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  • Comissão da Carteira de Jornalista admite que esteve a funcionar sem actas

    Comissão da Carteira de Jornalista admite que esteve a funcionar sem actas

    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) reconheceu, num recurso entregue ao Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), a contestar uma sentença favorável ao PÁGINA UM, que o seu Secretariado — o órgão colegial executivo e decisório composto, entre 2022 e o início deste ano, por Licínia Girão, Jacinto Godinho e Paulo Pinheiro — nunca produziu actas durante o mandato anterior, limitando-se a elaborar “ordens de trabalho”.

    Esta confissão, de enorme gravidade jurídica e institucional, demonstra que a CCPJ operou à margem da legalidade, violando de forma continuada o Código do Procedimento Administrativo (CPA) e os princípios estruturantes da Administração Pública.

    Foto: PÁGINA UM

    Com efeito, o Secretariado da CCPJ, enquanto órgão colegial de um organismo público, está sujeito à elaboração de actas em todas as reuniões com deliberações, as quais devem identificar os membros presentes, os assuntos discutidos, os votos emitidos e as decisões tomadas. Ora, nos órgãos colegiais, a única forma de exteriorizar validamente uma deliberação é a acta, pelo que a sua inexistência implica automaticamente a nulidade dos actos praticados, porque “care[ce]m em absoluto de forma legal

    A admissão pública da CCPJ de que o Secretariado deliberava sem quórum, sem registos formais e sem qualquer mecanismo transparente de controlo interno lança a suspeita sobre a validade de todos os actos administrativos por ele produzidos entre 2022 e 2025, incluindo emissões, renovações, suspensões e recusas de títulos profissionais de jornalista, bem como instauração de processos disciplinares e de contra-ordenação. O PÁGINA UM vai comunicar esta ilegalidade ao Ministério Público.

    Mas o escândalo institucional não termina aqui. A CCPJ — que aguarda a nomeação do seu novo presidente — não quer aceitar a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que determinou o acesso integral também às actas do Plenário da Comissão, composto por nove elementos, bem como aos processos disciplinares abrangidos pela Lei da Amninistia aquando da visita do Papa Francisco a Portugal em Agosto de 2023. Contesta essa decisão com o argumento inusitado de que deve poder apagar nomes constantes dessas actas, alegando pretensas questões de privacidade ou protecção pessoal.

    black video camera

    Na prática, a CCPJ — que se apresenta como garante do rigor e da ética jornalística — defende em tribunal o direito a manipular documentos administrativos e a reescrever documentos oficiais, apagando rastos de decisões tomadas e anulando o princípio da responsabilidade individual em actos administrativos que podem ter produzido danos concretos a jornalistas. A intenção de expurgar nomes das actas é justificada com o receio de que os membros da CCPJ fiquem sujeitos a críticas ou escrutínio público.

    Este argumento é particularmente preocupante vindo de uma entidade composta exclusivamente por jornalistas, cuja profissão exige, em princípio, compromisso com a transparência, a prestação de contas e o interesse público. Porém, a CCPJ chega a tentar convencer os desembargadores do TCAS de que, nos pedidos de acesso às actas e também a processos disciplinares amnistiados, o director do PÁGINA UM não demonstrou sequer deter qualquer interesse concreto, jornalístico ou noticioso, nem em nome próprio nem da comunidade, e que não justificou a relevância da questão para efeitos de escrutínio público ou jornalístico.

    Ou seja, jornalistas eleitos por jornalistas e por empresas de comunicação, cuja acção pode e deve ser fiscalizada por outros jornalistas, defendem agora o obscurantismo para sua própria defesa.

  • 19 hastes curvas encimadas por um ‘anel de rubi’ custam 406 mil euros

    19 hastes curvas encimadas por um ‘anel de rubi’ custam 406 mil euros

    Escultores da casa podem não fazer milagres, mas podem fazer ‘desaparecer’ cerca de 406 mil euros do erário público para celebrar os 51 anos de um acontecimento histórico português que, ironicamente, para além da liberdade, concedeu igualdade de oportunidades.

    Na pequena cidade de Cantanhede, no distrito de Coimbra, a autarquia local decidiu escolher, sem qualquer pré-selecção, por ajuste directo, um escultor da terra, Celestino Alves André, para executar um ‘monumento de celebração’ ao 25 de Abril, que passou a estar exposto no parque urbano local.

    Nascido em 1959, Alves André destaca-se sobretudo como medalhista e como ‘criador’ de bustos e estátuas em tamanho natural ou monumental, frequentemente fundidas em bronze. No entanto, esta encomenda da autarquia de Cantanhede, liderada pela social-democrata Helena Teodósio, foge completamente ao estilo do artista: trata-se de uma estrutura ascensional de metal composta por 19 hastes curvas e verticais, encimada por um ‘anel de rubi’ representando o brasão de Cantanhede, simbolizando as freguesias do concelho à data da Revolução dos Cravos. Para os mais incautos, parecerá uma estrutura para um ninho de cegonhas.

    Mas o mais surpreendente nesta obra colocada no Parque Urbano de São Mateus é o custo e também o seu faseamento. De acordo com o contrato publicado no Portal Base, que nem sequer contém o caderno de encargos – impossibilitando perceber se o ‘anel de rubi’ é de vidro ou de resina –, a obra teve um custo total de 405.900 euros, ou seja, 330 mil euros acrescidos de IVA. Este é um valor extraordinariamente elevado para obras de arte desta natureza, sobretudo quando se está perante um município de menos de 35 mil habitantes com escassos recursos finaceiros. A título de exemplo, os dois conjuntos escultórios de autoria de Francisco Tropa no terminal intermodal da Campanhã – “Penélope”, composta por quatro figuras em bronze, e “Dánae”, duas fontes em bronze –, também por ajuste directo, tiveram este custo total, pago pela empresa municipal Gestão e Obras do Porto.

    A escolha por ajuste directo, por um valor tão elevado, mesmo que seja invocado o carácter artístico, levanta questões sobre a transparência e os critérios de atribuição deste tipo de contratos, sobretudo tendo em conta o envolvimento de um artista com ligação ao município.

    Com efeito, Alves André tem estabelecido diversas parcerias com a edilidade de Cantanhede, realizando mesmo visitas guiadas promovidas pela autarquia ao seu ateliê na aldeia de Portunhos. Naquele município encontram-se também já várias esculturas da sua autoria, designadamente o Monumento ao Ourives Ambulante, inaugurado em 1990, em Febres; o Monumento ao bandeirante Pedro Teixeira, inaugurado em 1993, no centro da cidade; e a imponente estátua equestre do Marquês de Marialva, inaugurada em 1999, na praça que lhe é dedicada.

    No restante distrito de Coimbra, Alves André também tem ‘muita saída’. Na cidade do Mondego, o escultor assinou diversas obras de relevo, com destaque para o busto do pintor José Maria Cabral Antunes, inaugurado em 1987; a Tricana de Coimbra, estátua em bronze, colocada na Rua de Quebra Costas em 2008; a Guitarra de Coimbra, no Largo da Almedina, e a estátua da Irmã Lúcia, ambas inauguradas em 2013. No concelho de Mira estão mais duas: uma evocando o Infante D. Pedro, primeiro duque de Coimbra, erguida em 1996 na sede do município; e outra dedicada aos pescadores da Praia de Mira, inaugurada em 1998. Fora do ‘seu’ distrito, Alves André tem o busto de Francisco Stromp, junto ao Estádio de Alvalade, uma estátua em memória do Papa João Paulo II em Cascais e outra ao mesmo pontífice em Timor-Leste.

    Além do processo por ajuste directo, o contrato – que previa a “concepção, execução e instalação de obra de arte para espaço público evocativa do 50.º aniversário do 25 de Abril” – foi assinado apenas no passado dia 17 de Março, o que, considerando a complexidade do seu fabrico, mostra que, antes da adjudicação, já o escultor estava a trabalhar na peça.

    Helena Teodósio, presidente da autarquia de Cantanhede, cortou a fita na inauguração. Foto: CMC.

    Antes da escultura ao 25 de Abril com um custo de 405 mil euros, segundo dados consultados no Portal Base – que compila informação desde 2008 –, o artista tinha apenas dois contratos: o busto em bronze do Visconde da Corujeira, encomendado em 2021 pelo Município de Mira por ajuste directo, no valor de 17.500 euros, e uma obra escultórica de homenagem a Idalécio Cação, também por ajuste directo, pelo Município da Figueira da Foz, pelo montante de 8.500 euros.

    Apesar de a presidente da autarquia de Cantanhede não ter respondido às questões colocadas pelo PÁGINA UM, durante a cerimónia de inauguração, Helena Teodósio destacou que a obra “teve o envolvimento de todas as forças políticas com assento na Assembleia Municipal” e que visa “perpetuar o carácter emblemático da efeméride”, reforçando os valores do 25 de Abril junto das novas gerações. Na mesma cerimónia, de acordo com o transmitido pelo site do município, Alves André afirmou que a escultura “celebra os valores de Abril” e também “o desenvolvimento das freguesias do concelho”, destacando que se trata de “uma peça agradável, elegante e concebida a partir de elementos identitários locais”.

    Pese embora o contexto comemorativo e a intenção simbólica da obra, o investimento elevado e a forma desta contratação directa motivam interrogações quanto à gestão dos dinheiros públicos, sobretudo num momento em que muitas autarquias enfrentam constrangimentos orçamentais.

    Escultura de Alves André na Praia de Mira. A obra de arte sobre o 25 de Abril ‘foge’ ao seu estilo, mas permitiu-lhe facturar mais de 400 mil euros.

    O Código dos Contratos Públicos impõe os princípios da concorrência e da igualdade de tratamento, não existindo qualquer norma no articulado legal que permita beneficiar expressamente os artistas locais em procedimentos de contratação. A legislação portuguesa, alinhada com o direito europeu, proíbe qualquer discriminação com base na origem geográfica do concorrente, mesmo que essa preferência pudesse traduzir-se numa valorização do património cultural de uma comunidade.

    Ainda assim, os responsáveis políticos ou autárquicos dispõem de algumas margens de manobra. Nos contratos de menor valor, adjudicados por ajuste directo ou por consulta prévia, a escolha de artistas locais torna-se mais viável, desde que fundamentada com critérios objectivos e devidamente publicitada. Mas tal não se aplica a uma das obras de arte de valor mais elevado dos últimos anos encomendada por um município português.

    Em todo o caso, nos concursos públicos convencionais, a introdução de critérios de adjudicação que valorizem a ligação da obra à identidade local — desde que expressos com clareza e aplicados a todos os concorrentes — pode permitir a selecção de propostas oriundas da comunidade artística da região sem violar a lei. Mas a opção da autarquia de Cantanhede foi pelo contrato de ‘mão-beijada’.

  • REN desinveste na rede eléctrica portuguesa e prefere apostar no Chile

    REN desinveste na rede eléctrica portuguesa e prefere apostar no Chile

    Uma semana antes do apagão eléctrico histórico registado em Portugal, a empresa concessionária da rede de transporte de electricidade em muito alta tensão não aparenta ter um especial interesse em focar-se somente na salvaguarda da infraestrutura eléctrica nacional. Apesar de deter uma concessão estratégia, a REN, que tem como maior accionista a estatal chinesa State Grid Corporation of China, e já quase não conta com capitais de investidores portugueses, mostra sobretudo ambições de crescer no outro lado do Atlântico, mais concretamente no Chile, com uma população quase o dobro da portuguesa.

    No passado dia 21 de Abril, a segunda-feira anterior ao dia em que Portugal mergulhou no caos devido ao ‘blackout’, a REN, liderada pelo português Rodrigo Costa — antigo gestor do grupo Portugal Telecom —, anunciou a compra de mais uma empresa chilena: a TENSA – Transmisora de Energía Nacimiento, por 71,4 milhões de dólares (62,5 milhões de euros). Esta aquisição reforça a aposta declarada da empresa no Chile, onde já detém participações significativas na Electrogas e é accionista único da Transemel, adquirida em finais de 2019.

    Se o negócio chileno prossegue com ambição — somando a nova aquisição, os investimentos no país sul-americano ultrapassam já os 100 milhões de euros desde 2023 —, o mesmo não se pode dizer da estrutura patrimonial em Portugal, ou seja, da rede nacional de transporte de electricidade e da rede de gás.

    De facto, entre 2019 e 2024, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos indicadores financeiros mais relevantes da empresa, obtidos através dos relatórios e contas, a REN registou uma redução real de cerca de 939 milhões de euros em activos não correntes, quando ajustada à inflação acumulada de 17,36% neste período.

    Em euros reais, estes activos, constituídos maioritariamente pelas infra-estruturas concessionadas (e que necessitam de manutenção, substituição e expansão) caíram de um equivalente a 5.762 milhões em 2019 (o valor nominal foi de cerca de 4.910 milhões) para apenas 4.823 milhões em 2024 — uma redução efectiva de 16,3% do seu património técnico e operacional. Este número é sintomático: o investimento realizado pela empresa não tem sido suficiente para repor sequer o valor dos activos que se vão amortizando.

    No mesmo período, os investimentos líquidos da REN em Portugal foram negativos quando se descontam os cerca de 279 milhões de euros em subsídios ao investimento concedidos pelo Estado entre 2019 e 2024.

    Com efeito, excluindo a componente relativa ao Chile, os investimentos da REN em Portugal — conforme reportado nas demonstrações dos fluxos de caixa — ascenderam a 1.374 milhões de euros nos últimos seis anos, enquanto as amortizações (associadas aos activos intangíveis concessionados, como as linhas de muito alta tensão) totalizaram 1.476 milhões de euros. Ou seja, sem o apoio público através de subsídios, a concessionária teria investido menos do que aquilo que os seus principais activos perderam em valor, o que evidencia uma trajectória de desinvestimento líquido real na infraestrutura eléctrica nacional.

    Nos seus documentos estratégicos, a REN tem destacado como objectivo a expansão das suas operações no Chile com “crescimento orgânico e aquisições pontuais”. No caso da Tensa, agora adquirida, trata-se de uma empresa que opera cerca de 190 quilómetros de linhas de transmissão, situadas maioritariamente na zona Centro-Sul do Chile.

    Com esta operação, a REN passa a operar cerca de 280 quilómetros de linhas e cinco subestações no país sul-americano, consolidando uma presença que já consome recursos significativos: foram ali investidos 107 milhões de euros entre 2019 e 2024.

    Este avanço para o Chile faz parte do plano estratégico da REN que prevê um investimento entre 1.500 e 1.700 milhões de euros a efectuar no período 2024-2027. No seu plano estratégico, a REN garante aos investidores que vai acelerar o “compromisso de permitir a transição energética e promover o crescimento económico, intensificando o nosso plano de investimento para permitir o crescimento em energias renováveis”.

    Entretanto, os accionistas da empresa — onde, além dos chineses da State Grid Corporation, se destacam a Pontegadea, a Lazard Asset Management, a Fidelidade e a Red Eléctrica — têm colhido dividendos generosos. Tal não se tem devido tanto à expansão da actividade e da prestação de serviços, mas sobretudo à contenção de investimentos — uma postura típica de empresas em fase de exploração de activos maduros. Ou seja, a REN comporta-se num regime de “vaca leiteira”, como se o sistema de transporte eléctrico português existisse apenas para gerar retorno financeiro.

    No passado dia 15 de Abril, os accionistas da empresa aprovaram em assembleia-geral a distribuição de 104.749.028 euros em dividendos. Este montante corresponde a uma distribuição de 68,7% do resultado consolidado da REN no ano de 2024, que atingiu os 152,5 milhões de euros — um aumento de 2,2% face ao ano de 2023. A entrega desta verba aos accionistas foi feita através de reservas acumuladas disponíveis, o que reflecte uma política financeira focada na remuneração de capital, mesmo num contexto de estagnação dos activos operacionais.

    O conselho de administração da REN — composto por 14 membros — já tinha aprovado, no dia 6 de Março deste ano, o pagamento antecipado de 42,7 milhões de euros em dividendos aos accionistas da empresa. Assim, a empresa avançou com o pagamento de mais 62 milhões de euros aos seus investidores.

    Num país onde a infraestrutura eléctrica sofreu a sua maior falha em décadas, e onde os activos técnicos da rede de transporte se degradam em valor real, a aposta prioritária em geografias distantes como o Chile — aliada à drenagem sistemática de lucros sob a forma de dividendos — suscita dúvidas legítimas sobre as prioridades da REN. A empresa que nasceu da tutela do Estado português mostra hoje actuar segundo lógicas financeiras globais, sem compromisso estratégico claro com o investimento sustentado na infraestrutura crítica nacional.

    As trocas comerciais na passada segunda-feira — em que o mercado grossista estava a exportar electricidade para Espanha até cerca de três horas e meia antes do apagão, num cenário em que Portugal viria depois a importar 30% do seu consumo — são um exemplo paradigmático de como o sistema opera no fio da navalha. Embora estas decisões estejam automatizadas no quadro do mercado ibérico MIBEL e não dependam directamente da REN, o episódio levanta legítimas questões sobre a resiliência operacional e a eventual ausência de margens de segurança. Ironicamente, ficou-se a saber que se tem electricidade ‘sem rede’.

  • Portugal continua a exportar grandes quantidades de electricidade apesar das garantias da REN

    Portugal continua a exportar grandes quantidades de electricidade apesar das garantias da REN

    Apesar das declarações da REN, transmitioas ontem ao jornal Público, de que foram suspensas as trocas comerciais de electricidade com Espanha “até ao final da semana”, Portugal continuou esta madrugada a exportar energia de forma significativa, numa operação que põe em causa a clareza e transparência da comunicação da empresa responsável pela gestão do sistema eléctrico nacional e a rede de transporte.

    Ontem, a REN afirmou ter “limitado para amanhã [hoje] e dias seguintes a capacidade de trocas no sentido importador a zero MW”, sustentando que a decisão visava assegurar a estabilidade do sistema ibérico e que as interligações com Espanha estariam “a ser utilizadas nos fluxos normais em tempo real”, apenas para efeitos de equilíbrio técnico.

    No entanto, dados de exportação de energia eléctrica recolhidos entre as 00h00 e as 8h00 (hora espanhola), consultados pelo PÁGINA UM, permitem concluir, com base em cálculos, que Portugal exportou durante esse período um total de 8.524 MWh de electricidade. Esta quantidade seria suficiente para abastecer durante um dia inteiro cerca de 676 mil pessoas, com base no consumo médio diário de 12,6 kWh.

    A exportação praticamente contínua desde a meia-noite e crescente ao longo da madrugada, com potências instantâneas superiores a 1.800 MW a partir das 6h00 da manhã, contrariando a imagem de suspensão de trocas dada pela REN. Com a chegada do dia, a exportação de Portugal para Espanha está a diminuir.

    A aparente contradição entre a posição da REN e a realidade reside na distinção – técnica mas ambígua – entre “trocas comerciais” e “fluxos técnicos”.

    transmission towers and wind turbines on the field
    Foto: D.R./ REN

    As trocas comerciais referem-se às operações registadas nos mercados organizados de electricidade, com contratos definidos, enquanto os fluxos técnicos referem-se a ajustes automáticos e operacionais executados pelos operadores de rede, de modo a garantir o equilíbrio entre geração e consumo. No entanto, nada impede que um fluxo técnico possa, na prática, equivaler a uma transferência económica disfarçada, especialmente se for contínuo e previsível.

    A electricidade, recorde-se, não transporta ‘etiquetas’, ou seja, não é possível distinguir fisicamente se um determinado KWh ‘trocado’ é oriundo de uma transacção comercial ou ser por equilíbrio de rede. Assim, a distinção invocada pela REN baseia-se mais em critérios administrativos e operacionais, e não físicos, permitindo que a interligação continue a funcionar como canal de exportação, mesmo quando publicamente se declara o oposto.

    Esta prática pode configurar, assim, uma mera operação semântica de desresponsabilização, permitindo à REN afirmar que não há importações nem exportações comerciais, embora mantenha o funcionamento efectivo das interligações com Espanha em larga escala. O risco mostra-se evidente, pois sem uma auditoria pública dos fluxos e das justificações técnicas em tempo real, é impossível saber se estas transferências não estão a servir, afinal, apenas o habitual interesses de mercado.

    Gráfico da produção durante as últimas horas em Espanha, integrando a parte da exportação de Portugal (mancha verde no topo). A linha amarela representa a procura de electricidade em Espanha. Fonte: Red Eléctrica de España.

    Acresce ainda que a necessidade de electricidade espanhola oriunda de Portugal durante a madrugada não aparenta ter sido imprescindível. Analisando os registos da Red Eléctrica, registou-se durante a recente noite uma redução voluntária da produção hidroeléctrica em Espanha, com parte das turbinas das barragens a serem desligadas, o que fez baixar a potência hidráulica de cerca de 7.000 MW às 21h00 de ontem para cerca de 5.000 MW ao longo da madrugada de hoje. Ao mesmo tempo, Espanha manteve exportações activas para Marrocos, o que mostra que não se encontrava em situação de défice urgente de energia.

    Por outro lado, a reactivação das centrais nucleares espanholas também se tornou visível, com os níveis de produção nuclear a situarem-se já em cerca de 40% do valor anterior ao apagão da passada segunda-feira, reforçando a ideia de que a procura espanhola por electricidade portuguesa foi motivada por razões comerciais ou estratégicas, e não por necessidade técnica imperiosa.

  • Com a ‘ajuda’ de Luís Montenegro, Tony Carreira passa fasquia de meio milhão de euros em quatro meses

    Com a ‘ajuda’ de Luís Montenegro, Tony Carreira passa fasquia de meio milhão de euros em quatro meses

    Foi uma sorte para Tony Carreira o adiamento decretado pelo Primeiro-Ministro das festividades do 25 de Abril para o Dia do Trabalhador. Se assim não fosse, o cançonetista mais popular de Portugal dificilmente teria agenda para actuar, mesmo que num mini-concerto de uma hora, para duas mil pessoas, nos jardins do Palácio de Belém. De facto, na noite de 24 de Abril, Tony Carreira cantou a partir das 22 horas, no Barreiro, num concerto comemorativo dos 51 anos da Revolução dos Cravos. A entrada, tal como amanhã, foi gratuita, embora tenha custado aos contribuintes — ainda que paga pelos cofres da autarquia da Margem Sul — um total de 73.185 euros, com IVA incluído.

    Ignora-se se Luís Montenegro vai reviver o dueto (desafinado) que fez com Tony Carreira em Dezembro de 2019 no programa ‘Casa da Cristina’, na SIC, tal como também se ignora quanto custará o concerto com entrada gratuita nos jardins da residência oficial do Primeiro-Ministro. O gabinete de Luís Montenegro não respondeu aos insistentes pedidos do PÁGINA UM sobre esta matéria — que, aliás, seria escusado solicitar se a Presidência do Conselho de Ministros tivesse já colocado, como determina a lei, o contrato no Portal Base. Certo é que Tony Carreira não costuma ser barato; pelo contrário, é o artista com cachets mais elevados.

    Dueto na SIC em 2019 vai repetir-se?

    E isso tem-se notado ainda mais nos últimos anos. Por exemplo, o ano de 2025 vai ainda com apenas quatro meses completos, e Tony Carreira já garantiu uma agenda recheada de actuações financiadas por dinheiros públicos, mesmo se todos anunciam “entrada gratuita”. Segundo os dados publicados no Portal BASE — que compila os contratos públicos celebrados por entidades do Estado —, estão já contratados, até ao momento, 10 espectáculos com o artista, num total de 466.944,05 euros com IVA incluído, pagos por municípios, através de ajuste directo, sem concurso público. Será previsível que, com o contrato para a actuação nos jardins de São Bento, a fasquia do meio milhão de euros seja ultrapassada em apenas quatro meses.

    Tony Carreira tem-se destacado por ser um dos mais caros artistas portugueses, no sentido emocional e financeiro, sobretudo por actuar, em regra, sozinho, apenas com músicos acompanhantes. De entre os contratos deste ano, o de valor mais baixo (45.510 euros com IVA) foi assumido pelo Município de Alter do Chão, no distrito de Portalegre, e o mais elevado pelo Município de Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto.

    No primeiro caso, o concerto realizou-se no dia 25 deste mês, nas Festas de São Marcos, naquela vila alentejana — o que inviabilizaria, assim, também, um eventual pulo a São Bento, se não tivesse ocorrido o adiamento —, enquanto o contrato com Gaia serviria para a autarquia socialista abrilhantar a inauguração do Pavilhão Nelson Mandela. Este concerto esteve agendado para o dia 11, mas este centro multiusos acabou por não estar ainda concluído. Para amanhã está previsto um concerto em Gaia com Mickael Carreira, filho de Tony Carreira, mas não foi possível, em tempo útil, apurar se este espectáculo servirá para cumprir o contrato.

    Jardins de São Bento.

    Além dos contratos com o Barreiro, Gaia e Alter do Chão, pelo menos outras sete autarquias também já decidiram este ano contratar Tony Carreira com verbas públicas. O município de Mértola já garantiu a presença do cantor nas Festas da Vila, em 21 de Junho, e não se fez rogado em pagar 49.200 euros (com IVA), enquanto a empresa municipal FESNIMA, de Olhão, adjudicou por 59.206 euros (com IVA) um contrato para um espectáculo inserido nas Festas da Cidade, a realizar em 16 de Junho.

    Para não se ser exaustivo, a agenda de Tony Carreira deste ano tem passagens pela Feira do Fumeiro de Vinhais, pela FACIT em Tábua, pela FIAPE em Estremoz, pela Festa do Emigrante em Chaves, pela Ficabeira em Arganil. A visibilidade de Tony Carreira tem um valor médio, este ano, a rondar os 52 mil euros com IVA.

    A prática de ajuste directo, muito comum nos contratos culturais, continua a permitir às autarquias evitar processos de concurso ou consulta prévia, bastando-lhes justificar a escolha do artista e adjudicar directamente o valor orçamentado. Em todos os contratos agora divulgados, os valores encontram-se dentro do limite legal (até 75 mil euros para prestações de serviços), mas levantam questões sobre critérios de selecção artística e repetição dos mesmos nomes em diferentes municípios, com cachets bastante elevados e sem concorrência.

    Tony Carreira actuou no dia 24 de Abril no Barreiro e no dia seguinte em Alter do Chão (na foto). Sem o adiamento das festividades do 25 de Abril em São Bento, o cançonetista não teria agenda.

    Em grande parte dos concertos, Tony Carreira beneficia também dos valores de produção, uma vez que uma parte destes contratos públicos é celebrada através da sua empresa Regi-Concerto. De entre os concertos já previstos em contratos, este ano, a empresa de Tony Carreira facturará 370.230 euros com IVA. Mas a Regi-Concerto também produz outros concertos, como se verificou no recente espectáculo de Passagem de Ano em Lisboa.

    Poucos meses depois de ver Carlos Moedas a entregar-lhe a medalha de mérito cultural, a Regi-Concerto de Tony Carreira teve uma oferta de mão-beijada concedida pela Câmara Municipal de Lisboa: organização das festas de Ano Novo, no valor de 265 mil euros, incluindo IVA. Com um cartaz que não custava mais de 80 mil — constituído pelo veterano José Cid e pelo seu próprio filho Mickael —, e como a EGEAC ainda assumiu diversas despesas, Tony Carreira terá tido um lucro, sem subir ao palco lisboeta, próximo dos 150 mil euros.

  • Apagão deverá ‘apagar’ centrais nucleares de Espanha por 72 horas

    Apagão deverá ‘apagar’ centrais nucleares de Espanha por 72 horas

    Às 14h35 desta quarta-feira, hora de Lisboa, cinquenta horas após o colapso eléctrico que mergulhou a Península Ibérica numa falha de geração sem precedentes, as centrais nucleares espanholas permanecem totalmente desligadas. A análise contínua dos dados da Red Eléctrica de España, verificada pelo PÁGINA UM, confirma que nenhum dos sete reactores nucleares operacionais retomou a produção de energia até ao momento — uma situação inédita na história do sistema energético espanhol.

    O ‘silêncio operacional’ das centrais Almaraz, Ascó, Cofrentes, Vandellós II e Trillo, cujos reactores representam cerca de 7 GW de capacidade instalada, prolonga-se agora por mais de dois dias, sem que o Consejo de Seguridad Nuclear (CSN) tenha emitido qualquer explicação técnica detalhada sobre o atraso. A última comunicação oficial do CSN ocorreu às 3h15 da madrugada de terça-feira, onde apenas foi referido o fim do “pré-alerta de emergência” após restabelecimento externo do fornecimento eléctrico.

    Central de Almaraz.

    Os sistemas automáticos de paragem de emergência, designados SCRAM, servem exactamente para evitar riscos muito graves, estando previsto sobretudo em planos anti-sísmicos. A ausência de reactivação ao fim de 50 horas ainda não é suficiente para levantar questões de segurança sobre o impacte do incidente do apagão operacionais, mas se se prolongar por mais de 72 horas indiciará outro tipo de problemas.

    Segundo fontes técnicas ouvidas pelo PÁGINA UM, um dos factores mais prováveis para este atraso na reactivação das centrais nucleares espanholas será o chamado “envenenamento por xenón-135”, um fenómeno bem conhecido na operação nuclear, embora raramente se manifeste de forma simultânea e prolongada em múltiplos reactores de um mesmo país.

    O xenón-135 é um produto radioactivo de fissão com enorme capacidade de absorção de neutrões térmicos, que se forma tanto directamente, na fissão do urânio-235 e plutónio-239, como, sobretudo indirectamente, por decaimento radioactivo do iodo-135, que possui uma meia-vida de 6,6 horas.

    Quando um reactor é abruptamente desligado por SCRAM, como ocorreu em Espanha pelas 12h35 de segunda-feira, a produção de neutrões cessa quase de imediato, mas os precursores radioactivos da cadeia de fissão continuam a decair, acumulando xenón-135. Sem neutrões disponíveis para capturá-lo e destruí-lo, a sua concentração atinge um pico entre 8 a 10 horas após a paragem, fenómeno que impede a reanimação do reactor, mesmo que todos os sistemas estejam tecnicamente operacionais.

    A única forma de reduzir os níveis de xenón-135 é esperar o seu decaimento natural para césio-135, processo que exige um período até 72 horas, dependendo da potência anterior do reactor e do regime de operação. A operação de arranque prematuro poderá inclusive falhar ou danificar sistemas se for tentada antes da recuperação total da margem de reactividade.

    As centrais nucleares espanholas — todas do tipo água leve pressurizada (PWR), com excepção de Cofrentes (do tipo BWR) — estão desenhadas para lidar com este fenómeno, mas a simultaneidade de sete reactores em SCRAM dificulta a gestão operacional, requerendo planeamento cuidadoso de reactivação sequencial, para garantir estabilidade na rede eléctrica e segurança reaccional.

    a close up of a control panel with knobs and gauges

    Se se confirmar a reactivação das centrais nas próximas 24 horas, este tipo de fenómeno não representará um risco de segurança, mas sim um limite técnico de reactivação temporária reconhecido pelas normas internacionais da International Atomic Energy Agency (IAEA) e da U.S. Nuclear Regulatory Commission (NRC).

    Actualmente, não há indícios de danos estruturais nos reactores, o que reforça a tese de que o apagão foi uma consequência de falha sistémica na rede, e não provocado pelas centrais. A activação do SCRAM nos sete reactores, que estavam a produzir cerca de 3.400 MW às 12h30 (hora espanhola) de segunda-feira, coincidiu com quedas abruptas de frequência e tensão, indicando um colapso no equilíbrio entre produção e consumo.

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  • 35 horas: centrais nucleares de Espanha estão inactivas desde o apagão

    35 horas: centrais nucleares de Espanha estão inactivas desde o apagão

    Às 22h30 desta terça-feira, hora de Lisboa, trinta e cinco horas após o colapso eléctrico que mergulhou grande parte da Península Ibérica na escuridão, as centrais nucleares espanholas continuam sem produzir energia.

    O cenário, confirmado pela análise do PÁGINA UM dos despachos da Red Eléctrica de España, é inédito: as cinco centrais nucleares operacionais permanecem desligadas, deixando os seus sete reactores fora da rede.

    Central nuclear de Almaraz, a mais próxima da fronteira portuguesa.

    Embora fosse de aguardar uma maior lentidão no restabelecimento complexo de uma central nuclear ‘desligada’ num contextio de ‘blackout’, não é normal um tão longo período de inactividade absoluta e escasseiam as explicações do Conselho de Segurança Nuclear (CSN) de Espanha. A última comunicação desta entidade espanhola surgiu na na madrugada desta terça-feira, às 3h15 (hora local), informando que fora levantado o estado de pré-alerta de emergência em todas as centrais nucleares do país, após o restabelecimento estável do fornecimento de electricidade do exterior. A central de Cofrentes, em Valência, foi a última a sair do estado de pré-alerta, depois de já o terem feito Almaraz (Cáceres) e Trillo (Guadalajara), esta última desligada para operações de reabastecimento.

    Espanha conta actualmente com cinco centrais nucleares em operação: Almaraz, Ascó, Cofrentes, Vandellós II e Trillo. As centrais de Almaraz e Ascó têm unidades gémeas, o que eleva o total de reactores em funcionamento para sete. Existe ainda uma sexta central, Santa María de Garoña, actualmente desactivada. Estas sete unidades de produção de energia utilizam dois tipos diferentes de tecnologia: água leve pressurizada (PWR) e água leve fervente (BWR). No grupo PWR, a lista inclui Almaraz, com duas unidades (1980 e 1983), Ascó também com duas unidades (1982 e 1985), Vandellós II (1987) e Trillo (1987), a mais recente do parque nuclear espanhol.

    Durante o apagão de grandes dimensões que afectou Espanha nesta segunda-feira, o CSN garantiu que os sistemas de segurança das instalações nucleares funcionaram como previsto, e em nenhum momento esteve em causa a segurança de trabalhadores, da população ou do ambiente. A Organização de Resposta a Emergências (ORE) do CSN esteve activa em modo de monitorização. Com o fim do pré-alerta, a ORE foi desactivada e o organismo regulador regressou ao seu funcionamento normal, mas certo é que não havia ‘sinais de vida’, isto é, de início de produção até à hora de publicação da notícia do PÁGINA UM, pelas 22h30 desta terça-feira, dia 29 de Abril.

    Geralmente, os tempos de reposição demoram menos de 24 horas, excepto se a causa sistémica ainda não esteja plenamente resolvida, ou decorram procedimentos de verificação. Apenas se não for restabelcida a produção ao fim de 72 horas se poderá desconfiar de o apagão ter causado danos relevantes.

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    No momento do apagão, ocorrido às 12h35 de segunda-feira, hora local de Espanha, as centrais nucleares espanholas estavam a produzir cerca de 3.387 MW, um contributo de apenas 10% no total naquele momento, mas essencial para a estabilidade do sistema. A súbita interrupção desta produção revela a gravidade do incidente e sugere a ocorrência de falhas sistémicas graves na rede eléctrica espanhola.

    Uma das questões mais intrigantes — e decisivas — para compreender o evento de ontem é saber se a paragem abrupta das centrais nucleares foi a causa do apagão, ou se foi uma instabilidade prévia do sistema que forçou a sua paragem. À luz da análise detalhada dos dados reais, registados a cada cinco minutos, a resposta é inequívoca: a activação dos sistemas de emergência dos reactores — o chamado SCRAM — foi uma consequência da instabilidade da rede, e não a causa inicial do colapso.

    O SCRAM é um mecanismo automático de protecção que desliga instantaneamente a reacção nuclear através da inserção súbita de barras de controlo no núcleo do reactor. Não é uma falha técnica: é um sistema rígido, extremamente sensível a perturbações externas, como variações bruscas da frequência (normalmente abaixo dos 49,5 Hz), quedas de tensão significativas ou perda de sincronismo com a rede.

    Central nuclear de Cofrentes, na Comunidade Valenciana.

    No caso espanhol, o facto de todos os reactores se terem desligado em simultâneo reforça a tese de que se tratou de uma reacção defensiva perante uma instabilidade já em curso.

    Apesar de Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, ter criticado as centrais nucleares pelo facto de não permitirem “uma recuperação tão rápida” do sistema, e de que alguns reactores estavam desligados porque as empresas dizem que “não são competitivas, comparadas com as renováveis”, os dados técnicos mostram que as centrais foram vítimas, e não culpadas, de um colapso eléctrico generalizado.

    Os dados, confirmados técnicos contactados pelo PÁGINA UM, mostram que o apagão teve um carácter transversal, afectando de forma sincronizada outras fontes de geração — solar, eólica, hidroeléctrica e cogeração —, o que aponta para causas sistémicas, como um erro grave de despacho, um colapso de tensão de grande escala ou uma falha de controlo algorítmico na gestão do equilíbrio produção-consumo, num sistema cada vez mais dependente de energias renováveis voláteis.

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    A análise do comportamento das interligações internacionais reforça esta conclusão. No momento da falha, as exportações espanholas para Portugal caíram abruptamente de 2.652 MW para apenas 7 MW, e depois para 1 MW às 12h40, provocando um blackout quase instantâneo em território português. As ligações para França e Marrocos registaram igualmente quedas súbitas para zero. Esta quebra massiva de fluxos agravou a perda de estabilidade do sistema espanhol, desencadeando os mecanismos automáticos de defesa que culminaram no SCRAM nuclear.

    Em suma, todos os elementos técnicos e cronológicos disponíveis indicam que o desligamento das centrais nucleares espanholas foi uma reacção defensiva perante uma grave falha sistémica da rede eléctrica. O apagão de 28 de Abril de 2025 deverá, assim, servir de lição para os decisores e operadores da Península Ibérica sobre os riscos de sistemas excessivamente dependentes de fontes renováveis intermitentes e da necessidade de garantir reservas de estabilidade robustas para evitar futuras catástrofes eléctricas.

  • Horas antes do apagão, Portugal andou a vender ao ‘desbarato’ electricidade a Espanha

    Horas antes do apagão, Portugal andou a vender ao ‘desbarato’ electricidade a Espanha

    Até às 9 horas da manhã de ontem, antes de o sistema eléctrico espanhol colapsar e arrastar consigo Portugal para um dos maiores apagões da história recente da Península Ibérica, o nosso país esteve a vender electricidade em larga escala ao seu vizinho. Segundo dados recolhidos pelo PÁGINA UM na plataforma gerida pela Red Eléctrica de España (Redeia), entre as 21h00 de domingo, dia 27 de Abril, e as 9h00 de segunda-feira, 28 de Abril – ou seja, até cerca de três horas e meia antes do blackout –, Portugal exportou um total de 22.118,25 megawatts-hora (MWh) para Espanha.

    Esta transferência de electricidade, contínua e robusta ao longo de toda a noite, e que se iniciou às 20h10 de domingo, teve o seu pico às 21h50, quando a exportação atingiu os 2.273 MW. Durante o período nocturno de domingo para segunda-feira, Portugal manteve uma média de exportação de cerca de 1.830 MW – valores registados a cada cinco minutos – correspondendo a uma produção constante que teve, cruzando com dados da Rede Eléctrica Nacional (REN), um contributo decisivo das centrais hidroeléctricas portuguesas, especialmente no Norte. Tendo em conta os preços típicos do mercado ibérico de electricidade (MIBEL), esta operação poderá ter rendido ao sistema eléctrico português entre 1,1 milhões e 2,6 milhões de euros de receita.

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    Com o amanhecer de segunda-feira e a forte insolação matinal – traduzida numa produção em massa de energia fotovoltaica em território espanhol –, a situação inverteu-se radicalmente. Dados da Redeia mostram que, a partir das 9h00, Portugal deixou de exportar e passou a importar electricidade. Pelas 9h30, já estava a receber 1.137 MW da rede espanhola, valor que não parou de subir: às 10h55, a importação já roçava os 3.000 MW e, imediatamente antes do blackout – às 12h30 – Portugal estava a importar 2.652 MW.

    Durante essas cerca de três horas e meia em que Portugal esteve a importar energia, o volume total recebido ascendeu a 7.049 MWh, o que equivale, aos preços usuais do MIBEL, a um negócio entre 350 mil e 850 mil euros, desta vez a favor da parte espanhola. Tudo indicava normalidade, apesar da reversão dos fluxos de energia. No entanto, pouco depois das 12h30, a rede espanhola colapsou, apanhando desprevenido o sistema eléctrico português, altamente interligado com o espanhol.

    A quebra abrupta da interligação ibérica – sem qualquer capacidade de compensação interna imediata – precipitou o blackout nacional, que mergulhou o país numa situação caótica. As comunicações caíram em simultâneo com a energia, afectando a totalidade das redes móveis, os transportes, o funcionamento de instituições públicas e privadas e o próprio sistema de emergência nacional. O apagão durou mais de seis horas em várias zonas do país, evidenciando uma alarmante vulnerabilidade estrutural da rede eléctrica portuguesa perante perturbações exteriores.

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    Apesar de não existir, até ao momento, uma explicação oficial detalhada sobre a origem do colapso em Espanha, os dados analisados pelo PÁGINA UM evidenciam a forte dependência entre os dois sistemas eléctricos, mas mais para trocas comerciais do que para garantir segurança no abastecimento. Em geral, estas vendas sucedem-se sobretudo para ‘gastar’ excedentes de produção, para bombar água para montante nas barragens quando a energia é barata, ou então para desligar as centrais hidroeléctricas quando a produção das outras renováveis (eólica e fotovoltaica) é elevada.

    Mas existe um problema neste contexto: mesmo se a previsão meteorológica consegue estabelecer um padrão expectável de produção de electricidade por via eólica e solar, mostra-se mais falível do que em sistemas tradicionais. E, em sistemas exageradamente assentes em renováveis, a capacidade de reposição pode causar problemas drásticos.

    Ora, quando o apagão repentino em Espanha ocorreu, cortando de imediato quase 3.000 MW de electricidade, não houve ‘tempo de reacção’. E num sistema eléctrico nacional, não basta fazer como numa casa quando os fusíveis colapsam: repor a situação é muito mais moroso e complexo. O chamado black start pode demorar várias horas, mesmo havendo potência instalada suficiente.

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    Assim, mais do que uma questão técnica, este episódio levanta sérias interrogações sobre a gestão estratégica da produção e do consumo de energia em Portugal, nomeadamente a aposta crescente na exportação nocturna e a ausência de garantias de abastecimento interno em cenários de emergência.

    O apagão revelou ainda outro problema crítico: a falta de capacidade de “ilha eléctrica” em Portugal. Na prática, isso significa que, uma vez interrompida a ligação com Espanha, o sistema nacional não foi capaz de se manter autonomamente a funcionar, nem mesmo com recurso a centrais térmicas ou hídricas de emergência. O blackout propagou-se quase instantaneamente, demonstrando que a tão propalada transição energética assente em fontes intermitentes – como a solar e a eólica – carece de mecanismos eficazes de estabilidade e resposta rápida.

  • Excessiva dependência energética de Espanha causou ‘blackout’ em Portugal

    Excessiva dependência energética de Espanha causou ‘blackout’ em Portugal

    A opção política nos últimos anos de encerrar as centrais térmicas nacionais, nomeadamente a carvão e a gás, e de adoptar um modelo energético baseado na produção por renováveis e na importação de electricidade, tornou Portugal especialmente dependente do funcionamento do sistema eléctrico espanhol. Antes, apenas raramente Portugal recorria às importações de electricidade de Espanha; agora são praticamente diárias.

    Esta dependência estrutural, assente na interligação ibérica e na redução da capacidade de resposta interna, fragilizou a segurança energética do país, tornando mais vulnerável o equilíbrio da rede nacional em caso de perturbações externas. E hoje esse problema tornou-se evidente.

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    Segundo apurou o PÁGINA UM, a origem do “apagão” em Portugal teve como causa um problema ocorrido no sistema eléctrico espanhol. No momento da falha, o consumo em território nacional rondava os 8.000 MW (ver nota em baixo), dos quais cerca de 3.000 MW provinham de importações de Espanha. Desde a madrugada, por opções estratégicas no despacho energético, a produção interna — através de centrais hidroeléctricas e eõlicas — tinha vindo a reduzir-se consideravelmente.

    Durante a noite de hoje, os consumos estavam a basear-se na produção hidroeléctrica e de energia não-renovável, mas a partir do nascer do sol seguiu-se o agora ‘protocolo’ habitual em dias ensolarados: aumentou a produção de energia fotovoltaica, houve uma redução expectável na produção eólica, mas em vez de se compensar com a produção hidroeléctrica, optou-se por ‘desligar’ as barragens e aumentar as importações de Espanha. O colapso deveu-se a esta opção.

    A sugestão do ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, de se estar perante um eventual ciberataque ainda coloca maior fragilidade ao sistema eléctrico português, porque está agora bastante mais dependente do seu único vizinho, Espanha, algo que não sucedia no passado. Portugal tinha, há poucos anos, um excesso de potência instalada.

    Repartição do consumo de electricidade em Portugal no dia de hoje (até às 12h15) em função do tipo e origem de produção. Fonte: REN.

    Devido a uma perturbação no fornecimento externo, aliada à impossibilidade de resposta imediata da produção nacional, gerou-se um desequilíbrio crítico: um blackout ocorre quando o consumo instantâneo excede de forma significativa a capacidade de produção disponível (ver nota em baixo). Ora, com o corte abrupto da electricidade proveniente de Espanha e sem alternativas técnicas para compensar esse défice, o sistema entrou em colapso.

    A reposição da rede eléctrica — processo designado por “black start” — pode demorar várias horas (ver nota explicativa em baixo), dependendo da necessidade de reiniciar, de forma sequencial e controlada, as diversas centrais produtoras, garantindo a estabilização da frequência da rede (50 Hz) e evitando novos desequilíbrios.


    Notas Explicativas:

    1. MW vs MWh:
      O consumo instantâneo de electricidade mede-se em megawatts (MW), enquanto o megawatt-hora (MWh) é uma unidade de energia consumida ao longo do tempo. No contexto de um apagão, o valor relevante é a potência instantânea.
    2. Equilíbrio da Rede e Frequência:
      O sistema eléctrico europeu opera de forma síncrona a 50 Hz. Pequenas oscilações são normais, mas uma queda abrupta da frequência devido a défice de produção leva ao desligamento automático para proteger equipamentos e evitar danos de maior escala.
    3. Black Start:
      A reposição de energia após um blackout não pode ser feita automaticamente. Apenas certas centrais (normalmente hidroeléctricas) têm capacidade de arranque autónomo. Estas são usadas para religar gradualmente outras centrais e restabelecer a rede, num processo que pode demorar várias horas, dependendo da extensão do apagão e das infra-estruturas afectadas.

  • Embaixador dos Estados Unidos quer empregada para todo o serviço por 7 euros à hora

    Embaixador dos Estados Unidos quer empregada para todo o serviço por 7 euros à hora

    A Casa Carlucci, majestosa residência oficial do embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, está à procura de uma nova empregada doméstica, mas não se pense que sejam extraordinárias as regalias oferecidas: cada hora de trabalho será paga a cerca de 7,5 euros, o que contrasta com a exigência de um extenso leque de tarefas.

    A nova contratação surge no contexto da chegada do novo embaixador, John Arrigo, que chegará em breve ao palacete da Lapa, sucedendo a Randi Levine, que deixou funções no passado mês de Janeiro. Arrigo é amigo de longa data de Donald Trump, sendo empresário do sector automóvel de West Palm Beach, na Flórida, na região do resort de Mar-a-Lago, detido pelo actual presidente norte-americano.

    A oferta de emprego surgiu quarta-feira na própria página oficial no Facebook da Embaixada dos Estados Unidos, onde se anuncia “a procura de candidatos para o cargo de Housekeeper for Official Residence of the U.S. Ambassador in Lisbon”. Na ligação indicada surge então o vencimento mensal bruto proposto de 956 euros, pagos em 14 meses, o que se traduz num salário líquido que pouco difere do praticado em sectores menos exigentes. Com uma carga horária de 40 horas semanais, a remuneração por hora de trabalho efectivo situa-se assim nos 7 euros, considerando-se o período de férias.

    Além do salário bastante baixo, pouco consentâneo com o trabalho numa embaixada de uma potência mundial, ainda é exigido, como requisito, um horário flexível, porque, apesar de se preverem folgas aos fins-de-semana, pode ser requerida a presença da funcionária — ou do funcionário — para eventos ou outras necessidades do embaixador.

    Em todo o caso, o candidato seleccionado não irá ao engano para a Casa Carluci, porque o anúncio explicita, em detalhe, as tarefas: deverá assegurar, com diligência, a limpeza diária de uma vasta residência, realizando tarefas como aspirar, lavar o chão, limpar cozinhas e casas de banho, fazer camas, tratar de roupa pessoal e de casa, incluindo lavar e engomar. A preparação de quartos para hóspedes será igualmente da sua responsabilidade, bem como a colaboração pontual em eventos oficiais, sendo-lhe até exigido que receba convidados à porta, lave a loiça durante e após os eventos, e até sirva à mesa, se necessário.

    A par destas tarefas, há ainda a expectativa de que colabore com os restantes funcionários da casa, num total de cinco, assegurando substituições quando outros membros da equipa estiverem ausentes. A discrição é uma qualidade considerada fundamental, a par da capacidade de trabalhar em equipa e da proficiência básica em inglês e português.

    Apesar da descrição detalhada e exigente das funções, o contrato não será celebrado directamente com a Embaixada dos Estados Unidos, mas sim com o próprio embaixador, enquanto agente diplomático.

    A residência oficial do embaixador norte-americano, situada numa das zonas mais nobres da capital portuguesa, tem sido palco de inúmeros eventos protocolares e recepções diplomáticas, exigindo naturalmente uma manutenção rigorosa e uma equipa operacional eficiente. No entanto, a remuneração proposta para este cargo suscita dúvidas sobre o equilíbrio entre as responsabilidades atribuídas e a retribuição oferecida, especialmente tendo em conta os padrões salariais dos Estados Unidos. Embora o salário mínimo federal seja de apenas 7,25 dólares por hora, em cidades como Washington, D.C., o mínimo legal ultrapassa os 17 dólares por hora.

    John Arrigo, ao centro, foi indicado em Dezembro por Donald Trump como embaixador em Portugal, mas ainda não apresentou credenciais, estando a Embaixada norte-americana a ser representada transitoriamente por um ‘chargé d’affaires’.

    A diferença abissal entre o que se paga a uma empregada doméstica nos Estados Unidos e o que agora se propõe pagar em Portugal — por funções similares e num contexto diplomático — poderá ser vista como um sinal de desconsideração pelas condições laborais dos trabalhadores portugueses, em particular num contexto em que o custo de vida em Lisboa tem vindo a aumentar de forma significativa.

    A vaga, que deverá ser preenchida até ao final do mês de Maio, exige ainda que as candidatas tenham pelo menos o ensino básico completo, e comprovem experiência anterior em hotelaria, restauração ou funções domésticas similares. As candidaturas deverão ser enviadas em inglês, juntamente com comprovativo de residência legal em Portugal.