Os assaltos a apartamentos durante a noite, enquanto as famílias dormem, começam a ser um flagelo cada vez mais relatado e que deixa marcas e traumas nas vítimas. Umas acordam e deparam-se com os ladrões em casa. Outras só dão conta do assalto quando acordam, de manhã.
Mas tanto num como noutro caso, ficam com marcas e durante algum tempo algumas das vítimas têm dificuldade em adormecer. Nos casos em que havia bebés ou crianças pequenas em casa, na altura do assalto, os pais ficam sobressaltados.
Foto: D.R.
Desde que o PÁGINA UM noticiou este tipo de assaltos, têm-nos chegado mais casos. Em algumas situações, as vítimas acordaram e os assaltantes fugiram. Noutros, as vítimas só de manhã, quando acordaram, é que descobriram que tinham sido assaltadas.
Procurámos saber, afinal, quantas famílias residentes na capital foram assaltadas enquanto dormiam, desde o início do ano. A resposta que obtivemos é que não se sabe.
A Polícia de Segurança Pública (PSP) não consegue indicar quantos assaltos com as famílias a dormir ocorreram este ano em Lisboa. Questionada pelo PÁGINA UM sobre o número de ocorrências deste tipo que foram registadas desde Janeiro, o gabinete de comunicação da PSP foi lacónico: “não nos será possível facultar-lhe uma resposta, tendo em conta a especificidade dos dados que pretende”.
Foto: D.R.
Nos casos que relatámos recentemente, as famílias vítimas de assalto não apresentaram queixa formal, mas as que chamaram a PSP não viram nenhuma prova a ser recolhida nem esperam que sejam investigados os assaltos e detidos os assaltantes. Isto porque, para as autoridades policiais, se não existir sinais de arrombamento nem ameaças ou agressões, então os casos são, de certa forma, desvalorizados.
Esta prática arrisca dar um sinal forte aos assaltantes: podem continuar a invadir casas durante a noite que não serão procurados nem importunados.
Para as famílias, fica uma sensação de impotência perante a invasão do seu lar. Para os assaltantes, fica o sentimento de impunidade. E os assaltos sucedem-se, tanto a residências como a estabelecimentos comerciais. Entrando por janelas abertas ou mal fechadas, trepando varandas, passando por cima de estendais.
Ainda esta semana nos chegaram mais relatos, desta vez de apartamentos assaltados com recurso a arrombamento. Só na Rua Leite Vasconcelos, em Lisboa, no mesmo prédio, dois apartamentos foram assaltados na mesma noite. Neste caso, não estava ninguém em casa.
Foto: D.R.
Certo é que, por haver arrombamento, estes assaltos são vistos com mais seriedade, aos olhos da lei – e da PSP. Seria de repensar se, o facto de haver assaltos a ocorrer com famílias a dormir não seriam de ser levados mais a sério. Porque, ao bens que são roubados, somam-se as marcas psicológicas que ficam nas vítimas. E essa quebra de confiança na segurança que fica não se pode reportar à seguradora.
Em alguns casos, mesmo pondo trancas às portas e alarmes nas janelas, o sentimento de insegurança permanece. Não se saber qual o número de famílias que são vítimas deste tipo de assalto não ajuda a restaurar o sentimento de que é seguro estar em casa.
O pior ainda não passou, mas 2025 já regista, e de longe, a pior eficácia no combate a incêndios florestais de todo o século XXI. Até 19 de Agosto, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos dados do Instituto Nacional da Conservação e das Florestas (ICNF), cada incêndio tem destruído, em média, 89 hectares, um valor nunca antes observado e que ultrapassa largamente os anos mais negros da tragédia dos fogos, como 2003 (50,6 ha/incêndio), 2005 (17,6 ha/incêndio) e sobretudo 2017 (56,2 ha/incêndio), quando morreram mais de uma centena de pessoas em duas vagas de incêndios devastadores.
Este indicador – que exclui os fogachos, isto é, as ignições apagadas antes de se atingir um hectares (100 por 100 metros) – revela que, quando os fogos não cedem à primeira intervenção, a capacidade de resposta do sistema nacional de protecção civil mostra-se estruturalmente incapaz de os travar, sobretudo quando ultrapassam os mil hectares, ficando o controlo dependente quase exclusivamente da evolução meteorológica.
Os números oficiais, compilados até 19 de Agosto, confirmam uma realidade alarmante. Em 2025, já arderam 215.988 hectares, uma área em crescimento que coloca o ano na linha da frente das piores catástrofes florestais desde 2001, mesmo sem se ter atingido ainda o final do período crítico. O total de incêndios registados até agora, excluindo fogachos, é de 2.426, ainda um dos valores mais baixos de sempre, mas com consequências devastadoras: menos fogos, mas muito mais destruição.
Ou seja, comparativamente a anos anteriores, e sobretudo aos da primeira década do século, o sistema até tem tido menos ignições e também, em consequência, menos incêndios (com mais de um hectare), mas falha redondamente, em demasiados anos, em grandes incêndios no interior do país. A baixa frequência de fogos contrasta, assim, com a altíssima intensidade e extensão dos que acabam por escapar ao controlo.
Se compararmos com outros anos, percebe-se a dimensão da falha de 2025, mesmo quando comparado com os três anos com maior aárea ardida. Em 2017, o ano mais catastrófico, apesar dos 9.626 incêndios registados, a eficácia do combate ficou em 56,2 ha/incêndio. Em 2003, foram 9.320 incêndios para um rácio de 50,6 ha/incêndio. Em 2005, o rácio foi de 17,6 com quase 20 mil incêndios.
Área ardida por hectare, considerando apenas incêndios (ocorrências com mais de um hectare). Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.
Já no ano passado, com os grandes incêndios a concentrarem-se em Setembro, este indicador mostrou sinais de descoordenaçao, com um rácio de 50,1 hectares por incêndios, apesar de ter sido o ano deste século com o menor número de ignições a ultrapassarem um hectare (2.745).
Estes números connstituem uma demonstração inequívoca de que o sistema de combate em Portugal não está desenhado para enfrentar situações em que os fogos, superando a barreira psicológica e operacional dos mil hectares, assumem proporções incontroláveis.
A questão da “eficácia do combate” tem sido, ao longo das últimas décadas, um verdadeiro tabu político e institucional. Desde a primazia concedida às corporações de bombeiros voluntários – pilares comunitários com forte ligação às câmaras municipais e a redes de influência local – que o combate aos incêndios assenta numa miríade de entidades, de difícil articulação e disciplina operacional.
Número de incêndios (ocorrências com mais de um hectare) desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Maio. Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.
O peso emocional é determinante: os bombeiros são vistos pelas populações como heróis, símbolo de abnegação e de proximidade, o que torna politicamente delicada qualquer tentativa de reestruturação, profissionalização efectiva – com todas as vantagens de instrução, treino e preparação de equipas coordenadas – e consequente responsabilização.
Mas a verdade é que o actual sistema dito voluntário mas com pagamentos do Estado acaba por ser sistema semi-profissionalizado, mas com baixa capacidade de avaliação e regulação. É um sistema que se tornou anacrónico perante as exigências dos grandes incêndios florestais do século XXI.
Aliás, nenhum outro sector fundamental do Estado – da segurança pública à educação, passando pela saúde ou pelo sistema prisional – assenta numa lógica semelhante à do combate aos fogos rurais. É impensável conceber a segurança interna dependente de centenas de associações privadas dispersas pelo território, algumas sofrendo de escassez de população jovem, com escassa coordenação centralizada.
Área ardida total desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Agosto. Fonte: ICNF.
No entanto, é precisamente esse o modelo que subsiste no essencial da protecção civil contra incêndios florestais em Portugal: mais de três centenas de corporações de bombeiros voluntários, articuladas de forma precária com os meios da GNR, da Força Especial de Protecção Civil e da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil.
O resultado é a crónica dificuldade em coordenar meios em cenários de grande dimensão, em que a rapidez e a disciplina hierárquica são cruciais. Por exemplo, em incêndios de grandes dimensões, que ultrapassam mil efectivos, é habitual estarem, no denominnado ‘teatro das operações’, bombeiros de mais de uma centena de corporações, sem sequer haver uma logística bem implementadas.
Os sucessivos Governos, de diferentes cores partidárias, têm evitado enfrentar esta questão estrutural. Em Espanha, a solução foi encontrada em praticamente todas as comunidades autónomas: criação de corpos profissionais de bombeiros-sapadores florestais, integrados nos serviços regionais de protecção civil, com treino permanente, vínculo laboral e disciplina operacional semelhantes às forças militares.
Nessa organização, os bombeiros voluntários assumem um papel complementar, sobretudo na protecção dos perímetros urbanos e na salvaguarda de habitações, deixando a resposta de primeira linha no espaço florestal para equipas profissionais do Estado. Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.
Também em Itália e França prevalece um modelo profissionalizado. Itália possui o Corpo Nazionale dei Vigili del Fuoco, uma estrutura estatal com efectivos treinados para diferentes cenários de risco, incluindo os incêndios florestais. Em França, a protecção civil assenta numa combinação de bombeiros profissionais e voluntários, mas com um comando centralizado e meios aéreos fortemente integrados, que asseguram resposta rápida e disciplinada em grandes fogos, sobretudo na região mediterrânica.
A Grécia, sobretudo após a catástrofe de 2007 e o desastre de Mati em 2018, também avançou para a criação de brigadas profissionais florestais, integradas no Serviço de Incêndios, com forte ligação ao exército e à guarda nacional, assumindo que a escala dos incêndios modernos exige uma estrutura permanente, estável e profissional. Existe voluntariado, mas numa percentagem inferior a 20% dos efectivos, que somente em situações especiais são accionados.
Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.
A história repete-se com o mesmo dramatismo e a mesma sensação de impotência. Portugal ultrapassou esta noite a mítica fasquia dos 200 mil hectares de área ardida em 2025, segundo os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), consultados e analisados pelo PÁGINA UM.
São já 203.422 hectares queimados, número que reconfirma este ano como o quarto pior desde que existem registos estatísticos, iniciados na década de 1940. A dimensão da tragédia equivale a 20 vezes a área da cidade de Lisboa, um valor simbólico que marca uma fronteira que todos sabiam ser possível, mas que se esperava, talvez ingenuamente, que pudesse ser evitada.
Até agora, a barreira dos 200 mil hectares só tinha sido superada em três ocasiões, todas já neste século XXI. A primeira foi em 2003, quando o fogo reduziu a cinzas 471.813 hectares. Dois anos depois, em 2005, voltou-se a cair no mesmo abismo, com 346.731 hectares devastados. Mais recentemente, em 2017, registou-se o pior ano de sempre, com 540.654 hectares queimados, uma ferida ainda aberta na memória colectiva.
O facto de 2025 se juntar a esta curta lista mostra que, apesar de duas décadas de planos estratégicos, de reestruturações sucessivas proclamadas na Protecção Civil e de discursos políticos inflacionados, Portugal continua incapaz de quebrar o ciclo da devastação.
A fotografia estatística de 2025 tem um rosto particularmente sombrio: o distrito da Guarda. Com 79.586 hectares destruídos, este é já o pior registo distrital do século XXI, correspondendo a cerca de 15% do território total do distrito. Em termos relativos, é uma tragédia que não encontra paralelo recente, deixando claro que o Interior profundo, despovoado e envelhecido, continua a ser o palco principal da catástrofe florestal. A Guarda, sozinha, concentra quase 40% da área ardida de todo o país.
Mas a devastação não se fica por aqui. Em Coimbra arderam 41.247 hectares, em Viseu foram 21.489 hectares, e em Bragança o fogo consumiu 13.877 hectares. Estes quatro distritos somam mais de três quartos da área ardida de Portugal em 2025, revelando uma desigualdade territorial chocante: enquanto os distritos do Interior vivem um cenário de catástrofe, no Litoral e no Sul quase nada se registou.
No extremo oposto, Lisboa conta apenas 63 hectares, Faro 32 e Leiria 26, números residuais que contrastam violentamente com os da Guarda. O país arde, mas arde sobretudo sempre nos mesmos sítios, como se a repetição fosse um destino inevitável.
Se os números anuais já seriam suficientes para definir 2025 como ano negro, o retrato mensal não deixa espaço para dúvidas: este mês de Agosto, ainda por terminar, é já o quarto pior mês deste século, com 166.316 hectares consumidos em apenas 19 dias.
Supera de longe qualquer outro Agosto da última década e só é ultrapassado por Agosto de 2003 (312.411 hectares), Outubro de 2017 (289.126 hectares) e Agosto de 2005 (212.917 hectares). Com quase duas semanas ainda pela frente, a perspectiva de que este Agosto suba no ranking da destruição é elevada, colocando em risco a estabilidade do país não apenas em termos ambientais, mas também económicos e sociais.
A sucessão destes números devastadores revela a falência de políticas que, desde 2003, se anunciaram como redentoras. Do Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios às reorganizações das corporações de bombeiros, passando pelo investimento em meios aéreos e pelo reforço orçamental das campanhas de prevenção, tudo parece esbarrar no mesmo problema estrutural: uma paisagem desordenada, um mundo rural abandonado e um Estado que se limita a gerir emergências em vez de intervir na raiz.
O resultado é o que se vê: hectares atrás de hectares transformados em cinza, com os mesmos distritos sempre na linha da frente do sacrifício. E Lisboa política a assistir pesarosa, embora com muitas culpas no cartório.
Mais do que estatísticas, há uma realidade crua: no mês de Agosto em curso, por cada hora que passou ardeu em média 385 hectares, ou seja, 9.240 hectares por dia – são mais de 10 mil campos de futebol a arder. E não é apenas a floresta que se perde. São solos que se degradam, habitats que desaparecem, populações que se sentem sitiadas, e depois abandonadas nas cinzas, e economias locais que ficam amputadas. Quando a Guarda perde 15% do seu território para as chamas, não é apenas a natureza que é devastada: é uma parte inteira do país que se apaga.
No fundo, a ultrapassagem da fasquia dos 200 mil hectares em 2025 não é apenas um número redondo e trágico. É a prova de que, duas décadas depois dos anos infernais de 2003 e 2005, e oito anos após o horror de 2017, Portugal continua prisioneiro do mesmo ciclo de fogo, incapaz de transformar a memória das tragédias em prevenção efectiva. Os discursos oficiais repetem-se, os planos multiplicam-se, exaltam-se os bombeiros, transformam-se as vítimas em heróis, mas a floresta, já cada vez mais débil e sem sustentabilidade, continua a arder com a mesma fúria. E, pior ainda, com a mesma previsibilidade.
A derrocada da Global Notícias não surpreende, mas o estrondo atinge valores inimagináveis. Os dados provisórios entregues pela dona do Diário de Notícias — que já vende menos de mil exemplares por dia em banca — no Portal da Transparência dos Media mostram que a empresa colapsou no ano passado com resultados negativos de quase 26,5 milhões de euros, colocando-a em falência técnica.
E não se trata de meia dúzia de tostões: os capitais próprios estão agora negativos em 19,3 milhões de euros, ao mesmo tempo que os activos encolheram para apenas 21,5 milhões, aparentemente fruto da venda de títulos como o Jornal de Notícias, a TSF e O Jogo à obscura Notícias Ilimitadas, por um valor ainda desconhecido.
O colapso da empresa que ainda detém os títulos mais antigos do país — o Diário de Notícias e o Açoriano Oriental — é apenas a consequência de um rumo errático, marcado nos últimos anos por transacções pouco transparentes e polémicas infindáveis, incluindo a tentativa de controlo por um fundo das Bahamas, expediente que acabou por servir de argumento para desmembrar o grupo.
Nos últimos oito anos impressiona como as sucessivas administrações foram sangrando uma empresa que, em 2017, possuía activos superiores a 98 milhões de euros e capitais próprios de 31,4 milhões de euros. Desde então, acumulou mais de 76 milhões de euros de prejuízos. E até os anéis se foram: os edifícios emblemáticos do Diário de Notícias, em Lisboa, e do Jornal de Notícias, no Porto, foram vendidos, e o dinheiro rapisamente se esfumou. Hoje, aquilo que resta é uma carcaça que apenas um regulador conivente e um mundo político condescendente permitem continuar a animar. E a minar o jornalismo.
Com efeito, as receitas da Global Notícias estão em queda livre há anos, fixando-se em apenas 22,5 milhões de euros em 2024, menos 48% do que em 2017 — e isto apesar da alienação de títulos supostamente ainda lucrativos como o Jornal de Notícias.
A falência técnica — mas com valores de grandeza estratosférica — parece ser a estratégia para abrir caminho a uma futura intervenção estatal que salve o icónico Diário de Notícias, alienando-se o título e empurrando a Global Notícias para a insolvência, mas com credores e o próprio Estado a ficarem a ‘arder’. As demonstrações financeiras ainda não foram apresentadas na Base de Dados das Contas Anuais, e ignora-se se as dívidas ao Estado aumentaram ao longo do ano passado.
Recorde-se que, em 2024, a Global Notícias vendeu a maior parte do capital do Jornal de Notícias, da TSF e de outros títulos à igualmente opaca Notícias Ilimitadas — que também não apresentou contas — ficando apenas com uma participação de 30%. O negócio, celebrado como “salvação” por quem insistia em pintar o grupo com cores de optimismo, revelou-se afinal um mecanismo de liquidação encapotada. A operação foi autorizada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), mas com um pormenor gravíssimo: a existência de um acordo parassocial confidencial entre as partes, cujas cláusulas permanecem em segredo até hoje.
O Página Um apresentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar a ERC a mostrar esses documentos, mas apesar de uma sentença favorável, o regulador recorreu com efeito suspensivo. Tem sido norma da ERC, presidida por Helena Sousa, proteger os grandes grupos em dificuldades, negando acesso a informação considerada sensível e escondendo a gravidade da situação financeira.
Helena Sousa, presidente da ERC: regulador autorizou um estranho negócio de alienação, que esconde, contribuindo para a última estocada para o colapso (pouco involuntário) da Global Notícias.
As consequências da alienação à Notícias Ilimitadas não tardaram a mostrar-se. Se em 2021 a Global Notícias ainda conseguiu, por via de medidas excepcionais, apresentar um EBITDA ligeiramente positivo (1,1 milhões de euros), em 2023 regressou aos prejuízos e em 2024 desabou num abismo: o resultado operacional foi de -24,8 milhões de euros, mais do que todo o volume de negócios anual. Em rácios, a autonomia financeira caiu para -90% e a solvabilidade fixou-se em 0,53 — ou seja, os passivos superam largamente os activos.
Do ponto de vista estritamente económico, a Global Notícias já não existe como entidade viável. Qualquer tentativa de recuperação exigiria injecções de capital superiores a 25 milhões de euros, apenas para regressar a capitais próprios positivos e repor mínimos de autonomia financeira. Mas a realidade é que as fontes de receita encolheram e as marcas mais fortes — como o JN e a TSF — foram amputadas do perímetro da empresa.
Neste momento, existe um esqueleto feito de responsabilidades, passivos e nenhuma margem para sobreviver, sendo que o seu activo mais forte é um jornal emblemático mas de credibilidade ferida de morte, que vende já menos de mil exemplares em banca e nem mil assinaturas digitais possui.
Este quadro é tanto mais grave porque foi o próprio regulador a abençoar um negócio que ocultou regras de governação através de cláusulas secretas. Não é apenas a Global Notícias que está em colapso: é também o regime de transparência que deveria tutelar a comunicação social.
A falência técnica da Global Notícias, consagrada em 2024, não resulta apenas de maus resultados acumulados: resulta também da complacência cúmplice da ERC e da permissividade do Estado em relação a negócios pouco claros que moldam o panorama mediático português. É esta cadeia de decisões opacas que hoje conduz ao desfecho previsível: um grupo histórico transformado em ruína contabilística, amputado dos seus principais activos e protegido por uma cortina de sigilo regulatório.
Portugal vive uma tragédia anunciada sempre que chega o Verão. As imagens repetem-se, mas a dimensão de cada ano nem sempre fica gravada na memória colectiva pelos números finais. O ano horribilis de 2017 parece longínquo, quando arderam 540.654 hectares, números impressionantes mesmo para os mais pessimistas — e desses, 336 mil hectares arderam já depois da primeira metade de Agosto, sendo que a maior parte ocorreu com o Outono avançado, a 15 de Outubro.
Em 2025, quando ainda se está em pleno mês de Agosto, a contabilidade dos incêndios já atingiu 172.065 hectares de área ardida, segundo dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), sendo o quarto pior do século, somente atrás de 2017, de 2003 (471.813 hectares) e de 2005 (346.731 hectares). Estes três anos vieram, aliás, colocar o patamar da destruição dos incêndios rurais num nível impensável no século XX, quando um “ano mau” significava valores ligeiramente acima de 100 mil hectares.
O carácter errático da destruição, embora cíclica — porque após anos de grande devastação as áreas ardidas servem de tampão durante quatro ou cinco anos —, impede previsões com grande certeza. Porém, uma análise conduzida pelo PÁGINA UM às séries estatísticas desde 2001 mostra que, embora seja pouco provável que se atinjam os valores de 2017, 2003 e 2005, o ano de 2025 tem uma probabilidade significativa de chegar aos 283 mil hectares consumidos até Dezembro, sendo que o intervalo de confiança aponta para valores entre 208 mil, num cenário optimista, e 357 mil hectares, num cenário pessimista.
Em todo o caso, aquilo que torna a análise mais relevante é perceber que a tragédia de cada ano não se decide apenas no que ardeu até 17 de Agosto. Com efeito, a estatística mostra um padrão instável, por vezes surpreendente: a segunda metade do Verão e o início do Outono podem alterar radicalmente o balanço final. Em 2003, por exemplo, apenas 12,1% da área total ardeu depois de 17 de Agosto, mas em 2005 essa percentagem foi de 38,8%. Já em 2017, o cenário foi devastador: 62,2% da área ardida concentrou-se após essa data, quando Outubro trouxe condições meteorológicas explosivas, somadas aos fogos fora de época de Junho.
Este elemento estatístico é crucial para compreender o risco que ainda paira em 2025. Se, até 17 de Agosto, já se registaram mais de 172 mil hectares consumidos, a experiência histórica mostra que o “resto do ano” pode significar desde um pequeno acréscimo (como em 2003) até uma catástrofe desproporcionada (como em 2017). A variabilidade é enorme, o que torna a previsão mais um exercício de intervalos do que de certezas. A estatística serve aqui de alerta: em cerca de duas décadas e meia de registos, houve anos em que pouco ou nada aconteceu após Agosto e outros em que o pior ficou reservado para o fim.
Área ardida em cada ano desde 2001 (total e em dois períodos distintos). Fonte. ICNF. Análise: PÁGINA UM.
O PÁGINA UM aplicou um modelo estatístico rigoroso, mas explicado em termos acessíveis: partindo da série anual de 2001 a 2024, foi feita uma regressão para avaliar o que se pode esperar quando já se conhece a área ardida até 17 de Agosto. Esta técnica permite projectar, com base em padrões históricos, qual será a área total até ao final do ano. O modelo aponta para um valor central de 283 mil hectares, que corresponde a um acréscimo médio de 111 mil hectares até Dezembro, mas com a possibilidade de o valor oscilar entre mínimos de 36 mil e máximos de 185 mil hectares adicionais. É a matemática da incerteza aplicada à realidade das florestas portuguesas.
De todo o modo, 2025 já está condenado a figurar entre os piores capítulos desta história negra. Mesmo que não se repita um Setembro como o do ano passado, quando arderam quase 130 mil hectares, ou o de 2013, com mais de 100 mil, ou, pior ainda, o Outubro de 2017, o valor mínimo previsto garante-lhe o quarto lugar no ranking.
Mas, caso os próximos meses sejam particularmente severos, poderá aproximar-se do trágico patamar de 2005 e até ameaçar a barreira dos 300 mil hectares. O país continua, assim, refém de um destino florestal que se repete em ciclos, com variações de intensidade mas sempre com a mesma marca: o fogo que destrói território, património natural e vidas humanas.
Este diagnóstico é mais do que uma estatística: é um sinal de que Portugal não conseguiu quebrar o ciclo de catástrofes. E aquilo que se anuncia para 2025 é não apenas a confirmação de um ano terrível, mas a prova de que, passadas mais de duas décadas desde os grandes fogos de 2003, continuamos a oscilar entre anos mais benignos e anos catastróficos sem uma estratégia clara de contenção estrutural.
O futuro imediato, até ao final deste ano, permanece uma incógnita, mas a estatística avisa: o pior pode ainda estar para vir. E se não vier, o trágico é ficar-se a saber que se não arder mas este ano, certamente que arderá nos próximos, porque esse tem sido o destino dos espaços rurais em Portugal ao longo das últimas décadas.
Diz-se que filho de peixe sabe nadar. No caso de Luís António Sousa Uva Durão Barroso, filho do antigo primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso, talvez seja mais adequado dizer que “filho de cherne” sabe mover-se furtivamente por entre cardumes governamentais. O seu percurso recente nos gabinetes ministeriais dos Governos Montenegro é um caso exemplar de como a burocracia portuguesa consegue transformar o simples em rocambolesco, criando um enredo de despachos assinados em dias diferentes, com efeitos retroactivos absurdos e publicações desencontradas no Diário da República.
Comecemos pelo ponto de partida: em Abril de 2024, Luís Durão Barroso – nascido em 1983 e que entrou directamente para os quadros do Banco de Portugal em 2014 depois de terminar o doutoramento em Direito em Londres – foi contratado como técnico especialista do ministro das Finanças, Miranda Sarmento.
´Luís Durão Barroso em foto do seu perfil do LinkedIn.
Este ano, por força das eleições, e mantendo-se Miranda Sarmento no cargo, surgiram os despachos de recondução para os membros do gabinete que o ministro assim entendeu. Deste modo, no passado dia 27 de Junho, Luís Durão Barroso foi reconduzido como assessor através de um despacho ministerial, indicando que tinha efeito a 5 de Junho – ou seja, o dia de posse do segundo Governo Montenegro. Essa decisão só foi publicada em letra de forma no Diário da República no dia 3 de Julho.
Até aqui, aparentemente nada de estranho – sucede com dezenas de outros casos. Mas o detalhe está num pormenor: quando o despacho de Miranda Sarmento foi assinado no dia 27 de Junho, já Durão Barroso não trabalhava nas Finanças, uma vez que já tinha dado um salto para outro ministério. Com efeito, a 16 de Junho de 2025, o filho do antigo presidente da Comissão Europeia tornou-se chefe de gabinete da ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral. E, para aumentar a confusão burocrática, esse despacho da antiga provedora de Justiça foi igualmente assinado no dia 27 de Junho.
Portanto, no mesmo dia em que Miranda Sarmento reconduzia Luís Durão Barroso como assessor nas Finanças, estava Maria Lúcia Amaral a selar a sua nomeação para a chefia do gabinete, embora a publicação tivesse saído no Diário da República apenas a 10 de Julho.
Miranda Sarmento assinou despacho de recondução quando já sabia que filhode Durão Barroso estava exonerado de facto.
Temos, portanto, o seguinte quadro: no Diário da República de 3 de Julho, Luís Durão Barroso aparecia ainda reconduzido nas Finanças; no Diário da República de 10 de Julho, surgia já como chefe de gabinete da ministra da Administração Interna; e só no Diário da República de 4 de Agosto é que se publicou a exoneração do cargo nas Finanças, salientando que tinha sido “a pedido do próprio”, assinada a 14 de Julho por Miranda Sarmento. Mas essa exoneração, para não destoar, também tinha efeitos retroactivos: 16 de Junho, o mesmo dia em que começara funções na Administração Interna.
Na verdade, na data em que Miranda Sarmento reconduziu Durão Barroso Jr., já este estava de facto exonerado, porque tomara posse entretanto como chefe de gabinete da ministra Maria Lúcia Amaral. Só mais tarde, o despacho com as retroactividades habituais tentaram limpar a confusão.
Em resumo, nesta nebulosa novela em novelos: Luís Durão Barroso foi oficialmente reconduzido nas Finanças a 5 de Junho; passou a chefe de gabinete da Administração Interna a 16 de Junho; foi reconduzido por despacho assinado a 27 de Junho, publicado a 3 de Julho; foi nomeado chefe de gabinete em despacho assinado também a 27 de Junho, mas só publicado a 10 de Julho; e foi exonerado das Finanças a 14 de Julho, com efeitos retroactivos a 16 de Junho, despacho esse apenas publicado a 4 de Agosto. Um verdadeiro carrossel administrativo onde cada data parece desmentir a anterior.
A imprensa, como não podia deixar de ser, tropeçou na confusão. Por exemplo, o Correio da Manhã, na sua edição do passado dia 5 de Agosto, noticiou apenas a exoneração do filho de Durão Barroso das Finanças para a chefia do gabinete do Ministério da Administração Interna, sublinhando que a saída se dera “a seu pedido”. Porém, o jornal não reparou que, quando deu a notícia, Luís Durão Barroso já estava há quase dois meses no gabinete de Maria Lúcia Amaral.
Este episódio mostra mais do que a ligeireza de uma redacção apressada: revela a própria natureza da gestão da “coisa pública”. O cruzamento de despachos assinados no mesmo dia com efeitos diferentes, publicações em datas desencontradas e exonerações retroactivas compõem um retrato fidedigno da opacidade e da desorganização que grassam na administração portuguesa. É um jogo de papéis em que ninguém parece preocupado com a transparência ou a clareza. Aquilo que importa é que, no fim, os lugares se acomodem — e os nomes, sobretudo se tiverem peso histórico, encontrem sempre poiso.
Maria Lúcia Amaral, ministra da Administração Interna, nomeou
Para completar a ironia, há ainda a memória do percurso paterno. José Manuel Durão Barroso, antes de chegar a ministro e a primeiro-ministro, e depois a presidente da Comissão Europeia, passou precisamente pelo Ministério da Administração Interna: em 1985, foi secretário de Estado Adjunto do ministro Eurico de Melo, no primeiro governo de Cavaco Silva. Mas o Durão Barroso sénior contava então 29 anos. Quarenta anos depois, o filho repete a presença no mesmo ministério, mas apenas como chefe de gabinete e já com 42 anos. Mesmo assim, ainda a tempo de singrar na política…
Enfim, se o leitor se sente confuso, é natural: essa é a consequência da forma como os governos portugueses fazem da burocracia um labirinto. Quem entra, nunca sai sem se perder. E no caso de Luís Durão Barroso, filho de um peixe que nunca se afoga, parece que a travessia entre Finanças e Administração Interna foi feita sem ondas — mesmo que o rasto no Diário da República seja digno de uma novela kafkiana.
A catástrofe confirma-se: 2025 já será garantidamente o pior ano desde o fatídico ano de 2017, quando arderam cerca de 540 mil hectares e morreram 114 pessoas. Na primeira quinzena de Agosto já arderam mais de 105 mil hectares, sendo que quase tudo (91 mil hectares) se concentrou na última semana, numa sequência de fogos sobretudo nos distritos de Viana do Castelo, Vila Real, Coimbra, Viseu, Guarda e Castelo Branco que permitiram suplantar os já preocupantes números do ano passado.
De acordo com os dados estatísticos ainda provisórios do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), até ontem terão ardido 142.234 hectares, colocando 2025, de forma irreversível, na lista dos anos negros que pontuam a história dos incêndios rurais em Portugal. E ainda existem grandes incêndios por debelar e uma meteorologia (mediterrânica) que não dá tréguas a anos de incúria na gestão dos espaços rurais.
E como em tantos outros anos, a geografia da catástrofe não se espalhou por igual. Os dados mostram que bastaram alguns concelhos para concentrar uma fatia substancial da destruição. À cabeça surge Trancoso, onde o fogo terá consumido quase na íntegra este concelho do distrito da Guarda, que tem três vezes e meia a dimensão de Lisboa.
Os dados provisórios do ICNF até indicam ainda uma impossibilidade: uma área ardida superio à superfície do municípios. Em todo o caso, garantidamente que Trancoso terá superado os 30 mil hectares, a que se junta a área consumida nos concelhos de Arganil (16.787 hectares) e Sátão (13.737 hectares), confirmando a tendência histórica de reincidência dos mesmos territórios no mapa do fogo.
Entre os dez concelhos mais atingidos encontram-se ainda Ponte da Barca (7.478 hectares), Vila Real (7.133 hectares), Arouca (6.201 hectares), Guarda (4.918 hectares), Sabrosa (3.449 hectares) e Penamacor (2.893 hectares), deixando claro que os distritos do interior centro e norte continuam a carregar o fardo das chamas.
Área ardida desde 2021 por ano, incluindo 2025 com dados provisórios até 15 de Agosto. Fonte: ICNF.
O padrão é conhecido: em Portugal, os incêndios raramente são uma calamidade homogénea. Concentrando-se em determinados concelhos, deixam atrás de si um retrato de devastação localizada mas profunda.
Este comportamento está longe de ser mero acaso. Resulta, em grande medida, de um ciclo perverso que tem acompanhado o país há décadas: anos de destruição em larga escala sucedem-se a períodos de relativa calma, não porque a prevenção funcione, mas porque os territórios já queimados funcionam como tampão, impedindo que novos fogos encontrem combustível fácil. Assim foi em 2003, 2005 e 2017, anos de catástrofe, e assim se repete agora em 2025. As condições meteorológicas e o caos prevêem que venham a ser ultrapassados os 200 mil hectares.
A cada novo grande incêndio, repete-se, a par de acusaçoes de incendiarismo, o diagnóstico estrutural de décadas: a falta de uma política integrada de gestão florestal, a excessiva fragmentação institucional, a sobrecarga de responsabilidades em corpos de bombeiros voluntários, muitas vezes pouco articulados e sem meios técnicos adequados, e a ausência de uma estratégia de prevenção sustentada. O resultado é uma dependência quase exclusiva de operações de combate, onde o heroísmo individual de bombeiros e populações substitui o que deveria ser uma resposta coordenada, profissionalizada e eficaz.
Área ardida por dia desde 1 de Julho de 2025 contabilizada em função da data da ignição. Fonte: ICNF.
Num país onde a política de ordenamento florestal permanece refém de interesses contraditórios – entre o peso do eucalipto, a falta de rentabilidade do minifúndio e a fragilidade das estruturas públicas de gestão –, o fogo continua a ser a última e mais brutal forma de reconfiguração da paisagem. E aquilo que não é retirado pelas políticas é devorado pelas chamas.
A sucessão de anos catastróficos e anos de “trégua” aparente alimenta a ilusão de que os problemas estão resolvidos. Mas a estatística desmente essa ilusão: em pouco mais de duas décadas, Portugal acumulou dezenas de milhares de hectares ardidos em picos devastadores, seguidos de descidas abruptas apenas explicáveis pela ausência de combustível imediato. Não há gestão, apenas o acaso do calendário ecológico.
Enquanto isso, os números deste ano voltam a colocar Portugal no centro do mapa europeu dos incêndios. A dimensão da tragédia de 2025 já ultrapassa em larga escala a média registada entre 2018 e 2024, aproximando-se a passos largos dos cenários mais negros da história recente. As consequências sociais, económicas e ambientais são devastadoras: aldeias evacuadas, habitações destruídas, investimentos florestais reduzidos a cinzas e ecossistemas inteiros condenados a décadas de recuperação.
Um país vergado aos incêndios. Foto: Pedro Nasper / mediotejo.net
Apesar de tudo, mantém-se o discurso oficial da eficácia. Fala-se em meios aéreos contratados, em planos operacionais sofisticados, em novas tecnologias de monitorização. Mas a realidade, demonstrada em concelhos como Trancoso, Arganil ou Sátão, mostra que nada disso substitui uma política estrutural de prevenção, que só poderá nascer de uma reforma profunda do modelo assente na dispersão de competências e no voluntarismo heroico mas insuficiente.
Os fogos de 2025 não são apenas a repetição de um fenómeno natural. É o espelho da incapacidade política de gerir um problema conhecido, estudado e anunciado. É também a confirmação de que Portugal continua preso num ciclo em que as chamas ditam a agenda e a memória colectiva, até à próxima vez que o acaso da meteorologia e da geografia voltar a alinhar-se contra a ineficácia de um país que se verga à sua própria incompetência.
Ano após ano, a discussão sobre a origem dos incêndios rurais regressa, mas a fotografia das causas parece saída de um carrossel que dá sempre a mesma volta. Em 2025, os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) mostram que, das 2.876 ocorrências já investigadas — que representam menos de metade das ignições registadas —, o “vandalismo” — definido como a “utilização do fogo por puro prazer de destruição” — surge como a principal causa isolada mais frequente.
Até agora, de acordo com a informação consultada esta tarde pelo PÁGINA UM, foram 489 ignições imputadas ao vandalismo, representando 17,0% do total.
Incêndios destruidores não dependem da causa. Foto: Paulo Jorge de Sousa
Mas se o vandalismo se destaca como causa no sistema de codificação do ICNF, a negligência, considerada de forma agregada, é a causa maioritária das ignições contabilizadas: quase seis em cada dez (58,2%) resultam de actos pouco cuidadosos que, não tendo dolo, podem ainda assim ser tipificados como crime.
Neste vasto lote incluem-se queimadas para renovação de pastagens, limpeza de restolho, queima de matos, borralheiras ou outros usos semelhantes, que só este ano já somam 802 ocorrências, equivalentes a 27,9% do total com causa conhecida — mais de um quarto.
Entre as causas negligentes mais inusitadas destacam-se incidentes ligados a transportes e comunicações, incluindo falhas diversas (81 ocorrências), o uso imprudente de alfaias agrícolas (79) e outras situações acidentais não especificadas (77). Surgem também, com frequência, queimadas extensivas para limpeza de caminhos, acessos e instalações (49), operações inseguras com maquinaria diversa (40) e a queima clandestina de amontoados de lixo (35).
O simples acto de fumar a pé foi responsável por 32 ocorrências, seguido do uso de máquinas agrícolas (31) e do lançamento legal ou ilegal de foguetes (37), bem como incêndios provocados por tubos de escape de veículos (22) e fogueiras improvisadas para confecção de comida (21). Até acidentes de viação (9) e brincadeiras de criança (8) entram nesta lista. Saliente-se que o grau de destruição de um incêndio rural não depende da causa da ignição.
Considerando os grandes grupos, somente 32,0% das ignições foram classificadas, por agora, como dolosas (intencionais), sendo que o incendiarismo sem indicação da imputabilidade regista 3% do total (86 casos), enquanto a piromania representa 0,4% (11 casos) e as vinganças 0,6% (17 casos). Um grupo relevante de ignições (293 casos, equivalentes a 10,2% do total) foi classificado como intencional imputável com motivações diversas.
Uma outra componente particularmente perigosa são os reacendimentos — fogos que voltam a ganhar força depois de extintos e que podem originar vários focos —, representando 8,4% do total em 2025. Já as causas naturais, como a queda de raios, não chegam a 1,3%.
Este retrato repete-se quase ao detalhe quando comparado com 2024: no ano passado, o vandalismo também liderou as causas conhecidas do ponto de vista da codificação, com 17,9% (778 ignições), sendo que o total de ignições de origem intencional ficou ligeiramente acima dos números relativos de 2025 — 37,9% contra 32%. As diversas tipologias de negligência ficaram, em 2024, nos 52,5%, os reacendimentos mantiveram-se nos 8,6% (373 ignições) e as causas naturais em 0,9%.
Note-se que, por agora, o ICNF reporta este ano um total de 6.253 ignições, mas 2.472 ainda nem sequer foram investigadas ou tiveram conclusão, muitas por serem recentes, havendo ainda outras 905 que, apesar de investigadas, acabaram classificadas como “indeterminadas” por falta de elementos objectivos. Ou seja, menos de metade (46%) dos incêndios de 2025 têm, neste momento, uma causa oficial atribuída. O resto está num limbo estatístico que, por ausência de investigação ou de prova, não permite perceber de onde vem o fogo.
O sistema de classificação do ICNF é hierárquico e contém dezenas de códigos que agrupam causas em grandes blocos: “uso do fogo” (onde entram as queimadas e fogueiras), “acidentais” (máquinas, linhas eléctricas, acidentes), “estruturais” (conflitos de uso do solo, danos provocados por vida selvagem), “incendiarismo” (dolo, incluindo vandalismo) e “naturais” (raios). Dentro de cada bloco, a especificidade é extrema: por exemplo, as queimadas têm nove subtipos, desde a limpeza de terrenos agrícolas à penetração em zonas de caça.
Esta multiplicidade revela que o fogo em Portugal não tem uma única origem nem um único culpado. Temos incendiários que ateiam fogos por “puro prazer de destruição” e agricultores que continuam a recorrer ao fogo para limpar campos ou renovar pastagens. Temos negligência, temos dolo, temos reacendimentos que denunciam fragilidades no combate e temos causas acidentais ligadas a máquinas e infra-estruturas.
É um mosaico complexo que, ao longo dos anos, mantém uma espantosa estabilidade nos seus padrões percentuais. Aliás, tal como as deficiências na gestão dos espaços rurais, os problemas de desertificação, os problemas crónicos na estrutura de prevenção e combate – tudo, na verdade, está interligado para o desastre cíclico.
Em Portugal, surge o calor, surgem os incêndios; surgem os incêndios, surgem as acusações de incendiarismo. Por mais que se conheçam as causas e o regime dos fogos devastadores em Portugal, todos os anos aos primeiros fogos com alguma dimensão, além do pânico cada vez maior, sobretudo após as mortandades de 2017, aparece uma miríade de «comentadores de bancada» apontando quase exclusivamente o dedo ao São Pedro (leia-se, clima mediterrânico, com os seus Verões quentes e secos, por vezes ventosos) e aos malévolos incendiários, como se os fogos de grande dimensão, e só esses, tivessem um ADN próprio.
Viu-se isto esta semana, não pela boca apenas de um bombeiro mais extenuado ou de um autarca mais estouvado, mas do próprio primeiro-ministro, Luís Montenegro, que prometeu “ir atrás” dos criminosos e dos “interesses que sobrevoam” os incêndios florestais. Encontrar um ‘inimigo’ vago, mas que apela à emoção popular, é uma típica estratégia da ‘falácia do espantalho’, que servia, aliás, na perfeição para não discutir como foi possível não se ter encerrado a tempo a A1. Foi um milagre não ter ocorrido uma tragédia pior do que a de Pedrógão Grande em 2017.
No meio disto, culpa-se sempre a floresta “desregrada”, mas as mudanças espoletadas pelos Governos, desde os anos 90, quando se agravou a incidência destrutiva, e sobretudo desde os trágicos anos de 2003, 2005 e 2017, são pouco mais do que incipientes e conjunturais. Nada se muda de estrutural, nada se modifica. É tudo para fazer de conta, como os “pechisbeques” dos kits de protecção anti-fogos comprados a uma empresa de turismo, e que afinal eram os primeiros a arder – uma situação tão ridícula que até causa vergonha alheia.
Incêndio em Vale da Carreira, Sardoal. Foto: Paulo Jorge de Sousa/mediotejo.net
Infelizmente, esta irritante tendência dos políticos de “fazer que fazem”, e dos portugueses em geral a culpar entes diabólicos ou a opinar com base na ignorância – vulgo, a dar bitaites –, constituem os principais factores sociopolíticos para não se mudar o paradigma de gestão da floresta e dos espaços florestais.
Afinal, porquê mudar se tudo estaria bem sem os incendiários a colocar fogos? Não bastaria apanhá-los todos e metê-los na prisão? E não bastava que os proprietários “limpassem” os matos? Infelizmente, a resposta é não.
Procurarei, em traços muitos breves, neste texto, apresentar algumas reflexões.
Comecemos, assim, por «desculpabilizar», desde já, o clima mediterrânico. Na verdade, a Natureza é como é. Em termos de risco, o clima mediterrânico está para Portugal como os terramotos estão para o Japão. Não quer isto dizer que são situações similares, mas apenas que o Japão soube ao longo do tempo minimizar os riscos (através da construção anti-sísmica e planos de prevenção e acção). O Japão não se queixa dos deuses por causa dos terramotos e, apesar de quando em vez serem graves, não causam agora as mortandades que se registavam até ao início do século XX.
A analogia nem sequer é muito feliz, porque o clima mediterrânico tem inegáveis vantagens que os terramotos obviamente não têm. Além de nos beneficiar com uma meteorologia que inveja meio mundo, e que fornece matéria-prima para o turismo, o clima mediterrânico concede à nossa floresta – e à vegetação em geral – condições quase únicas para um elevado crescimento, e portanto um elevado potencial económico, se bem gerido.
De acordo com um recente estudo internacional, Portugal é o país mediterrânico que, potencialmente, maior riqueza no sector florestal pode extrair por hectare (344 euros por ano). Por exemplo, França regista 292 euros e Espanha apenas 90 euros. Devíamos agradecer à Natureza este clima; não “amaldiçoá-la”.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017) Foto: Paulo Jorge de Sousa
Sendo incontornável que haverá sempre incêndios, porque o mundo não é perfeito, vejamos onde está o cerne do problema em Portugal. Sobretudo nas últimas três décadas, o regime do fogo tem estado sobretudo associado a dinâmicas antropogénicas, tanto ao nível de acções danosas (negligência à cabeça, e algum dolo) e da (in)capacidade de supressão de incêndios, como ao nível da gestão de combustíveis e de planeamento territorial.
No entanto, embora exista uma forte correlação entre número de ignições e a densidade populacional em regiões mediterrânicas – por exemplo, o distrito do Porto é historicamente aquele que regista mais ignições –, tal já não se verifica entre o número de ignições e área ardida. Com efeito, são factores como a orografia, a precipitação fora da época de estiagem e a percentagem de área inculta que apresentam maiores correlações positivas com a área ardida total.
Os efeitos dos incêndios apresentam-se assim, numa base regional, como problemas de distinta intensidade e dimensão. Mais população significa maior número de ignições, mas a maior área ardida observa-se sobretudo em regiões de menor densidade demográfica. Exemplo paradigmático dessa “dualidade” regional observa-se num dos períodos de recrudescimento dos incêndios florestais, entre 1996 e 2005, período sobre o qual me debrucei com detalhe quando escrevi o ensaioPortugal: O Vermelho e o Negro‘, publicado em 2006, mas que ainda hoje, retirando a parte estatística mais ‘datada’ mantém uma infeliz actualidade.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017) Foto: Paulo Jorge de Sousa
Tendo sido contabilizadas, neste intervalo, cerca de 284 mil ignições e uma área ardida de quase 1,64 milhões de hectares, a distribuição foi a seguinte: 39,2% do total das ignições (cerca de 111 mil) concentraram-se em apenas 25 concelhos (quase todos do litoral, mais densamente povoado), mas ardeu aí apenas 10,3% do total nacional (menos de 170 mil hectares); e nos 25 concelhos com menor número de ignições (todos do interior despovoado) registaram-se apenas 10,7% do total (pouco mais de 30 mil) mas contribuíram em 39,0% (cerca de 640 mil hectares) para o total da área ardida.
O êxodo rural em Portugal, iniciado nos anos 60 e agravado significativamente a partir de meados da década de 1980, mostra-se, sem dúvida, como uma das principais causas para o surgimento de fogos devastadores. Um dos efeitos da perda demográfica especialmente sentida nas aldeias, após a implementação da Política Agrícola Comum, foi a eliminação quase total e imediata de práticas e usos tradicionais associados à agricultura, pastorícia e silvicultura, que contrariavam a ocorrência e a propagação dos incêndios.
A sociedade rural, imagem de marca de Portugal durante séculos, modificou-se de forma abrupta em poucas décadas, levando simplesmente ao abandono de vastas áreas agrícolas e florestais, sem a ocorrência de qualquer transferência relevante de direitos de propriedade para quem não seguiu esse êxodo para as cidades e litoral. A população empregada no denominado sector primário tradicional passou de expressivos 47,6% em 1950 para apenas 2,8% em 2011.
Como reverso dessa “moeda de modernidade”, foi colossal a redução de actividades permanentes no espaço rural: em 2011 eram apenas 120 mil pessoas com emprego no sector primário, enquanto em 1950 suplantavam 1,5 milhões. Paradoxalmente, apesar dessa evolução, e por via de planos directores municipais demasiado permissivos, aumentaram as habitações em espaço florestal ou contíguo, sobretudo de segunda residência, levando não só a uma maior probabilidade de procedimentos negligentes causadores de fogos como também a um agravamento da complexidade do combate.
Efectivamente, muitos dos grandes incêndios tomaram proporções incontroláveis porque o sistema de combate, bem como os investimentos de prevenção, tem tido como prioridade a defesa de bens (habitações e equipamentos) em detrimento da protecção da floresta. O problema desta estratégia é de aumentar a probabilidade de incêndios devastadores, que assim destroem mais floresta e, provavelmente, mais casas.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
O aparente paradoxo patente na ocorrência de uma maior destruição pelos incêndios onde mais se reduziu a quantidade de pessoas – sabendo-se serem estas que causam os fogos –, explica-se facilmente. O surgimento de incêndios devastadores sobretudo desde o início do século XXI decorre do incremento muito significativo da biomassa vegetal nos espaços florestais, tanto horizontal como verticalmente, em virtude das mudanças socioeconómicas – que levaram ao desaproveitamento de subprodutos florestais (e.g., lenha, matos, etc.) – e do forte abandono agrícola e florestal.
Em 2010 a área agrícola era a menor desde o início do século XX e a área e mato (com pastagens) estava em vias de ultrapassar a área florestal, algo que não acontecia desde a década de 1940. Entre 1950 e 2010, a área de matos e pastagens quase quadruplicou, passando de 885 mil hectares para um pouco acima de três milhões de hectares, o valor mais elevado desde a década de 1920.
Por outro lado, a política florestal a partir dos anos 80 – que coincidiu com o agravamento do problema dos incêndios – privilegiou sobretudo a substituição de áreas de pinhal, algumas afectadas pelos fogos, por eucaliptais (ambas espécies altamente combustíveis), mantendo-se na generalidade dos casos uma deficiente gestão antrópica, enquanto ao redor desses espaços florestais medraram matagais.
Para agravar a situação, aumentaram os fenómenos meteorológicos extremos, bem patentes no ano de 2017, com dois devastadores períodos a ocorrerem fora do Verão (Junho e Outubro). As condições meteorológicas do mês de Setembro deste ano foram também muto agressivas, e localizadas em regiões restritas, bem patente em destruições que, por vezes, ultrapassam meia centena de milhar de hectares, ou mesmo mais, em apenas um dia. Isso é uma consequência não apenas meteorológica. Com uma floresta mesclada com matagais e densos estratos vegetais, por vezes intransponíveis, também pela orografia, e sem o “obstáculo” das outrora zonas agrícolas – que serviam de zonas-tampão –, os fogos encontram agora extenso e contínuo combustível para galgarem milhares e milhares de hectares.
Outro aspecto particularmente grave, que se tem vindo a intensificar, é a recorrência do fogo, i.e., a maior susceptibilidade de determinadas regiões a serem percorridas ciclicamente por incêndios, retirando-lhes assim qualquer possibilidade de rentabilidade económica, o que incentiva a manutenção deste status quo.
Por exemplo, um estudo desenvolvido pelo Instituto Superior de Agronomia para um período de 16 anos (entre 1990 e 2005) apurou que quase 300 mil hectares arderam duas vezes, cerca de 83 mil hectares três vezes e uma área de 28 mil hectares foram afectados pelo menos quatro vezes, estando essa recorrência associada a queimadas para pastagens. Torna-se assim absurdo, com tamanhas recorrências, tentar encontrar interesses, urbanísticos ou mineiros, como causa para os fogos. Até porque a eliminação das árvores não traz sequer vantagens, a não ser em zonas periurbanas, para a construção, além de que, no caso de explorações mineiras, a autorização nunca estará condicionada à existência ou não de cobertura arbórea na zona a licenciar.
Nas análises sobre os incêndios florestais em Portugal um outro factor que sempre surge é o alegado contributo do regime de propriedade, marcadamente de minifúndio sobretudo a norte do rio Tejo e no Algarve. Embora os dados oficiais sejam pouco precisos sobre o cadastro e a propriedade rústica em Portugal, e sobretudo em relação às propriedades com uso silvícola, sabe-se que Portugal está, segundo a FAO, entre os 10 países do mundo com maior percentagem de área florestal privada, ocupando a primeira posição a nível europeu.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Os valores geralmente apontados para caracterizar o regime fundiário na floresta portuguesa baseiam-se em estimativas ou em amostragens, ou também em informação dos recenseamentos agrícolas. Por esse motivo, embora a Autoridade Tributária e Aduaneira indique a existência de 11.578.124 prédios rústicos no ano de 2015, ignora-se os que são ocupados por floresta, e nem se sabe se este número corresponde à realidade, uma vez que nem existe coincidência entre os registos do Cadastro Predial, da Matriz das Finanças e do Registo Predial. Esta ignorância é também demonstrativa do desleixo geral do país relativamente a um problema crucial. A criação do Balcão Único do Prédio (BUPi) tem contribuído para inverter esta situação, mas também tem revelado uma tenebrosa realidade: há uma parte substancial dos prédios rústicos sobre os quais ninguém reivindica a propriedade. Ou seja, estão ao abandono, são ‘pasto de chamas’, e se arderem levam muitas outras áreas atrás.
Em todo o caso, grosso modo estima-se que as propriedades públicas, incluindo os baldios (com gestão conjunta do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas), agrega cerca de 540 mil hectares, estando assim a restante área ocupada por proprietários privados.
Na região a norte do Tejo, onde se localiza a esmagadora maioria da área de pinheiro e eucalipto, e se concentra o minifúndio, cerca de 54% da área florestal encontra-se distribuída por povoamentos com menos de 10 hectares. No caso do pinheiro, 63% dos povoamentos têm áreas inferiores a 10 hectares e 25% áreas inferiores a dois hectares, enquanto no caso do eucalipto cerca de metade dos povoamentos têm dimensão inferior a 10 hectares.
Há cerca de uma década, aquando da elaboração da Estratégia Nacional para as Florestas, estimou-se que cerca de 61% do total dos proprietários florestais possuíam parcelas com menos de cinco hectares, embora apenas detivessem cerca de 26% da área florestal do país, dando assim uma ideia clara da predominância do regime de minifúndio.
Com efeito, cerca de 10% da área florestal era formada por parcelas com menos de um hectare e 16% por parcelas entre um e cinco hectares, significando isto ser muito frequente um proprietário possuir, de forma disseminada, um elevado número de parcelas de reduzidíssima dimensão.
Para agravar a situação, grande parte das propriedades com área inferior a cinco hectares possuíam povoamentos dominados por pinheiro, dimensão onde impera geralmente ausência de investimento, e também pouca expectativa de obtenção de rendimento. Numa postura optimista, estas minúsculas parcelas florestais – que podem representar, em manchas contínuas, centenas de milhar de hectares – constituem, individualmente, meros fundos de poupança para satisfação de necessidades económicas conjunturais. No caso das propriedades inferiores a um hectare não existia mesmo qualquer produção, tanto mais que numa percentagem significativa os proprietários nem sequer sabem identificar nos terrenos as suas parcelas.
Nas ciências económicas, a denominada Teoria dos Jogos mostra, infelizmente, que a melhor decisão de um qualquer agente numa parcela de “floresta” rodeada por proprietários absentistas é não fazer qualquer gestão, porque a probabilidade de arder gastando ou não dinheiro é praticamente a mesma, e assim optando por não fazer gestão, pelo menos “poupa-se” nesses custos.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Ou seja, não há receitas mas também não há custos, logo não há prejuízo. Claro, o prejuízo vem para a sociedade, através da destruição dos incêndios, i.e., de uma externalidade negativa. Esta é a triste realidade portuguesa: face à ausência de associativismo florestal, a inacção de diversos agentes causa uma generalizada inacção, porquanto o risco de um investimento se “esfumar” com um incêndio, proveniente da ausência de gestão em redor, acaba por determinar, como estratégia dominante, ninguém fazer gestão.
No caso do eucalipto, a situação era um pouco melhor, tendo em consideração que grande parte da sua área se situava em propriedades com dimensão entre os cinco e os 20 hectares (12% do total da área florestal) e entre os 20 e os 100 hectares (7% do total). Nestes casos verificava-se já uma presença de investimento e gestão, tendo a exploração um rendimento relevante para os proprietários. A restante área (55%), agregando 15% dos proprietários, possuía uma dimensão superior a 100 hectares, embora dominada por sobreiros e azinheiras, portanto sobretudo localizadas a sul do Tejo e em herdades do distrito de Santarém.
Porém, este cenário, que desde 2007 não se terá alterado, pode induzir a uma conclusão precipitada. Sendo certo que uma estrutura de minifúndio pode conduzir mais rapidamente à ineficiência económica, será imprudente generalizar e determinar uma correlação imediata entre incêndios e minifúndios. De facto, mostra-se conveniente investigar antes esta questão por duas novas perspectivas, complementares.
Primeiro, deve analisar-se diacronicamente o regime fundiário português para determinar se ocorreu algum fenómeno que tenha alterado a estrutura da propriedade típica e que per si justifique um agravamento dos incêndios florestais a partir da década de 1980.
Segundo, comparar a afectação das áreas ardidas em função da tipologia dos proprietários, ou seja, pôr em paralelo o grau de destruição das áreas de gestão pública, de gestão pelas empresas de celulose (que gerem áreas de maior dimensão) e as restantes áreas privadas que incluem o minifúndio.
No primeiro caso, analisando a informação disponível em diversas fontes, verifica-se que o fraccionamento da propriedade rústica é um fenómeno antigo e já bastante estabilizado. Com efeito, a génese do minifúndio surge no decurso de um processo político iniciado nos anos 30 do século XIX, com a instauração da Monarquia Constitucional, que resultou na desamortização de grandes propriedades então pertencentes à nobreza e à Igreja.
Posteriormente, teve ainda um maior impulso com a definitiva abolição dos morgados e a entrada em vigor do Código Civil de 1867, quando estabeleceram sem excepção direitos de herança a todos os filhos. Uma década depois existiam cerca de 5,05 milhões de prédios rústicos, manifestando-se já nesse período excessiva fragmentação, sobretudo na região do Noroeste, com efeitos perniciosos em termos de desenvolvimento agrícola.
Apesar de várias tentativas políticas para evitar o contínuo fraccionamento por via das heranças, somente nos anos 20 do século XX, quando o número de prédios rústicos já ultrapassara os 10,7 milhões, se criou legislação para o estancar, através do Decreto nº 16731 (vd. artigo 107º) que decretou a nulidade de qualquer partilha de prédios com menos de um hectare ou que daí resultassem parcelas inferiores a meio hectare. Esta medida travou fortemente o fracionamento, embora não o impedisse na totalidade.
Se até 1930, em comparação com o último quartel do século XIX, numa parte considerável dos distritos a norte do Tejo mais que duplicou o número de prédios rústicos, a partir dessa década o ritmo estancou. Em 1960 verificou-se até um decréscimo de cerca de 2% em relação ao início do Estado Novo.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
A partir dessa década registou-se um novo crescimento no fracionamento, mas mesmo assim suave, atingindo-se um máximo de 11,17 milhões de prédios em 1971. A partir da instauração da democracia, em 1974, o acréscimo foi ligeiro, da ordem dos 0,12% por ano até 2015, estando nessa data contabilizados cerca de 11,58 milhões de prédios rústicos.
Sendo assim, outros factores, e não (apenas) o minifúndio, terão determinado a perda de interesse económico da floresta nas pequenas parcelas e a eclosão de incêndios catastróficos. Uma explicação encontra-se por via sociológica. Durante o Estado Novo, com uma sociedade marcadamente rural, as vivências sociais permitiam um uso comum das propriedades florestais privadas. Ou seja, de modo informal mas cooperativo, os proprietários concediam livre acesso aos não-proprietários para estes, graciosamente, recolherem alguns produtos (e.g., lenha, caruma, matos, etc.), para uso doméstico e agropecuário, «recebendo» em troca uma gestão de combustíveis.
A presença de pessoas nas florestas constituía também uma vigilância quase contínua e dissuasora de comportamentos dolosos ou negligentes por parte de terceiros. Além disso, tendo presente que, durante o Estado Novo, a produção de resina constituía um importante suplemento económico dos pinhais, fica-se com uma ideia clara dos motivos muito prováveis para que, neste período, mesmo os minifúndios florestais fossem rentáveis e estivessem longe de constituir um factor de risco de incêndios. Na verdade, as condições sociais e de cooperação tradicional, que então se viviam nas zonas rurais portuguesas, parecem ter constituído um sistema benigno de interligação entre regime privado e comunal por via da cooperação entre agentes que visam a um equilíbrio sustentável.
Deixando de existir esse ténue equilíbrio, por força do êxodo rural e da perda económica dos pinhais, a gestão de combustíveis foi desaparecendo, redundando num aumento do risco de incêndio, desincentivador de investimentos e promotor de absentismo.
Na análise desta evolução não podem dissociar-se as reestruturações neste sector pela Administração Pública a partir dos anos 80, que contribuíram decisivamente para retrocessos na prevenção silvícola e na eficácia e eficiência do sistema de combate aos incêndios.
Nesse aspecto convém destacar o diagnóstico traçado em 2012 na Estratégia para a Gestão das Matas Nacionais, promovida por técnicos da própria Administração Pública onde se apontam os principais factores que contribuíram para a degradação da protecção das florestas e espaços florestais: a diminuição dos condicionamentos de acesso às matas nacionais e da fiscalização dos guardas florestais (a partir de 1974), a transferência do combate aos incêndios dos Serviços Florestais para as corporações de bombeiros voluntários (a partir de 1981), o encerramento das administrações florestais a nível regional (a partir de 1996), bem como, mais recentemente, o desligamento das tarefas de gestão do corpo de guardas e mestres florestais, e a transferência da competência de análise e decisão dos projectos florestais para o actual Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) e outros organismos sem vocação nem técnicos nas áreas silvícolas.
O esvaziamento dos Serviços Florestais (com distintas denominações), criados no início do século XX, intensificou-se desde a década de 1990, passando em poucos anos de cerca de quatro mil funcionários para menos de mil. Inclui-se neste lote o Corpo Nacional de Guardas Florestais – que tradicionalmente viviam no interior dos espaços florestais em cerca de mil casas de função –, cuja estrutura foi extinta em 2006, tendo sido integrados os trezentos elementos remanescentes nos Serviços de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Estas alterações políticas resultaram, sem dúvida, num aumento do risco de incêndio e da susceptibilidade das florestas e dos espaços florestais em geral, mas também particularmente das matas nacionais e perímetros florestais (que integram os baldios), geridas pelos Serviços Florestais. Essa situação mostra-se evidente quando se comparam os registos da área ardida das florestas sujeitas a regime público até à década de 1970 e posteriores à década de 1980.
A situação apresenta contornos catastróficos nos últimos anos. Por exemplo, nos anos de 2016 e 2017 cerca de 20% da área sob gestão pública foi afectada por fogos, sendo que em 18 perímetros e matas nacionais se registaram destruições superiores a 70% das respectivas áreas, estando aqui incluído o secular Pinhal de Leiria.
Lamentavelmente, a destruição das florestas públicas desde 2001 (4,62% em média por ano) ultrapassa largamente os valores das propriedades das celuloses (2,33%) e mesmo da restante área privada (2,28%), que inclui o minifúndio.
Por todos estes motivos, a análise da perda de sustentabilidade da floresta portuguesa e os prejuízos recorrentes das externalidades negativas, encabeçadas pelos incêndios, não deve ser feita de forma simplista face à complexa teia de factores: a quebra dos vínculos sociais informais nos meios rurais, o abandono de actividades agroflorestais tradicionais, a emigração e êxodo rural, a perda da sustentabilidade da agricultura de minifúndio, etc.. Porém, quando se recomendaria que o Estado, perante estas variáveis, tivesse uma intervenção determinante para corrigir falhas de mercado, sucedeu o oposto: um desinvestimento no sector florestal. O único sector com orçamento reforçado foi o do combate aos incêndios.
As autoridades nacionais portuguesas somente a partir de meados da década passada começaram a contabilizar os custos directos e prejuízos resultantes dos incêndios, incluindo uma parte das externalidades, embora recorrendo a métodos muito simplistas, que requerem alguma reserva. Antes desse período, a Universidade Católica de Lovaina, no âmbito da Emergency Disasters Database, estimara que os prejuízos dos fogos de 2003, que destruíram cerca de 425 mil hectares, ascendiam aos 1,5 mil milhões de euros.
Nos trabalhos preparatórios realizados em 2006 para a Estratégia Nacional para as Florestas estimou-se que os incêndios representavam uma externalidade negativa de cerca de 380 milhões de euros por ano, reduzindo em 30% a riqueza anual produzida pelas florestas. E, de acordo com dados oficiais, os incêndios rurais entre 2000 e 2016 provocaram perdas da ordem dos 5.232 milhões de euros. No ano de 2017, o pior desde a existência de registos estatísticos, os prejuízos ter-se-ão aproximado dos mil milhões de euros.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Até recentemente estes aspectos eram ignorados pelas autoridades oficiais, e mesmo os custos de supressão – associados às infraestruturas e equipamentos, aluguer de aeronaves e pagamentos aos bombeiros – eram vistos como investimento, e um Governo considerava ser-lhe favorável politicamente conceder acréscimos sucessivos à componente de combate.
Contudo, a realidade demonstra, infelizmente, que os gastos públicos na vigilância e supressão dos incêndios florestais têm estabilizado em torno dos 100 milhões de euros por ano, mas sem quaisquer efeitos positivos. Os prejuízos dos incêndios mostram variações aleatórias sem relação com os gastos em combate. Esse cenário demonstra que, na verdade, os gastos na prevenção e em equipamentos e meios humanos para controlar os incêndios (supressão) não têm um efeito determinante na área ardida e, portanto, nos prejuízos, evidenciando-se que o actual modelo de gestão se mostra insustentável.
A solução para este grave problema económico, social e ambiental, que já se mostra tragicamente crónico, terá de passar, na minha opinião, pela assumpção da defesa da floresta como um bem público (no conceito das ciências económicas), implementando, a partir daí, uma reforma administrativa intersectorial já defendida por diversos especialistas.
No entanto, considero que, ao contrário daquilo que têm sido os recentes sinais de política económica para este sector, o Estado deveria deixar de desempenhar apenas um papel de mero coordenador, regulador e redistribuidor de recursos financeiros; antes sim deveria passar a exercer uma função interventora de gestão directa dos espaços florestais, incluindo obviamente, até para dar exemplos de boas práticas, as florestas de regime público.
Isto não significa a privatização das florestas, antes sim assumir-se que o Estado é indubitavelmente a única entidade com capacidade de intervenção global para implementar, gerir e executar um modelo centralizador para a gestão dos espaços florestais. Note-se que existe uma distinção entre floresta – bens privados – e os espaços florestais – conjunto de parcelas que fornecem externalidades positivas, como ar limpo, paisagem e outros benefícios para a sociedade, e por isso são bens públicos, na visão económica do termo –, e daí necessitam de abordagens distintas.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Distinguir estes dois bens que, na verdade, coexistem – e, por vezes, se confundem por «comungarem» do mesmo espaço físico – serve sobretudo para colocar, de um lado, um bem sobretudo privado (floresta) que, por razões complexas, tem vindo a criar externalidades negativas (incêndios); e, do outro lado, um bem público (espaços florestais) que criam benefícios para a sociedade.
Ora, actualmente, porque estes benefícios não são convenientemente remunerados (ou compensados) acabam por ser «lesivos» para todos. Com efeito, o conjunto de proprietários que produz esse benefício para a sociedade nada recebe, e, em alguns casos, até tem de suportar mais encargos para proteger bens alheios.
Face ao carácter de minifúndio das propriedades, a ausência de uma compensação aos proprietários florestais por essa externalidade positiva para a sociedade contribui para o agravamento da sustentabilidade económica dessas parcelas e induz a um maior absentismo. Ou seja, a existência de uma externalidade positiva (porque um serviço ambiental não é pago pela sociedade) pode estar na origem de uma externalidade negativa (os incêndios). E havendo incêndios, não apenas ocorrem danos económicos e sociais directos como se perdem os benefícios fornecidos pelos espaços florestais. Daí a necessidade de intervenção directa do Estado, bem diferente daquela que até agora tem sido, para equilibrar aquilo que se chama uma “falha de mercado”.
Justifique-se, com um simples mas elucidativo exemplo, as razões para se defender uma intervenção directa do Estado, e não apenas reguladora e distribuidora de fundos. Quando, como actualmente sucede, o Governo determina administrativamente (e sem critério técnico, por vezes) que sejam os proprietários das florestas a proceder e a assumir os custos da desmatação e desarborização em redor de habitações (das quais, por vezes, nem são os proprietários), não está a seguir princípios de eficácia, de eficiência e de equidade.
Por um lado, porque essa obrigação quase nunca é eficaz nem eficiente, uma vez que não se baseia em estratégias de prevenção nem em estudos que definam adequadamente faixas de gestão de combustíveis, nem existe a garantia, face ao absentismo de muitos proprietários, de que essas operações sejam executadas. Por outro lado, obrigando apenas certos proprietários a assumir esse ónus, o Estado beneficia free-riders, i.e., os proprietários das habitações em redor (muitas das quais autorizadas após a existência da floresta) e os vizinhos florestais isentos dessas operações.
E mesmo que este controlo de vegetação fosse eficaz para eliminar a externalidade negativa (incêndios), manter-se-ia a iniquidade, porquanto o proprietário responsável pela operação de limpeza não fora compensado por esse serviço – i.e., a criação de uma externalidade positiva – com a agravante de ainda ter uma perda de rendimento potencial por redução de biomassa florestal.
Não se está a advogar um Estado a gerir as florestas privadas, mas sim a exercer a gestão dos espaços florestais, podendo eventualmente «entrar» em áreas privadas, como já sucede em outros casos, através de servidões administrativas, de modo a corrigir externalidades, sempre também com uma visão nas funções de redistribuição e mesmo de estabilização.
Assim, de uma forma muito sucinta, por via de um reforço da Administração Pública do sector florestal, proporia a criação de um denominado Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF) numa instituição estatal autónoma que deveria agregar equipas de técnicos, vigilantes e sapadores florestais, com a missão de executar no terreno as operações necessárias de gestão de combustíveis (biomassa), de vigilância e controlo de acessos, e ainda supressão de incêndios. Por outro lado, no âmbito deste modelo, deveria ser criado um mecanismo de compensação económica ou fiscal, através de um sistema de perequação, para benefício dos proprietários dos terrenos florestais onde se fizessem intervenções de controlo de vegetação.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
No sentido de o Estado financiar este sistema como uma provisão de um bem público – e sem necessidade de contabilizar os rendimentos de um previsível aumento das receitas dos impostos (IRC e IRS) associados à melhoria da produtividade das actividades silvícolas por eliminação das externalidades – poder-se-ia apostar em três fluxos financeiros: separando-o do mastodóntico Fundo Ambiental, um reforço no Fundo Florestal Permanente (cujas receitas, para além do actual adicional ao ISP, poderiam ser provenientes de um «imposto» específico similar a aplicar aos produtos de origem silvícola, sendo assim uma forma de internalização pela sociedade das externalidades positivas concedidas pelos espaços florestais); um adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis rústicos (aplicando uma taxa regressiva por prédio rústico em função da área, também como incentivo ao emparcelamento e/ou como penalidade à manutenção de áreas improdutivas); e uma denominada Taxa de Protecção de Espaços Florestais (sob a forma de taxa fixa por prédio urbano e veículo).
Um sistema deste género implicaria elevados investimentos, mas esse montante será incomensuravelmente menor do que as externalidades negativas existentes.
A versão original, sem a actualização agora realizada, foi publicada na revista PONTO – revista do mediotejo.net, em 2021, acessível aqui. O PÁGINA UM apresenta os agradecimentos à directora do Médio Tejo, Patrícia Fonseca, e ao fotógrafo Paulo Jorge de Sousa.
No dia 25 de Julho, o PÁGINA UM publicou uma reportagem sobre o estado de degradação em que se encontrava o Jardim da Cerca da Graça, em pleno centro da capital. Na última semana, uma equipa de limpeza esteve a executar uma acção de limpeza do espaço, mas também numa colina próxima do Jardim, junto à Calçada do Monte. A acção durou vários dias e resultou em dezenas de sacos de lixo que acabaram por ser retirados da zona
O PÁGINA UM regressou esta quinta-feira ao local e comparou o que vimos na reportagem anterior com a situação presente.
Durante vários dias, uma equipa esteve a fazer uma acção de limpeza no Jardim da Cerca da Graça e na Calçada do Monte. Na foto, é visível uma carrinha com vários sacos de lixo e um funcionário a subir a escadaria da entrada principal do Jardim carregando sacos.
Encontrámos um jardim significativamente mais limpo. Também as tendas de sem-abrigo que se encontravam no parque infantil já não estavam lá. E também não vimos nenhuma seringa, nem cartões bancários e carteiras roubadas, ao contrário do que aconteceu na primeira reportagem.
Contudo, apesar dos esforços da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para melhorar e limpar o espaço, já começam a ser visíveis focos de lixo e latas espalhadas pelo chão. No parque dos cães, mantêm-se cobertores e edredons pendurados. Numa das “ruas” do parque, onde se encontravam tendas, estão agora alguns pertences de sem-abrigo que se voltaram a instalar no mesmo local.
Por outro lado, apesar de a CML ter efectuado uma limpeza no parque infantil, o mesmo não parece estar em condições para ser frequentado por crianças. No escorrega dos mais pequenos, encontrámos um pedaço de papel absorvente sujo e sinais de que o espaço é usado por adultos. Ao lado do escorrega, era visível uma base de cartão no chão.
Na zona do parque infantil já não há tendas de sem-abrigo.No parque dos cães, permanecem cobertores e edredons, num abrigo improvisado que serve da “casa” a sem-abrigo que se instalaram naquele Jardim.No escorrega dos mais pequenos, encontrámos um pedaço de papel absorvente sujo, havendo sinais de que o pequeno abrigo de madeira é usado por adultos. Ao lado, um pedaço de cartão jazia no chão.
No escorrega das crianças mais crescidas, o “abrigo” de madeira com escadas que dão acesso ao escorrega já não tinha seringas nem cartões bancários ou carteiras roubadas. Mas encontrava-se com algum lixo, incluindo muitas beatas.
Na zona reservada a brincadeiras com “areia”, o que resta de uma porta de correr jazia no chão, onde também eram visíveis beatas e outros lixos.
As colinas mais acessíveis do jardim também foram limpas na recente acção de limpeza. Mas a colina de mais difícil acesso — cuja entrada era a que dava acesso ao antigo parque de estacionamento da EMEL — tem ainda mais lixo, incluindo malas de viagem velhas e sujas. O tipo de objectos que se encontram no local aparentam ser de tendas de sem-abrigo que residiam na parte de cima do parque e que terão sido retiradas recentemente.
Quando os turistas descem a Calçada do Monte, é esta a primeira imagem do Jardim da Cerca da Graça que levam consigo: uma colina cheia de lixo. Perto, também vislumbram sem-abrigo a dormir rodeados de caixas de cartão.
As escadas por onde as crianças sobrem para andar no escorrega maior ainda apresentam lixo variado. Mas já não havia lá seringas nem carteiras roubadas. Nesta nossa segunda visita ao Jardim, observámos que uma antiga porta de correr ocupava uma parte do chão do parque destinado a brincadeiras com areia. Havia beatas espalhadas pelo recinto dedicado aos mais novos.A primeira imagem que os turistas encontram do Jardim da Cerca da Graça é esta: lixo diverso, incluindo malas de viagem sujas, “descem” colina abaixo e já fazem parte da paisagem, ao lado de figueiras e outras árvores e arbustos.
Ao descer a Calçada, continuam no mesmo sítio as garrafas e latas colocadas nos diversos orifícios que se encontram no muro que desce aquela via. E são visíveis, no chão, vidros de viaturas, que terão sido assaltadas recentemente.
O que se torna evidente, é que todo o esforço da CML em limpar a zona esbarra num problema: a toxicodependência e os sem-abrigo que ali buscam o ‘produto’ e lá acabam por ficar a residir. Acresce a pressão turística e o número elevado de pessoas que se deslocam àquela zona, e por ali ficam a consumir bebidas, a ver a vista da cidade.
As tendas foram retiradas do Jardim da Cerca. Mas os sem-abrigo e os toxicodependentes permanecem por ali. Bem como o risco de roubos e assaltos.
Logo em frente à entrada principal do Jardim da Cerca, do outro lado da estrada, uma “tenda” improvisada com cartão ocupou o espaço onde até hoje existiam abrigos para uma colónia de gatos. São visíveis malas de viagem e outros objectos no local. As tigelas de comida e água dos gatos, aparentemente, desapareceram. Mas os gatos continuam a deambular pela Calçada, agora que perderam a sua “casa”.
Na Calçada do Monte, havia vestígios de assaltos recentes a viaturas que estiveram estacionadas naquela via que é abrangida pela EMEL.Alguns sem-abrigo transferiram-se do Jardim da Cerca para o outro lado da estrada, na Calçada do Monte. Ocupam agora o espaço que até agora era o local onde estavam os abrigos da colónia de gatos residente no local. Na colina da Calçada do Monte, a CML levou a cabo uma grande acção de limpeza há poucos dias. Mas já são visíveis garrafas e latas. Um sem-abrigo também dormiu no local algumas noites.
O que observámos levanta a questão sobre a viabilidade de a CML conseguir resolver sozinha o problema da degradação da zona. A conclusão é que não.
Por mais equipas que a CML desloque para o local, para efectuar acções de limpeza, rapidamente, o lixo começa a aparecer. As tendas são substituídas por abrigos improvisados pela zona.
Há seres humanos ali, a consumir droga, a viver uma vida sem dignidade. E se estão ali é porque há ali quem venda droga. Sem resolver o problema da venda e consumo de droga e álcool no local, não será possível travar a espiral de degradação da zona, que tem sido afectada por criminalidade contra pessoas e estabelecimentos.
Esperar que a CML resolva isto sozinha é ingénuo. O Jardim da Cerca da Graça e a colina junto à Calçada do Monte estão agora mais limpos. Mas até quando?
Lisboa merece um tratamento melhor. Os lisboeta merecem melhor. E, sobretudo, aqueles seres-humanos que ali estão a viver sem dignidade e condições, merecem melhor. E o problema de fundo, da toxicodependência que leva à criminalidade e gera sem-abrigo, não se resolve sem que haja uma intervenção concertada e eficaz.
Sem isso, resta à CML ir enviando equipas de limpeza para, temporariamente, melhorar o aspecto e salubridade da zona.
A colina da Calçada do Monte está visivelmente mais limpa, após a acção de limpeza da CML.Esta foi uma das zonas do Jardim da Cerca onde o PÁGINA UM encontrou seringas no chão. Hoje estava visivelmente mais limpa, sem lixos no chão nem na colina que desce para o relvado do Jardim.
Pelo menos hoje, já se sentia um ambiente melhor no Jardim. Mais leve. Ouvia-se música. Um cão corria pelo relvado destinado a lazer e piqueniques. O quiosque estava vazio, mas o calor também era intenso.
Resta esperar para ver qual o caminho que, daqui em diante, aquele espaço central da capital vai seguir. Se vai voltar a ser um Jardim com festas de aniversário de crianças e brincadeiras entre família e amigos. Ou se vai manter-se na espiral de tráfico e consumo de droga e álcool, crime e decadência. Esperemos que siga pelo primeiro.