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  • Jornada Mundial da Juventude em Algés: uma (alegada) birra entre Costa e Moedas custou-nos 2,5 milhões de euros

    Jornada Mundial da Juventude em Algés: uma (alegada) birra entre Costa e Moedas custou-nos 2,5 milhões de euros

    A decisão de não encerrar em Lisboa a festa da Jornada Mundial da Juventude, acabou por dar em festim. Alegadamente por desentendimentos entre o Governo e a autarquia de Lisboa, anunciado e não desmentido pelo Expresso, a escolha do Passeio Marítimo de Algés para um breve encontro do Papa Francisco com 30 mil voluntários foi suportado por encargos que, por agora, já superam os 2,5 milhões de euros. Isaltino Morais fez 14 contratos, a que se junta mais outro de uma empresa municipal, todos por ajuste directo. Apenas dois foram “reduzidos a escrito”, ou seja, tiveram um contrato com cláusulas e caderno de encargos. O contrato mais avultado (cerca de 840 mil euros, com IVA), que beneficiou a empresa de espectáculos Everything is New, e não teve contrato escrito.


    Foi anunciado pelo jornal Expresso em Setembro do ano passado. O último evento de ontem do Papa Francisco em Portugal, no âmbito da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) – um breve encontro de uma hora com cerca de 30 mil voluntários –, realizar-se-ia no Passeio Marítimo de Algés, em vez de ser na capital, em um dos dois locais usados durante a semana: Parque Eduardo VII ou Parque Tejo-Trancão.

    A razão, apontava o jornal do Grupo Impresa, seria uma birra entre o primeiro-ministro, o socialista António Costa, e o presidente da autarquia de Lisboa, o social-democrata Carlos Moedas. O Expresso revelava que “esse encontro [o de encerramento da JMJ] estava pensado para Lisboa, como todos os outros eventos da semana de celebrações católicas”, mas perante “dificuldades de chegar a um entendimento final com a Câmara de Lisboa, o Governo começou a olhar para outros concelhos, como Ana Catarina Mendes, ministra que tem a pasta da JMJ, já tinha sinalizado”.

    Papa Francisco tem feito apelos a uma “nova economia”. Por cá responde-se com ajustes directos sem sequer serem redigidos a escrito.

    O jornal adiantava ainda que o Governo “encontrou em Isaltino Morais o parceiro que faltava”, e que “sem perda de tempo e custos adicionais, toda a infraestrutura estará preparada para 6 de agosto, desde as câmaras de videovigilância às torres multimédia ou casas de banho, equipamentos que, aliás, estiveram no centro da divergência entre Governo e Carlos Moedas.”

    De facto, o evento de encerramento – um breve encontro de menos de uma hora entre o Papa Francisco e os voluntários da JMJ – realizou-se mesmo no Passeio Marítimo de Algés, mas quanto à parte do “sem custos adicionais” não foi bem assim. Muito pelo contrário.

    Embora o Passeio Marítimo de Algés venha a ser aproveitado para um evento extra – o Encontro Vocacional do Caminho Neocatecumenal, que bem se poderia realizar no Parque Tejo-Trancão, onde se concentraram investimentos de vários milhões –, uma hora de presença papal no Passeio Marítimo de Oeiras levou Isaltino Morais a ser bastante folgado na abertura da bolsa dos contribuintes. Ainda mais porque houve uma suposta justificação: uma alegada urgência.

    Encontro do Papa Francisco com voluntários da Jornada Mundial da Juventude deixa factura de 2,5 milhões de euros. Para já…

    Por isso, todos os contratos da autarquia de Oeiras foram por ajuste directo. E tudo à última hora. E praticamente todos sem sequer contrato redigido a escrito, mesmo quando os montantes foram elevados. Ou seja, não ficará memória do que foi contratado nem se houve algum incumprimento. Tudo no segredo dos corredores onde serpenteia Isaltino Morais e a sua equipa.

    O PÁGINA UM fez uma visita minuciosa aos, por agora, 14 contratos disponibilizados no Portal Base, que totalizam 1.449.062, sem IVA. Com o imposto, sairá dos cofres da autarquia de Oeiras 1.782.347. Se se acrescentar a “empreitada de requalificação do estacionamento e zona envolvente” ao Passeio Marítimo de Algés – mais um ajuste directo, embora com contrato escrito (o que quase causa admiração), no valor de 649.509,50 para a Unikonstrói –, a factura da “birra” entre Costa e Moedas, que levou o último evento da JMJ para Oeiras, custou-nos 2.581.243 euros. Mas as contas ainda não se fecharam.

    O caso mais escandaloso – por ser de montante bastante elevado – passa-se com o contrato de “aquisição de serviços de produção, gestão do recinto, apoio à montagem e desmontagem de equipamentos” dos eventos, pelos quais a conhecida empresa de produção de espectáculos Everything is New, de Álvaro Covões, amealhou 684.500 euros. O contrato foi “assinado” apenas no passado dia 21 de Julho, e escreve-se assinado entre aspas porque, na verdade, não há papéis de contrato, porque, justificando-se com um artigo muito polémico do Código dos Contratos Públicos (artigo 95º), nem sequer foi redigido a escrito.

    Governo decidiu não manter todos os eventos em Lisboa. A decisão de deixar Isaltino Morais participar na festa deu em festim.

     

    Também de montante elevado foi o pagamento da “locação de equipamento de apoio para Host Broadcasting (televisão, rádio e jornais)” durante o encontro do Santo Padre com os voluntários da JMJ. A Câmara de Oeiras, mais uma vez sem contrato redigido a escrito, estabeleceu um contrato, apenas estabelecido na quarta-feira passada – e publicado no mesmo dia no Portal Base – de 162.600 euros com a empresa Eduardo Cunha Unipessoal.

    Com um montante também acima dos 100 mil euros encontra-se ainda mais um contrato por ajuste directo – mas neste caso, houve surpresa: há um contrato escrito e assinado, embora sem caderno de encargos no Portal Base. A beneficiada foi a empresa unipessoal de Ana Patrícia Rodrigues Miranda, com um capital social de 500 euros. O contrato, assinado em 28 de Julho e com um prazo de execução de apenas cinco dias, serviu para a “execução de arranjos exteriores nos passeios do terrapleno de Algés”, por um preço de 103.685,5 euros.

    Por valor um pouco inferior (95.417 euros) ficou estabelecido, no dia anterior, um contrato para a limpeza de grafites em Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada, justificando-se a urgência e o ajuste directo também por causa da Jornada Mundial da Juventude. E, claro, nem sequer foi reduzido a escrito. O beneficiário foi outra empresa unipessoal, a SLU – Sociedade de Limpeza Urbano Unipessoal, criada em Junho do ano passado por João Manuel de Castro Margalho, mas que apesar da tenra idade (o da empresa) já ultrapassa os 200 mil euros de facturação com entidades públicas, quase todas autarquias de Oeiras, Cascais e Sintra.

    Pórtico custou 25 mil euros. Papa entrou de carro por outra zona.

    Ainda abaixo de 100 mil euros, o PÁGINA UM detectou ainda mais 10 contratos, dos quais se destacam três com o mesmo valor: 75.000 euros. O primeiro serviu para a aquisição de merchandising relacionado com a JMJ, “em regime de fornecimento contínuo”, e foi um contrato oferecido no dia 26 de Julho à     Printshow. E diz-se oferecido porque foi por ajuste directo, sem contrato regido a escrito e também por ser este o primeiro contrato público de sempre obtido por esta empresa, apesar de existir pelo menos desde 2006.

    O segundo contrato deste montante (75.000 euros) foi também para show off: “aquisição de materiais de comunicação para decoração urbana, entregues a mais uma empresa unipessoal, a Plateia Efusiva. Criada em Agosto de 2020 por Pedro Manuel Santos Neves Rodrigues, esta empresa não se tem dado nada mal com a autarquia de Isaltino Morais: desde Janeiro de 2021 já sacou, por ajuste directo ou consulta prévia, cinco contratos no valor total de 19 mil euros. Curiosamente, a Plateia Efusiva só tem mais um outro cliente público até agora: a Câmara Municipal de Setúbal, que já lhe entregou, de “mão beijada” (leia-se, ajuste directo) ou por consulta pública, também cinco contratos, no valor total de quase 130 mil euros.

    Com um objectivo similar, neste caso a “aquisição de serviços de produção e implementação de materiais de comunicação”, o terceiro contrato de 75.000 euros foi entregue a uma sociedade anónima, a L2 Spirit. Estabelecido em 27 de Julho, o contrato foi, mais uma vez,  “ecológico”, não se gastando nem papel nem tinta: nada foi redigido a escrito. Sabe-se apenas que tem um prazo de execução de 12 dias, mas não se sabe bem de quê. Ou nada se sabe, na verdade.

    Autarquia de Oeiras aproveitou o Passeio de Algés para acolher hoje o Encontro do Caminho Neocatecumental. O Parque Tejo-Trancão esteve hoje vazio depois da colossal enchente de domingo de manhã.

    A Microsegur – que já conseguira um contrato por ajuste directo com a autarquia de Lisboa por seis dias no valor de quase 205 mil euros –, conseguiu ir buscar mais 63.980 euros por três dias a fazer o mesmo para a autarquia de Oeiras no Passeio Marítimo de Algés. Na verdade, não se sabe se foi o mesmo, porque também este contrato de “locação de equipamentos para deteção de materiais metálicos para a Jornada Mundial da Juventude” no Passeio Marítimo de Algés não foi redigido a escrito. Isaltino Morais foi ministro do Ambiente, mas parece um exagero esta busca de poupança no papel. O contrato da autarquia de Carlos Moedas, através da Polícia Municipal, sempre se fez em papel, embora com poucos detalhes porque se ignora o caderno de encargos.

    Mais um aluguer de material, neste caso de cinco ecrãs led, se fez com um ajuste directo no valor de 27.500 euros, e desta vez o beneficiado foi Fun Addict, escolhida em 21 de Julho. Sem contrato redigido a escrito, claro.

    Quanto ao “pórtico de entrada para Sua Santidade O Papa”, conforme consta na descrição do Portal Base, a autarquia de Isaltino Morais contratou a Bigbrand, por um preço de 25.000 euros. Um tapete de Arraiolos era capaz de ficar mais barato, e sempre se podia guardar. Onde está o contrato desta “obra de arte”? Nenhures! Mais uma vez, sem contrato redigido a escrito.

    Da esquerda para a direita: Carlos Moedas, Isaltino Morais, Marcelo Rebelo de Sousa, Francisco Rocha Gonçalves (vice-presidente da autarquia de Oeiras) e Jorge Barreto Xavier (director da Cultura da autarquia de Oeiras)

    Mais um contrato também não redigido a escrito usou a autarquia de Oeiras para transferir dinheiros públicos – mais precisamente 19.740 euros – com o intuito de concretizar o “aluguer de baias e barreiras de seguranças”. Mais uma empresa unipessoal beneficiada: a Duarte Teives Unipessoal. Barato ou caro? Não ficará memória em papel do serviço.

    Pela aquisição de “serviços de apoio ao controlo e vigilância, necessário e obrigatórios para a execução do plano de segurança e emergência, do recinto da jornada Mundial da Juventude” (sic), o município de Oeiras gastou mais 17.520 euros. A feliz contemplada foi a empresa Protecção Total. Para fazer o quê? Não se sabe porque não houve contrato redigido a escrito e, portanto, muito menos caderno de encargos. A descrição no Portal Base diz, porém, que o contrato tem uma duração de 20 dias, o que não bate certo com a duração da JMJ no concelho de Oeiras. Pormenores.

    Descendo na lista dos contratos feitos à última hora pela autarquia de Oeiras, destaca-se também a “aquisição de 24 rádios portáteis para ligação à rede rádio de comunicações VHF digital do município de Oeiras no âmbito da Jornada Mundial da Juventude 2023”, pelo custo total de 16.344 euros. Coube à Advanced Resources amealhar o contrato, vendendo cada aparelho pela módica quantia de 681 euros sem IVA. Seria bom saber-se, através do Portal Base – que é uma plataforma de contratação pública em prol da transparência – se foi um bom negócio para o erário público, mas não dá: este foi mais um contrato sem ser redigido a escrito.

    Altar-palco no Parque Tejo-Trancão: VIP perto; povo longe.

    Por fim, para prestar “serviços técnicos de elaboração, implementação e acompanhamento do Plano de Segurança da Jornada Mundial da Juventude”, o município também contratou por 7.800 euros a Wise Safety, que por sua vez tinha sido contratada também para o mesmo fim pela autarquia de Lisboa. No entanto, se no município da capital houve contrato, em Oeiras prescindiu-se dessa burocracia.

    Portanto, contabilizando tudo o que aconteceu em Oeiras, por causa de uma hora de festa – o encontro do Papa Francisco com os voluntários –, assistimos a um festim: 2,5 milhões de euros entregues através de 15 contratos (14 da autarquia e um de uma empresa municipal) por ajuste directo, dos quais apenas dois tiveram honras de ser escritos. Para o ano, em Portugal, comemora-se o meio centenário de uma democracia, já cortada ao meio…


    N.D. O PÁGINA UM decidiu não contactar a Câmara Municipal de Oeiras, porque toda a informação factual consta no Portal Base, a plataforma por excelência da transparência na contratação pública. Considera-se que o Portal Base, gerido pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), deveria dar integral cumprimento à legislação, designadamente a inclusão de todas as peças do procedimento, como os cadernos de encargos. Por outro lado, a opção da autarquia de Oeiras por não redigir contratos públicos é, por si só, uma declaração de gestão da res publica, e portanto não carece de pedido de justificação por parte de um jornalista – vale por si mesma.

  • Este país não é para burocratas: apenas seis dos 175 contratos da Jornada Mundial da Juventude foram a concurso público

    Este país não é para burocratas: apenas seis dos 175 contratos da Jornada Mundial da Juventude foram a concurso público

    Só desde Julho foram realizados 106 contratos públicos urgentes para a realização da Jornada Mundial da Juventude. Praticamente tudo por ajuste directo, muitos sem redução a escrito. Neste forrobodó sem controlo – em cada 10 contratos, há nove sem concorrência ou esta é muito limitada – encontra-se de tudo um pouco. A conta conhecida, através do Portal Base, em contratos que fazem referência ao evento da Igreja Católica já superou os 35 milhões, mas deve subir nas próximas semanas. O PÁGINA UM faz o raio-X, por agora possível, do apoio público de um Estado laico à Igreja Católica, e onde se vislumbram muitos pecados e pecadilhos. Se Deus não dorme e será porventura o único que sabe como foram congeminados muitos destes contratos , veremos nos próximos tempos se o Tribunal de Contas anda ou não a dormir.


    Uma chuva de contratos sobretudo a partir de Julho, e quase todos por ajuste directo, estão a fazer elevar a factura pública da Jornada Mundial da Juventude. A conta já vai em 35.497.562 euros, mas continuam a chegar nas últimas semanas dezenas de contratos de última hora, sobretudo para pequenas (mas por vezes bastante onerosas) obras, gastos logísticos e acções de promoção.

    De acordo com um exaustivo levantamento do PÁGINA UM aos contratos públicos – ou seja, sem contabilizar os gastos da Igreja Católica –, até agora as facturas destas despesas públicas – pagas, na verdade, pelos contribuintes – foram canalizadas, para efeitos de pagamento, para o município de Lisboa – quase 17,2 milhões de euros, que inclui também as despesas da sociedade de reabilitação Lisboa Ocidental e a EGEAC –, para o Governo e instituições da Administração Pública – 10,4 milhões de euros, sobretudo por despesas arcadas pelo orçamento da Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros –, para o município de Loures (quase 5,2 milhões de euros) e para o município de Oeiras (2,1 milhões de euros).

    Muito mais atrás, mas com valores ainda relevantes, encontram-se os municípios de Almada (252 mil euros) e de Cascais (210 mil euros). Contabilizando todos os contratos declaradamente associados à Jornada, encontram-se 19 entidades, incluindo alguns municípios geograficamente afastados da Grande Lisboa (ou de Fátima), mas que quiseram dar apoio aos peregrinos, como foram os casos das autarquias de Vila do Conde, Felgueiras e Resende.

    Embora ainda estejam a faltar, por certo, muitos contratos de última hora, o PÁGINA UM já conseguiu identificar, desde 2021, um total de 175 adjudicações relacionadas com os eventos que trouxeram o Papa Francisco e uma multidão de jovens a Portugal durante esta semana. E se até ao final do ano passado grande parte das despesas se referiam a empreitadas de obras públicas – que já totalizam 16,9 milhões de euros –, nos últimos meses os contratos para aquisição ou locação de bens móveis e de prestação de serviços começaram a prevalecer, e são agora largamente maioritários, quer em número, quer em valor.

    Apesar da decisão de se realizar a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa ter sido tomada pela Igreja Católica em 27 de Janeiro de 2019 – e que se deveria realizar inicialmente em 2022, mas foi adiada por causa da pandemia –, só uma pequena parte dos gastos até agora apurados se realizaram antes do presente ano.

    Montante despendido por entidade pública adjudicante no âmbito da Jornada Mundial da Juventude (em euros). Fonte: Portal Base

    De acordo com os dados do Portal Base, das 175 adjudicações, apenas duas foram estabelecidas ainda em 2021 e mais 14 ao longo de 2022. Mesmo as 159 adjudicações realizadas este ano concentraram-se sobretudo a partir de Maio: 18 nesse mês, mais 19 em Junho e 101 em Julho. Até em Agosto foram assumidos contratos, quando já decorria a Jornada. Contam-se já cinco.

    As adjudicações mais antigas, e mais caras, estão sobretudo relacionadas com obras públicas, mas nem todas as de maior dimensão são anteriores ao presente ano. De entre os sete contratos com valor superior a um milhão, cinco foram assinados este ano. Os restantes dois foram assinados em Abril e em Dezembro de 2022: o primeiro para a reabilitação do aterro sanitário de Beirolas no Parque Tejo-Trancão, com um valor de quase 7 milhões de euros, entregue à empresa Oliveiras S.A. por concurso limitado por prévia qualificação; o segundo para a empreitada de execução da cobertura do altar-palco, com um custo de 1,06 milhões de euros, entregue à mesma empresa mas já por ajuste directo. Ambas eram da responsabilidade da empresa municipal Lisboa Ocidental.         

    Se isto se deveu a falta de planeamento, uma coisa é certa: facilitou a vida aos gestores públicos, porque a norma passou a ser, pela urgência, o ajuste directo a empresas que, enfim, ninguém sabe bem como e quais os critérios das escolhas.

    Os portugueses “voluntariam-se” também a pagar gastos no evento da Igreja Católica através de contratos que só Deus sabe bem como foram feitos.

    Um dos contratos mais polémicos foi o da construção do altar-palco no Parque Tejo-Trancão, entregue inicialmente por ajuste directo à Mota Engil em Janeiro deste ano por 4,24 milhões de euros. O preço seria reajustado para os 2,98 milhões, mas independentemente disso ainda houve três contratos de valor superior, um dos quais também por ajuste directo.

    De facto, além da recuperação dos terrenos do antigo aterro de Beirolas – que, na verdade, era uma lixeira, encerrada nos anos 90 por causa da Expo 98 –, no pódio das adjudicações mais caras encontra-se o fornecimento, montagem e operacionalização de sistemas de áudio e vídeo, iluminação ambiente, e respetivo abastecimento de energia, um contrato no valor de 5,96 milhões de euros à Pixel Light pela Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros por contrato público; e os trabalhos de preparação dos terrenos na zona ribeirinha da Bobadela à Alves Ribeiro, por um ajuste directo da autarquia de Loures no valor de quase 4,29 milhões de euros. Estes contratos foram assinados em Fevereiro e Março deste ano, respectivamente.

    Se nos 12 contratos com valores acima de meio milhão de euros, os ajustes directos já são a maioria – oito contra três concursos públicos e um concurso limitado por prévia qualificação –, o desequilíbrio aumenta ainda mais em contratos de menor valor. Desequilibrado é uma força de expressão: por exemplo, dos 25 contratos que envolveram um custo para os contribuintes entre 100 mil e 500 mil euros, todos – repita-se, todos – foram por ajuste directo.

    27 de Janeiro de 2019: Marcelo Rebelo de Sousa cantando vitória pela decisão da Igreja Católica em realizar a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, inicialmente prevista para 2022. Faltou-lhe avisar sobre a conta e o regabofe de ajuste directos.

    Encontrar um concurso público – ou seja, em que a concorrência é livre – nos contratos associados à Jornada Mundial da Juventude é quase como procurar agulha em palheiro: só há seis. Dos restantes 169, encontram-se 11 que tiveram consulta prévia – ou seja, são endereçados convites a empresas, geralmente três para que apresentem propostas –, uma por concurso limitado por prévia qualificação e, contas feitas, 157 por ajuste directo. Em suma, mais de 97% dos contratos não tiveram ou tiveram uma concorrência limitada. Numa parte substancial dos casos, muitos dos contratos por ajuste directo (que totalizam 90% das adjudicações) nem sequer foram reduzidos a escrito.

    Em todo o caso, como alguns dos contratos de maior dimensão foram lançados por concurso público, o peso relativo dos contratos por ajuste ditecto em termos de montante desce para os 55,3% (cerca de 19,6 milhões de euros), ficando bem acima dos montantes despendidos para adjudicações por concurso público (23,7 milhões de euros, ou seja, 23,7% do total), por concurso limitado por prévia qualificação (7,0 milhões, ou seja, 19,7%) e por consulta prévia (448 mil euros, ou seja, 1,3%).

    De entre as entidades com volumes de negócios mais apreciáveis no âmbito da Jornada Mundial da Juventude, há duas que se destacam por não quererem saber de burocracias para nada na hora de entregar dinheiros públicos: as autarquias de Almada e de Oeiras.

    A primeira, presidida pela socialista Inês Medeiros, fez nove contratos por ajuste directo no valor total de quase 252 mil euros. A segunda autarquia, liderada por Isaltino Morais, ainda usou mais vezes e com maiores encargos públicos este expediente: foram 14 contratos por ajuste directo que totalizam, para já, cerca de 1,45 milhões de euros. E diz-se “para já”, porque é provável que existam mais a serem publicados nos próximos dias no Portal Base, um vez que todos os contratos são muito recentes – o último é do dia 2 deste mês – e as entidades públicas têm, por regra, 20 dias para os publicitar. Se incluir o contrato da empresa municipal Parque Tejo, no valor de 650 mil euros, então contabilizam-se 15 contratos por ajuste directo que atingem 2,1 milhões de euros.

    Outras entidades não conseguem o pleno em ajustes directos por muito pouco. É o caso do município de Loures: dos 21 contratos no âmbito da Jornada Mundial da Juventude, apenas houve dois que não foram por ajuste directo, que envolveram contratos da ordem dos 145 mil euros. Os outros 19 contratos totalizaram, por ajuste directo, cerca de 5 milhões de euros. Ou seja, mais de 97% do montante gasto foi em contratos por ajuste directo.

    O município de Lisboa, liderado por Carlos Moedas, também adora ajustes directos. Directamente dos cofres municipais – exceptuando-se assim os gastos da Lisboa Ocidental e da EGEAC –, a autarquia da capital fez 23 contratos, e só um não foi por ajuste directo.

    Município de Oeiras conseguiu o pleno: todos os contratos associados à Jornada Mundial da Juventude foram sempre por ajuste directo.

    A excepção, merecedora de referência, foi o contrato com a empresa Estúdio Nave, assinado em Dezembro passado no montante de 29.450 euros para “aquisição da prestação de serviços para elaboração de projeto de desenvolvimento gráfico e maquetização, comunicação e city dressing para comunicação da Jornada”. Em todo o caso, a Estúdio Nave teve concorrência limitada: conseguiu a adjudicação por consulta prévia. Assim, globalmente, 97,6% dos gastos da autarquia da capital foram por ajuste directo.

    No meio disto, a entidade com melhor comportamento, mas apenas na aparência, acabou por ser a Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, responsável por 32 contratos no âmbito da Jornada Mundial da Juventude. Se olharmos para o volume de negócios, verifica-se que dos 10,3 milhões de euros gastos, apenas 1,9 milhões (18%) foram por ajuste directo, sendo que os restantes 8,9 milhões de euros foram em adjudicações por concurso público.

    Mas este segundo montante refere-se apenas três contratos de maior montante – o já referido da Pixel Light (quase 6 milhões de euros) e dois relacionados com saneamento e higiene, envolvendo o Grupo Vendap (quase 1,29 milhões de euros) e a Avistacidade (1,15 milhões de euros). De resto, todos os de valor inferior foram por ajuste directo, mesmo cinco com montantes entre 100 mil e 500 mil euros, onde se destaca uma obra feita pela empresa Oliveiras.

    Custo com o altar-palco foi a única polémica: inicialmente estava para custar 4,24 milhões de euros; acabou por ficar em 2,8 milhões, apenas cerca de 8% dos custos já apurados.

    Aliás, esta empresa da Batalha foi, na análise feita pelo PÁGINA UM, que elencamos, a mais beneficiada pela Jornada Mundial da Juventude: os quatro contratos – três por ajuste directo e um por concurso limitado por prévia qualificação – concederam-lhe uma facturação de quase 8.589.654 euros.

    O pódio é ainda ocupado pela Pixel Light, com 5.962.300 euros, e pela empresa de construção Alves Ribeiro, com 4.379.844 euros. Com contratos a superarem um milhão de euros encontram-se ainda a Mota Engil (2,98 milhões de euros), o Grupo Vendap (quase 1,4 milhões de euros) e a Avistacidade.

    Acima dos 500 mil euros encontram-se mais cinco empresas: Everything is New (684.500 euros), Unikonstrói (649.510 euros), Engexpor (627.200 euros), Irmarfer (596.000 euros) e Sinalcabo (542.272 euros). Por sinal, todas conseguiram o respectivo contrato sem concorrência: tudo por ajuste directo.

    Com montantes acima dos 100 mil euros encontram-se mais 25 empresas, todas com contratos por ajuste directo. Entre os 50 mil e os 100 mil euros estão 22 empresas e um indivíduo, Gonçalo Sanches Salgueiro, um militante do CDS. Abaixo dos 50 mil euros encontram-se mais 84 empresas e indivíduos para a prestação e aquisição dos mais variados bens e serviços. Praticamente tudo por ajuste directo, incluindo até a aquisição de 106 cabos de madeira para esfregonas à Afonso Rodrigues Unipessoal por 121,9 euros pela autarquia de Almada. Remetendo expressamente para o âmbito da Jornada Mundial da Juventude, este foi um dos dois únicos contratos que constam no Portal Base com um montante inferior a 3.000 euros. Estes dois, enfim, justificadamente por ajuste directo.

    Governo e Presidência da República estiveram na primeira fila para permitir gastos sem controlo, grande parte dos quais no último mês.

    Praticamente todos os contratos abaixo dos 50 mil euros foram por ajuste ditecto, entregue a pessoas conhecidas dos gestores públicos e autarcas. Na verdade, por concurso público, de entre os seis que se encontram, apenas três estão abaixo de um milhão de euros, e esses três foram todos ajudicados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, talvez para salvar a “honra do convento”.

    Mas isso deveria colocar uma questão: se a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa decidiu abrir concurso público para adjudicações de pequeno montante – um de apenas 386 euros, outro de 3.500 euros e outro ainda de 7.345 euros –, com os contratos a serem assinados em 13 de Julho deste ano, então qual foi a necessidade de a esmagadora maioria das entidades públicas terem decidido quase invariavelmente por ajustes directos, ainda mais quando estavam em causa montantes muitíssimo superiores.


    Para consultar a lista ordenada por montante dos beneficiados por contratos públicos, no âmbito da Jornada Mundial da Juventude publicados no Portal Base até 6 de Agosto de 2023, descarregue AQUI.

  • Azinheiras e sobreiros: de sagradas a mal-amadas

    Azinheiras e sobreiros: de sagradas a mal-amadas

    Nos últimos cinco anos e meio, já foram autorizados abates de 13.163 sobreiros e de 72.433 azinheiras. Tudo serve como justificação, bastando que se invoque uma “imprescindível utilidade pública” em projectos sempre bem acolhidos pelo Governo. Entre centrais de energia renovável e ferrovias e rodovias, passando por pedreiras, um levantamento do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas para o PÁGINA UM contabilizou 44 projectos onde o machado brande forte. Em todos os cortes ficam previstas medidas de compensação, com o plantio de jovens árvores em outras zonas. Tudo boas intenções, como aquelas que, por vezes, se encontram amiúde no inferno.


    Já foram consideradas árvores quase sagradas em território português, ainda no tempo da I República, e depois ao longo do Estado Novo. Mesmo nas primeiras décadas da democracias, só com a “queda do Carmo e da Trindade”, em ocasiões muito especiais, era autorizados cortes, mesmo se, à primeira oportunidade, havia quem corresse o risco de apanhar multas se os proveitos compensassem, sobretudo se estivessem em causa interesses urbanísticos.

    Mas no século XXI, mais moderno, quis-se inovar. Primeiro, foi-se concedendo com maior facilidade a possibilidade de cortes de sobreiros e azinheiras no caso de “empreendimentos de imprescindível utilidade pública”, algo sempre de definição ambígua ou dúbia, mas que sempre acabava numa decisão ministerial polémica, mas choruda. Agora, o facilitismo é tanto que, com a recente simplificação dos licenciamentos ambientais (leia-se, maior facilidade de contornar restrições ambientais), os cortes destas árvores podem vir a ser acção corriqueira.

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    Não há machado que corte a raiz ao pensamento, assim canta o poema de Carlos Oliveira. Mas em Portugal há cada vez mais machados, ou moto-serras, a deceparem quercíneas. Muitos sobreiros (Quercus suber), mas ainda muitas mais azinheiras (Quercus ilex ou Quercus rotundifolia), uma sua “prima” menos rentável, por não ter cortiça. Em muitos casos, paradoxalmente, dizem-nos, o abate surge por razões ambientais, nos últimos tempos para projectos de painéis fotovoltaicos.

    De acordo com um levantamento detalhado do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a pedido do PÁGINA UM, desde 2017 foram emitidas 44 declarações de imprescindível utilidade pública (DIUP) que originaram o abate de 13.163 sobreiros e de 72.433 azinheiras, envolvendo 27 concelhos de 15 distritos. A área de corte – ou seja, a área total ocupada por aquelas árvores, geralmente em povoamentos muito mais dispersos do que os que ocorrem em pinhais e eucaliptais – foi de quase 367 hectares.

    Ao contrário do que seria de imaginar – por ser aí que se concentram a maior extensão de montados de sobro –, o distrito com mais abates de sobreiros não se situa no Alentejo, mas sim na região Centro, mais propriamente em Aveiro. Nesse distrito houve já sete autorizações para o abate total de 2.786 sobreiros, dos quais 2.243 árvores desta espécie se concentram no lugar de São João, na freguesia de São João de Ver, no concelho de Santa Maria da Feira. Para lá está prevista uma central fotovoltaica de uma empresa de capitais estrangeiros (FFNEV Portugal I), com o corte de 471 sobreiros adultos e 1.772 sobreiros jovens em cerca de 20 hectares.

    A autorização de abate, sem necessidade de avaliação de impacte ambiental, foi tomada em Fevereiro do ano passado pelo então ministro do Ambiente Matos Fernandes, e o abate foi solicitado por uma empresa unipessoal (Bosque) pertencente a João Carlos Gama Amaral, um engenheiro florestal que integra o Conselho Coordenador dos Colégios da Ordem dos Engenheiros.

    Este abate no distrito de Aveiro supera assim o recente abate de 1.821 sobreiros autorizado por Duarte Cordeiro, no início deste mês, para a instalação de um parque eólico da EDP em cerca de 32 hectares dos concelhos de Santiago do Cacém e Sines, incluindo mesmo a freguesia de Porto Covo. No entanto, este projecto não consta ainda do levantamento feito pelo ICNF para o PÁGINA UM.

    Excluindo o parque eólico da EDP, o segundo projecto com maior abate de sobreiros localiza-se no distrito de Évora, região onde desde 2017 se contabilizam oito autorizações de abate, envolvendo no total 2.552 árvores daquela espécie e ainda 6.166 azinheiras. O projecto em causa insere-se na ligação ferroviária projectada para ligar Évora e Elvas/Caia, sendo indicado pelo ICNF o corte de 1.596 sobreiros e 4.164 azinheiras.

    Com mais de mil sobreiros abatidos destacam-se ainda um projecto de produção e transporte de energia nos concelhos nortenhos de Cabeceiras de Basto, Ribeira de Pena e Vila Pouca de Aguiar (1.145 árvores) e uma central fotovoltaica numa área de quase 15 hectares do concelho de Gavião (1.079 sobreiros, a que acrescem quatro azinheiras), esta última com autorização em Fevereiro do ano passado.

    No caso das azinheiras, o maior desbaste é no distrito e concelho de Santarém, mais precisamente na freguesia de Alcanede. Uma pedreira da empresa Solancis, para extracção de calcário numa área de 5,6 hectares, levou a uma autorização de abate, em Julho de 2020, de um total de 34.608 azinheiras jovens.

    No distrito da Guarda, uma das regiões ciclicamente mais afectadas pelos incêndios, três projectos rodoviários e ferroviários “limpam” também quase 30 mil árvores. De entre estes destaca-se a requalificação da linha ferroviária da Beira Alta, no subtroço Cerdeira-Vilar Formoso, tendo, por despacho de Maio do ano passado, sido autorizado o corte de 584 azinheiras adultas e 19.775 azinheiras jovens, além de 13 sobreiros adultos e 17 sobreiros jovens, em quase 18 hectares de povoamentos ao longo do percurso da obra, nos concelhos do Sabugal e de Almeida.

    Neste último concelho já fora autorizado, em finais de 2019, um outro abate significativo (3.174 azinheiras adultas e 2.897 azinheiras jovens) para a construção do IP5 junto a Vilar Formoso.

    No lote de zonas com mais abates de azinheiras surge também Évora, onde diversos projectos sobretudo rodoviários e ferroviários, deitaram por terra 6.166 azinheiras, para além dos 2.552 sobreiros.

    acorn, holm, oak

    Por normas, as entidades públicas e as empresas privadas que obtêm essas autorizações de corte prometem, e ficam definidas, compensações, nomeadamente a plantação de novas árvores em outras áreas, mas não existe um controlo muito apertado desses compromissos. De acordo com o levantamento enviado ao PÁGINA UM pelo ICNF, a área de compensação é, por agora, largamente superior à da área total cortada (480,73 hectares contra 366,76), mas ainda falta serem definidos alguns deste projectos.

    Fonte do ICNF sublinha que “alguns dos projetos de compensação estão previstos serem implementados em áreas públicas, nomeadamente: nos perímetros florestais do Barroso e de Cabreira, das Serras do Soajo e Peneda, de Conceição de Tavira; na Mata Nacional da Covilhã, no interior do Parque Natural da Serra da Estrela; na Reserva Natural da Serra da Malcata, na Área Florestal de Sines; e na Tapada Nacional de Mafra, abrangendo um total de cerca de 173 hectares, com uma plantação estimada de 80 000 árvores.” Veremos.

  • Bordalo II poderia ter criado tapete de mais de 100 metros com notas de 500. E das verdadeiras

    Bordalo II poderia ter criado tapete de mais de 100 metros com notas de 500. E das verdadeiras

    O artista indignado com os custos envolvidos na Jornada Mundial da Juventude não se pode queixar da generosidade das entidades públicas. Só em ajustes directos, Bordalo II angariou já 27 contratos públicos, incluindo de 15 municípios, diversas empresas públicas, a Presidência do Conselho de Ministros e até universidades. Só na zona do Parque das Nações, onde ontem desenrolou um tapete de notas falsas, recebeu já duas encomendas públicas por ajuste directo em valores acima de 100 mil euros. Mas isto é uma gota de água. Bordalo II tem facturado freneticamente. Nos últimos três anos, a sua Mundofrenético encaixou mais de 3,4 milhões de euros. O PÁGINA UM foi ver em quanto isso dava em tapete de notas verdadeiras.


    É o protesto do momento: Bordalo II – nome artístico de Artur Bordalo –, disfarçou-se de operário e desenrolou ontem nas escadarias do altar, que será pisado na próxima semana pelo Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, um longo tapete de falsas notas gigantescas de 500 euros.

    “Shame on you”, assim denominou o seu protesto, o artista aproveitou para lançar uma crítica aos milhões gastos para apoiar um encontro que aglomerará previsivelmente mais de um milhão de peregrinos: “Num estado laico, num momento em que muitas pessoas lutam para manter as suas casas, o seu trabalho e a sua dignidade, decide investir-se milhões do dinheiro público para patrocinar a tour da multinacional italiana” E concluía, corrosivo: “Habemus Pasta”.

    Mas milhões é, aliás, coisa que nem é, na verdade, nada estranho a Bordalo II. A sua empresa, a Mundofrenético, tem apresentado um nível de crescimento impressionante de facturação com tão tenra idade, confirmando ser ele um dos artistas mais cotados e solicitados, em grande parte por entidades públicas. Que o contratam sobretudo por ajustes directos, diga-se.

    Criada em 9 de Janeiro de 2018 com um capital social de 1.000 euros, a Mundofrenético começou com um vasto conjunto de objectos possíveis, onde se destacava a “fabricação, criação, comercialização a retalho e via Internet e importação e exportação de obras de arte e de cópias ou impressões das mesmas, incluindo filmes ou outros suportes materiais ou digitais de carácter artístico ou promocional”, além também da “organização e execução de espectáculos, encontros profissionais, seminários, congressos ou outros eventos de natureza artística, publicitária e de formação e demonstração de técnicas artísticas”, e ainda a ”comercialização de matérias-primas e ferramentas e equipamentos utilizados na elaboração de obras de arte” e até “construção e obras públicas, incluindo a incorporação de arte em móveis e equipamentos sociais”.

    O ano de estreia não lhe correu nada mal: descontando o seu próprio salário como gerente, Bordalo II teve logo um encaixe acima dos 456 mil euros e acabou o exercício com um lucro de 306 mil euros. Em 2019, a empresa passou a ser uma sociedade por quotas de 1.500 euros – primeiro com a sua mulher, Mariana Cavaco Duarte Silva, de quem entretanto se divorciou, tendo a quota desta (1/3) passado para Helena Maria Silva Correia – e os negócios continuaram a prosperar.

    A pandemia não afectou em nada o seu desempenho artístico. E muito menos financeiro. Entre 2020 e 2022, os lucros da empresa foram sempre subindo. No primeiro ano deste triénio, a facturação situou-se nos 716.509 euros com lucros de mais de 270 mil euros. Em 2021, Bordalo II ficou a saber, pela primeira vez, o que era um milhão; facturou 1.082.449 euros, e apresentou um resultado líquido de um pouco mais de 455 mil euros.

    Por fim, no ano passado, as facturas contabilizaram 1.605.244 euros, terminando o dia 31 de Dezembro com um lucro acima de 663 mil euros. A empresa respira saúde com lucros acumulados de 981 mil euros, que serviram sobretudo para reforçar os activos.

    Assim, considerando que uma nota real de 500 euros – e não a dezena de notas falsas desenroladas ontem – tem uma dimensão de 160 por 82 milímetros, Bordalo II teria capacidade de compor um lustroso tapete gigantesco se usasse 6.808 notas verdadeiras de 500 euros correspondentes sensivelmente à sua facturação de 3,4 milhões de euros dos últimos três anos. Bastaria dispor lotes de 10 notas de 500 euros, lado a lado, para ter uma largura de 82 centímetros, e depois replicar longitudinalmente. Ficaria com um tapete de quase 110 metros.

    A Freguesia do Parque das Nações pagou 68 mil euros a Bordalo II num ajuste directo para a “aquisição de serviços para a criação artística – Festival de Arte Urbana de Lisboa “MURO LX_2021””. Este é o segundo maior ajuste directo registado no Portal Base feito com o artista.

    Mas se Bordalo II preferisse usar notas de 10 euros – com uma dimensão de 127 por 67 milímetros –, então aí um tapete de cerca de 80 centímetros de largura (formado por 12 notas) estender-se-ia por mais de 3.600 metros.

    Embora muitas obras (e receitas) de Bordalo II – que se tem destacado no uso de materiais recicláveis – constituam encomendas integradas em projectos de maior dimensão, em que ele será subcontratado, ou obtidas através de colectivos de artistas, todos os contratos da Mundofrenético listados no Portal Base foram por ajuste directo.

    Ou seja, o empresário Artur Bordalo, gerente da Mundofrenético, obteve contratos públicos de prestação de serviços por parte do artista Bordalo II sem qualquer concorrência, sem qualquer definição de preço justo. Portanto, o artista foi contratado apenas pela sua (inegável) arte. Ou pela cor dos olhos…

    Segundo dados disponíveis no Portal Base, entre 2018 e Julho deste ano, o escultor ganhou 708,8 mil euros em ajustes directos com entidades públicas, incluindo 15 municípios, a empresas municipais, universidades e outros.

    O município de Estarreja pagou 16.580 euros a Bordalo II numa encomenda feita por ajuste directo em Outubro de 2022.

    Este ano, Bordalo II angariou já quatro contratos por ajuste directo num valor global de 132.860 euros. O contrato mais lucrativo deste ano, no montante de 57.500 euros foi adjudicado pelo Instituto Superior Técnico, a 20 de Fevereiro, para a “produção de uma obra de arte – escultura em pedra”.

    O Município de Vila Nova de Famalicão entregou 38.500 euros a Bordalo II para a “produção de instalação exterior”.

    A Associação de Municípios para a Gestão Sustentável de Resíduos do Grande Porto – LIPOR pagou 36.860 euros ao artista, pela aquisição de esculturas, através de dois contractos por ajuste directo. Aliás, esta não foi a primeira vez que a LIPOR fez ajustes directos a Bordalo II. A entidade entregou ao artista 72.000 euros em 2019 num outro ajuste directo – o contrato com o valor mais alto registado com o escultor no Portal Base.

    No ano passado, o artista facturou 87.180 euros através da adjudicação de três contratos por ajuste directo.

    O conhecido Lince Ibérico, de Bordalo II, instalado no Parque das Nações em 2019. A obra custou 35 mil euros ao Instituto Português do Desporto e Juventude que fez a encomenda ao artista por ajuste directo para a “aquisição de serviços de produção de obra de arte urbana no âmbito da Conferência Mundial de Ministros responsáveis pela Juventude 2019 e Fórum da Juventude Lisboa+21”.

    Mas foi em 2021, em plena crise provocada pelas medidas do Governo impostas na pandemia, que saiu a sorte a Bordalo II, ao ter conseguido a proeza de ter nove contratos por ajuste directo com entidades públicas, que gerou uma facturação de 200.600 euros ao artista.  

    Isto depois de em 2020, primeiro ano da pandemia, Bordalo II ter facturado 110.207 euros em quatro contratos por ajuste directo.

    Em 2019, o artista angariou 149 mil euros em ajustes directos com entidades públicas. Foi nesse ano que Bordalo II conseguiu arrecadar 35 mil euros por ajuste directo para a instalação do seu Lince Ibérico no Parque das Nações, em Lisboa.

    Em 2018, primeiro ano em que surgem contratos adjudicados a Bordalo II no Portal Base, o artista facturou 28.981 euros através de dois ajustes directos. De resto, o primeiro contrato de Bordalo II registado no Portal Base foi adjudicado pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, que rendeu ao escultor 12.000 euros de uma assentada.

    Olhando para os contratos, se a LIPOR entregou o ajuste directo com o valor mais alto, o segundo, no valor de 68.000 euros, foi adjudicado em Junho de 2021, curiosamente, pela Freguesia do Parque das Nações, onde se realiza a Jornada Mundial da Juventude.


    N.D. Foi retirada às 14:07 de 29 de Julho a referência à participação de Bordalo II na Mistaker Maker, que na verdade é uma plataforma de intervenção, e não um colectivo de artistas. A última colaboração entre Bordalo II e a Mistaker Maker data de 2018, ou seja anterior à criação da Mundofrenético.

  • Associação Sara Carreira: conheça a fábrica de donativos que faz pouco e queria mostrar menos

    Associação Sara Carreira: conheça a fábrica de donativos que faz pouco e queria mostrar menos

    Em tons cor-de-rosa, envolvendo desde políticos até desportistas e entertainers e remetendo para o trágico desfecho de uma jovem vida e para o apoio a estudantes carenciados, a Associação Sara Carreira é sobretudo uma bem oleada máquina de donativos. Em apenas 20 meses angariou quase 1,7 milhões de euros, sendo que as vendas apenas chegaram aos 100 mil euros. A associação, que recebeu um meteórico estatuto de utilidade pública, não aprecia, contudo, falar daquilo que faz e do que vai fazer, e detesta mostrar contas. Só divulgou os resultados da sua actividade de 2021 e 2022 na semana passada, depois de muita pressão. No final do ano passado, tinha no banco 1.266.986 euros. Partiu do zero. O PÁGINA UM analisa agora tudo.


    Mesmo sem o “mínimo necessário exigível no âmbito de valores e princípios basilares que norteiam o jornalismo em Portugal”, que é como a Associação Sara Carreira nos cataloga, o PÁGINA UM conclui, ao fim de algumas semanas de investigação – mas ainda não no seu término – que há mesmo um verdadeiro e grande tabu, ou vários, rodeando as actividades desta nova entidade com estatuto de utilidade pública fundada em Março de 2021, em memória da filha do cantor Tony Carreira: o dinheiro.

    Sem prejuízo das circunstâncias traumáticas que levaram à criação desta associação – uma tragédia que, infelizmente, não atingiu apenas a família Carreira, não sendo esse um motivo válido para “censurar” uma investigação jornalística –, existe uma evidente falta de transparência, o que não abona o seu objecto social, a sua projecção mediática e, sobretudo, dura lex sed lex, contraria as exigências legais por força de um meteórico reconhecimento de utilidade pública.

    Não apenas meteórico, mas, diga-se, também estranho. O processo de reconhecimento já foi pedido pelo PÁGINA UM à Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos – e que, aliás, se não respondido, terá a mesma solução de outras recusas similares: uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Tony Carreira e os dois filhos (Mickael e David) durante o espectáculo da 2ª edição da Gala dos Sonhos, que constitui uma fonte de receitas volumosa.

    Muita água – embora talvez menos do que a habitual, por se estarmos em seca – já terá passado por debaixo das pontes desde que, em 19 de Junho, o PÁGINA UM entrou formalmente em contacto com a Associação Sara Carreira para, enfim, a questionar, legitimamente, sobre os requisitos prévios para o reconhecimento de utilidade pública.

    Recorde-se que a Lei-Quadro determina que as entidades de utilidade pública “tenham uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

    E, por isso, pediram-se explicações para a falta desses documentos no site e apelou-se para o envio dos relatórios e contas de 2021 e de 2022. Além disso, pretendeu-se também saber, em detalhe quais são os montantes efectivamente disponibilizados por mês, no conjunto, dos bolseiros auxiliados pela associação – que tem sido, publicamente, a principal actividade de beneficência conhecida –, ou em alternativa o valor médio de apoio e o número actual de bolseiros. Nada de anormal: os regulamentos da generalidade das bolsas para estudantes divulga os valores, sem quaisquer problemas (vd. AQUI).

    Carlos Moedas ao lado de Tony Carreira, durante a 2ª edição da Gala dos Sonhos em Dezembro passado.

    Last but not the least, o PÁGINA UM quis saber também o número de associados e quais as condições em concreto para se ser sócio, uma vez que os estatutos de constituição e alteração são susceptíveis de “blindar” a entrada a novos sócios. Esse não é um pormenor: segundo a lei, uma entidade como a Associação Sara Carreira necessita, no mínimo, de 16 sócios efectivos para obter o estatuto de utilidade pública. Mas já lá iremos…

    Desde 19 de Junho, como disse, muita água passou pelas pontes, debaixo. E também muita actividade pelo site da Associação Sara Carreira. Embora, na aparência, não se vislumbrem novidades há muito – a última entrada na secção das Notícias, e a única deste ano, é de 3 de Maio (conforme gravação de hoje) –, houve um grande corrupio, nem sempre perceptível, desde que o PÁGINA UM começou a fazer perguntas à Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e publicou a primeira notícia sobre este assunto.

    No passado dia 27, um dia depois de o PÁGINA UM revelar que a Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros colocava a hipótese de retirar-lhe o estatuto de utilidade pública por não ter contas divulgadas, a Associação Sara Carreira colocou no site aquelas referentes ao ano de 2021. Mas onde? Em local inopinado: na secção dos Termos e Condições do site, e bem lá no fundo para (quase) ninguém achar. Achou o PÁGINA UM, que gravou.

    E voltou a gravar para confirmar que esta primeira fase da transparência foi muito fugaz, porque três dias depois, no dia 30, já o relatório e contas de 2021 dali tinha desaparecido. Também se gravou. Só no dia 4 deste mês, talvez pelas insistências do PÁGINA UM, a Associação Sara Carreira decidiu que, afinal, tinha mesmo, a contragosto, de divulgar o relatório de actividades e de contas tanto de 2021 como de 2022. A legalidade quando nasce é para todos, mesmo quando se tem o Presidente da República a atender telefonemas para recolher donativos. Ou talvez, também, até por isso.

    Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um fervoroso apoiante da família Carreira.

    A leitura dos dois relatórios de actividades e de contas suscitam várias conclusões. E suscitaram ao PÁGINA UM muitas mais perguntas, nenhuma respondida pela Associação Sara Carreira, que, por e-mail no passado dia 4 (o terceiro, depois deste e deste), ainda acusou “a linha que [o PÁGINA UM] tem adotado no contacto com esta Associação], que “é demonstrativa de que, verdadeiramente, não pretende informação, mas sim, apenas e só, polémica e sensacionalismo, certamente, para que através disso venha a ser lido, visitado ou citado á custa do nosso bom nome, altruísmo e benevolismo [sic] públicos reconhecidos”.

    E, continuando sem responder a qualquer pergunta, a assessoria de imprensa da Associação Sara Carreira acrescentou ainda que “assim sendo, a partir deste momento não iremos mais responder ao que quer que seja provindo dessa página da internet [sic], que desconhecíamos, ou por V. Exa. assinado, pois não lhe reconhecemos o mínimo necessário exigível no âmbito de valores e princípios basilares que norteiam o jornalismo em Portugal.”

    Por fim, termina a Associação Sara Carreira com uma ameaça velada: “Estaremos vigilantes aos textos que publique no sentido de vir a agir contra tudo o que, por falsidade, populismo e injustiça, vier a colocar em causa a seriedade e o bom nome desta Associação, dos seus Mecenas, dos seus Bolseiros, dos seus Colaboradores e todos aqueles que nos têm vindo a ajudar, incentivar e também a felicitar.”

    Portanto, deixemos a falsidade, populismo e injustiça daqui arredados, e vamos a factos, que estes por definição não são falsos, nem apelam ao populismo, e sendo factos abduzo estão da injustiça. Pelo contrário, não escrever sobre factos é que se mostraria injusto, e omitir factos para “proteger” a imaculada imagem de um cantor popular é que seria populismo.

    Donativos da denominada Gala dos Sonhos, transmitida pela SIC, têm um peso significativo nas receitas mas não explicam como em menos de dois anos a Associação Sara Carreira se tornou milionária.

    Sejamos, portanto, objectivos. A Associação Sara Carreira tem sido, efectivamente, uma eficaz máquina de receitas – ou melhor dizendo, de donativos. E tanto assim é que, ao nível de rendimentos, já rivaliza com as duas empresas detidas pela família Carreira, a Regibusiness e a Regi-Concerto, sendo que esta é detida quase em exclusivo pela primeira.

    No seu primeiro ano de existência, e abrangendo apenas oito meses – foi apresentada em 2 de Maio de 2021 –, e de acordo com o relatório de contas, finalmente disponibilizado, a Associação Sara Carreira conseguiu encaixar 676.908 euros de donativos, que constituíram a sua única receita. Quase 45% (303.465 euros) deste montante foi arrecadado durante a realização da denominada Gala dos Sonhos, no dia 1 de Dezembro daquele ano.

    Esta foi a única actividade onde a associação anunciou activamente os valores de donativos relevantes que recebeu desde a sua existência. De resto, exceptuando a oferta de um carro pela Benecar e o anúncio do próprio Grupo Decisões e Soluções – uma empresa de consultadoria imobiliária –, já este ano, de ter doado 100 mil euros, nada se sabe dos montantes doados pelos outros mecenas conhecidos (Missão Continente, Altice, Fundação Santander e SIC).

    Mas se o ano de arranque foi promissor, o ano de 2022 mostrou-se fantástico. No caso das vendas, sobretudo de merchandising relacionados com Sara Carreira, representaram quase 100 mil euros (99.098 euros), mas os donativos ainda dispararam mais, cifrando-se nos 983.921 euros. Somados estes itens, a Associação Sara Carreira amealhou 1.083.019 euros em 2022.

    Na sua página do Facebook da Associação Sara Carreira anunciou ter reunido na semana passada com os mecenas.

    A título de exemplo, a empresa gestora da carreira de Tony Carreira, a Regi-Concerto, facturou 1.325.682 euros em 2021 (as contas de 2022 ainda não estão disponíveis), embora com uma margem de lucro incomensuravelmente menor. Não se encontrou o valor dos donativos da segunda edição da Gala dos Sonhos, apesar de a Associação Sara Carreira garantir que divulgou um comunicado na Rádio Renascença.

    Incompreensivelmente, nada é referido no relatório de actividade de 2022, e não se diga que foi por ter pouco relevo. Pelo contrário. O dito relatório revela vários indicadores de sucesso: cerca de 5,5 milhões de impressões dos posts, mais de 700 mil pessoas alcançadas e mais de dois milhões de interacções. E ainda se contabilizou “mais de 62 mil cliques e mais 500 mil seguidores”. Euros recebidos da campanha: nicles.

    Se os rendimentos globais e os donativos recebidos pela Associação Sara Carreira acabam, finalmente, por se saber pela leitura dos relatórios e contas de 2021 e de 2022 – e particularmente pela demonstração de resultados e pelos fluxos de caixa –, já o mesmo não se verifica quanto à tipologia dos gastos e despesas. Saber quanto se gastou, isso sabe-se – e acredita-se nos montantes, tanto mais que as contas foram auditadas pela Pricewaterhouse Coopers & Associados –, mas não em quê nem como nem para para quê.

    Depois de muita pressão, e situações rocambolescas, a Associação Sara Carreira fez aquilo que qualquer associação de utilidade pública só pode fazer: divulgar as contas e relatório de actividades de 2021 e de 2022. Sem, dramas nem acusações. Só assim, com transparência, se “paga” os benefícios fiscais que se recebe da sociedade.

    Nem nos regulamentos nem nas muitas entrevistas concedidas sobretudo nos programas de entretenimento da SIC, nem no relatório de actividades existe a mínima menção aos valores concretos das bolsas de estudo que constituem, sempre, o leitmotiv da Associação Sara Carreira. Ajudar jovens desfavorecidos, embora seja tarefa desenvolvida por muitas outras associações e fundações (e de forma transparente), é mesmo um tema tabu.

    Das diversas pesquisas, e perguntas do PÁGINA UM, a Associação Sara Carreira não responde. Nega-se até a explicar o motivo – que certamente haverá um, ou dois, ou 21, tantos quantos os bolseiros que estão integrados na primeira edição.

    A segunda edição está numa fase de análise das candidaturas. Note-se que no relatório e contas, a Associação Sara Carreira diz que “temos connosco” actualmente 45 bolseiros, o que contradiz o que surge hoje no site. No entanto, diversas fotos no mural do Facebook, incluindo uma com bolseiros numa viagem turística aos Açores, em Abril deste ano, observam-se 34 jovens. No relatório de actividades de 2022 constam 36, com os respectivos nomes das “madrinhas” e dos “padrinhos”.

    Como o relatório de actividades não explicita – nem a direcção da Associação Sara Carreira – os valores unitários e globais das bolsas, somente pela interpretação da demonstração do fluxo de caixa de 2022 será possível atribuir montantes prováveis.

    Bolseiros da Associação Sara Carreira numa viagem aos Açores em Abril deste ano.

    O dinheiro transferido para os bolseiros ou para as instituições de ensino estará, afinal, integrada no fluxo de pagamento a fornecedores (que, em 2022, atingiram 284.229 euros), não constituindo um pagamento ao pessoal (56.5454 euros, nesse ano). O valor que surge nas actividades operacionais como “Recebimentos de clientes e utentes” (que está com valor negativo), num total de 99.098 euros, será relativo às vendas de merchandising.

    Independentemente das questões contabilísticas nem sempre serem cristalinas, certo é que o grosso das despesas da Associação Sara Carreira serviram, assim se assume, para obter os donativos. Ou para custear algumas das actividades pontuais que foi desenvolvendo, incluindo um luxuoso Jantar de Amigos no Salão Preto e Prata no Casino do Estoril em 17 de Setembro do ano passado. Mas falar destas despesas também foi tabu. Ninguém da associação quis esclarecer o PÁGINA UM.

    Do total de mais de 325 mil euros já gastos em 2021 e 2022 para pagamentos a fornecedores e serviços externos, a fatia de leão é da rubrica “Trabalhos especializados”, com 174.901 euros. Que tipo de trabalhos especializados são esses, a Associação Sara Carreira não diz. E muito menos responde se alguma das empresas do universo da família Carreira é beneficiária por serviços realizados.

    Demonstração de resultados de 2021 e 2002 da Associação Sara Carreira, divulgada apenas na semana passada, após cinco e-mails do PÁGINA UM e depois da Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros ter colocado a hipótese de retirar o estatuto de utilidade pública.

    Pode-se admitir que seja todas os custos dos trabalhos especializados (49.273 euros em 2021 e 125.628 euros em 2022) respeitem às bolsas. Assim, se forem mesmo 45 os bolseiros apoiados, obtém-se um apoio médio de um pouco menos de 3.900 euros por ano. Isto não inclui os apoios que algumas empresas têm concedido, acredita-se que graciosamente.

    Uma outra rubrica relevante refere-se a “rendas e alugueres”, que se cifraram nos 12.153 euros em 2021 e nos 54.719 euros em 2022. A Associação Sara Carreira também não revela a quem se destinaram estes valores, ignorando-se assim se uma parte se refere à renda da actual sede, compartilhada com a Regi-Concerto, a empresa de gestão da carreira de Tony Carreira.

    Em todo o caso, no relatório de 2022 surge a referência de estar “em curso” uma “Parceria Pública para construção de Sede da Associação Sara Carreira”. Nada mais é adiantado que tipo de parceria e com que entidade e qual o custo e comparticipação estatal. Mais um dos muitos tabus.

    Outras duas rubricas relevantes dos pagamentos a fornecedores e serviços externos em 2021 e 2022 são os honorários (não identificados, mas que não são de pessoal) no valor de cerca de 23 mil euros e as deslocações e estadas no valor de mais de 31 mil euros. O “material de escritório”, que não inclui artigos para oferta nem livros e documentação técnica, foram de quase 6.500 euros, dos quais 5.452 euros apenas no ano passado.

    No relatório de actividades de 2022 constam diversas actividades pontuais da Associação Sara Carreira, como seja uma visita ao Zoo com alunos autistas de Lisboa, a ida de alguns bolseiros ao MEO SW, contributo (alimentação) a associações de apoio a animais, a oferta de roupa desportiva a crianças a Pampilhosa da Serra e o apoio a uma família ucraniana.

    Todas estas despesas, apesar de elevadas, não terão afectado demasiado o desempenho financeiro da Associação Sara Carreira, que, em menos de dois anos de existência, acumulou lucros de 1.228.765 euros, registando, no final de 2022. Esse valor até é ligeiramente superior em termos de saldo bancário (caixa e depósitos): 1.266.986 euros.

    Qual o destino a dar a estas verbas no futuro – reforçar as acções de beneficência ou constituir activos para rentabilizar, de modo a encontrar receitas para além dos donativos – é também outro dos tabus da Associação Sara Carreira.

    Se vai evoluir para uma fundação – que exige uma dotação dos fundadores de 200 mil euros, o que já se ultrapassou, o que traria ainda mais benefícios e garantias de controlo familiar –, com uma eventual transferência de património da família Carreira – ou mesmo integração das suas empresas – também é questão não respondida.

    Aliás, quando o PÁGINA UM insistiu em saber eventuais relações comerciais entre a Associação Sara Carreira e as empresas detidas pela família Carreira (Regibusiness e Regi-Concerto), a assessoria de imprensa respondeu que “se [o PÁGINA UM] entender por útil, deve contatar instituições ou pessoas coletivas que vem referindo para obter a informação que entender, atendendo que esta Associação não se pronuncia, muito menos daria qualquer informação sobre entidades à qual é completamente alheia.”

    Menu do Jantar de Amigos no Salão Preto e Prata em Setembro do ano passado, no Casinho de Estoril.

    Refira-se, porém, que a Regibusiness – que detém praticamente a totalidade (98%) da Regi-Concerto –  tem três administradores: Tony Carreira (António Manuel Mateus Antunes), que preside, a sua ex-mulher Fernanda Antunes (Maria Fernanda da Silva Araújo Antunes) e o filho Mickael Carreira (Mickael Araújo Antunes). Ora, a direcção da Associação Sara Carreira tem cinco dirigentes, os três que são administradores – sendo que Fernanda Antunes é presidente, Tony Carreira é tesoureiro e Mickael Carreira é vogal). O quarto membro da direcção da Associação Sara Carreira é o também do clã Carreira, David Carreira.

    O único dirigente “estranho” da Associação Sara Carreira à família de Tony Carreira é a vogal Odile Pereira, mulher de Armando Pereira, um dos co-fundadores da Altice, que aliás é um dos principais mecenas.

    Na verdade, nem sequer se sabe se Odile Pereira é sócia da Associação Sara Carreira, porque os estatutos, até para evitar entrada de sócios não controláveis – até pelos montantes já angariados –, estão completamente blindados. O artigo 4º dos Estatutos, sobre os quais não foi colocado nenhum entrave aquando do reconhecimento do estatuto de utilidade pública, diz apenas que “podem ser Associados todas as pessoas singulares e pessoas coletivas públicas ou privadas que, através de donativos, deem uma contribuição especialmente relevante para a realização dos fins da associação.” E prevê-se que os corpos sociais podem ser ocupados por “pessoas estranhas à associação” propostas por sócios.

    Tony Carreira é simultaneamente administrador da Regibusiness, a sociedade anónima familiar, e tesoureiro da Associação Sara Carreira. Tanto as empresas como a associação são controladas em exclusivo pela família Carreira. Porém, a assessoria de imprensa da associação tenta passar a ideia de não haver ligação entre uma e outra.

    O relatório de actividades de 2022 não refere o número de sócios – nem a Associação Sara Carreira quis esclarecer também esta questão –, mas o de 2021, aprovado quando já estava em curso a análise do estatuto de utilidade pública, lista os quatro então existentes: os elementos da família Carreira.

    Isso coloca também um problema legal: a lei-quadro do estatuto de utilidade pública exige, como requisito prévio, que as associações ou cooperativas “devem reunir, respectivamente, um número de associados ou de cooperantes que exceda o dobro do número de membros que exerçam cargos nos órgãos sociais, para que lhes possa ser atribuído o estatuto de utilidade pública.”

    Como além dos cinco membros da Direcção, a Associação Sara Carreira conta com três membros da Assembleia Geral (José Fortunato, presidente da Missão Continente; Miguel Osório, actual administrador da Media Capital e ex-quadro da Sonae; e o advogado André Matias de Almeida), significa que, para lhe ser atribuído o estatuto, teria de ter 16 ou mais sócios efectivos, todos com os mesmos direitos de voto e, potencialmente, de gestão dos donativos. Ora, o relatório de actividades de 2021, aprovado em 29 de Abril de 2022, não coloca dúvidas: só havia quatro sócios. E provavelmente será um número a manter-se, tendo em conta tamanha obstinação em recusar informações.

    Apoio institucional e político à Associação Sara Carreira tem sido ao mais alto nível, permitindo um meteórico mas muito duvidoso reconhecimento de utilidade pública.

    Saliente-se que com o estatuto de utilidade pública a Associação Sara Carreira passou a usufruir de um vasto conjunto de isenções, não pagando imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e até isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos. E também obter os proveitos da consignação de 0,5% do IRS.

    Além disso, com esse estatuto de utilidade pública os mecenas passam a usufruir de deduções significativas para efeitos de determinação do lucro tributável. Um mecenas, que pode mesmo ser uma das empresas de Tony Carreira, passa a poder considerar como custos em valor correspondente a 130% do respectivo total.

    Por exemplo, se considerarmos um lucro hipotético de 100 euros (por facilitismo), uma empresa pagaria 21 euros de IRC, mas se fizer um donativo desses 100 euros, deixa obviamente de pagar os 21 euros, e ainda fica com um “crédito” de 6,3 euros por conta dos 30 euros de despesas justificadas (em caso de ter mais lucros). Claro que um mecenas normal, que concede um donativo, vê sair dinheiro da sua esfera de controlo, contabilisticamente falando, dinheiro, porque mesmo sem impostos o saldo é negativo. Porém, se o donativo for destinado a uma associação de utilidade pública que seja controlado pelo doador, uma transferência de lucros (e até de património) pode ser um excelente negócio. Mesmo sabendo-se que uma associação não pode distribuir lucros, pode ter lucros (e bastantes), e haver dissipação de fundos através de despesas decididas e controladas pelos sócios.


    N.D. Fez-se uma correcção da notícias pelas 12:40 horas do dia 11 de Julho, por se constatar que o valor dos Recebimentos de clientes utentes se referia às vendas de merchandising. O lapso advém também de um lapso na apresentação do fluxo de caixa das actividades operacionais. Deste modo, o pagamento das bolsas estará na parte dos fornecedores, mais propriamente na rubrica dos trabalhos especializados.

  • ‘Sobrevivi a um bombardeamento e a um terramoto. Deve significar que tenho um futuro’

    ‘Sobrevivi a um bombardeamento e a um terramoto. Deve significar que tenho um futuro’

    No dia 6 de Fevereiro deste ano, a partir da madrugada, uma sucessão de sismos devastou a Turquia e a Síria, fazendo 60 mil vítimas mortais e centenas de milhares de pessoas ficaram desalojadas. Mais de quatro meses depois, o jornalista esloveno Boštjan Videmšek, várias vezes premiado por reportagens em ambiente de guerra e em contexto de migrações e refugiados, relata como agora ali se vive, se (sobre)vive após o colapso da Natureza ter transformado vidas e casas em destroços e pó. Esta reportagem foi também publicada no jornal esloveno DELO.


    “Foi o pior pesadelo. Um horror absoluto. Assim que o tremor começou, fugimos lá para fora, onde estava a chover fortemente. Estava frio e bastante escuro. As pessoas gritavam por toda parte. Foi hora após hora, como se fosse o apocalipse”, diz Maryem Kalkan, de 54 anos, num assentamento de tendas formado na esteira do terremoto, num pequeno parque nos arredores de Antioquia, numa província turca de Hatay.

    Com o amanhecer, Maryem pensou que o pior já tinha passado. Algumas horas depois, o chão tremeu de novo.

    Antioquia e toda a província de Hatay foram as regiões mais devastadas. O centro antigo da cidade ficou quase totalmente arrasado. Os blocos de apartamentos mais recentes desabaram como se feitos de papelão. Uma cidade maravilhosa de grande património cultural acabou dizimada. E com ela, milhares e milhares de vidas.

    Oficialmente, o terramoto de 6 de Fevereiro passado, que atingiu o sudoeste da Turquia e uma parte do noroeste da Síria, provocou mais de 55 mil mortes. Várias dezenas de milhares de pessoas ficaram feridas. Três milhões perderam as suas casas. De acordo com a Direcção-Geral das Operações Europeias de Protecção Civil e Ajuda Humanitária, o terramoto afectou diretamente mais de nove milhões de pessoas espalhadas por onze províncias.

    Quando a primeira ajuda humanitária chegou ao norte da Síria, com uma semana de atraso, as pessoas ainda tiveram de passar por pior. Muitas foram forçadas a tentar desenterrar os seus parentes com as próprias mãos. Mesmo agora, os sobreviventes dependem inteiramente da ajuda humanitária.

    ***

    Após o terramoto, nos primeiros dez dias, Maryem Kalkan e os seus familiares dormiram ao relento. Demorou algum tempo até ela perceber, em pleno, a extensão da catástrofe. Depois de uma semana, uma equipe de resgate desenterrou o cadáver de seu pai. Em seguida, o marido da sua filha grávida foi encontrado, também morto.

    Maryam tentou descrever suas perdas com o estoicismo de uma sobrevivente. Mas as lágrimas rapidamente a dominaram.

    A sua casa, no bairro de Defne, ficou muito danificada. “Está a desmoronar-se lentamente”, relatou. “Mais tarde ou mais cedo, as autoridades locais vão, por certo, derrubá-la; está perdida para sempre”.

    Só em Antioquia, cerca de 20 mil casas e edifícios foram arrasados ou se tornaram inabitáveis para sempre. Retroescavadoras ainda estão peneirando o que resta da cidade. Em frente às suas casas danificadas, os sobreviventes estão a retirar os escombros, como se se estivesse a concretizar o mito de Sísifo, sabendo muito bem que as autoridades destruirão um dia aquilo que resta. Crianças vasculham os destroços. Antigas carroças puxadas por mulas são agora carregadas com pertences que, pelo menos, possam parecer úteis.

    Como a paisagem, o ambiente urbano ficou completamente alterado.

    Agora, Antioquia está repleta de crateras, como se bombardeada até quase ao esquecimento. O centro da cidade lembra muito o oeste de Mossul, no Iraque, depois de o Estado Islâmico e as forças do Governo iraquiano se enredarem num turbilhão de destruição. Dezenas de automóveis, dobrados e retorcidos fora de forma, estão espalhados ao longo das bordas daquilo que eram estradas de asfalto.

    Em cada passo, arriscamo-nos a tropeçar noutra pilha de betão e ferragens, ou a sermos atropelados por um camião-cisterna que atravessa tudo, tentando desesperadamente fornecer água potável onde é mais necessária.

    Enormes cães famintos estão vagueando neste cenário pós-apocalíptico, em busca de comida. Mas a sua inteligência não está à altura dos gatos, que agora também têm a vantagem em número.

    Um profundo sentimento de trauma

    Na província de Hatay, cerca de 40 mil empresas encerraram temporária ou permanentemente por causa do terramoto. O desemprego colectivo está na ordem do dia. O famoso bazar de Antakya também ficou destruído, tendo sido transferido para os arredores da cidade. O antigo local está agora cheio de contentores azul-claro para alojamento.

    Tudo isto é como se o Ano Zero tivesse sido declarado em todas as regiões do sudoeste da Turquia. Grande parte da sua história física foi apagada, e um sentimento de temporariedade é agora evocado em cada passo.

    ***

    “Agora, já não nos sentimos mendigos quando recebemos ajuda. De alguma forma, resignámo-nos por termos perdido tudo”, lamenta Maryem Kalkan, em frente à sua barraca, no calor escaldante da tarde. Como a maioria, ela perdeu as suas perspectivas em redor da casa e do emprego, tornando-se integralmente dependente da ajuda humanitária.

    As equipas humanitárias locais e internacionais fornecem às vítimas, com regularidade, alimentos, água e medicamentos às vítimas. Infelizmente, o auxílio disponível não é suficiente para ajudar todos. A crise é demasiado vasta. “A necessidade de ajuda é estupenda e incontrolável«, afirma Ali Fuah Sütlü, diretor de programa da organização humanitária Concern.

    “Todos aqui compartilhamos a mesma experiência«, diz Maryem. “O terramoto não escolheu as suas vítimas, por isso partilhamos agora um forte sentido de solidariedade.”

    Antes do cataclismo, Maryam ganhava a vida como cozinheira, empregada de limpeza e colectora de nozes. Em frente à tenda, esteve acompanhada pelo irmão, que não largava um doberman que choramingava. Ambos pareciam inflexíveis e não tinham qualquer intenção de se mudarem para os colonatos de contentores.

    Despontadas em toda a zona sinistrada, estas colónias albergam agora cerca de 600 mil pessoas. O resto das vítimas – ou seja, mais de dois milhões de pessoas – vive em acampamentos. As razões desta opção vão desde o medo em habitar num espaço confinado até à esperança de poderem regressar às suas casas, se o processo de reconstrução for rápido. Tanto nos contentores como nas tendas reina um profundo sentimento de trauma. Há muita luta diária pelo espaço íntimo e os receios de violência e doença são elevados.

    ***

    “Já não me atrevo a entrar numa casa. Qualquer casa. Assim que tento, entro em pânico. Não consigo evitar. Começo a pensar que o chão pode tremer novamente. Acho que tem muito a ver com as constantes réplicas. Há também muitos saques e destruição em toda a cidade. Pelo menos aqui, nas tendas, estamos seguros. E o mais importante, estamos juntos«. Maryem Kalkan conclui assim a nossa conversa, enquanto o ar em frente à sua tenda se enchia com o cheiro de pão recém-cozido.

    Começar do zero

    Seren Reyhangoulari, de 23 anos, também garantiu que ela e a sua família alargada de 35 pessoas não tencionam mudar-se para os contentores, cujos habitantes parecem condenados a permanecer lá pelo menos durante os próximos anos.

    “Aqui, nas tendas, estamos juntos”, conta a mulher de cabelo negro. “E queremos mesmo ficar juntos; é a única coisa que nos resta – uns aos outros!”

    Antes da convulsão, Seren trabalhava como professora numa escola privada. Agora, nem um único dos seus familiares que se amontoam com ela nos arredores de Antioquia tem emprego. Sobrevivem à custa de ajuda social e humanitária e estão amontoados em seis tendas. Mas, comparadas com um mero lençol de plástico arrancado de uma casa de jardinagem local, as tendas quase parecem um luxo.

    “Tivemos de esperar muito tempo por estas tendas e pelos primeiros socorros”, recorda Seren. “Como não somos do centro da cidade, e como recusamos mudar para os contentores, parece que fomos esquecidos. A casa onde eu vivia está apenas moderadamente danificada e pode ser reparada. Mas onde é que vamos arranjar o dinheiro? Ser-nos-ia pedido que contribuíssemos com 40% dos custos, o que significa que todos nós teríamos de nos endividar durante várias gerações”, diz.

    As palavras saem em catadupa da boca de Seren, que apanhou o terramoto enquanto andava de autocarro. O acontecimento deixou-a profundamente traumatizada. A sobrinha teve as duas pernas amputadas. Todos perderam familiares, vizinhos e amigos. Seren também se juntou à longa lista de pessoas que já não se atrevem a entrar em qualquer tipo de edifício.

    Mas mesmo que Seren fosse psicologicamente capaz de encontrar uma nova casa, não tinha dinheiro para a comprar. Após o terramoto, as rendas locais aumentaram até quatro vezes. Aquilo que se pode chamar de “Economia de Guerra” está em pleno andamento.

    Há também que ter em conta a crise económica geral com que a Turquia se estava a debater nos últimos anos. Depois de espantosos aumentos de 88% nos preços em 2022, a inflação deste ano está, por agora, estimada em 44%. A maior parte das poupanças já foi varrida, enquanto os preços dos alimentos continuam a disparar.

    Como sempre, o peso do colapso económico é suportado pelas componentes mais vulneráveis da sociedade. Nas zonas afectadas pelo cataclismo, o trabalho clandestino é agora muito escasso, apesar de constituir normalmente uma parte muito importante da Economia turca. Não há trabalho, a não ser em projectos de demolição e de limpeza. Mas estes pertencem a empresas privadas experientes, com fortes ligações às autoridades locais e centrais.

    Para piorar, nos meses que se seguiram à convulsão, várias centenas de habitantes da província de Hatay receberam uma mensagem de texto das autoridades, informando-os de que um decreto presidencial lhes tinha confiscado os terrenos, pelo que deviam sair imediatamente. Tudo em nome da renovação.

    ***

    “As nossas vidas desapareceram. Tudo mudou. Todos nós, aqui, estamos a começar do zero. As nossas personalidades também mudaram. Agora, sou muito mais temperamental, irrequieta e agitada”, continuou Seren Reyhangoulari.

    Ao seu lado, estava sentada a sua parente Feride, que se encontrava na fase final da gravidez. Faltando apenas sete dias para a data do parto, afogava-se lentamente em ansiedade.

    Feride sabia que a sua vida iria, por certo, tornar-se ainda mais difícil. Mas mesmo depois do parto, não tinha qualquer intenção de se mudar para os contentores.

    “Vamos ficar juntos”, insistiu ela, enquanto gatos e galinhas continuavam a passear à volta das tendas doadas pela China e pelo Paquistão. “Só posso esperar que as autoridades ajudem a melhorar as nossas condições de vida. Aqui, vemos cobras a toda a hora! As crianças estão aterrorizadas. Gritam e choram. Estamos todos cobertos de picadas de insectos. Só há pouco tempo é que temos uma casa de banho portátil, mas ainda não está ligada aos esgotos. Mas há muitos que estão ainda pior do que nós”.

    Duplamente vitimados

    Infelizmente, Feride tem razão. O terramoto de Fevereiro também afectou brutalmente quase dois milhões de refugiados sírios. Quando estavam finalmente a recompor-se, depois de fugirem de uma guerra particularmente selvagem, as ondas de choque fizeram-nos cambalear. E, sem mais nem menos, voltaram a agarrar-se à vida.

    “Para mim, o terramoto foi um momento de medo e de morte. No meu bairro, várias casas foram destruídas. Felizmente, a nossa só ficou danificada. Agora, sobrevivi a um bombardeamento e a um terramoto. Deve significar que tenho de ter um futuro”, explicou calmamente Abdul Hakin, um rapaz de quinze anos.

    Conheci Abdul no centro do Projeto Nacional Sírio de Próteses de Membros em Reyhanli, mesmo ao lado da fronteira com a Síria. Em 2013, o bonito e desgrenhado adolescente perdeu as duas pernas num ataque aéreo das forças governamentais sírias nos arredores de Hama. Uma das suas pernas teve de ser amputada abaixo da cintura e a outra abaixo do joelho.

    Após o ataque, que custou a vida a seu pai, Abdul e a mãe, gravemente ferida, foram levados para a Turquia. Foram necesários dois anos para lhe ser entregue um par de próteses. No centro, gerido pela organização Relief International, Abdul reaprendeu a andar e terminou a escola primária.

    Foi então que surgiu o choque da pandemia da covid-19.

    De acordo com o seu psicoterapeuta, a falta de contacto social mergulhou o rapaz numa grave depressão. Esmagado pelos seus traumas, Abdul começou a ter ataques de pânico. Pôs a um canto as duas próteses que lhe permitiam viver uma espécie de normalidade. A mãe, que também tinha recuperado na Turquia, já não o conseguia fazer sair do apartamento alugado. O rapaz deixou de estudar e de ir à fisioterapia.

    Depois, o chão começou a tremer. A mãe, os irmãos e as irmãs de Abdul conseguiram, de alguma forma, tirá-lo do apartamento. Passaram os dias seguintes à espera de ajuda, nas ruas frias e húmidas. Um tio, que vinha de carro da devastada Antioquia, acorreu em seu socorro. Trouxe ajuda e mudou-se com a família para o seu apartamento, que ficou apenas um pouco danificado.

    Nas palavras do próprio Abdul, o terramoto acordou-o, tirou-o da sua espiral descendente. Apercebeu-se de que as suas decisões imprudentes, no rescaldo da pandemia, poderiam ter-lhe custado a vida. Por isso, retomou o uso das suas pernas protéticas e voltou a frequentar a fisioterapia.

    “Também quero muito retomar os meus estudos. Um dia, gostaria de ser arquiteto, como o meu tio. O meu desejo é construir casas para as pessoas. E também hospitais e escolas!” Abdul sorriu, pouco antes de nos despedirmos.

    Um enorme fracasso de solidariedade

    Após o terramoto, a grande maioria dos refugiados sírios teve de se deslocar para as cidades de tendas informais que surgiram nas cidades e aldeias, sobretudo como resultado da improvisação e da pura vontade de sobreviver. No entanto, quatro meses e meio depois, nada indicava que a situação dos refugiados estivesse a melhorar.

    De facto, é precisamente o contrário. Cerca de 99% das pessoas colocadas em contentores pelas autoridades eram de origem turca. Os refugiados sírios podem, de facto, candidatar-se à interminável fila de espera. Mas as nossas fontes nas fileiras humanitárias disseram-nos que os sírios não tinham praticamente nenhuma hipótese de entrar num dos contentores.

    A escassez de contentores marca um enorme fracasso na solidariedade do Governo turco para com os refugiados. Assim, os pobres sírios foram obrigados a aguentar ao ar livre, enfrentando todo o tipo de condições climatéricas e sendo ameaçados de expulsão pelo candidato presidencial da oposição, Kemal Kılıçdaroğlu, durante a sua campanha infamemente racista.

    ***

    Uma das cidades mais duramente afectadas pelo terramoto foi Nurdağı, na província de Gaziantep.

    Uma grande parte da cidade foi destruída, e é certo que permanecerá inabitável nos próximos anos. Mas na altura da nossa visita – ainda com ferro, betão e pertences das vítimas espalhados por todo o lado –, o mais devastado dos bairros de Nurdağı já ostentava um par de negócios grotescamente iluminados. Um era um salão de beleza; o outro uma concessionária de ouro.

    Um grande número de residentes foi deslocado para a enorme cidade de contentores situada no topo de um planalto próximo. Chegámos à povoação quando o ano lectivo estava a entrar na sua última semana. Com uma série de workshops psicossociais para crianças em idade escolar a decorrer, o planalto fervilhava de risos.

    O primeiro grupo de crianças tinha acabado de enviar para o céu alguns aviões de papel, depois de ter escrito os seus maiores medos na parte que formava as asas laterais dos aviões.

    “Queremos que elas saibam que o medo não é para sempre”, explicou Gizem Özgün, oficial protector das crianças da UNICEF. “E também que a sua dor não é para sempre. A maioria destas crianças está profundamente traumatizada. Recusam-se a entrar em edifícios. Na verdade, é muito difícil fazê-las ir a qualquer lado! Temos visto muitos casos de depressão, ansiedade, xixi na cama, insónias, distúrbios alimentares e agressividade. É ainda pior com os adolescentes, que não puderam voltar à escola, uma vez que todas as escolas secundárias foram destruídas.”

    ***

    “Qual é o teu maior medo?” perguntei a um rapazinho com uma camisola de futebol do Karim Benzema.

    “Terramoto!”, sorriu o rapaz. “Mas os professores disseram-me que hoje todos os meus medos voaram para cima e para longe!”

    Enquanto me contava isto, conseguiu finalmente o que andava a tentar fazer há muito tempo: lançar um papagaio de plástico para o céu. Nele, tinha recebido instruções para escrever todos os seus desejos mais queridos.

    Disse-me que só tinha escrito um: “Acabaram-se os terramotos!”

    Fotografias: Diego Cupolo/EU Humanitarian Aid

  • Governo ameaça retirar utilidade pública à Associação Sara Carreira

    Governo ameaça retirar utilidade pública à Associação Sara Carreira

    A Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros confirma que a Associação Sara Carreira não tem as contas e relatórios de actividades no seu site, mas garante que analisou os documentos de 2021 (que, a ser verdade, terão então entretanto desaparecido) e coloca agora como hipótese a revogação do estatuto de utilidade pública, que lhe foi atribuído, em tempo recorde, em Dezembro do ano passado. Benefícios fiscais obtidos podem ser avultados e abrem portas a transferências de património e activos da esfera da família de Tony Carreira, uma vez que a associação tem estatutos blindados e a manutenção do secretismo nas contas eliminará questões éticas publicamente delicadas.


    A Presidência do Conselho de Ministros ameaça retirar o estatuto de utilidade pública à Associação Sara Carreira, criada em Março de 2021 pela família do cantor Tony Carreira, por esta não revelar publicamente as contas e os relatórios de actividades no seu site.

    A hipótese foi esta tarde confirmada ao PÁGINA UM pelo gabinete do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, que em Dezembro do ano passado concedeu o estatuto de utilidade pública, em tempo recorde, à associação fundada em memória da malograda filha de um dos mais populares cantores portugueses. Apesar da lei-quadro determinar ser necessário uma actividade efectiva de três anos para requerer aquele estatuto, Moz Caldas aceitou dispensar esse prazo mínimo por a Associação Sara Carreira “desenvolver actividades de âmbito nacional, e evidenciar, face às razões da sua existência e aos fins que visa prosseguir, manifesta relevância social”.

    Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, coloca hipótese de revogar estatuto de utilidade pública à Associação Sara Carreira.

    Mas, além desse requisito, havia outros – e ainda mais relevantes, até para evitar aproveitamentos ilegítimos face às enormes vantagens fiscais de que beneficiam as associações de utilidade, nomeadamente isenções de IRC, IMI e IMT, de pagamento de taxas para espectáculos e possibilidade de receberem donativos através da consignação de 0,5% do IRS.

    Com efeito, a lei é bastante clara sobre a exigência de transparência, salientando que as associações que solicitem o estatuto devem ter “uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

    Na verdade, quando foi analisado o processo da Associação Sara Carreira, ao longo de 2022, visto que obteve o estatuto em Dezembro passado, apenas existiria um ano de exercício (2021), e mesmo assim incompleto (10 meses) – e não os cinco anos explicitados pela lei-quadro.

    Tony Carreira fundou com a família a associação para homenagear a memória da sua malograda filha. Conseguiu estatuto de utilidade pública que exige transparência, que não existe.

    O gabinete de Moz Caldas garante, sem divulgar ao PÁGINA UM os documentos do processo que o atestam, que a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM) “analisou as contas da Associação e concluiu que a mesma tinha contabilidade organizada e parecia ‘dispor de pessoal, infraestruturas, instalações e equipamentos, necessários para assegurar a prossecução dos seus fins e para as atividades que se propõe realizar, como revela a análise dos elementos instrutórios’.”

    Certo é que o gabinete de Moz Caldas acaba por admitir aquilo que o PÁGINA UM revelou na passada semana: as contas de 2021 (e agora também de 2022) e os respectivos relatórios de actividades não estão no site da Associação Sara Carreira. E nem foram enviados ao PÁGINA UM, conforme pedido por duas vezes à direcção da Associação Sara Carreira – que integra, além da mãe da malograda cantora, o próprio Tony Carreira e os filhos Mickael e David Carreira.

    Aliás, a ser verdade aquilo que garante agora o Governo – em tempos, o relatório de contas e de actividades do ano de 2021 esteve no site –, mais se adensa a falta de transparência de uma associação com estatuto de utilidade pública, pois assim significa que esses documentos teriam sido retirados.

    Associação Sara Carreira já começou, este ano, a capitalizar o estatuto de utilidade pública, através da possibilidade de se consignar 0,5% do IRS como donativo. Ignora-se outros benefícios já obtidos por as contas serem escondidas.

    O gabinete do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros diz, sobre esta matéria, que, “atenta a situação reportada, de falta de publicitação, atualmente, dos elementos de atividades e contas no sítio na Internet da Associação, bem como as dúvidas relativas à autonomia financeira da Associação”, a SGPCM está a analisar a situação “para aferir se são necessárias diligências adicionais”.

    E colocam-se duas hipóteses: “em última instância, o incumprimento de deveres legais pode fundamentar a revogação do estatuto de utilidade pública (…) ou a sua não renovação”, salienta o gabinete de Moz Caldas.

    Saliente-se que, conforme o PÁGINA UM já revelou, existem ligações demasiado íntimas entre a Associação Sara Carreira e a empresa Regibusiness, a sociedade anónima da família de Tony Carreira, e que, perante as benesses de um estatuto de utilidade pública para a associação, abrem a hipótese a esquemas fiscais menos ortodoxos.

    Tony Carreira e os seus filhos David e Mickael durante um concerto de homenagem a Sara Carreira.

    Apesar da Associação Sara Carreira ter mantido silêncio às perguntas do PÁGINA UM sobre eventuais transferências de verbas ou património da Regibusiness para a Associação Sara Carreira, mostra-se evidente que os benefícios fiscais são tentadores.

    A Regibusiness – que tem uma saúde financeira robusta (com mais de 9 milhões de lucros acumulados) e opta por fazer empréstimos aos seus associados (família de Tony Carreira), em vez de fazer distribuição de dividendos (que pagaria taxa liberatória de 28%) – poderá sempre fazer doações ou donativos milionários para a associação de utilidade pública, obtendo até majorações em despesas, diminuindo assim a tributação de lucros.

    Como a família de Tony Carreira controla de forma absoluta a associação, por causa de estatutos blindados, poderia assim despender livremente desses donativos e doações, sobretudo se conseguir manter as contas e relatórios de actividades afastados de olhares indiscretos.

    right human hand

    No limite, a Associação Sara Carreira que pode evoluir facilmente para fundação, sobretudo se passar a deter património relevante, através de passagem de activos da Regibusiness, o que tornaria tudo ainda mais apetecível fiscalmente. Aquisições ou vendas de património beneficiariam de isenções, e os lucros não seriam taxados. O único óbice seria a impossibilidade de distribuir os lucros pelos sócios, mas nada impede que a associação suporte despesas dos seus dirigentes e/ ou lhe pague salários e outros benefícios.

    Obviamente, se as contas forem públicas – como exige a lei-quadro do estatuto de utilidade pública –, uma parte considerável desses expedientes (legais, mas eticamente questionáveis) seriam facilmente detectados. Esse, aliás, é o motivo principal por a legislação determinar a máxima transparência nas associações de utilidade pública. Algo que, por agora, a Associação Sara Carreira não cultiva, uma vez que nem sequer se aprestou a responder às questões e pedidos do PÁGINA UM, a que acresce a falta quase generalizada de informação financeira sobre as suas actividades. Por exemplo, ignora-se até quais os montantes das bolsas que a associações tem estado a atribuir a jovens carenciados.

  • Associação Sara Carreira não diz se empresa (bem) lucrativa de Tony Carreira é mecenas e se transferiu património para benefícios fiscais

    Associação Sara Carreira não diz se empresa (bem) lucrativa de Tony Carreira é mecenas e se transferiu património para benefícios fiscais

    Para evitar promiscuidades e uso indevido de associações para fuga a impostos, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública exige que haja a máxima transparência, independentemente das causas nobres que defendam. Mas para a Associação Sara Carreira, criada em memória da malograda filha de Tony Carreira, o Governo não exigiu sequer o tempo mínimo de actividade previsto na lei (três anos) nem a divulgação de contas. Assim, fica-se sem saber se a empresa familiar Regibusiness, presidida pelo próprio Tony Carreira, e que registava em finais de 2021 lucros acumulados em capital próprio de mais de 9 milhões de euros, fez alguma transferência patrimonial para a Associação Sara Carreira, de modo a beneficiar de isenções fiscais por via do estatuto de utilidade pública. Até porque, na verdade, está tudo em família: os três administradores da Regibusiness (Tony Carreira, a sua ex-mulher Fernanda Antunes, e o filho Mickael Carreira) controlam também a Associação Sara Carreira.


    A sociedade anónima controlada e presidida por Tony Carreira, a Regibusiness – Investimentos Imobiliários, obteve um lucro líquido superior a 2,2 milhões de euros entre 2019 e 2021, mas a Associação Sara Carreira recusa-se divulgar se já alguma vez recebeu qualquer donativo ou procedeu a qualquer transferência patrimonial proveniente dessa empresa.

    A Regibusiness foi criada em 2006 por Tony Carreira e a então sua mulher, Fernanda Antunes, e é formalmente uma sociedade anónima, embora detida pela família deste popular cantor. E embora tenha como objecto a gestão imobiliária, controla também a empresa de espectáculos de Tony Carreira, a Regi-Concerto, detendo 98% do capital social. A posse dos restantes 2% é de Fernanda Antunes.

    A gestão da Regibusiness e a Associação Sara Carreira é comum. Os administradores da Regibusiness são, actualmente, Tony Carreira, que preside, a sua ex-mulher, Fernanda Antunes, como administradora-delegada, e o seu filho e também cantor Mickael Carreira. Todos os três são fundadores e dirigentes da Associação Sara Carreira, integrando a sua direcção. O também cantor David Carreira é um outro dos dirigentes da Associação Sara Carreira, embora não participe na gestão da Regibusiness.

    Por via da obtenção do estatuto de utilidade pública em Dezembro do ano passado, em tempo recorde, e sem sequer necessitar de divulgar contas e relatório de actividades – algo que impediria, só por si, a possibilidade de requerer aquele estatuto –, a Associação Sara Carreira passou a usufruir de um vasto conjunto de isenções, não pagando imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e até isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos. E também obter os proveitos da consignação de 0,5% do IRS.

    A recusa da Associação Sara Carreira em esclarecer se existem relações patrimoniais entre si e a empresa Regibusiness (ou a Regi-Concerto) não é legalmente aceitável, nem pugna pela transparência exigível para uma entidade que desenvolve causas nobres, e ademais sabendo-se estar intimamente ligada a um evento trágico.

    Tony Carreira e os dois filhos, David e Mickael Carreira. Os três são, com Fernanda Antunes, dirigentes da Associação Sara Carreira. E, com excepção de David são também administradores da lucrativa empresa familiar Regibusiness.

    Com efeito, sendo agora uma associação com o estatuto de utilidade pública, tal implicaria obrigações de transparência, nomeadamente a divulgação de contas, algo que nunca sucedeu – e tendo em consideração as vantagens que a Associação Sara Carreira detém neste momento, eventuais transferências patrimoniais a partir da Regibusiness ou da Regi-Concerto podem ser extremamente apetecíveis para obtenção de benefícios fiscais.  

    Certo é que, pela consulta dos registos oficiais, a sede da Associação Sara Carreira coincide com a da Regi-Concerto, o número 5-A da Rua Hernâni Cidade, na Charneca da Caparica. Saber se se trata de mera cedência da Regi-Concerto à associação, ou se houve transferência de propriedade não é apenas uma curiosidade jornalística.

    Se houve ou houver transferência patrimonial da esfera da Regibusiness para a da Associação Sara Carreira agora com um estatuto de utilidade pública mas estatutos blindados – um acto pacífico por ambas serem completamente controladas pela família de Tony Carreira –, as vantagens fiscais seriam avultadas. Em hipótese, passando activos da empresa para uma associação de utilidade pública, os rendimentos decorrentes desses activos passariam a estar isentos de impostos e taxas. Por exemplo, os edifícios detidos ou comprados deixavam de pagar IMI e IMT, e não haveria lugar a pagamento de IRC. Aumentando o património, o passo seguinte seria a criação de uma fundação, com ainda maiores vantagens fiscais.

    stage light front of audience

    Saliente-se que, mesmo tendo a pandemia afectado a actividade de Tony Carreira, a sua empresa familiar regista uma excelente saúde financeira, com lucros de quase 1,3 milhões de euros em 2019, de 383 mil euros em 2020 e de 600 mil euros em 2021. Ainda não estão disponíveis as contas de 2022, mas será expectável que se aproximem dos valores pré-pandemia.

    Consultando as demonstrações financeiras de 2021, a Regibusiness detinha então um capital próprio de 9,64 milhões de euros, dos quais 1,6 milhões de reservas e 5,8 milhões de resultados transitados. Ou seja, lucros acumulados que os sócios – Tony Carreira e sua família – decidiram não distribuir.

    Isto não significa que os sócios tenham prescindido de obter outro tipo de dividendos perante os bons ventos financeiros da Regibusiness. Segundo se observa pelo balanço e demonstração de resultados, usaram um esquema que, sendo legal, só se mostra exequível em sociedades onde existe confiança absoluta entre os sócios ou accionistas.

    Com efeito, estão contabilizados 1,12 milhões de euros que a Regibusiness emprestou aos seus associados, ou seja, aos membros da família de Tony Carreira. em condições e prazos que apenas dizem respeito à gestão da empresa. Em todo o caso, verifica-se que os empréstimos foram realizados sem aplicação de juros. Este expediente evita, de imediato, qualquer tipo de tributação em sede de IRS, o que sucederia se Tony Carreira e seus familiares optassem pela distribuição de dividendos.

    Além disto, a Regibusiness terminou o ano de 2021 com depósitos bancários de quase 760 mil euros, não havendo também indicação de que tenha havido qualquer transferência em dinheiro para a Associação Sara Carreira.

    Aliás, como ontem o PÁGINA UM divulgou, as contas da Associação Sara Carreira são desconhecidas, e há uma quase completa ausência de referências sobre os montantes das suas campanhas de beneficência assim como dos recebimentos dos mecenas e apoiantes. No caso das bolsas atribuídas pela associação a jovens carenciados – numa parceria com a SIC –, ignora-se qual o montante de apoio efectivo. Quanto aos mecenas, apenas se conhece o valor do donativo (100 mil euros) concedido em Fevereiro deste ano pelo Grupo DS.

    Além desta empresa, mas com montantes desconhecidos, são considerados mecenas a Missão Continente, a Altice, a Fundação Santander e a SIC, sendo também elencadas outras 12 empresas como apoiantes e seis como parceiras. A Associação Sara Carreira tem também, na realização de uma gala anual transmitida pela SIC, e num tour solidário do próprio Tony Carreira, em parceria com a Missão Continente, outras fontes relevantes de receitas.

    Quanto tudo isto envolve? Não se sabe, mesmo se a lei diz que teria de se saber, uma vez que a Associação Sara Carreira quis ter o estatuto de utilidade pública, para benefício próprio.

  • Associação Sara Carreira: sem sequer mostrar contas, Tony Carreira saca estatuto de utilidade pública em três tempos

    Associação Sara Carreira: sem sequer mostrar contas, Tony Carreira saca estatuto de utilidade pública em três tempos

    Por regra, exige-se, no mínimo, três anos de actividade efectiva e a máxima transparência financeira para uma associação obter estatuto de utilidade pública. Não é apenas por reconhecimento que todos o almejam. Na verdade, por detrás, há um vasto leque de isenções fiscais, desde IMT e IMI até IRC, passando pelo não pagamento de diversas taxas. Por isso, a lei exige, entre outros requisitos prévios, que sejam públicas as contas e os relatórios de actividade. Mas com estatutos blindados, a Associação Sara Carreira não precisou disso: conseguiu o ambicionado estatuto em menos de dois anos e sem mostrar contas, contrariando a Lei-Quadro. Assim, no meio de cantorias em prol de uma causa nobre, não se conhece o seu património (e eventuais transferências para benefícios fiscais), nem sequer as receitas nem os gastos nas acções de beneficência. Tudo é feito na base da confiança. E quando o PÁGINA UM pediu contas e esclarecimentos, não houve sequer um acorde.


    A Associação Sara Carreira – criada em Março de 2021, em memória da filha do cantor Tony Carreira, três meses após o seu trágico acidente mortal – viu o Governo conceder-lhe o estatuto de utilidade pública em tempo recorde, mesmo mantendo as suas contas secretas, o que contraria a lei. Além disso, os estatutos, entretanto alterados em Maio do ano passado, estão blindados, condicionando, de forma discricionária, a admissão de associados em função de donativos relevantes que nem sequer são definidos.

    Além do reconhecimento, a obtenção de estatuto de utilidade pública – uma meta que qualquer associação almeja – concede um vasto conjunto de isenções fiscais, designadamente do pagamento de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e, no caso concreto da Associação Sara Carreira – que desenvolve a sua actividade de angariação de fundos da realização de espectáculos –, isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos.

    Tony Carreira

    Embora a lei determine que, regra geral, como requisitos para a atribuição daquele estatuto, seja necessário um período mínimo de três anos de actividade efectiva, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, achou que se poderia dispensar esse prazo por a Associação Sara Carreira “desenvolver actividades de âmbito nacional, e evidenciar, face às razões da sua existência e aos fins que visa prosseguir, manifesta relevância social”. E, assim sendo, fez um despacho em 21 de Dezembro do ano passado concedendo o estatuto – ou seja, quando faltava ainda um ano e três meses para perfazer o período normal.

    A favor desta aceleração do processo estiveram também os pareceres das autarquias de Almada, onde se localiza a sede da associação, e de Pampilhosa da Serra, concelho de onde é natural Tony Carreira, de seu nome verdadeiro António Manuel Mateus Antunes.

    Porém, todos fecharam os olhos a aspectos relevantes que, mais do que constituírem requisitos legais, consubstanciam uma postura de transparência perante a sociedade que concede benefícios fiscais que podem assumir valores consideráveis.

    Tony Carreira, com os seus filhos David e Mickael. Juntamente com a ex-mulher Fernanda Antunes, criaram a Associação Sara Carreira em Março de 2021, com estatutos blindados.

    Com efeito, entre os requisitos prévios, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública obriga que as associações que o solicitem “tenham uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

    Ora, mas além do facto de a Associação Sara Carreira não ter ainda cinco anos de existência, nunca foi publicado relatório de actividade e de contas, com as demonstrações financeiras, incluindo o balanço e as demonstrações de resultados, mesmo se os estatutos até já determinam expressamente essa tarefa. Nunca houve assim qualquer sinal dos rendimentos nem das despesas, nem se conhece se algumas das actividades empresariais dos sócios fundadores (Tony Carreira e sua ex-mulher, Fernanda Antunes, que preside, e os seus filhos David Carreira e Mickael Carreira) foram ali integradas para beneficiar de isenções fiscais.

    Certo é que, consultando o site da Associação Sara Carreira, observa-se uma forte componente comercial, com uma ligação directa para uma loja de merchandising e para o catálogo de roupa Éssê by Sara Carreira, que a malograda artista lançara em Outubro de 2021.

    No site da Associação Sara Carreira sabe-se quanto custa umas cozy white sweatpants, mas nada se sabe sobre as contas como exige a lei para a atribuição do estatuto de utilidade pública.

    Até as actividades de carácter mais benemérito estão envoltas em grande secretismo quanto à parte económica e financeira, mesmo contando com a Missão Continente, a Altice, a Fundação Santander, a SIC e o Grupo DS, além de apoios de 12 empresas e parcerias com outras seis, entre as quais, ironicamente, a PWC, que presta serviços profissionais de auditoria, fiscalidade e assessoria de gestão. Com efeito, mesmo no projecto mais conhecido publicamente desta associação – as Bolsas de Estudo Sara Carreira – ignora-se os montantes efectivamente distribuídos.

    Embora a associação, no seu site, refira que nas duas primeiras edições houve 35 jovens beneficiados, estando a decorrer a análise das candidaturas à terceira edição, nunca houve a mínima referência sobre os montantes atribuídos. No regulamento apenas se refere que “o valor atribuído a cada jovem bolseiro(a) será definido pela Direção da Associação [Sara Carreira], em função das necessidades do(a) mesmo(a)”, adiantando ainda que “os critérios e entrega dos valores, variam em função das especificidades e necessidades de cada candidato(a)”.

    Por fim, acrescenta-se que “os valores atribuídos serão entregues diretamente às instituições de ensino ou a outras entidades a definir pela Direção, atendendo à especificidade da formação e necessidades.” Em suma, nenhuma menção a valores concretos.

    André Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, concedeu despacho de atribuição de estatuto de utilidade pública sem exigir transparência à Associação Sara Carreira.

    Além de tudo isto, e atendendo aos benefícios do estatuto de utilidade pública, mas perante o secretismo (ilegal) das contas da Associação, também se desconhece quais são actualmente os activos da associação, incluindo património financeiro e imobiliário eventualmente transferido da família de Tony Carreira. Como existe um controlo absoluto na entrada de associados por parte da família Antunes (que tem esmagadora maioria na direcção), a Associação – que pode vir a evoluir para fundação – pode estar a ser um veículo para benefício de isenções fiscais relevantes, sobretudo se se mantiver o seu estatuto de utilidade pública sem exigência de apresentação pública de relatórios de contas.

    O PÁGINA UM contactou por duas vezes a Associação Sara Carreira, colocando um conjunto de questões relacionadas com estes assuntos, mas não obteve qualquer reacção. O mesmo sucedeu com um pedido de esclarecimento endereçado ao secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas. Foi, aliás, pedido ao governante que indicasse outras associações que tivessem conseguido obter o estatuto de utilidade pública em menos de três anos, um feito que Tony Carreira conseguiu para a associação em memória da filha, sacando assim apetecíveis benefícios fiscais.

  • Quem dá a cara pelo Reignite Freedom, o movimento contra o Clube de Bilderberg?

    Quem dá a cara pelo Reignite Freedom, o movimento contra o Clube de Bilderberg?

    As manifestações globais começam a viralizar, mas também são alvo de ataques na imprensa mainstream, que acusa os seus promotores de serem o “braço” popular de grupos de direita conservadora e mesmo de extrema-direita, congregando também anti-vacinas e teóricos da conspiração. Será assim? O PÁGINA UM apresenta os perfis dos 11 principais promotores do Reignite Freedom, um dos movimentos mais dinâmicos, e que organizou este sábado uma manifestação em Lisboa por causa da reunião do Clube de Bilderberg.


    “We are many, we are united, we are ready” [nós somos muitos, nós estamos unidos; nós estamos prontos] – este é o lema da manifestação de protesto do movimento Reignite Freedom que hoje se realiza em Lisboa, integrado num movimento mais alargado, o Global Walkout, nascido no ano passado protagonizado pela activista australiana Monica Smit.

    Não é um acaso o momento e local desta manifestação na capital portuguesa por parte daqueles que alertam para os perigos da globalização e da concentração de poder em elites políticas e financeiras, e que considerando mesmo que o The Great Reset, defendido em 2020 pelo World Economic Forum, tem propósitos malévolos.

    Hotel Pestana, em Lisboa, onde se reúne este fim-de-semana o Clube de Bildeberg.

    Nos próximos três dias, o Hotel Pestana Palace, em Lisboa, será o palco da reunião anual do Clube de Bilderberg, uma espécie de fórum (mais ou menos) secreto e agendas de similar calibre, e que constitui um alvo sempre apetecível dos movimentos anti-globalização.  

    Embora os objectivos formais do Reignite Freedom sejam apenas ideologicamente anti-globalização – no sentido de considerarem a sua missão como de “reacção global unificada e estratégica contra a agenda globalista, garantindo que mantém a liberdade individual e colectiva”, conforme consta no seu site –, a imprensa mainstream não tem sido favorável às manifestações antiglobalização.

    Na generalidade, surgem coladas às ideologias de extrema-direita, de negacionistas da pandemia e mesmo a teóricos da conspiração. E isto quando não simplesmente ignoradas, com a completa ausência de cobertura.

    Por isso, sobre o movimento Reignite Freedom, o PÁGINA UM decidiu traçar o perfil das 11 personalidades que constituem a sua “equipa de lançamento”, onde desponta como figura maior o advogado John F. Kennedy, durante anos um destacado e reconhecido activista ambiental, e agora candidato nas primárias do Partido Democrata às eleições norte-americanas, mas que caiu em desgraça na imprensa mainstream durante a pandemia.


    ROBERT F. KENNEDY JR

    Sobrinho do antigo presidente norte-americano John F. Kennedy, o agora candidato pelo Partido Democrata às presidenciais norte-americanas de 2024 tem um longo historial como activista ambiental, destacando-se como advogado do poderoso National Resources Defense Council, uma organização não-governamenal ecologista com cerca de 2,5 milhões de membros.

    Defensor da “liberdade de escolha médica”, Robert F. Kennedy fundou a Children’s Health Defense (CHD), uma organização sem fins-lucrativos que se destacou pela contestação ao uso de timesoral (contendo mercúrio) em vacinas por alegadamente estar associado a autismo, doença de Alzheimer e esclerose múltipla, entre outras doenças. Apesar de garantir a segurança dessa substância, as autoridades norte-americanas retiraram o seu uso na generalidade das vacinas. No entanto, estas posições justificaram-lhe o rótulo de anti-vacinas, sobretudo quando colocou questões sobre a segurança das vacinas contra a covid-19.

    Aliás, no passado dia 24 de Março, Kennedy, juntamente com a Children’s Health Defense, avançou com uma “acção legal colectiva” contra o presidente norte-americano Joe Biden, o virologista Anthony Fauci e outros responsáveis de topo da actual Administração, acusando-os de encetar uma “campanha concertada para que as três principais redes sociais nacionais censurassem discurso protegido constitucionalmente”.

    Candidato às primárias do Partido Democrata para as eleições para a Presidência dos Estados Unidos em 2024, Robert Kennedy Jr não tem tido a vida facilitada nas redes sociais: em Agosto do ano passado as suas contas de Instagram e de Facebook foram eliminadas por ter alegadas violações às regras “da política de desinformação” sobre a covid-19.

    Porém, mantém-se bastante activo no Twitter, rede onde conta mais de 1,3 milhões de seguidores.

    Quando o movimento organizador do protesto de sábado foi lançado, o sobrinho do antigo presidente norte-americano John F. Kennedy foi, desde logo, uma das principais figuras a dar a cara pelo projecto, e está prevista a leitura de uma sua mensagem.


    MONICA SMIT

    Líder do movimento “Reignite Freedom”, a activista australiana de 34 anos surge como o rosto mais activo e está presente na manifestação em Lisboa.

    Durante a pandemia de covid-19, perante as duras restrições impostas pelo Governo australiano, Smit fundou a Reignite Democracy Australia (RDA), uma organização que, segundo consta na página oficial, “visa a manutenção da liberdade individual e colectiva”. Entre as suas reivindicações, está a “abolição da censura” e da “tirania médica”.

    A cobertura mediática de Smit não lhe tem sido nada favorável: a propósito de um vídeo que a activista publicou esta semana nas redes sociais, no qual pedia donativos financeiros para a sua associação por estar alegadamente à beira da falência, foi ridicularizada por vários jornais, incluindo o britânico Daily Mail.

    Apelidada habitual e insistentemente como “anti-vacinas”, Monica Smit está já habituada a um tratamento hostil. No Verão de 2021 foi alvo de acusações criminais – que lhe seriam retiradas em Julho do ano passado – por ter promovido manifestações contra o confinamento, e chegou mesmo a ser detida durante 22 dias.

    A activista foi novamente acusada por incumprimento das ordens da autoridade de saúde de Melbourne em 2021, motivo que a levou novamente ao tribunal em Dezembro do ano passado. Smit contra-atacou, dizendo ser sua intenção processar as autoridades pela sua detenção.

    De acordo com a sua página de LinkedIn, e antes de ter fundado a sua organização, Smit trabalhava como jornalista independente, desde Fevereiro de 2018, tendo viajado durante esse período para os Estados Unidos, Canadá, Equador, Honduras e Guatemala.

    Sem qualquer indicação de formação académica nessa rede social, Monica Smit refere experiências profissionais anteriores no ramo imobiliário e de publicidade.


    ROBERT MALONE

    Conhecido virologista e imunologista norte-americano, devido ao seu papel pioneiro no desenvolvimento da tecnologia de mRNA, Robert Malone, agora com 63 anos, foi um dos nomes mais credíveis no mundo da Ciência a criticar a vacinação contra a covid-19.

    A sua posição crítica valeu-lhe, por um lado, o respeito pelos grupos que contestavam aquelas vacinas, mas por outro uma imprensa hostil que se apressou a desvalorizar as suas investigações e a desmentir a ideia, que o próprio proclamava, de ser ele o “inventor das vacinas de mRNA”.

    Em Portugal, jornais como a Visão, o Polígrafo e o Observador publicaram artigos que contradiziam as afirmações de Malone e negavam a suposição de que ele teria sido uma figura central na criação desta nova espécie de vacinas.

    Robert Malone

    Se houve ou não paternidade, certo é que os trabalhos de Robert Malone foram indesmentivelmente uma das primeiras peças do “puzzle” da tecnologia mRNA aplicada nas vacinas contra a covid-19 da Pfizer e da Moderna. Na década de 1990, em conjunto com outros colegas, publicou um artigo que demonstrava como a injecção de RNA nos músculos produzia proteínas.

    No entanto, como reportou o jornal New York Times no ano passado, Malone não foi o único, nem o principal autor do artigo científico. Na verdade, como o PÁGINA UM confirmou, o artigo em causa publicado na Science em 23 de Março de 1990, tem sete autores, sendo que Malone é o segundo, atrás de Jon A. Wolff, um geneticista falecido em Abril de 2020.

    Além disso, embora a descoberta tenha sido cabal para o desenvolvimento das actuais vacinas de mRNA mensageiro, foram ainda necessários “aprimoramentos” ao longo de vários anos, nos quais Robert Malone já não participou.

    Em todo o caso, durante a pandemia, as suas afirmações mais contundentes incidiram sobre os possíveis efeitos secundários da vacinação e à “toxicidade” da proteína spike, à relativização da gravidade da doença e à defesa do uso de ivermectina e hidroxicloroquina como formas de tratamento contra a covid-19.

    Robert Malone, em Lisboa, numa tertúlia em Setembro de 2021, dinamizada pela Cidadania XXI.

    No entanto, embora Malone tenha colaborado, ao longo da vida profissional, com a indústria farmacêutica, e estado até envolvido na pesquisa para a vacina do vírus Ébola e na terapêutica para o Zika, tem sido apelidado pela imprensa mainstream como anti-vacinas. Isto mesmo depois de Malone se ter vacinado em 2021, como assumiu num evento em Lisboa.

    À boleia da covid-19, Robert Malone – que sempre garantiu não pertencer a nenhum partido político – começou a dar entrevistas em canais conservadores, sendo a sua aparição mais polémica ocorrido no conhecido podcast The Joe Rogan Experience, em Dezembro de 2021, episódio que acabaria por ser censurado pelo Youtube.

    Tendo-se tornado num ‘activista’ assumido, soma mais de 300 mil seguidores na plataforma Substack, enquanto no Twitter está próximo de 1,1 milhões de seguidores.


    MIKE YEADON

    Em Março de 2021, a Reuters escreveu um artigo sobre Mike Yeadon intitulado “O ex-cientista da Pfizer que se tornou um herói anti-vacinas”. De facto, quando pesquisamos o seu nome no motor de busca do Google, a primeira página que aparece diz-nos que se trata de um “activista anti-vacinas britânico” e “farmacologista reformado”. Mas será mesmo assim?

    Quando Michael Yeadon se pronunciou publicamente contra as medidas de contenção da pandemia, as suas declarações – na altura extremamente controversas – circularam na internet, dizendo-se que seriam do “vice-presidente da Pfizer”. No entanto, apesar de Yeadon ter, efectivamente, trabalhado durante vários anos naquela farmacêutica alemã, o cargo que alguns internautas lhe atribuíram nunca foi seu. Este cientista foi, na realidade, vice-presidente do departamento de investigação de alergias e doenças respiratórias daquela empresa entre 2006 e 2011.

    Mike Yeadon

    Fora da Pfizer, Michael Yeadon co-fundou e foi presidente da Ziarco, uma empresa de biotecnologia entretanto adquirida em 2017 pela farmacêutica suíça Novartis, num contrato inicialmente fechado por 325 milhões de dólares (cerca de 300 milhões de euros), mas que previa pagamentos suplementares em função de objectivos. O negócio acabou por ser um fiasco para a farmacêutica suíça, com um prejuízo de 485 milhões de dólares assumido em 2020, porque o fármaco desenvolvido pela Ziarco para o tratamento de eczema nunca obteve autorização de comercialização.

    O prestígio de Yeadon foi também diminuindo, nos últimos três anos, por força da “classificação” pela imprensa mainstream de ser ele um “activista anti-vacinas”, após as suas críticas contra as medidas de combate à covid-19.

    Em Outubro de 2020, este cientista chegou a defender que a pandemia no Reino Unido “tinha terminado” e que “não haveria uma segunda vaga de infecções”, pelo que as vacinas seriam desnecessárias. Estas declarações chegaram a ser alvo de uma análise do jornal português Polígrafo em Fevereiro de 2021, que lhe atribuiu a classificação de “pimenta na língua”.

    Além de se pronunciar contra as máscaras e confinamentos, Yeadon pôs também em causa a segurança das vacinas contra a covid-19, alegando que poderiam provocar infertilidade nas mulheres.


    PETER McCULLOUGH

    Cardiologista norte-americano, aos 60 anos Peter McCullough tem um currículo extenso. Formado em 1984 em Ciência pela Universidade de Baylor, uma década depois completou um mestrado em Saúde Pública na Universidade do Michigan, onde estudou Epidemiologia.

    Entre 2010 e 2013, McCullough ocupou cargos executivos no hospital St. John Providence, no Estado do Michigan, e, posteriormente, na especialidade de Medicina Interna do Centro Médico da Universidade de Baylor, no Texas, onde permaneceu até Fevereiro de 2021.

    Depois, exerceu como cardiologista clínico na Heart Place, o maior grupo em prestação de cuidados cardiovasculares no norte do Texas. Desde Agosto passado, ocupa o cargo de director científico da The Wellness Company, sediada em Miami.

    Peter McCullough

    Tal como sucedeu com Robert Malone, devido às suas posições contrárias à gestão da pandemia, o cardiologista teve a sua conta do Twitter suspensa antes da compra por Elon Musk. Com a nova administração da rede social, a sua conta foi reactivada e McCullough tem já mais de 800 mil seguidores.

    McCullough, que tem no seu perfil uma imagem onde se lê “Corageous Discourse [Discurso Corajoso]” não se tem, de facto, coibido, seja em entrevistas, conferências ou nas redes sociais, de manifestar as suas opiniões controversas em relação à vacinação contra a covid-19.

    No início deste ano, esteve no programa (recentemente suspenso) de Tucker Carlson, no canal conservador Fox News, para falar do misterioso aumento de problemas do foro cardíaco entre jovens atletas. Foi, também entrevistado por Joe Rogan para o seu podcast, em Dezembro de 2021, e até pelo polémico Steve Bannon em Julho do ano passado.

    O médico já esteve em Portugal, onde participou no Congresso Internacional sobre Gestão de Pandemias que ocorreu em Fátima em Outubro passado.

    CHRISTINE ANDERSON

    Com 54 anos, a alemã Christine Anderson é eurodeputada desde 2 de Julho de 2019 pela “Alternativa para a Alemanha” (AfD, na sigla em alemão).

    Conotado com o “populismo de extrema-direita”, o partido, do qual Anderson faz parte desde a sua fundação, há 10 anos, segue a linha habitualmente associada a este espectro ideológico: tendencialmente nacionalista, crítico da União Europeia, e apologista de restrições mais apertadas à imigração.

    Em Dezembro de 2021, Anderson foi uma entre seis eurodeputados a sofrerem sanções do Parlamento Europeu (PE), por se ter recusado mostrar o certificado de vacinação contra a covid-19 para entrar na sede desta instituição. A penalização de Anderson não foi, contudo, das mais pesadas: apenas perdeu as regalias de parlamentar por dois dias.

    Christine Anderson

    Outro momento em que a conduta da eurodeputada destoou ocorreu em Novembro do ano passado, quando se recusou a denominar o regime de Vladimir Putin como “terrorista”. A resolução, considerada sobretudo um gesto simbólico, teve a aprovação da esmagadora maioria (um total 494), mas Anderson, ao lado de 57 outros eurodeputados, rejeitou atribuir aquela designação à Rússia, e votou contra. A eurodeputada e mais seis membros do seu partido foram os únicos políticos alemães a assumir esta posição.

    No seu país, Anderson é figura polémica, somando controvérsias e sendo acusada de ser simpatizante do PEGIDA – sigla para “Patriotic Europeans Against the Islamization of the West” –, um movimento político conhecido pela sua hostilidade ao islamismo e à forte rejeição de refugiados e imigrantes.

    Em Fevereiro deste ano, Christine Anderson chegou a ser, de forma indirecta, alvo de um comentário condenatório do primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau, que considerou que o Partido Conservador do Canadá “devia explicações” depois de três dos seus membros terem aparecido ao lado da eurodeputada alemã numa fotografia, que se tornaria viral.


    JIMMY LEVY

    Cantor norte-americano, inicialmente de gospel, agora com 25 anos, Jimmy Levy já era um influencer antes da sua participação na 18ª edição do programa American Idol, estreado em Fevereiro de 2020, lhe conferir maior visibilidade.

    Depois da sua breve passagem pelo concurso televisivo, Jimmy Levy lançou duas músicas com uma forte mensagem de contestação, em parceria com o rapper Hi-Rez, intituladas “This is a War” e “Welcome to the Revolution”, esta última com uma evidente mensagem de alerta para a segurança das vacinas contra a covid-19. Juntas, as duas músicas somam mais de seis milhões de visualizações no Youtube.

    Contudo, o Instagram é a rede social onde Levy tem um maior número de seguidores, totalizando mais de um milhão.

    Jimmy Levy

    Nas suas plataformas digitais, o jovem artista partilha frequentemente opiniões de cariz político, tendo já criticado, em várias ocasiões, a vacinação contra a covid-19, bem como outras medidas “progressistas”, como a sexualização das crianças.

    Durante as eleições presidenciais do Brasil no início deste ano, Levy declarou-se um devoto apoiante de Jair Bolsonaro e condenou o tratamento que os manifestantes contra Lula da Silva receberam em Brasília. Na internet, circula uma fotografia sua com um chapéu em que se lê “Lula Ladrão seu lugar é na prisão”.

    O músico chegou a encontrar-se com Bolsonaro, junto do qual tem fotografias e vídeos que partilhou nas redes sociais. A sua voz activa em defesa do antigo presidente brasileiro colocou-o na mira de alguns órgãos de comunicação brasileiros.

    Judeu, diz ter sido salvo pela fé, depois de “múltiplas tentativas de suicídio” desde a sua adolescência. Nos últimos meses, começou a promover encontros de culto para “adorar Yeshua”, nos quais canta. Num recente episódio, chegou até a ser retido e expulso pela polícia.


    MORGAN C. JONAS

    No seio do movimento Global Walkout, o australiano Morgan C. Jonas, de 38 anos, é a personalidade mais próxima da líder Monica Smit. Na verdade, os dois activistas estão noivos.

    No seu site oficial, Jonas revela que a desconfiança sobre o poder político começou a brotar durante a campanha presidencial de Donald Trump, em 2016. Na altura, era dono de uma empresa de equipamentos para desportos de combate, e os discursos de Trump fizeram-no repensar o seu modelo de negócio, sustentado sobretudo em importações, outsourcing e produção no estrangeiro, algo que contribuiria para o progressivo enfraquecimento do sector industrial.

    Morgan C. Jonas

    Para si, esse foi o ponto de viragem. A partir daí, cresceu em Jonas a vontade de empreender uma mudança, expondo “políticos corruptos” e “as suas más acções”.

    Esse desejo culminou na organização de um comício em 2019, cujo alvo era Daniel Andrews – o primeiro-ministro do Estado australiano de Victoria, onde Jonas reside, na cidade de Melbourne. Na altura, o principal objectivo era denunciar os “perigosos” acordos comerciais com o Partido Comunista Chinês.

    Com a pandemia de covid-19, Morgan C. Jonas lançou o “MCJ Report”, um programa com conteúdos noticiosos da sua autoria, somando conflitos com as autoridades. Em Setembro do ano passado fundou o Freedom Party of Victoria, com resultados modestos nas eleições para a Assembleia legislativa (1,71%).


    ALEXANDER TSCHUGGUEL

    O austríaco Alexander Tschugguel, que completa 30 anos em Junho, é um dos mais jovens propulsores do Global Walkout, sendo conhecido por protagonizar actos de protesto impetuosos e suis generis.

    Por exemplo, em 2019, para combater o “paganismo”, liderou um grupo de manifestantes que roubou estátuas indígenas em madeira, de mulheres nuas e grávidas, expostas dentro da Igreja de Santa Maria em Traspontina, perto do Vaticano, e atirou-as ao Rio Tibre. E assumiu o acto no YouTube, na página do Instituto São Bonifácio, que se assume como “plataforma para apoiar a luta pela fé católica e defender essa fé quando e onde for necessário”.

    Alexander Tschugguel

    Descendente de uma família austríaca abrasonada da região de Bolzano, em Itália, Tschugguel é o arquétipo do conservador. Baptizado na doutrina protestante de Lutero, converteu-se ao catolicismo, aos 15 anos, regressando a uma tradição que tinha atravessado todos os seus antepassados, mas “quebrada” pelo seu bisavô.

    Um ano depois, juntou-se uma organização política de carácter católico e conservador originária do Brasil, a “Tradição, Família e Propriedade” e, desde então, tem sido um fervoroso defensor dos valores católicos e tradicionais: opõe-se ao aborto, ao casamento homossexual, à União Europeia, e é avesso às políticas climáticas.

    Em 2013, foi também um dos fundadores do partido conservador e eurocéptico Die Reformkonservativen, que cessou a actividade em 2016.

    Em 2019, Alexander Tschugguel organizou também um protesto que consistia em orar, junto à catedral de Santo Estêvão, em Viena, que estava naquele momento a ser palco de um evento anual de angariação de fundos para campanhas de sensibilização para o HIV.


    MICHAEL J. MATT

    Jornalista norte-americano, Michael J. Matt combate, nas suas próprias palavras, “lunáticos e hereges” desde 1996. Após o falecimento do seu pai, Walter Matt, em 2002, assumiu o seu lugar como editor do The Remnant, um jornal norte-americano católico tradicionalista fundado em 1967.

    Matt é, também, produtor da Remnant TV, uma plataforma que pretende ser “rival” do Youtube e onde apresenta o seu próprio programa.

    Extremamente crítico do pontificado do Papa Francisco, opõe-se às mudanças na Igreja Católica, sobretudo daquelas tomadas a partir do chamado Concílio Vaticano II, em 1962. Na versão digital do seu jornal, defende que “tem lutado contra esta revolução na Igreja há mais de quarenta anos, tal como tem lutado contra os erros que infectam o Estado moderno – o liberalismo, socialismo, comunismo, a Nova Ordem Mundial, uma cultura de juventude degenerada, a epidemia de abortos, eutanásia, educação sexual”.

    Michael J. Matt

    O legado do “jornalismo católico”, herdado por Michael J. Matt através da sua família, remonta a várias gerações atrás. Foi o seu pai que criou The Remnant, depois de uma contenda com o seu irmão (o tio de Michael J. Matt), Alphonse Matt, com quem conduzia, até então, o The Wanderer, o jornal católico mais antigo do país, fundado em 1867 no Estado do Minnesota.

    O The Remnant tem sido apelidado por alguns grupos – católicos ou de direitos civis, como o Southern Poverty Law Center, uma organização sem fins lucrativos  – como “radical” e “reaccionário”, e acusado de “antisemitismo”.

    No Twitter, Michael J. Matt tem mais de 32 mil seguidores, e o canal de Youtube do jornal conta com 262 mil subscritores.

    AMANDA FORBES

    Embora seja um dos principais rostos do Global Walkout, a canadiana Amanda Forbes é pouco conhecida publicamente. As causas que abraça dizem respeito sobretudo à “liberdade médica”, e à liberdade de escolha e consentimento informado nas políticas de vacinação.

    Amanda Forbes

    Integrou ainda a organização sem fins lucrativos Vaccine Choice Canada, fundada em 2014.

    Amanda Forbes é também presidente da Children’s Health Defense Canadá e co-fundadora da Freedom Organization, que promove conferências sobre saúde.