulmão (1,53), da mama (1,20) e da próstata (1,69), em comparação com os não vacinados.

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    O chamado risco relativo é uma medida que permite comparar a probabilidade de um evento ocorrer entre dois grupos distintos — neste caso, vacinados e não vacinados. Um valor igual a 1 significa que não há diferença entre os grupos; valores superiores a 1 indicam um risco mais elevado entre os vacinados; e valores inferiores a 1 sugerem o contrário. Assim, um risco relativo de 1,53 para o cancro do pulmão significa que os vacinados tiveram uma probabilidade 53% maior de desenvolver esse cancro em relação aos não vacinados.

    De acordo com os autores, as vacinas de cDNA, ou vacinas de ADN recombinante, estiveram associadas a aumentos de risco para os cancros da tiroide, estômago, cólon, pulmão e próstata. Estas vacinas utilizam fragmentos de ADN sintético que codificam a proteína spike do vírus SARS-CoV-2, introduzindo o material genético no núcleo das células, onde serve de molde para a produção do mRNA que, por sua vez, origina a proteína viral. Essa proteína estimula o sistema imunitário a reconhecer o vírus e a gerar resposta protectora.

    Este tipo de vacina foi sobretudo usado em países asiáticos como a Coreia do Sul, o Japão e a Índia, sendo distinto das vacinas de mRNA (como as da Pfizer-BioNTech e Moderna) e das vacinas de vector viral (como as da AstraZeneca e Janssen), não tendo sido utilizado na União Europeia nem nos Estados Unidos.

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    Já as vacinas de mRNA, por seu lado, apresentaram aumentos semelhantes nos riscos dos cancros da tiroide, cólon, pulmão e mama; e os esquemas heterólogos – ou seja, a combinação de diferentes tipos de vacinas nas doses – mostraram correlação com maior incidência de cancro da tiroide e da mama.

    Embora os resultados revelem correlações consistentes, os investigadores sublinham que estes dados não demonstram uma relação imediata de causalidade e defendem a necessidade de mais estudos para compreender se certas estratégias vacinais poderão ser mais seguras ou adequadas para determinados grupos populacionais.

    Em todo o caso, este estudo surge num momento de crescente escrutínio sobre a opacidade das autoridades de saúde em matéria de farmacovigilância das vacinas da covid-19, do qual Portugal tem sido um triste exemplo. O PÁGINA UM tem denunciado, desde 2022, o irresponsável alheamento das autoridades de saúde em Portugal relativamente às reacções adversas às vacinas e a completa ausência de acompanhamento sistemático e cronológico dos casos suspeitos, incluindo os mais graves, com mortes e incapacidades elevadas.

    Primeira página do artigo científico publicado na Biomarker Research, pertencente ao mesmo grupo editorial da revista Nature.

    Em Portugal, o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo — que, para cúmulo, foi este ano nomeado presidente da Agência Europeia do Medicamento (EMA) — tem-se destacado como a entidade que recusa intencionalmente disponibilizar a base de dados integral sobre efeitos adversos.

    Essa ocultação foi já considerada ilegal. Depois de uma série de mentiras e justificações absurdas, um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul obrigou, no ano passado, o Infarmed a entregar ao PÁGINA UM os registos completos de farmacovigilância, após uma “batalha judicial” de mais de dois anos.

    Contudo, a decisão continua sem execução plena. O Infarmed optou por enviar versões truncadas que impedem qualquer reconstituição de casos individuais ou análise da evolução temporal, o que desde logo denuncia a ausência de uma farmacovigilância digna dessa denominação. Mesmo assim, o PÁGINA UM conseguiu mostrar que pelo menos 19.224 portugueses com reacções adversas foram completamente desprezadas pelo Infarmed.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: a ocultação de dados do Portal RAM também terá contribuído para a sua eleição para a liderança da Agência Europeia do Medicamento.

    Perante esta desobediência de Rui Santos Ivo, o PÁGINA UM tem actualmente um processo no Tribunal Administrativo de Lisboa para a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória – ou seja, uma multa diária – ao presidente do Infarmed e também à EMA, visando obrigá-los a cumprir a decisão judicial.

    É neste contexto de opacidade institucional que o estudo sul-coreano adquire maior relevância pública. Mesmo que as suas conclusões devam ser lidas com prudência — por carecer de análises de sensibilidade, controlos negativos e períodos de latência adequados —, o simples facto de investigadores independentes se debruçarem sobre potenciais efeitos de longo prazo das vacinas contra a covid-19 contrasta com a inércia das autoridades europeias, que têm abdicado de investigar sistematicamente a segurança das vacinas após a sua introdução massiva.

    Em todo o caso, convém destacar que este estudo sul-coreano constitui ainda um ponto de partida sobre o possível efeito oncogénico das terapias genéticas associadas à vacina contra a covid-19. A janela temporal de 12 meses é ainda demasiado curta para sustentar uma relação causal com tumores sólidos, cuja formação se prolonga por anos.

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    Coreia do Sul: um dos países mais avançados do Mundo em ciências médicas não tenta evitar encontrar ‘verdades incómodas’.

    Os autores usaram técnicas estatísticas para reduzir vieses de selecção (propensity score matching) e equilibrar grupos de vacinados e não vacinados, mas não divulgaram as tabelas de balanço que comprovassem a equivalência entre ambos em factores determinantes como idade, hábitos de vida, rastreios ou comorbilidades.

    Outro ponto crítico é a ausência de correcção estatística para múltiplas comparações. Foram testados vinte e nove tipos de cancro, além de subgrupos por sexo, idade e tipo de vacina. Num universo de dezenas de testes, é previsível que algumas “significâncias” surjam por mero acaso. Além disso, o período 2021-2023 coincidiu com a retoma dos rastreios suspensos durante a pandemia, fenómeno que pode ter inflacionado a incidência nos vacinados, mais propensos a procurar cuidados médicos.

    Ainda assim, a dimensão invulgar da amostra e o contexto sul-coreano tornam alguns destes vieses menos prováveis, embora não impossíveis. Num país com cobertura universal de saúde, elevada literacia médica e disciplina social reconhecida, a diferença de comportamento entre vacinados e não vacinados será, à partida, muito menor do que em sociedades ocidentais. É também plausível que, entre os não vacinados, coexistam grupos mais jovens e informados, eventualmente mais atentos aos riscos ou às limitações dos ensaios clínicos iniciais.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Por isso, mesmo com estas reservas, o estudo tem significativa relevância, sobretudo porque aponta para um dever de vigilância contínua que as instituições europeias parecem ter esquecido. A farmacovigilância, prevista nos regulamentos comunitários, exige o acompanhamento cronológico de cada caso reportado — algo que nunca foi feito em Portugal.

    Até agora, as bases de dados do Infarmed limitam-se a acumulações estatísticas destinadas um dia a serem apagadas, sem qualquer memória. Na verdade, hoje, em Portugal, não se sabe quantas pessoas tiveram reacções adversas graves, quanto tempo demoraram a recuperar ou quantas morreram posteriormente. Com as vacinas contra a covid-19 existe um omertà

  • Mais flexíveis mas mais vulneráveis na amarração: cabos de alma de fibra foram escolha de um professor de Engenharia Mecânica

    Mais flexíveis mas mais vulneráveis na amarração: cabos de alma de fibra foram escolha de um professor de Engenharia Mecânica


    Foi um professor catedrático de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico (IST), Tiago Lopes Farias, que decidiu em Abril de 2022, um mês antes de deixar a presidência da Carris – que ocupou durante seis anos – substituir os tradicionais cabos de tração do elevador da Glória – e dos outros ascensores – passando de alma de aço por cabos com alma de fibra. E foi ele próprio, mais um dos seus vice-presidentes, quem assinou o contrato com a Sociedade de Aprestos por Navios, de acordo com documentos a que o PÁGINA UM teve acesso.

    Qual a razão desta alteração, Tiago Lopes Farias mantém um comprometedor silêncio. Aliás, apesar de inúmeros especialistas e investigadores do IST já se terem pronunciado sobre o desastre de 3 de Setembro, este professor catedrático – que esteve durante cerca de seus anos à frente da Carris e teve outros cargos em empresas públicas no sector dos transportes – mantém um comprometedor silêncio.

    Tiago Lopes Farias foi presidente da Carris entre 2016 e Maio de 2022. Foi ele que assinou o contrato que mudou a tipologia dos cabos dos ascensores. Não respondeu sobre os motivos técnicos dessa escolha, apesar de ser professor de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico.

    O PÁGINA UM questionou Tiago Lopes Farias, através de e-mail, sobre os fundamentos da troca dos cabos em 2022, sobre a existência de pareceres técnicos que sustentaram a mudança, se foram realizados ensaios de fadiga e de durabilidade antes da instalação, se houve comparação da vida útil dos dois materiais em condições reais de operação e se a alteração partiu da Carris ou foi sugerida pelo fornecedor. Nenhuma destas perguntas obteve resposta.

    A troca do cabo de alma de aço por cabo de alma de fibra não reside, segundo apurou o PÁGINA UM, na resistência à tracção, porque aí são praticamente semelhantes, se cumprirem as normas europeias de segurança. A diferença poderá estar no comportamento distinto sobretudo no ponto mais sensível: a zona de amarração, onde o cabo é fixado por terminais, grampos ou cunhas. É nesse local que se concentram esforços e curvaturas e onde se inicia, na maior parte das vezes, situações de degradação, por vezes lenta, que pode levar à ruptura ou ao deslizamento.

    O processo de amarração do cabo, que devem ser substituídos a cada cerca de dois anos, consiste em prender o cabo de forma a que este não deslize nem se solte, transmitindo toda a carga ao terminal. No caso de cabos com alma de aço, o núcleo metálico ajuda a manter a geometria interna e distribui parte das tensões, resistindo melhor ao esmagamento provocado pela pressão do terminal.

    Foto: D.R.

    Já nos cabos com alma de fibra, como o núcleo é deformável existe o risco de processos de ‘compactação’ ao longo do tempo, o que, a ocorrer, reduz o diâmetro do cabo, criando folgas internas e permitindo micro-movimentos dos fios exteriores. Esses movimentos não causam uma falha imediata – e, portanto, não é detectável no momento da substituição do cabo –, mas funcionam como uma espécie de ‘corrosão’ mecânica invisível, acumulando desgaste até gerar uma zona de fragilidade crítica.

    Caso suceda, como é uma hipótese plausível no acidente do elevador da Glória, o risco pode manifestar-se de duas formas. A primeira é o deslizamento lento: à medida que a alma de fibra se acomoda, a pressão do terminal deixa de ser suficiente para garantir a fixação, e o cabo pode começar a ceder milímetro a milímetro até perder totalmente a ancoragem. A segunda é a ruptura progressiva: os fios exteriores, sobrecarregados porque o núcleo não absorve esforços, vão sofrendo fadiga, partindo-se um a um até que o conjunto já não resiste à carga e colapsa subitamente. Ambos os processos podem ser demorados, desenvolvendo-se ao longo de meses – e pior: sem sinais visíveis até à iminência do acidente.

    Primeira página do contrato assinado por Tiago Lopes Farias que escolheu o cabo de alma de fibra, com boa resistência à tracção, mas mais vulnerável na zona da amarração.

    É por isso que, segundo especialistas consultados pelo PÁGINA UM que preferem o anonimato, os manuais técnicos e normas europeias, como a EN 12385-8, insistem que a escolha da alma do cabo não se deve limitar à resistência nominal, mas ao comportamento em serviço real, com destaque para a zona de amarração. A ciência dos materiais destaca, aliás, que falhas como as que terão ocorrido no elevador da Glória, raramente são instantâneas: começam com pequenas deformações internas, prossegue com micro-movimentos repetidos, instala-se com a fadiga acumulada e termina num colapso que, quando ocorre, já não pode ser evitado.

    Um presidente da Carris com formação em Engenharia Mecânica ou os departamentos de segurança e manutenção da empresa municipal tinham a obrigação de ter noção destes riscos? A resposta pode ser dada pelo senso comum – que já pouco vale para as 16 vítimas mortais.

  • Cabo de aço do elevador da Glória custou 7.783 euros em 2020, mas Carris decidiu depois ‘poupar uns cobres’

    Cabo de aço do elevador da Glória custou 7.783 euros em 2020, mas Carris decidiu depois ‘poupar uns cobres’


    A Carris gastou, em Agosto de 2020, apenas 7.783 euros na compra do cabo de aço que literalmente sustentava o Elevador da Glória. Dois anos depois, em Março de 2022, já em vésperas da entrada em funções da actual administração liderada por Pedro Bogas, decidiu “poupar” e adquiriu um cabo de menor qualidade, com alma de fibra, por um custo unitário 43% inferior. O barato poderá ter saído bem caro, com 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos no desastre de 3 de Setembro passado.

    De acordo com facturas e notas de encomenda a que o PÁGINA UM teve acesso — e perante a incompreensível recusa da Carris em disponibilizar documentos que deveriam estar há anos no Portal Base —, tudo indica que a empresa municipal julgou poder “poupar uns cobres” optando por cabos com menos aço.

    Acidente de 3 de Setembro causou a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

    Na primeira metade de 2020, a Carris adquiriu à empresa ExtraCabos, com sede em Paio Pires, cabos certificados para uso em elevadores de passageiros, com alma de aço (IWRC), configurados para garantir boa resistência à tracção e maior durabilidade à fadiga provocada pelo contínuo dobrar e desdobrar nas polias.

    Essa opção seguia a prática consolidada no sector dos transportes e o espírito da norma europeia EN 12385-8, que admite diferentes tipos de núcleo, mas cuja aplicação em transporte de passageiros tem levado, por regra, à utilização de alma metálica, pelo nível de segurança exigido. Para assegurar essa conformidade, a Carris pagou mais 6.000 euros pela certificação, garantindo o cumprimento das regras específicas para transporte de pessoas.

    Tanto para o cabo do Ascensor da Glória como para o do Lavra, tratava-se de um modelo específico para transporte de passageiros, em aço galvanizado, com 32 milímetros de diâmetro e resistência de 1770 N/mm², cumprindo a norma EN 12385-8. Era um cabo 6×19 Seale IWRC, isto é, seis pernas com 19 fios cada, assentes sobre uma alma de aço independente, garantindo maior robustez e segurança. A carga mínima de ruptura (CRM) era de 662 kN, cerca de 67 toneladas-força. Para o Glória foram fornecidos 276 metros, ao preço unitário de 28,20 euros, num total de 7.783 euros (sem IVA).

    Em 2020, a Carris ainda comprou cabos com alma de aço e certificação EN 12385-8.

    Porém, em 2022, a Carris optou por uma solução distinta: cabos com alma de fibra (CF). À primeira vista, o diâmetro era o mesmo (32 mm), com CRM de 662 kN — equivalentes a cerca de 66 toneladas-força. Apesar de teoricamente suficiente para suportar as solicitações estáticas de um funicular, especialistas ouvidos pelo PÁGINA UM explicam que a questão crítica não é a resistência bruta, mas sim o comportamento em serviço.

    A alma de fibra — que, ao contrário do que escreveu erradamente o Expresso, só começou a ser usada em 2022, já no mandato de Carlos Moedas, e não em 1999, ainda no tempo de Fernando Medina — oferece menor resistência à compressão, maior alongamento e degrada-se mais rapidamente sob flexão repetida: exactamente o esforço a que estão sujeitos os ascensores históricos lisboetas.

    Além disso, ao contrário de 2020, a Carris não terá solicitado à fornecedora Sociedade de Aprestos para Navios, então ainda no Cais do Sodré, a certificação segundo a norma europeia. A decisão, em Março de 2022, foi da anterior administração, liderada por Tiago Farias, curiosamente doutorado e professor em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico.

    Cabos mais baratos, menos resistentes e sem garantia de certificação foram comprados apenas a partir de 2022: a Carris nem sequer quer agora explicar as explicar as decisões de um passado recente.

    “O problema destes cabos não é a força de ruptura, mas sim a fadiga. Um cabo com alma de fibra perde estabilidade mais depressa quando sujeito a ciclos repetidos de flexão — e isso é precisamente o que acontece nos funiculares da Glória, Lavra e Bica”, explicou ao PÁGINA UM um engenheiro de materiais com experiência em certificação de cabos de tracção.

    O argumento económico também ajuda a compreender a escolha. Entre 2020 e 2022 os preços das matérias-primas, sobretudo do aço, dispararam devido sobretudo à pandemia e à guerra da Ucrânia. Seria de esperar que os cabos de aço para elevadores históricos se tornassem mais caros. Mas os documentos mostram o inverso: em 2022 a Carris comprou cabos mais baratos por metro do que em 2020, apesar da conjuntura adversa.

    Nesse ano foram adquiridos 1.000 metros de cabos de 32 mm, suficientes não apenas para a substituição de 2022 mas também para a de 2024, dado que o Glória necessita de 276 metros e o Lavra de 188.

    Carlos Moedas, com a ministra do Ambiente e o presidente da Carris, ao fundo, no anúncio da Carris da formalização da candidatura da empresa para fornecimento de 15 elétricos, em 28 de Junho de 2024.
    / Foto: CML/ D.R.

    Em suma, ao mudar a especificação técnica, a Carris reduziu o custo por metro de 28,20 euros para 16,05 euros — uma poupança de 43% a preços nominais, mas sacrificando a durabilidade e o desempenho. “É uma poupança ilusória. Os cabos de fibra custam menos à cabeça, mas duram metade do tempo, e isso talvez não tenha sido ponderado quando se atribuiu a durabilidade prevista”, nota a mesma fonte.

    A diferença entre cabos com alma de aço (IWRC) e cabos com alma de fibra (CF) é crucial. Os primeiros oferecem maior resistência à ruptura, menor alongamento e duram mais sob esmagamento em polias e tambores, sendo por isso os mais indicados para sistemas de transporte de passageiros como os funiculares e acensores.

    Já os segundos — mais baratos e flexíveis, mas menos robustos — são adequados a guinchos, gruas de oficina ou sistemas auxiliares, mas não a equipamentos que puxam “trambolhos” como os ascensores de Lisboa. A capacidade de ruptura sobretudo em zonas sensíveis de ligação pode cair entre 7% e 10% face a um cabo equivalente com alma de aço.

    Logo após o acidente, o PÁGINA UM pediu repetidamente à Carris documentação sobre as compras de cabos. A administração, que inicialmente prometeu fornecer todos os elementos, passou a recusar, invocando que decorrem inquéritos do GPIAAF e do Ministério Público.

    Confrontada com os documentos relativos às aquisições de 2020 e 2022 — estes últimos usados, em princípio, na substituição de 2024 e que romperam em Setembro —, a Carris respondeu que “os elementos e a documentação, referidos nas perguntas, abrangem um período alargado que começa em 2020”, apesar de se tratar apenas de duas ou três compras em seis anos. E acrescentou que, por estarem em curso os inquéritos, “neste momento não nos podemos pronunciar sobre estas matérias”. Uma justificação que se tornou, afinal, uma conveniente desculpa para obscurecer um processo que exigia transparência absoluta.

    O PÁGINA UM também contactou a empresa Sociedade de Aprestos para Navios, agora com sede em Alcântara – que terá fornecido os cabos em uso aquando do acidente – no sentido de saber se estes cumpriam as normas europeias, mas não foi ainda possível falar com nenhum responsável.

  • Município das Caldas gasta 145 mil euros para ficar com “espólio” de dois jornais, mas não revela o que comprou

    Município das Caldas gasta 145 mil euros para ficar com “espólio” de dois jornais, mas não revela o que comprou


    A Câmara Municipal das Caldas da Rainha decidiu transferir 145 mil euros a dois jornais “da terra” justificando-o como aquisição de “espólio documental”, mas não são revelados detalhes daquilo que efectivamente adquiriu.

    Em causa estão duas despesas no espaço de um ano, e num período que antecede as eleições autárquicas, que beneficiam dois periódicos locais, a Gazeta das Caldas e o Jornal das Caldas. A autarquia é liderada desde finais de 2021 por Vítor Marques, antigo presidente social-democrata da União de Freguesias das Caldas da Rainha (Nossa Senhora do Pópulo, Coto e São Gregório), mas eleito para a Câmara Municipal como independente. E recandidata-se para as eleições do próximo mês de Outubro, com o apoio do Partido Socialista.

    Close-up view of stacked newspapers tied with twine, ideal for recycling and storage concepts.
    Foto: D.R.

    A primeira despesa do município caldense foi feita em 9 de Setembro do ano passado. A autarquia pagou à dona da Gazeta das Caldas, a Cooperativa Editorial Caldense, o montante de 100.280 euros, excluindo o IVA. Segundo os dados desta aquisição que constam a plataforma de registo de compras públicas, o Portal Base, o objecto do negócio foi a “aquisição de espólio documental – arquivo histórico Gazeta das Caldas”.

    Mas o município não fez nenhum contrato escrito, invocando o artigo 95.º do Código dos Contratos Públicos relativo a “locação ou aquisição de bens móveis ou de serviços”. Assim, não existem detalhes sobre esta aquisição, designadamente que tipo de documentos foram comprados e como foram avaliados. Também se desconhece onde é que a autarquia está a armazenar o “arquivo” comprado à Gazeta das Caldas e o que pretende fazer com ele.

    A segunda despesa foi efectuada no dia deste mês de Setembro e envolveu o pagamento de 44.490 euros à Medioeste com a justificação de se tratar da “aquisição de espólio documental do Jornal das Caldas”. Também neste caso não foi efectuado qualquer contrato escrito e também não existem dados sobre o tipo de documentos que foram adquiridos pela autarquia.

    Foto: D.R. / Museu Bordalo Pinheiro

    A Gazeta das Caldas completa no próximo dia 1 de Outubro o seu centenário. Foi fundado em 1925 e terá um arquivo vasto. Já o Jornal das Caldas foi fundado em 1992. Assim, pelo menos no caso da Gazeta das Caldas, a autarquia poderá ter desejado ficar com alguns documentos históricos em termos da imprensa da região. Mas o quê? Ninguém quer dizer.

    O PÁGINA UM questionou o presidente da Câmara Municipal das Caldas da Rainha sobre o que foi adquirido a estes dois jornais. Também quisemos saber o que a autarquia pretende fazer com os “espólios” adquiridos e onde estão armazenados. Até à publicação desta notícia ainda não recebemos qualquer resposta. Saliente-se que toda a documentação associada a estas aquisições, incluindo lista de bens, sua avaliação monetária e destino, são documentos administrativos, susceptíveis de serem solicitados por qualquer cidadão.

    Segundo António Salvador, proprietário da Medioeste – que, além da Jornal das Caldas, gere o Jornal Mais Oeste e Jornal Região da Nazaré -, a aquisição do espólio documental dos dois jornais do concelho “visam salvaguardar o acervo documental destes, antes que fechem, face à crise do sector, tendo sido iniciativa do outro jornal (Gazeta) junto do município”. Salientou ainda que as despesas foram aprovadas pelo “Executivo por unanimidade e deliberado pela Assembleia Municipal, com três forças políticas na Câmara e quatro na Assembleia Municipal”.

    Foto: D.R.

    Certo é que as verbas pagas pelo município das Caldas aos donos dos dois jornais “da terra” ocorreram no último ano, coincidindo com o período que antecede as próximas eleições autárquicas.

    Para as empresas proprietárias dos dois jornais, o dinheiro veio mesmo a calhar. A Medioeste fechou o ano de 2024 com um prejuízo de 70.260 euros depois de obter receitas de 108 mil euros. Assim, a verba que recebeu este mês da autarquia das Caldas de Rainha corresponde a 41% das receitas totais obtidas no ano passado. A não ser que este ano a Medioeste tenha receitas muito superiores às do ano passado, a empresa terá de registar o município das Caldas da Rainha como “cliente relevante” no Portal da Transparência dos Media, gerido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).

    Acresce que a Medioeste recebeu, no passado dia 12 de Agosto, a verba de 13.940 euros da mesma autarquia a título de “aquisição de publicidade” no Jornal das Caldas, o que representa mais de 10% do total, devendo também ficar registado no Portal da Transparência dos Media.

    Organized filing cabinets stacked with indexed books in a library setting.
    Foto: D.R.

    No caso da dona da Gazeta das Caldas, ainda não houve registo das contas de 2024 no Portal da Transparência. Porém, em 2023, teve um lucro de 42.831 euros e receitas de 393 mil euros. Se as receitas registadas em 2024 forem da mesma ordem, somando a verba recebida da autarquia das Caldas, significa que o montante do encaixe da venda do “arquivo” da Gazeta das Caldas terá superado os 20% das receitas, o que também obriga a registo na ERC da autarquia como “cliente relevante”.

    Acresce que a autarquia pagou à dona deste jornal, no passado dia 12 de Agosto, o montante de 19.045 euros, para a compra de publicidade na Gazeta das Caldas.

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    Foto: D.R.

    Se não restam dúvidas sobre a importância da preservação de arquivos e acervo documental com valor histórico, também se levantam questões sobre se ónus das facturas a pagar para tapar a crise na imprensa, seja ela regional ou nacional, deve sair do bolso do Zé Povinho, ou seja, dos contribuintes.

    No caso destes dois jornais, a factura paga só no último ano pelos contribuintes para a compra de “espólios” e publicidade foi de 178 mil euros, excluindo o IVA. E se estas dependências do poder local nas contas da imprensa regional não são depois reflectidas num portal gerido pelo regulador sobre a transparência dos financiamentos, resta perguntar para que serve esse portal.

  • Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento

    Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento


    O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) recusou aceitar a protecção da denominação do podcast do jornal Expresso da autoria de Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela, três dos quatro membros do Gato Fedorento. “Assim vamos ter de falar de outra maneira”, lançado em Março deste ano, não conseguiu que a entidade responsável pelo registo de marcas aceitasse a expressão escolhida pelos três humoristas, alegando “falta de capacidade distintiva”.

    De acordo com um documento explicativo das causas de recusa, o INPI considera que a falta de capacidade distintiva “engloba tanto os sinais descritivos como todos aqueles que, não sendo totalmente descritivos, não atingem o patamar mínimo da distintividade”, dando como exemplo a denominação “polvo assado no forno com arroz do mesmo“. O despacho definitivo foi publicado em meados de Agosto e tornar-se-á definitivo no próximo mês de Novembro, caso não haja recurso.

    Podcast do Expresso começou em Março deste ano, mas não tem protecção jurídica para a marca.

    Requerida em 11 de Fevereiro, a denominação escolhida pelos três humoristas pretendia protecção para a classe 41 da Classificação de Nice – que cobre serviços de educação, entretenimento, publicação e eventos culturais – e chegou a ser publicada provisoriamente no boletim do INPI. Contudo, em Junho surgiu a recusa provisória, invocando o artigo 23.º do Código da Propriedade Industrial, que impede o registo de expressões banais ou demasiado descritivas ou genéricas.

    A consequência desta decisão não implica que Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela deixem de usar a denominação no podcast do Expresso, mas ficam sem protecção legal exclusiva. Assim, em teoria, qualquer outra entidade ou pessoa pode lançar um programa com designação idêntica ou muito semelhante sem incorrer em infracção de marca. A única salvaguarda possível dos três Gato Fedorento reside nos direitos de autor sobre os conteúdos originais, mas não sobre o nome do programa.

    Este episódio evidencia a importância do registo de marca no sector mediático, onde a diferenciação não se joga apenas no conteúdo, mas também no título. E Ricardo Araújo Pereira esteve indirectamente envolvido num processo que mostra essa importância. Com efeito, o humorista integrou desde 2008, com Pedro Mexia e João Miguel Tavares, e com moderação de Carlos Vaz Marques, a equipa do programa satírico Governo Sombra, inicialmente apenas na TSF.

    Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis e José Diogo Quintela, três dos quatro membros dos Gato Fedorento.

    À época, os quatro autores do programa não registaram a marca em seu nome próprio, mas, no mesmo mês em que foi inaugurado, em Outubro de 2008, houve um particular (Ricardo Manuel das Neves Campos) que solicitou o registo. O INPI deferiu o pedido poucos meses mais tarde, mas aparentemente nunca houve conflitos entre o titular da marca e os autores do programa radiofónico, que foi consolidando a sua notoriedade, primeiro na rádio e depois na TVI24, antecessora da CNN Portugal.

    “No primeiro ano de programa recebemos queixas de uma banda rap da Margem Sul, dizendo que lhes tínhamos roubado o nome”, relembrou Carlos Vaz Marques ao PÁGINA UM. “Não ligámos, por duas razões: porque uma banda rap (ainda para mais desconhecida) e um programa de televisão são produtos totalmente distintos. Também nunca ninguém confundiu o grupo GNR com a Guarda Nacional Republicana”, acrescenta. Em todo o caso, mesmo que chegasse a litígio, não haveria qualquer problema porque os registos de marcas aceita denominações comuns desde que para actividades distintas.

    Em todo o caso, os autores do ‘Governo Sombra’ não se preocuparam com o registo e em 2012 aceitaram o convite da TVI para que o programa passasse a ter também transmissão televisiva, “com a anuência da TSF”, conforme salienta Carlos Vaz Marques. Mas essa anuência, em 2012, não incluía o uso da marca, porque a empresa da TSF ainda não a detinha.

    black and silver headphones on black and silver microphone

    Só quando o detentor da marca (Ricardo Manuel das Neves Campos) registada em 2008 não a renovou é que a Rádio Notícias, sociedade gestora da TSF (hoje nas mãos da empresa Notícias Ilimitadas) se aproveitou e solicitou a caducidade do registo. E em Setembro de 2017, a Rádio Notícias obteve despacho favorável e passou a deter o registo do título Governo Sombra.

    Somente quando, em 2021, o moderador Carlos Vaz Marques saiu em litígio da TSF e quis levar o programa com Ricardo Araújo Pereira, Pedro Mexia e João Miguel Tavares para a SIC Notícias é que foram confrontados com a nova realidade. “Por ingenuidade nunca registámos o título”, lamenta o moderador do programa e editor da Zigurate, afirmando que “foi para nós uma surpresa e um choque quando percebemos que a TSF tinha registado a marca à nossa revelia”. Ainda mais surpreendente porque, como diz o moderador do ex-Governo Sombra, a TSF “nunca mais pagou um cêntimo” a Ricardo Araújo Pereira, João Miguel Tavares e Pedro Mexia depois de o programa passar a ser transmitido pela TVI, a partir de 2012.

    Certo é que, por causa do registo da marca no INPI, o quarteto ficou impedido de usar a denominação Governo Sombra, apesar da notoriedade do formato estar a eles associada. E daí nasceu o Programa cujo nome estamos legalmente impedidos de dizer – uma ironia explícita à perda do título anterior, mas que curiosamente ficou registado no INPI não em nome dos autores, mas da SIC Notícias.

    Por razões de registo de marca, o ‘Governo Sombra’ – criado por Ricardo Araújo Pereira, Carlos Vaz Marques, Pedro Mexia e João Miguel Tavares – foi obrigado a mudar a sua denominação.

    Ou seja, se um dia o programa sair do Grupo Impresa, provavelmente os autores terão de registar uma denominação do estilo Programa cujo nome estamos pela segunda vez legalmente impedidos de dizer, o que pode parecer anedótico, mas é juridicamente incontornável.

    Até à presente recusa, todos os pedidos de marca ligados a Ricardo Araújo Pereira, mesmo com as denominações mais estapafúrdias, tinham sido bem-sucedidos. O INPI concedeu-lhe, em exclusivo, o uso das marcas para programas televisivos e podcasts como Isto é gozar com quem trabalha, Gente que não sabe estar e Coisa que não edifica nem destrói.

    Também o nome Gato Fedorento está protegido como marca desde 2006, e pelo menos até 2027, mas neste caso o registo está em nome do quarteto original: Ricardo Araújo Pereira, José Diogo Quintela, Miguel Góis e o ‘renegado’ Tiago Dores. Nestes casos, o INPI reconheceu carácter distintivo suficiente, permitindo que as expressões funcionassem como sinais identificadores de origem.

    Registo da recusa da denominação da marca ‘Assim vamos ter de falar de outra maneira’.

    No entanto, no caso do podcast do Expresso, a decisão foi diferente. Para o INPI, a expressão “Assim vamos ter de falar de outra maneira” aproxima-se demasiado de um slogan comum ou de uma frase de uso corrente, sem a originalidade necessária para funcionar como marca. A entidade que regista marcas e patentes tem sido consistente: slogans são aceitáveis como marcas apenas quando adquirem singularidade ou fantasia capaz de individualizar serviços ou produtos. Expressões genéricas, mesmo que criativas, devem permanecer de uso livre.

    Em todo o caso, este desfecho acaba por ser irónico: os três humoristas que construíram a carreira com engenho linguístico e capacidade de manipular a língua portuguesa de forma criativa viram-se barrados precisamente pelo carácter “banal” da frase escolhida, segundo o burocrático INPI. Se o título pretendia ser um comentário metalinguístico, a lei exige originalidade suficiente para o registo. Assim vão ter de arranjar outro nome…

    N.D. (20h08 de 27/9/2025) – O PÁGINA UM recebeu o seguinte esclarecimento do Departamento de Relações Externas do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que comenta no final:

    Na sequência do artigo publicado na edição do jornal digital Página Um de 22 de setembro de 2025, com o título “Assim vão ter de arranjar outro nome: INPI dá nega ao podcast dos Gato Fedorento”, gostaríamos de esclarecer alguns aspetos essenciais, de forma a clarificar o verdadeiro motivo da recusa da marca em questão.

    Ao contrário do que é referido na peça jornalística, o indeferimento não se deveu à utilização de “expressões banais ou demasiado descritivas ou genéricas”, mas sim à ausência de elementos obrigatórios no pedido, designadamente:

    • A indicação do número de identificação fiscal dos três requerentes da marca;
    • O envio de documento que comprovasse a legitimidade da signatária do requerimento para apresentar e assinar o pedido de registo em nome dos requerentes (declaração ou procuração).

    O Instituto Nacional da Propriedade Industrial envidou todos os esforços para que a irregularidade fosse suprida, emitindo sucessivas notificações para o efeito. Contudo, a correspondência foi devolvida ou não obteve resposta. Perante esta situação, a decisão de recusa provisória foi convertida em definitiva, nos termos do n.º 5 do artigo 229.º do Código da Propriedade Industrial.

    Estamos naturalmente ao dispor para prestar quaisquer esclarecimentos adicionais. Sempre que surjam dúvidas relacionadas com este ou outros processos, não hesite em contactar-nos.

    Com os melhores cumprimentos,

    O PÁGINA UM indica na notícia que o INPI destaca, na fundamentação da recusa, a alínea c) do artigo 23.º do CPI, que se refere à “inobservância de formalidades ou procedimentos imprescindíveis para a concessão do direito”. Se a causa da recusa foi o não envio dos números de contribuintes e a legitimidade de quem solicitou a marcam então deveria ser invocada a alínea b), ou seja, “a não apresentação dos elementos necessários para uma completa instrução do processo”. O PÁGINA UM pediu esclarecimentos subsequentes sobre esta matéria ao INPI, mas ainda não chegaram.

  • Festa do Livro em Belém 2025: Marcelo estoura em música o dinheiro que daria para 15 bolsas literárias

    Festa do Livro em Belém 2025: Marcelo estoura em música o dinheiro que daria para 15 bolsas literárias


    Na próxima quinta-feira, e durante quatro dias, os jardins do palácio presidencial de Belém abrem as portas aos amantes do livro para mais uma celebração dedicada à literatura e aos escritores. Mas a edição deste ano do evento cultural promovido por Marcelo Rebelo de Sousa desde 2016 dever-se-ia chamar antes, mais apropriadamente, Festa da Música Pop & Rock. Isto porque, na derradeira festa em prol da promoção dos escritores e das letras, o Presidente da Republica decidiu puxar da pena e do tinteiro e ‘passar um cheque’ de 235.594 euros para a contratação de estrelas da música rock e pop nacionais.

    Assim, em quatro dias de festa do livro, só em cantorias e guitarradas (e outros instrumentos, claro) a Presidência da República vai gastar uma verba equivalente a quase 16 bolsas anuais de criação literária de 15.000 euros, como as que são atribuídas anualmente pelo Governo. Essas bolsas podiam acrescentar-se às (apenas) 24 que serão atribuídas este ano pelo Governo para a poesia, ficção narrativa, dramaturgia e ensaio. A verba para os efémeros concertos daria para comprar quase 14 mil livros ao preço unitário de 17 euros.

    Feira do Livro de Belém: escritores são os reis, mas quem recebe são os músicos.. Foto: Pedro Matias / Museu da Presidência.

    O evento, que tem este ano a sua oitava edição — depois de uma pausa de dois anos na pandemia de covid-19 — sofreu um adiamento devido à tragédia no elevador da Glória. Vai agora ter lugar entre os dias 25 e 28 de Setembro e conta com uma programação que inclui jogos didáticos, debates, sessões de autógrafos, apresentações de livros mas, sobretudo, concertos musicais.

    O cartaz de música anunciado conta com a performance de cinco estrelas nacionais: Xutos & Pontapés, Rui Veloso Trio, Carolina Deslandes, Bárbara Tinoco e Fernando Daniel — este último adicionado à programação após o adiamento do evento.

    A animação musical do primeiro dia da Festa do Livro em Belém custou 68.080 euros aos contribuintes. Isto porque sobem ao palco no dia 27 de Setembro o Rui Veloso Trio, cuja contratação, feita através da PG Booking, ascendeu a 34.870 euros, com IVA incluído. O contrato não foi redigido a escrito, pelo que não está disponível no Portal Base, onde ficam registados os contratos públicos. Também actuará no mesmo dia a cantora Carolina Deslandes, por um custo de 33.210 euros, por via de um contrato feito com a empresa Sons em Trânsito, que também não foi redigido a escrito.

    Marcelo Rebelo de Sousa na primeira edição da Festa do Livro em Belém com o escritor luso-americano Richard Zimler / Foto: Miguel Figueiredo Lopes / Museu da Presidência

    No segundo dia do evento, a animação musical ficará a cargo de Bárbara Tinoco, que cobrou 33.210 euros à Presidência da República, através da empresa Primeira Linha.

    No dia 27 de Setembro, será a vez de subir ao palco o cantor Fernando Daniel, que bisa a presença neste evento anual da Presidência. A contratação do artista ainda não se encontra registada no Portal Base. Mas no ano passado, o cantor cobrou 31.057 euros, com IVA, através da Universal Music Portugal, para actuar na Festa do Livro em Belém.

    A edição deste ano do evento termina com um concerto dos Xutos & Pontapés que cobraram 53.505 euros para actuar, através da Xutos 6 Pontapés – Produções Musicais. O contrato também não foi redigido a escrito.

    A banda de rock Xutos & Pontapés encerra a Festa do Livro em Belém 2025 por um custo de 53.505 euros. / Foto: D.R.

    Aos custos da contratação destas “estrelas” acrescem mais três contratos. Um deles, no valor de 23.973 euros, é relativo à “aquisição de serviços de riders técnicos de som e luz para os concertos”. Para o efeito, foi contratada a empresa Rapsódia de Ritmos, sem haver contrato escrito.

    Foi também adjudicado um contrato no valor de 17.035 euros à empresa Wireless Voice referente à “aquisição de serviços audiovisuais, som e luz para os viveiros e cablagem e transmissão vídeo e áudio dos concertos no Led Wall”. Já a “aquisição de aluguer de palco” foi adjudicada à WiseDevotion, por 8.733 euros.

    Além de apostar em concertos de música rock e pop, esta edição da Festa do Livro em Belém contrasta com as anteriores em matéria de custos com animação musical. Uma análise aos contratos registados no Portal Base revela que a despesa com a contratação de cantores e bandas nos anos anteriores foi muito inferior à registada este ano.

    Jardins de Belém enche de livros mas escritores continuam a ser o parente pobre da Cultura. Foto: Museu da Presidência

    Marcelo Rebelo de Sousa despede-se, assim, com uma Festa do Livro de arromba do seu mandato final na Presidência. Mas, se tivesse antes aplicado os 235.594 euros gastos em concertos este ano, no investimento em literatura, Marcelo poderia ter incluído no seu legado como Presidente da República a criação de 15 bolsas de criação literária, e ainda dava mais um meses para uma mais.

    Mas, numa sociedade que vive de costas voltadas para a leitura e em que proliferam posts e selfies, não admira que até a Presidência prefira gastar verbas em arraiais de música, mas, claro, com a Literatura na lapela e os escritores no bolso.