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  • Negócios de canábis medicinal do ministro-sombra ‘esfumaram-se’ nos últimos meses

    Negócios de canábis medicinal do ministro-sombra ‘esfumaram-se’ nos últimos meses

    Considerado uma espécie de ‘Richelieu da Saúde’ – aludindo à sua influência nos corredores do Ministério da Saúde, liderado por Ana Paula Martins –, Eurico Castro Alves tem vindo a coleccionar nos últimos anos um impressionante portefólio empresarial bastante diversificado, com investimentos nos sectores do imobiliário, consultoria, saúde e até canábis medicinal.

    Porém, numa investigação do PÁGINA UM, com excepção da WiseHS – que, em breve, merecerá uma análise mais detalhada –, grande parte das empresas que criou ou ajudou a criar nos anos recentes foram descartadas ou acabaram por se ‘esfumar’ literalmente – como foi o caso da empresa Atlantiquality Unipessoal, criada em Abril de 2023 para “o exercício das actividades de cultivo, fabrico, comércio por grosso, importação, exportação, transporte e circulação de medicamentos, preparações e substâncias à base de planta da canábis para fins medicinais, médico-veterinários e de investigação científica”.

    green leaves in close up photography

    No mês passado, no dia 16, foi publicado o anúncio da dissolução desta ‘aventura’ de Castro Alves. As contas de 2023, apresentadas apenas em Novembro do ano passado, mostram uma actividade nula: apenas uma despesa de 5.400 euros e sem qualquer receita.

    Sector bastante atractivo, embora burocrático e oneroso por exigir morosas autorizações do Infarmed e investimentos avultados, a produção e comercialização de canábis medicinal tem atraído muitos investidores nacionais e internacionais, desde que foi legalizada através de um diploma de 2018. De acordo com um artigo de análise publicado no jornal Cannareporter, a ascensão de Portugal na indústria global da canábis tem sido uma história de sucesso.

    De um início modesto após a legalização da canábis medicinal em 2018, Portugal mostra-se agora uma potência no sector, apenas atrás do Canadá, estimando-se que as exportações no ano passado tenham ultrapassado as 25 toneladas, reflectindo uma taxa de crescimento anual composta superior a 80% durante este período. O negócio mostra-se bastante atractivo, podendo ser vendido sob a forma de flor ou óleo, com efeitos benéficos comprovados em dores crónicas, efeitos colaterais de quimioterapia, doenças neurodegenerativas e diversos transtornos mentais e psiquiátricos.

    Eurico Castro Alves.

    Castro Alves – que foi presidente do Infarmed entre 2012 e 2015 – estava bem colocado neste sector emergente, e logo em 2018 a sua empresa WiseHS começou a desenvolver acções de formação no sector da canábis medicinal, elaborando mesmo relatórios regulares.

    Porém, ao invés de usar a WiseHS, da qual é o sócio exclusivo, acabou por optar por criar uma empresa específica – a Atlantiquality, mas recorrendo a uma outra empresa que criou: a Interbuscon. Fundada em 2018, a Interbuscon tem um capital social de 1.000 euros, distribuído entre Eurico Castro Alves (75%) e Maria Amélia Pelicano Paulos, uma antiga inspectora coordenadora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

    Pessoa próxima do ‘ministro-sombra’ da Saúde, Amélia Pelicano Paulos foi até finais de Dezembro a directora-geral da WiseHS, e o seu endereço que surge em documentos comerciais é, por regra, o mesmo que o de Castro Alves, uma habitação numa zona residencial nas imediações do Bairro de Bessa Leite, na freguesia de Lordelo do Ouro e Massarelos.

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    Apesar de objectos sociais muito distintos, em termos formais, a Atlantiquality foi ‘filha’ da Interbuscon – que tem uma actividade bastante residual, com receitas de menos de 43 mil euros em 2022. As contas de 2023 não foram ainda depositadas. Seja como for, a Atlantiquality teve ainda pior sorte, e nem sequer terá conseguido obter qualquer licença junto do Infarmed, não constando da base de dados das entidades do circuito da distribuição e da produção e aquisição directa de canábis medicinal, que integra actualmente 41 empresas.

    Apesar de nunca ter constado como sócio, Eurico Castro Alves terá tido uma segunda ‘aventura’ na canábis medicinal que se ‘esfumou’. A sua sócia Amélia Pelicano Paulos também co-fundou em 2019 uma outra empresa neste sector, a Canfimed, detendo uma quota de 23% e tendo sido mesmo gerente. A Canfimed anunciou também no início de Janeiro passado a sua dissolução, e é aqui que existe a ligação a Eurico Castro Alves, porque é o seu nome que surge como depositante, bem como o endereço da WiseHS.

    Aliás, mesmo tendo-se ‘esfumado’ estas duas empresas de canábis medicinal associadas directa ou indirectamente a Castro Alves, com ‘morte inglória’, ainda há mais três que lhe estarão associadas. A primeira é a Cannatech, formalmente detida por três residentes londrinos (Sangeeta Mittal, Shristi Mittal e Vartika Mittal Goenka), que comunga a sua sede com a WiseHS. Não existe, porém, qualquer informação comercial e económica sobre esta empresa desde Dezembro de 2020.

    A WiseHS, a principal empresa de Castro Alves, chegou a dinamizar diversas acções sobre a canábis medicinal, mas foi através de outras empresas que o ‘ministro sombra’ da Saúde tentou entrar no negócio.

    E ainda há mais duas empresas com ligações a Amélia Pelicano Paulos, embora os objectos sociais sejam mais amplos, incidindo no cultivo, transformação e comercialização de plantas medicinais e farmacêuticas. A primeira, a Serioustendency, foi criada em 2019 e tem a sócia de Eurico Castro Alves como detentora de um terço do capital social. Um ano mais tarde, essa novel empresa criou a Serioustendency Madeira, com uma quota de 75% de um capital social de apenas 400 euros, tendo como parceira a Valsa das Ninfas.

    O PÁGINA UM colocou diversas questões a Eurico Castro Alves sobre a sua actividade empresarial. No caso das empresas encerradas e a encerrar, Castro Alves diz apenas, laconicamente, que se relacionam “com projetos que não chegaram a concretizar-se”.

  • Historiadora de arte ganha quase 300 mil euros para festejos que incluem ‘gincanas’

    Historiadora de arte ganha quase 300 mil euros para festejos que incluem ‘gincanas’

    O aniversário é de Sintra, mas a prenda será recebida por uma historiadora de arte cuja empresa unipessoal arrecadará 294 mil euros (IVA incluído) sem ter tido o ‘incómodo’ de passar por concurso para organizar, entre outras acções culturais e pedagógicas, como ‘gincanas’ e ‘escape room‘. Alegando tratar-se de uma programação com “direitos de autor”, a empresa Spira, detida integramente por Catarina Valença Gonçalves, a empresa pública Parques de Sintra – Monte da Lua decidiu celebrar um ajuste directo para um contrato ao longo deste ano.

    Os eventos a organizar inserem-se no 30º aniversário da elevação da ‘paisagem cultural’ de Sintra a Património Mundial, pela UNESCO. Para celebrar este marco, a Parques de Sintra – Monte da Lua abriu os cordões à bolsa e a ‘sorte grande’ saiu à Spira, que teve a fortuna de ter sido a única empresa que a administração da empresa pública se terá lembrado de convidar para organizar as comemorações, mesmo se o montante em causa deveria, em princípio, levar à realização de um concurso público.

    Foto: D.R.

    A Parques de Sintra – Monte da Lua justifica a opção pelo ajuste directo pelo facto de se tratar de uma “criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espectáculo artístico”. Neste caso, a Spira terá criado o programa de festejos ‘PH30’ que prevê a realização de 30 iniciativas ao longo de 12 meses, entre Dezembro de 2024 e o final deste ano.

    Mas esse expediente é uma inversão dos procedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos. Com efeito, havendo necessidade de organizar eventos comemorativos, a entidade pública ou define o caderno de encargos (com uma programação provisória), lançando um concurso público para a sua execução, ou opta então por um concurso de ideias, garantindo depois a sua execução, por ajuste directo, ao vencedor. Ora, a Parques de Sintra-Monte da Lua ‘curto-circuitou’ o procedimento, convidando a empresa de Catarina Valença Gonçalves para lhe propor uma programação e ‘legalizando’ o ajuste directo concedendo-lhe à posteriori alegados “direitos de autor”.

    De acordo com o anúncio público das celebrações, a programação foi concebida com um “foco especial nos jovens” e promete ser “inovadora, divertida, desafiante e digital”, trazendo “aos parques e monumentos iniciativas inéditas”. No programa, seguindo o caderno de encargos, constam ainda actividades como ‘gincanas’ e ‘escape room‘, mas também ‘murder mistery‘ e ‘ghost experience‘.

    Site com a programação ‘Sintra PH30’.

    Questionada pelo PÁGINA UM sobre a ausência de um concurso público, a Parques de Sintra diz que se pretendeu “adquirir uma programação que envolve um conceito artístico específico, que resultará em vários espectáculos que decorrerão no período de um ano”. E acrescenta que este conceito foi desenvolvido pela “empresa que se convidou [a Spira], ficando a cargo desta, não apenas a concepção e ideia artística, como a produção e logística que envolverá todo este evento”. A empresa terá ainda a seu cargo a comunicação relacionada com o programa.

    Para defender a sua opção, a Parques de Sintra destacou o facto de a Spira ser uma empresa “especializada em concepção, execução e produção de projectos de revitalização patrimonial, Turismo Cultural e de Lazer, consultoria na área de Gestão do Património, actividades de animação-pedagógica e formação de técnicos da área da Gestão do Património, autora de projetos como a Rota do Fresco, a primeira rota de turismo cultural em Portugal, ou a Bienal Ibérica do Património Cultural, evento de referência do sector do Património Cultural”.

    Catarina Valença Gonçalves. Foto: DR.

    Na missiva enviada ao PÁGINA UM acrescenta-se que empresa da historiadora de arte entregou “à Parques de Sintra uma proposta global que contempla a programação para os diversos públicos, assim como a produção integral de todas as actividades e iniciativas”.

    Porém, mostra-se bastante duvidoso que a Spira fosse a única empresa capaz de programar e organizar eventos desta natureza, incluindo ‘gincanas’, ‘escape room‘,’murder mistery’ e ‘ghost experience‘, o que coloca em causa a legalidade do contrato. Com efeito, a norma do Código dos Contratos Públicos escolhida pela Parques de Sintra – Monte da Lua, para evitar o concurso público, refere expressamente que só pode ser usada quando “as prestações que constituem o objecto do contrato só possam ser confiadas a determinada entidade” por se estar perante “a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espectáculo artístico.” Esta norma é, por regra, usada quando uma entidade pública compra uma escultura ou pintura de um artista específico ou quando decide contratar, por exemplo, os Xutos & Pontapés ou o Tony Carreira.

    Esta não é a primeira vez que a Spira ‘tem sorte’ junto da Parques de Sintra. Aliás, este ajuste directo para as comemorações é uma espécie de déjà vu. Em Julho de 2018, a empresa já tinha facturado 236.710 euros com um contrato para a programação do Ano Europeu do Património. Nesse caso, foi usado como argumento para o ajuste directo o facto de não existir concorrência “por motivos técnicos”, sem se dar a conhecer no Portal Base como se chegou a essa conclusão.

    Foto: D.R.

    Mas o envolvimento da Parques de Sintra com a Spira vai para além destes dois ajustes directos. A fundadora e gerente da empresa, Catarina Valença Gonçalves, é a directora do programa avançado em gestão de património cultural da Universidade Católica, uma formação que conta com o apoio da Parques de Sintra. Uma prova de que a Spira, e a sua fundadora, têm na Parques de Sintra um bom aliado.

    Além disso, de entre os 46 contratos que a empresa angariou junto de entidades públicas, os dois mais valiosos foram a Parques de Sintra. No total, dos cerca de 2,8 milhões de euros que a Spira já facturou em contratos públicos, mais de 586 mil euros (com IVA) vieram da Parques de Sintra, ou seja, cerca de 20% do total.

  • Ambiente ‘tóxico’ na Quercus

    Ambiente ‘tóxico’ na Quercus

    No ano que completa o seu 40º aniversário, a associação ambientalista Quercus prepara-se para tomar uma medida drástica e inédita: expulsar quatro associados, incluindo o ex-presidente João Branco e uma antiga dirigente de um núcleo regional, Aline Pinheiro, que até já fora expulsa em 2008 mas mais tarde readmitida.

    A proposta será votada em Assembleia Geral Extraordinária (AGE) agendada para este sábado, e surge na sequência de uma ‘guerra fraticida’ que envolve processos de antigos e actuais dirigentes. [Os quatro associados acabaram mesmo por ser expulsos após a votação em AGE].

    Foto: D.R.

    Esta medida é o culminar de anos de polémicas e disputas internas na histórica associação ambientalista, fundada em 31 de Outubro de 1985, que já incluiu processos judiciais contra o seu antigo presidente João Branco. Por sua vez, o líder da Quercus entre 2015 e 2019 avançou com uma participação junto do Ministério Público contra diversos dirigentes e associados da organização.

    Segundo a convocatória da AGE, são cinco os pontos na ordem de trabalhos nesta reunião de associados que se realizará num formato híbrido, na sede da Quercus, em Lisboa, e também online. O ponto um diz respeito à designação do presidente da comissão arbitral. Os restantes quatro pontos são relativos à proposta de expulsão dos quatro associados: Aline Pinheiro, que, no passado, presidiu ao Núcleo da Quercus em Lisboa; Cláudia Monteiro, ex-presidente do Núcleo do Algarve; João Branco, antigo presidente; e Paulo Mendes, ex-dirigente do Núcleo Regional de Braga e autor de uma providência cautelar, intentada no início de 2024, para destituir a actual direcção nacional da associação, alegando ter havido irregularidades na convocatória da assembleia-geral em Abril de 2023.

    Alexandra Azevedo, presidente da Quercus, reconheceu, em declarações ao PÁGINA UM, que a proposta de expulsão dos quatro sócios e ex-dirigentes se trata de uma medida inédita, e que, pelo menos desde 2008, é a primeira vez que são expulsos associados. Segundo a actual líder, a expulsão foi “proposta pela direcção nacional”, tendo a “comissão arbitral feito a instrução do processo e o relatório final”. Alexandra Azevedo escusou-se a revelar pormenores dos processos. A decisão final cabe agora aos associados que votarão a proposta de expulsão dos quatro associados.

    Alexandra Azevedo, presidente da Quercus. / Foto: D.R.

    Para João Branco e Paulo Mendes, a expulsão é uma manobra para eliminar eventuais candidatos em futuras eleições para a liderança da organização ambientalista. Segundo João Branco, com esta proposta “a actual direcção afasta a concorrência”.

    No resumo dos processos disciplinares que o PÁGINA UM consultou, Paulo Mendes considerou que “o procedimento disciplinar não tem qualquer fundamento e que não passa de um lamentável exercício destinado a afastar da Quercus um sócio incómodo e, nomeadamente, de o impedir de se candidatar às próximas eleições para os órgãos sociais”.

    Por sua vez, João Branco avançou com uma participação junto do Ministério Público contra diversos membros dos corpos sociais e organismos da Quercus, designadamente a actual presidente da associação ambientalista. Na participação, Alexandra Azevedo é acusada de actos que lesaram a Quercus no âmbito de uma obra de construção e ainda de ter beneficiado associados no pagamento de quotas em atraso em troca do seu voto nas eleições em assembleia-geral. Acusa ainda a dirigente de ter falsificado os relatórios e contas de 2020 e 2021 para obter resultados positivos.  

    João Branco. / Foto: D.R.

    A expulsão de João Branco, associado n.º 13447 e presidente da Quercus nos mandatos de 2015-2017 e 2017-2019 consta do quarto ponto na ordem de trabalhos da AGE. O antigo dirigente nacional da associação ambientalista foi processado pela Quercus, designadamente devido a acusações de má gestão financeira durante o seu mandato como presidente. Essas acusações incluem a alegada utilização indevida de fundos da associação para fins pessoais, o que motivou a abertura de um processo disciplinar.

    Na Justiça, João Branco foi alvo de três processos judiciais, no total. No primeiro, foi acusado de falsificar actas, tendo o processo sido arquivado, segundo informações do próprio ao PÁGINA UM, e indicou ainda que os outros dois processos estão em curso: um por alegada má gestão; e outro por se ter apropriado da conta da Quercus no Facebook.

    No caso do processo em que é acusado de má gestão, um parecer de Julho de 2018 do Núcleo de Assessoria Técnica do Ministério Público destacou a existência de operações e pagamentos que exigiam mais informações, designadamente gastos de deslocação em viatura própria e a compra de um fato, que foi classificada como despesa de representação. Mas também concluiu que, com base na informação do ROC da Quercus, “a certificação legal de contas do ano de 2018 confirma a melhoria da situação da associação, invertendo-se assim a situação dos anos anteriores, não identificando, caso se realizem os projectos iniciados, qualquer incerteza quanto à sua continuidade – em 2018 apresenta um resultado líquido de 100.225,91 euros”.

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    No processo disciplinar interno, João Branco é acusado de “falsificação de actas” da direcção nacional; “má gestão financeira e patrimonial”; “despesas não documentadas”; “contratação de serviços a empresas com relações familiares directas”; “acesso ilegítimo ao Facebook oficial da Quercus”; e “uso abusivo do nome, logótipo e marca ‘Quercus’”.

    A comissão arbitral concluiu que “o comportamento do associado para além de ser abusivo, é uma traição, uma afronta e uma deslealdade para com a Quercus”.

    Segundo a comissão arbitral, “os documentos constantes do presente procedimento disciplinar mereceram total credibilidade e corroboram os factos alegados na proposta fundamentada apresentada” pela Direcção Nacional, “mormente a Auditoria Forense realizada, que foi um trabalho externo, imparcial e preciso, elaborado por profissionais independentes. Todos os factos e documentos não foram impugnados pelo associado”.

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    João Branco, além de refutar as acusações, diz que solicitou o relatório da auditoria e que nunca lhe foi enviado. No caso da página da Quercus no Facebook, o engenheiro florestal garante que “não se apropriou da página da Quercus”.

    O segundo ponto da ordem de trabalhos da Assembleia Geral deste sábado inclui também a expulsão de Aline Pinheiro, que presidiu ao Núcleo da Quercus em Lisboa. No seu curriculum refere ainda que “criou e coordenou a temática da Construção Sustentável”, na associação e que “é autora do Projecto Edifício Verde – Edifício demonstrativo de construção sustentável, que implementou”. A arquitecta tinha sido expulsa em 2008, mas foi reintegrada quando João Branco liderou a associação.

    Segundo o resumo dos processos disciplinares, Aline Pinheiro é acusada de ter feito um “contacto à Gestora de Conta da Quercus da Caixa Geral de Depósitos (CGD), sem legitimidade e alegando motivos falsos, que resultaram na suspensão da decisão deliberada e aprovada, por unanimidade, a concessão de um empréstimo de 150.000 euros” por parte do banco “à Quercus, essencial para garantir a segurança financeira” da associação, “bem como para cumprimento de obrigações fundamentais”.

    Também é acusada de ter tido um “padrão de intervenções escritas desta associada numa linha de clara deslealde para com a Quercus, enviando e-mails a terceiros e/ou com conhecimento de terceiros”. A actual Direcção Nacional alega também a existência de “fortes indícios” de que Aline Pinheiro “esteve a dispor de “grande parte dos activos financeiros deixados pela Direção anterior do Núcleo, no valor de cerca de 20.000 euros, para benefício próprio, com diversas transferências para a empresa de que é sócia – Bongreen”.

    Aline Pinheiro. / Foto: D.R.

    Segundo o documento, “desde o ano de 2019, [Aline Pinheiro] recebeu através de pagamento á empresa Bongreen – Consultoria, Formação e Arquitectura, Lda., da qual era sócia maioritária, um total de 17.904,01 euros, dos quais 16.467,37 euros utilizando indevidamente a conta bancária do Núcleo Regional de Braga”. Adianta que “todos os factos e documentos não foram impugnados pela associada”, que num e-mail, em 20 de Maio de 2023, respondeu à associação: “Por favor! O que é isto? Eu estou-me a cagar para a Quercus ou para aquilo que vocês pensam de mim. (…)” .

    Para a Quercus, “a associada agiu, de forma voluntária, reiterada e com dolo directo, contra o bom nome e prestígio da Associação, e contra o cumprimento do consignado na Declaração de Princípios, Estatutos e Regulamentos, zelo e diligência nos cargos/funções que ocupava”. Na proposta final de sanção disciplinar, a comissão arbitral diz que “considera adequado e proporcional a aplicação da sanção disciplinar de expulsão da associada [Aline Pinheiro].”

    Cláudia Monteiro, ex-presidente do Núcleo do Algarve, eleita em 2020, é também um ‘alvo a abater’. Está acusada de ter feito um contacto ilegítimo com a Agência Portuguesa de Ambiente (APA) que resultou na suspensão da inscrição da Quercus no Registo Nacional das Organizações Não-Governamentais de Ambiente. Cláudia Monteiro respondeu à acusação por escrito, em Janeiro de 2024, “invocando a prescrição e caducidade do direito de acção disciplinar”, refutando as acusações e defendendo que sua actuação mais não foi do que “o exercício efectivo das competências que à data lhe assistiam enquanto Presidente do Núcleo Regional do Algarve, manifestando a sua discordância com a forma como a DN [direcção nacional] vinha exercendo as suas funções”.

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    O quinto e último potencial sócio expulso é Paulo Mendes, que foi dirigente do Núcleo Regional de Braga. O jurista foi o autor de uma providência cautelar, intentada no início de 2024, para destituir a actual direcção nacional, alegando ter havido irregularidades na convocatória da assembleia-geral da Quercus em Abril de 2023, na qual foi eleita a actual direcção presidida por Alexandra Azevedo para um segundo mandato. A providência cautelar acabou por ser revogada.

    Paulo Mendes é acusado pela Quercus de utilização indevida do nome de domínio ‘quercus.com.pt’. Mesmo depois de lhe ter sido pedido que cessasse a utilização do domínio, o antigo dirigente regional do Núcleo de Braga continuou a fazê-lo. Também é acusado de ter enviado informações confidenciais e de notas de imprensa no âmbito da providência cautelar que intentou.

    Em resposta às acusações, Paulo Mendes considerou que “o procedimento disciplinar não tem qualquer fundamento e que não passa de um lamentável exercício destinado a afastar da Quercus um sócio incómodo e, nomeadamente, de o impedir de se candidatar às próximas eleições para os órgãos sociais”. Também refutou as acusações e, sobre o uso do domínio, argumentou que “a palavra ‘quercus’ se reporta a um género de árvores” e que “pela consulta à base de dados do INPI, utilizam a marca ‘Quercus’ diversas entidades”. E diz que se “prontificou a oferecer à Quercus a titularidade do domínio ‘quercus.com.pt’”.

    Paulo Mendes “impugnou toda a matéria da acusação e os documentos que a acompanham”, peticiona o associado, a final, o arquivamento do procedimento,” e chegou a arrolar testemunhas”. Mas nenhuma testemunha chegou a ser ouvida e o associado continuou a usar o e-mail com domínio ‘quercus.com.pt’. Para a comissão arbitral, “o associado pretendeu, de forma clara, denegrir a imagem da Quercus, colocando em causa o seu bom nome e prestígio perante o público”.

    Apesar destas expulsões, o ‘ambiente tóxico’ entre os actuais antigos dirigentes da Quercus deverá continuar a prevalecer já que prosseguem processos em Tribunal, havendo ainda a possibilidade de haver nova litigância judicial no futuro após a confirmação da expulsão dos quatro associados.

    A Quercus é, desde há décadas, uma das mais activas associações ambientalistas de âmbito nacional, embora tenha ‘perdido’ parte dos seus ‘activos humanos’, depois da saída de vários destacados membros, que viriam a formar em 2015 a Zero, liderado por Francisco Ferreira.

    Mesmo com uma intervenção menos activa, a Quercus contava em 2023 com 2.897 associados, o valor mais baixo dos últimos 15 anos, mas vive actualmente uma situação financeira mais desafogada depois de anos de aflição. Nas contas de 2023 apresentou activos de cerca de 2,6 milhões de euros, rendimentos (sobretudo de donativos e apoios estatais) ligeiramente superior a um milhão de euros e contabilizou um lucro de 215 mil euros, contando com 15 funcionários.

    Notícia actualizada para adicionar a confirmação da expulsão dos quatro associados da Quercus, no 2º parágrafo.

    N.D.: Como é referido na Declaração de Transparência do PÁGINA UM, o director do jornal, Pedro Almeida Vieira, foi dirigente da Quercus, tendo desempenhado funções de vogal na direcção nacional no período de 1993-1995. Actualmente, não é sócio da Quercus. Também foi sócio-fundador da Zero (sem qualquer actividade).

  • ‘Dados biométricos ‘sacados’ pelo Estado vão parar às mãos de duas empresas estrangeiras

    ‘Dados biométricos ‘sacados’ pelo Estado vão parar às mãos de duas empresas estrangeiras

    São dados sensíveis que permitem a identificação de cidadãos através de características físicas, como o reconhecimento facial ou a impressão digital, mas estão a ser recolhidos por equipamentos fornecidos por empresas estrangeiras. Mas não existem garantias de que estejam a ser recolhidos e armazenados em segurança, e quais os níveis de acesso, manuipulação e uso por parte dos técncos de empresas privadas.

    Numa análise do PÁGINA UM aos contratos registados na plataforma de contratação pública, o Portal Base, observou-se que duas empresas estrangeiras estão já a dominar os chorudos contratos públicos relativos ao fornecimento de equipamentos e serviços relacionados com a recolha de dados biométricos: a sueca Speed Identity e ainda a Vision Box, uma empresa inicialmente portuguesas, financiada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e por outros programas da União Europeia, mas acabou vendida no ano passado à espanhola Amadeus, uma gigante ligada ao sector do turismo.

    Estas duas empresas arrebataram contratos que superaram, no total, os 14 milhões de euros (sem IVA), na sua maioria sem passar por concurso público. E também sem se saber qual o uso que as empresas privadas poderão dar ao dados biométricos que forem recolhidos no âmbito desses contratos, até porque está explícito que existe também uma prestação de serviços com técnicos e informáticos.

    O acesso a informação pessoal e sensível − como dados biométricos dos cidadãos − levanta sempre riscos em matéria de soberania, segurança e privacidade. Num mundo cada vez mais digital, a informação pessoal sensível é um produto que vende, mas também pode ser uma arma e uma ferramenta para eventuais roubos e fraudes.

    Segundo a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), a lei permite que entidades públicas ou privadas subcontratem serviços relacionados com recolha ou tratamento de dados respeitando as condições previstas na lei, designadamente as que estão previstas no artigo 28 do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), que estabelece a possibilidade de subcontratação. Contudo, apesar de todos os contratos que possam existir, acaba por ser uma questão de confiança, já que nem todas as entidades têm a capacidade para auditar a prestação do serviço prestado pelas empresas contratadas.

    A questão do acesso de terceiros a dados pessoais sensíveis é um tema que já levou a vários escândalos e à aplicação de multas aos infractores. Recorde-se que em Dezembro de 2022, a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) multou o Instituto Nacional de Estatística (INE) em 4,3 milhões de euros “pela prática de cinco contraordenações”. A condenação surgiu na sequência de um contrato adjudicado pelo INE à polémica empresa norte-americana Cloudflare, a qual teve acesso aos dados dos portugueses que responderam ao inquérito relativo ao Censos de 2021.

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    Um caso internacional que causou muita polémica envolveu a maior rede social do mundo, o Facebook, da Meta, e a Cambridge Analytica. O escândalo envolveu o acesso a dados sensíveis de quase 90 milhões de utilizadores da rede social pela consultora britânica, durante a década de 2010. A Cambridge Analytica usou os dados para fins de propaganda política sem o consentimento dos utilizadores.

    O Facebook foi obrigado a pagar 500 mil libras (quase 600 mil euros) ao Reino Unido por ter exposto os dados dos seus utilizadores a riscos graves. Quanto à consultora, declarou falência em 2018. Nos Estados Unidos, a Federal Trade Comission, cuja missão abrange a protecção dos consumidores, aplicou ao Facebook uma coima recorde de 5 mil milhões de dólares (cerca de 4,8 mil milhões de euros).

    Em Portugal, no ano passado, registaram-se, ao todo, cerca de 40 contratos públicos de aquisição de equipamentos e serviços de recolha daqueles dados sensíveis. Dois deles foram os maiores de sempre, referentes a tecnologias de recolha de dados biométricos.

    Foto: Vision Box / D.R.

    Os dois maiores contratos registados no Portal Base, foram adjudicados no ano passado à Speed Identity, um por via de ajuste directo e outro através de concurso público. No total, esta empresa facturou 4,2 milhões de euros (5,2 milhões de euros, com IVA), com três contratos celebrados em 2024 com entidades estatais portuguesas.

    O maior contrato envolvendo equipamento de identificação e leitura de dados biométricos foi adjudicado pela secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), em Julho último, para o fornecimento, “instalação, manutenção e assistência técnica de equipamentos controlo manual de fronteiras e de equipamentos de recolha de dados biométricos”. O negócio foi entregue à empresa sueca, através de concurso público, ascendendo a 2,4 milhões de euros com um prazo de execução de três anos.

    No passado dia 13 de Novembro, a PCM fez novo contrato com a Speed Identity, através de um ajuste directo no valor de 1,6 milhões de euros para “Aquisição, instalação, assistência técnica e manutenção de 75 equipamentos móveis de recolha de dados biométricos”. Não se conhecem os detalhes do negócio, já que o caderno de encargos não está disponível.

    Foto: D.R.

    A justificação para o ajuste directo foi a habitual “urgência imperiosa”, uma ardilosa forma de não realizar concurso público. Por regra, somente se pode alegar “urgência imperiosa” para justificar um ajuste directo se ocorrerem “acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, [e] não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Ora, quase nunca essa invicação surge justificação.

    Este contrato foi celebrado ao abrigo de uma disposição na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, que prevê que os contratos cujo valor seja superior a 950 mil euros e tenham sido celebrados por motivo de urgência imperiosa, podem entrar em vigor antes do visto ou declaração de conformidade do Tribunal de Contas.

    Já em Março, a sueca tinha ganho um concurso da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), no montante de 211.541 euros, para “aquisição equipamento para recolha de dados biométricos (10 impressões digitais)”.

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    Mas a empresa que obteve o maior valor em contratos do género foi a Vision Box. Em 2024, a Vision Box angariou contratos de 5,6 milhões de euros (6,9 milhões de euros, com IVA) junto de entidades públicas, na maioria através de ajustes directos. Entre as entidades que adjudicaram contratos a esta tecnológica estão a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), a Secretaria-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), Agência para a Modernização Administrativa e Qualidade do Serviço ao Cidadão e a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).

    No caso da PCM, fez um ajuste directo recente à Vision Box para a “aquisição de 54 leitores de documentos, no âmbito do Sistema de Controlo de Fronteiras”, no valor de 306.770 euros. O Governo também fez outros ajustes directos recentes com outras entidades no âmbito do projecto ‘Smart Borders’, designadamente um no valor de 541.266 euros, com a Claranet, no dia 30 de Dezembro, e um no montante de 154.325 euros, com a Integrated Biometrics, no dia 26 de Dezembro. Também nestes casos, os respectivos cadernos de encargos não estão acessíveis, uma quebra de regras de transparência na contratação pública. Questionada sobre os contornos destas compras, a PCM não respondeu às questões colocadas pelo PÁGINA UM.

    Também o Ministério dos Negócios Estrangeiros fez ajustes directos para a aquisição do mesmo tipo de equipamentos e serviços. O MNE efectuou, no dia 26 de Dezembro, um ajuste directo com Vision Box, no valor de 744.375 euros, para “aquisição de estações móveis para recolha de dados biométricos”. O prazo de execução é de 21 meses.

    A justificação para não ter sido feito concurso foi, neste casos, os direitos de propriedade intelectual. Os detalhes do negócio não são, porém, conhecidos. Apesar de ser disponibilizado no Portal Base um ‘link” para se aceder às peças deste procedimento, a ligação remete para uma página que indica “acesso não autorizado”, pelo que não se conseguem visualizar os documentos, nomeadamente o caderno de encargos.

    Em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM, o MNE justifica a realização deste contrato com o facto de que a “empresa Vision Box fez parte da equipa que desenvolveu este projeto”, tendo “desenvolvido a solução de recolha de dados biométricos K-PEP (e agora também M-PEP) num processo de parceria com as entidades governamentais portuguesas, designadamente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do Ministério da Administração Interna e o Instituto de Registos e do Notariado (IRN) do Ministério da Justiça”.

    O Ministério também explicou que, “entretanto, há cerca de três anos, foi criado um grupo de trabalho com todos os intervenientes (IRN, MNE, Casa da Moeda) para estabelecerem requisitos específicos de melhoria das funcionalidades dos quiosques tanto ao nível da usabilidade e portabilidade como ao nível da Segurança”.

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    Os dados biométricos são considerados dados sensíveis, existindo o risco de poderem ser usados para roubos e fraudes. / Foto: D.R.

    No entanto, “o MNE, aguardando os resultados deste grupo de trabalho, tem vindo a assegurar os serviços nos Postos Consulares apenas com os quiosques antigos (a[c]tuais), que necessitam invariavelmente de reparações, com todas as implicações que daí advêm tais como custos de reparações e outros custos de transportes”, salientou.

    Contudo, as conclusões do grupo de trabalho criado há três anos nunca mais chegam, Segundo o Ministério liderado por Paulo Rangel, “face ao significativo atraso destes resultados, aos vários pedidos dos Postos, e não podendo pôr em causa os serviços prestados no estrangeiro, o MNE terá de adquirir alguns quiosques para, enquanto não se obtêm resultados para as novas especificações técnicas, minimizar as faltas já existentes e que põem em causa o bom funcionamento dos serviços consulares no Estrangeiro”.

  • Conselho Superior da Magistratura promete, finalmente, acatar a lei do acesso aos documentos administrativos

    Conselho Superior da Magistratura promete, finalmente, acatar a lei do acesso aos documentos administrativos

    Após mais de três anos de litígios, João Cura Mariano, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e por inerência do Conselho Superior da Magistratura (CSM), manifestou ontem ao final da tarde a intenção de acatar a sentença proferida no passado dia 14 de Janeiro pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, que obrigou a cúpula da justiça portuguesa de disponibilizar e permitir a cópia em fotografia do inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês. Através de mensagem de correio electrónico, foi solicitado ao PÁGINA UM que indicasse “o dia em que pretende proceder à consulta requerida, nas instalações do CSM”.

    O caso remonta a finais de 2021, tendo sido a primeira de uma longa lista de mais de duas dezenas de intimações já colocadas pelo PÁGINA UM nos tribunais administrativos, com o apoio financeiro dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Em causa estava então o acesso ao inquérito do CSM sobre a distribuição do processo da Operação Marquês, entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre. Este inquérito, que revelou irregularidades como a ausência de sorteio electrónico, foi mantido secreto pelo CSM, apesar de ser classificado como documento administrativo. Após uma recusa inicial e um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), o CSM continuou a negar o acesso, alegando questões de confidencialidade.

    Sede do Conselho Superior da Magistratura, em 2 de Agosto de 2023, quando o director do PÁGINA UM se deslocou para consultar o relatório do inquérito da Operação Marquês, após um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. A recusa de obtenção de cópia nessa data implicou nova ‘batalha judicial’ somente concluída mais de 17 meses depois.

    A resistência do CSM levou o PÁGINA UM a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa, onde, em Junho de 2022, uma primeira sentença favorável ordenou a entrega integral dos documentos, sem restrições. O CSM apelou da decisão, mas o Tribunal Central Administrativo do Sul confirmou, em 2023, a sentença inicial. Apesar disso, o CSM dificultou o acesso integral, impedindo que fosse fotografados os documentos, e mutilando partes consideráveis do texto em fotocópias então disponibillizadas, o que levou o PÁGINA UM a recorrer novamente ao Tribunal Administrativo. Se o CSM não acatasse agora a nova sentença deste mês, o juiz conselheiro João Cura Mariano seria pessoalmente responsável pelo pagamento de 50 euros por dia de atraso.

    Este desfecho marca uma vitória histórica para o PÁGINA UM, que, desde a sua fundação, tem lutado pela transparência e pelo acesso à informação. No entanto, este caso também levanta questões cruciais sobre a responsabilização individual de altos dirigentes em situações de incumprimento de decisões judiciais e sobre o papel das instituições judiciais no respeito pelos princípios democráticos e pela liberdade de imprensa.

    Recorde-se, aliás, que o PÁGINA UM tem em curso outros dois casos absurdos de incumprimento de acórdãos dos tribunais administrativos superiores. O primeiro caso refere-se à consulta da base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH), que inclui toda a informação dos internamentos, sem qualquer identificação de pessoas, há muito prevista nas próprias competências da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Apesar de uma ‘luta jurídica’ iniciada em Setembro de 2022, que culminou em três decisões judiciais, incluindo um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo em 1 de Junho de 2023, a ACSS mutilou completamente a base de dados, eliminando ou agrupando variáveis, comprometendo toda a integridade da informação. O pedido de intervenção ao Tribunal Administrativo ainda não teve um epílogo.

    João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do Conselho Superior da Magistratura, a cumprimentar o Presidente da República: sentença do Tribunal Administrativo aplicou uma sanção pecuniária compulsória de 50 euros por dia se não fosse satisfeito integralmente o pedido do PÁGINA UM.

    O outro caso envolve a base de dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19, um processo iniciado também no final de 2021, e que teve um acórdão favorável do Tribunal Central Administrativo do Sul ao PÁGINA UM em 11 de Julho do ano passado. Esse acórdão, que alterara uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, ordenava que se facultasse o acesso aos dados pretendidos no Portal RAM. Mas o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo, enviou os elementos mas mutilando informação, agregando variáveis e escondendo outras variáveis, incluindo a causalidade. Embora o PÁGINA UM tenha já feito diversas insistências para que Rui Santos Ivo deixe de esconder intencionalmente essa informação, ainda não se conseguiu reverter a postura obscurantista de um funcionário público que não cumpre decisões dos tribunais administrativos.

    Um outro caso pode ainda juntar-se a estes dois. O presidente do Instituto Superior Técnico, Rogério Colaço, ainda não manifestou intenção de cumprir um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul do passado dia 12 de Dezembro que ordenou a disponibilização de 51 relatórios desta instituição universitária sobre a pandemia, que alimentaram o contínio alarme social nos anos de 2021 e 2022. Recorde-se que, para tentar não mostrar ao PÁGINA UM estes trabalhos supostamente científicos, o IST chegou a referir cada relatório era afinal “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

  • Banco de Portugal já gastou 1.052.650,52 euros só em andaimes e lonas em ‘obra de Santa Engrácia’

    Banco de Portugal já gastou 1.052.650,52 euros só em andaimes e lonas em ‘obra de Santa Engrácia’

    Num quarteirão da Avenida Almirante Reis, em plena Lisboa, crescem plantas e prosperam ervas à sombra de andaimes e lonas que há quase anos ‘embrulham’ a fachada do emblemático edifício do Banco de Portugal. Não se vê ali qualquer movimento de obras nem de trabalhadores de construção civil, mas isso não significa que não haja fluxos financeiros, Há, sim, e não são poucos: a factura de lonas e andaimes já vai em 1.052.650,52 euros, IVA incluído. E isto sem sequer ali ter entrado um martelo, um saco de cimento nem uma colher de pedreiro. Foi mesmo só para andaimes e lonas; nada mais.

    Em quase quatro anos, de acordo com a investigação do PÁGINA UM, o Banco de Portugal fechou três contratos por ajuste directo com a Tubos Vouga que, sem ‘mexer uma palha’ − só mexeram em andaimes, que ali ficaram − soma receitas atrás de receitas, mesmo obras. Isto num edifício que o Banco de Portugal vai deixar de usar em breve, já que vai transferir temporariamente os serviços que ali funcionam para o Edifício Marconi, em Entrecampos, situado ao lado do antigo terreno da Feira Popular, pertencentes à chinesa Fidelidade. Segundo uma notícia do jornal Eco de Outubro passado, o Banco de Portugal pondera vir a construir um edifício-sede para concentrar os seus quadros.

    primeiro contrato de montagem de andaimes foi assinado a 10 de Maio de 2021, por um prazo de dois anos, e teve o valor de 206.521 euros. O ajuste directo foi a “urgência imperiosa”. Mas se havia urgência imperiosa para montar andaimes, não houve para avançar com a obra. E assim, mais de dois anos depois, em 27 de Outubro de 2023 houve segundo contrato no montante de 163.244,16 euros, por um prazo de um ano. Foi mais um ajuste directo, e aí a justificação foi a inexistência de concorrência por motivos técnicos.

    mais recente contrato é 28 de Junho do ano passado, e vigora por um período de cerca de três anos, envolvendo uma verba de 486.047,29 euros. Neste caso, houve concurso público, tendo concorrido a Tubos Vouga e a Catari Portugal. Venceu a Tubos Vouga sem surpresa: pôde apresentar melhores ‘condições’ porque já lá estavam os seus andaimes. Se tivesse sido a Catari Portugal, seria necessário desmontar os andaimes da Tubos Vouga e montar outros da nova empresa. E a obra em concreto parada.

    O Edifício Portugal situa-se na Avenida Almirante Reis/Rua Febo Moniz, em Lisboa. (Abril de 2024) / Foto: PÁGINA UM

    As obras neste edifício do Banco de Portugal mostraram-se necessárias depois da queda de pedaços de elementos que compõem a fachada no início de 2021, que levou à colocação dos andaimes em Junho de 2021. Seguiu-se um relatório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, de Fevereiro do ano seguinte, que chegou à conclusão de que partes a estrutura da fachada tinham atingido “o tempo de vida útil”.

    Assim, desde essa altura, a zona envolvente ao edifício ficou acondicionada pelas estruturas dos andaimes e das lonas, apesar de a Câmara Municipal de Lisboa ter indicado ao PÁGINA UM que apenas autorizou a “ocupação da via pública em Maio de 2024”. Não se sabe se o Banco de Portugal foi alvo de alguma multa ou repreensão por eventual ocupação indevida da via pública, mas certo é que há três anos e meio que a situação se arrasta, sem obras à vista ou escondidas.

    Finalmente, no mês passado, no dia 9 de Dezembro, o Banco de Portugal adjudicou à empresa Struconcept um contrato para a elaboração do “projecto para reparação dos elementos de fachada em betão armado do Edifício Portugal”, num contrato por ajuste directo no montante de 59.750 euros. O absurdo desta situação é que este projecto para saber como se vai recuperar a fachada tem um prazo de conclusão de 392 dias. Ou seja, são mais 392 dias com andaimes sem obras.

    Fotos divulgadas pela Tubos Vouga, em Junho de 2021, quando concluiu a instalação dos andaimes na fachada voltada para a Rua Febo Moniz (as duas fotos da esquerda) e dos andaimes suspensos na fachada virada para a Av. Almirante Reis (foto da direita). / Foto: D.R.

    O Edifício Portugal, na Avenida Almirante Reis, foi originalmente projectado em 1973 pelo reputado arquitecto Maurício de Vasconcelos, dono de um vasto portfólio de obras públicas e privadas. Foi responsável, por exemplo, pelos projectos de remodelação do Cinema Avis e do Restaurante Gambrinus, e da sede da Sociedade Portuguesa de Autores, bem como diversos empreendimentos do sector do turismo. Também coordenou vários planos urbanísticos e projectos em autarquias, designadamente em Lisboa e em Almada.

    Em 1985, a Pardal Monteiro – Arquitectos realizou um projecto de ampliação do Edifício Portugal até à Avenida Almirante Reis e desenhou também os interiores e o mobiliário. Foi nessa altura que se instalou também, neste edifício, um painel de azulejo do famoso artista plástico Querubim Lapa, o qual lhe valeu o Prémio Municipal de Azulejaria de Lisboa. Com cerca de 47.000 metros quadrados de área útil, o edifício integra uma área de 18.500 metros quadrados destinada a escritórios, um refeitório e cozinha, um auditório e salas de reuniões, um salão polivalente e ainda uma zona de armazéns e arquivos.

    Manuel Cottinelli Telmo Pardal Monteiro, um arquitectos responsável por aqueles projectos, disse ao PÁGINA UM que desconhecia que tinha sido adjudicado o projecto de reparação de elementos da fachada do edifício. “Não sabia. É natural que haja obras de conservação em edifícios”, disse o arquitecto que confirmou que não foi consultado nem deu o seu parecer, o que não teria de fazer, tratando-se de mera manutenção. Este arquitecto confirmou que o edifício não está classificado nem sequer é considerado de interesse municipal, algo que veria com bons olhos se viesse a acontecer.

    Painel de azulejo de Querubim Lapa. / Foto: D.R.

    Para já, desconhece-se o destino e o futuro deste edifício, que eventualmente mudará de mãos quando o Banco de Portugal deixar aquelas instalações, o que já está em preparação.

    Além do milionário custo dos andaimes, o Banco de Portugal tem assumido outras despesas, sobretudo correntes, com o edifício que será para desocupar. Por exemplo, em Junho de 2022 o Banco de Portugal gastou 90 mil euros na “aquisição de serviços de manutenção de floreiras e canteiros, interiores e exteriores, do Edifício Portugal”. O negócio foi entregue à empresa Jardins Tesouro, por um prazo de três anos.

    Teve também gastos com a manutenção do edifício. Por exemplo, num contrato celebrado em Outubro de 2022, o Banco de Portugal contratou a empresa Rioboco. para fazer a “prestação dos serviços de manutenção das instalações” de dois dos seus dos edifícios, incluindo o situado na Avenida Almirante Reis, e um outro, nos Olivais. O contrato válido por cinco anos envolveu uma despesa de 3.844.700 euros. Este contrato, realizado na sequência de um concurso público, abrangeu, designadamente, a manutenção da rede eléctrica e iluminação das instalações, mas exclui a manutenção de outros elementos, como os elevadores, que consubstanciam uma despesa à parte. Como não existe caderno de encargos no Portal Base, não se sabe quais foram os custos específicos do Edifício Portugal.

    O Edifício Marconi, na Av. Álvaro Pais, será uma casa temporária para os serviços que o Banco de Portugal tem a funcionar no Edifício Portugal, na Av. Almirante Reis. / Foto: PÁGINA UM

    Um mês antes, em Setembro de 2022, o Banco de Portugal tinha contratado, por 600 mil euros, a empresa unipessoal José Jesus Cardoso para fazer a “remodelação interior de espaços nos edifícios do distrito de Lisboa”, incluindo o edifício situado na Avenida Almirante Reis, ou seja, sem envolver a fachada.

    Em todo o caso, as despesas com este e outros edifícios do Banco de Portugal são ‘peanuts‘ comparando com as largas centenas de milhões de euros que terá de eventualmente desembolsar se avançar com a compra do terreno e a construção do novo edifício para centralizar todos os serviços. Sendo que o Banco de Portugal é dono de um terreno pelo qual pagou 37 milhões em 2018, onde planeava concentrar os serviços que tem dispersos por quatro edifícios diferentes em Lisboa, o que nunca chegou a acontecer.

    O PÁGINA UM questionou o Banco de Portugal, ainda no ano passado, sobre o calendário das eventuais obras de conservação e de restauração, bem como sobre o futuro do Edifício Portugal, mas por telefone o gabinete de comunicação da instituição liderada por Mário Centeno disse que não seriam dadas quaisquer informações.

  • Multa diária põe em xeque bolsos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

    Multa diária põe em xeque bolsos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

    Um caso sem precedentes em Portugal. E sobretudo um caso singular do espinhoso caminho contra a prepotência do poder e contra a falta de transparência. Através de uma sentença inédita de um juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, o presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM) foi alvo de uma sanção pecuniária compulsória se este órgão de cúpula do poder judiciário continuar a recusar ao PÁGINA UM o acesso integral ao inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês. Uma luta judicial que se iniciou em finais de 2021, e que constituiu a sua primeira iniciativa com o apoio do FUNDO JURÍDICO.

    Uma sanção pecuniária compulsória é uma multa aplicada como meio de coerção para obrigar alguém, geralmente uma entidade ou autoridade, a cumprir uma obrigação legal ou decisão judicial. O PÁGINA UM consultou vários juristas para saber se são conhecidas sentenças similares contra o CSM, e nenhum tem memória de uma sentença desta natureza contra o órgão de cúpula responsável pela gestão e disciplina dos magistrados judiciais em Portugal.

    De acordo com a decisão do juiz Bruno Gomes – que não está sob a alçada do CSM –, a partir do trânsito em julgado da sua sentença do passado dia 13 deste mês, o juiz conselheiro João Cura Mariano – presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que lidera por inerência a cúpula da magistratura – terá de pagar, do seu bolso, uma ‘multa’ de 50 euros por dia se mantiver o incumprimento de uma sentença de 2022 favorável ao PÁGINA UM. Em causa está o acesso integral e sem restrições, requerido no final de 2021, ao inquérito do CSM relativo à distribuição do processo da Operação Marquês.

    Apesar de nesse inquérito se ter apurado que não houve sorteio electrónico na entrega do processo ao juiz Carlos Alexandre e que se fez à margem da lei, o CSM manteve o relatório secreto, recusando divulgá-lo à comunicação social, apesar de se tratar de documentos administrativos. No início de Janeiro de 2022, o jornal ECO revela a resposta taxativa da CSM: “Sobre o pedido de acesso ao relatório em questão, informa-se que o mesmo não será disponibilizado”.

    O PÁGINA UM – que, desde a sua fundação, colocou como ‘bandeiras’ a transparência e o acesso à informação pelos jornalistas – não aceitou esta ilegítima postura do CSM, ademais tratando-se da cúpula da magistratura, a saber: o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, dois membros designados pelo Presidente da República, sete membros eleitos pela Assembleia da República, por sete membros eleitos por Magistrados Judiciais, dois juízes dos Tribunais da Relação e quatro juízes de Direito.

    João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do Conselho Superior da Magistratura, a cumprimentar o Presidente da República: sentença do Tribunal Administrativo aplicou-se uma sanção pecuniária compulsória de 50 euros por dia se não satisfizer integralmente pedido do PÁGINA UM.

    Após um requerimento inicial do PÁGINA UM ainda em 2021, o CSM exigiu o impensável numa democracia que constitucionalmente deveria preservar a liberdade de imprensa:  saber “qual a finalidade do acesso e da recolha” dos documentos solicitados. O PÁGINA UM insistiu que a lei não determinava tal obrigatoriedade, muito menos a jornalistas, e assim, num parecer, a juíza Ana Sofia Wengovorius – curiosamente, filha de um advogado do Sindicato dos Jornalistas durante duas décadas, entre 1970 e 1991 – considerou que os documentos do CSM estavam acima de meros documentos administrativos.

    E começava aqui a estranha interpretação da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) por parte do CSM. A mesma juíza, num segundo parecer, em finais de Dezembro de 2021, considerava que “o acesso e/ou recolha solicitado só é lícito se forem recolhidos apenas os dados estritamente necessários para uma finalidade reconhecida por Lei que o legitime, pelo que só conhecendo a finalidade se pode fazer a ponderação que a lei impõe”, acrescentando que “dentro das condicionantes próprias do procedimento em causa que é confidencial o requerente deve esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos ou se pretende a decisão final”. E de forma paternalista concluía a juíza do CSM: “Mais sugiro que seja remetida cópia do anterior parecer emitido para melhor compreensão”.

    Passaram mais de três anos desde o parecer desta juíza e aquilo que se pode concluir é que quem precisava de uma melhor compreensão da lei e sobretudo da convivência democrática era o CSM. Mas não era preciso tanto tempo. Logo no início de 2022, o PÁGINA UM recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), então presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, que viria considerar que o acesso era devido, através de um parecer de meados de Fevereiro desse ano.

    Mas nem assim o CSM se disponibilizou a ceder os documentos do inquérito, advogando que o parecer da CADA não era vinculativo, acabando mesmo por “convidar” o PÁGINA UM a ‘usar’, com custos e tempo, o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Conselho Superior da Magistratura: um Golias que, em vez de ser um exemplo de transparência, andou mais de três anos numa incompreensível ‘guerra’ de ocultação e de falta de transparência.

    O órgão superior de gestão e disciplina dos juízes dos tribunais judiciais portugueses considerou então, através da também juíza Ana Cristina Chambel Matias que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não invocou, nem demonstrou que o acesso aos documentos constantes do processo de averiguações em causa são necessários para a tutela de um qualquer seu direito ou interesse legalmente protegido para que lhe seja conferido o direito a esse acesso”, acrescentando que “apesar de notificado por mais de uma vez pelo CSM, não concretizou cabalmente os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e não esclareceu qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos”.

    A prepotência do CSM mantinha-se.

    E a inflexibilidade do PÁGINA UM também. E iniciou-se então uma verdadeira luta judicial entre David e Golias. Em sede da intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – naquele que viria a ser o primeiro processo judicial do PÁGINA UM financiado pelos seus leitores através do FUNDO JURÍDICO. Em sede de contestação, o CSM insistiu na tese da existência de “dados nominativos” no relatório do inquérito. Porém, em vez de acreditar piamente no CSM, o juiz Pedro Almeida Moreira exigiu que lhe fosse enviado “em envelope selado, cópia dos documentos a que o Requerente [director do PÁGINA UM] pretende aceder, de molde a permitir a este Tribunal aquilatar se os mesmos contêm ou não ‘múltiplos dados pessoais’ e, ‘se a isso se chegar, tecer um juízo de proporcionalidade concernente aos interesses que aqui se encontram concretamente em jogo’”.

    Em 30 de Junho de 2022, a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa deveria ter sido o tira-teimas. acabou assim por comprovar que o CSM, desde o início, estava a alegar com argumentos muito distantes da verdade factual. Na sua sentença, o juiz Pedro Almeida Moreira teceu mesmo duras críticas às alegações do CSM, considerando que “a vingar a interpretação que aqui é propugnada pelo Requerido [CSM], isso significaria que o mero nome de um funcionário público que tenha intervindo num qualquer procedimento administrativo apenas poderia ser tornado acessível aos interessados após a ponderação dos interesses em jogo no âmbito de um juízo de proporcionalidade, o que não se mostra aceitável em face das exigências de transparência que impendem sobre a Administração, nos termos constitucional e infraconstitucionalmente consagrados.”

    Quo vadis, justiça portuguesa?

    E concluía: “Não perscrutando este Tribunal motivos plausíveis para se afastar da regra geral de livre acesso dos interessados a documentos administrativos nos termos acabados de expender, e nada mais vindo invocado pelo Requerido, não lhe restam alternativas que não concluir pela procedência da presente intimação, o que se julga de seguida, sem necessidade de maiores desenvolvimentos”. A sentença deveria ter sido cumprida no prazo de 10 dias.

    Já com duas ‘derrotas’ – CADA e Tribunal Administrativo de Lisboa –, o CSM quis arriscar ter uma terceira, até porque as taxas de justiça e os custos de patrocínio não lhe pesam. E recorreu, para assim adiar a sentença, e conseguiu… perder uma terceira vez, desta vez no Tribunal Central Administrativo do Sul.

    O acórdão demorou sete meses, mas veio demolidor, mais uma vez, para o CSM. Votado por unanimidade pelos desembargadores Lina Costa (que foi a relatora), Catarina Vasconcelos e Rui Pereira, este acórdão arrasou em toda a linha a argumentação que o CSM usou para evitar o acesso ao inquérito.

    Primeiras páginas da sentença de Junho de 2022 e do acórdão de

    Para os desembargadores, a sentença inicial do juiz Pedro Almeida Moreira seria para manter em toda a linha, concluindo não haver qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.

    O acórdão mostrava-se, aliás, particularmente importante por clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo em muitos outros processos de intimação protagonizados pelo PÁGINA UM.

    Nessa linha, os desembargadores salientaram que “essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo Recorrente [CSM], enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”. E sabendo-se que o relatório da inspecção não tinha esse tipo de dados, o CSM deveria ter permitido logo o acesso.

    Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”

    Decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa em aplicar uma sanção pecuniária compulsória ao Presidente do Conselho Superior da Magistratura.

    Os desembargadores concluíram ainda que o CSM não poderia ter decidido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos], até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”

    Numa situação ‘normal’, num Estado de Direito e no respeito pelos princípios da liberdade de imprensa, o CSM deveria ter, enfim, dar-se por convencido, mesmo que não se quisesse dar por vencido.

    E aparentou ir abrir mão dos documentos, quando, em finais de Julho de 2023, se agendaram as visitas de consulta dos documentos. Porém, o CSM começou por impor um pagamento de taxas exorbitantes em caso de se solicitar fotocópias. E no dia da consulta, pouco depois de o PÁGINA UM ter começado a fotografar as páginas dos dossiers do processo, foi proibida por ordem expressa da juíza secretária do CSM. Além disso, quis que as fotocópias fossem expurgadas de determinadas partes, o que contrariava a sentença. Dois requerimentos do PÁGINA UM não demoveram o CSM, que se achou no direito de criar regras próprias em vez de seguir regras legais. E, mais uma vez, só restou ao PÁGINA UM socorrer-se novamente do Tribunal Administrativo.

    Sede do Conselho Superior da Magistratura, em 2 de Agosto de 2023, quando o director do PÁGINA UM se deslocou para consultar o relatório do inquérito da Operação Marquês, após um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. A recusa de obtenção de cópia nessa data implicou nova ‘batalha judicial’ somente concluída mais de 17 meses depois.

    Nesta fase, o processo tornou-se ainda mais kafkiano. Apesar da intimação do PÁGINA UM para a execução da sentença ter entrado no Tribunal Administrativo de Lisboa em Outubro de 2023, durante praticamente um ano esteve absurdamente parado. Uma das razões foi ter saído a jurista do CSM responsável do processo, tendo só sido substituída largos meses depois. O juiz acabou por aceitar renovar a notificação.

    Seja como for, mais de 37 meses depois de ter sido feito o requerimento inicial, o juiz Bruno Gomes foi peremptório na sua sentença ao conceder razão ao PÁGINA UM para aceder e também fotografar integralmente os documentos em posse do CSM, por este ser um método previsto na lei, “equivalente ao envio por correio elecrónico”, ao qual, saliente-se, “não é devida qualquer taxa”. E disse ainda que não acolhe a posição do CSM de que a obtenção se faz “através de um único exemplar, sujeito a pagamento, pelo requerente, da taxa fixada”.

    Além disto, a sentença diz ainda que, sendo certo que “perpassa ao longo dos requerimentos” que o PÁGINA UM pretendia aceder aos “documentos através de reprodução por registo fotográfico, de modo a evitar os custos inerentes à reprodução por fotocópia”, mesmo que fossem requeridas fotocópias, estas teriam de ser entregues em “termos rigorosamente correspondentes ao do conteúdo do registo”. Ou seja, sem qualquer mutilação.

    Em Agosto de 2023, o CSM impediu o PÁGINA UM de fotografar o relatório do inquérito à distribuição da Operação Marquês e forneceu fotocópias completamente mutiladas. Tribunal Administrativo diz agora, finalmente, que esse impedimento foi ilegal.

    Saliente-se que, em Agosto de 2023, o CSM chegou a disponibilizar ao PÁGINA UM diversas fotocópias completamente mutiladas, apagando assim os nomes dos intervenientes no processo disciplinar, a descrição dos eventos, o número do processo, a data da distribuição e o nome do escrivão que interveio.

    Apesar desta evidente e histórica vitória do PÁGINA UM, e apesar da necessidade de duas sentenças e um acórdão – e de mais de três anos de luta em tribunal –, o juiz Bruno Gomes considerou que o CSM não foi litigante de má-fé. Certo é que somente por esta derradeira luta para conseguir fotografar os documentos, o PÁGINA UM vai ter de despender mais cerca de 300 euros em custas. Todo o processo, em taxas judiciais, envolveu mais de um milhar de euros.

    N.D. Leia actualização desta notícia AQUI.

  • Gouveia e Melo ‘despedido’ sem honra nem glória da Universidade Nova de Lisboa

    Gouveia e Melo ‘despedido’ sem honra nem glória da Universidade Nova de Lisboa

    O almirante na reserva Gouveia e Melo vai deixar de ser professor e regente da disciplina de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – pomposamente denominada Nova School of Law –, apesar de o seu nome ter ainda constado dos horários do segundo semestre do actual ano lectivo (2024/2025), divulgados pela instituição universitária nos últimos dias de Dezembro.

    De acordo com o documento a que o PÁGINA UM teve acesso, com data de 30 de Dezembro de 2024, Gouveia e Melo mantinha-se como responsável da cadeira de Maritime Security no mestrado em Direito e Economia do Mar, repetindo o estatuto de regente dos dois anos lectivos anteriores, embora nunca tenha leccionado. Mas depois de novas perguntas do PÁGINA UM à Nova School of Law sobre a sua manutenção no corpo docente, a instituição universitária aparentemente ‘exautorou’ Gouveia e Melo, que afinal só leccionava a cadeira de Maritime Security “enquanto CEMA [Chefe do Estado-Maior da Armada], por inerência”, o que deixou de ser no passado dia 27 de Dezembro.

    Gouveia e Melo acabou ‘exautorado’ de regente de uma cadeira de mestrado onde nunca deu uma aula em dois anos lectivos.

    Em nota transmitida por uma agência de comunicação privada, a LPM, por via de um contrato público no valor de 29.760 euros celebrado em Fevereiro de 2023 com a Nova School of Law – cuja inserção no Portal Base apenas ocorreu no passado dia 9 de Dezembro, três dias após uma anterior notícia do PÁGINA UM –, é dito ainda que “se aguarda indicações da Marinha Portuguesa sobre a equipa que assegurará essa cadeira no próximo semestre”, acrescentando que os novos horários, corrigidos no início da semana passada, já “não têm qualquer referência ao almirante Gouveia e Melo”.

    Porém, no site do mestrado, consultado esta tarde pelo PÁGINA UM, na descrição da cadeira de Segurança Marítima, o nome de Gouveia e Melo continua referido, informando-se que “o programa é narrativo”, e que “possui uma introdução em três partes, que seguem a lógica do título do programa”, acrescentando ainda que as “suas metodologias de ensino, como convém à ADN da faculdade, são aulas teórico-práticas interactivas que envolvem a participação dos alunos” E diz-se ainda que, “em alguns casos, os alunos podem decidir fazer apresentações sobre o tema da sessão, caso em que a interacção se torna mais espessa e multicêntrica”.

    Seja como for, o ‘despedimento’ sem honra nem glória de Gouveia e Melo – que mantém ainda activo o e-mail institucional, embora não tenha respondido ao pedido de comentários do PÁGINA UM – contrasta com o entusiasmo de um comunicado da instituição universitária quando anunciou a sua ‘contratação’, sem nunca referir que era apenas Chefe do Estado-Maior da Armada.

    O comunicado destacava em especial o seu papel de coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a covid-19 e salientava que a sua ‘contratação’ – que até agora não se sabe se envolveu pagamentos – constituía um exemplo do “empenho [da Nova School of Law] em robustecer o nosso corpo docente com os melhores e mais talentosos profissionais, contribuindo para a excelência deste mestrado, que se destaca pela sua natureza diferenciada, assente numa visão ampla e integrada, consciente de que no mar estão os maiores desafios e oportunidades do planeta para um desenvolvimento sustentável”.

    Nos horários do segundo semestre de 2024/2025 do mestrado em Direito e Economia do Mar ainda foram divulgados, no final de Dezembro, com Gouveia e Melo como regente. Depois das perguntas do PÁGINA UM, o seu nome ‘caiu’.

    Recorde-se que, como revelou o PÁGINA UM no mês passado, o almirante Gouveia e Melo terá violado o Estatuto dos Militares das Forças Armadas ao acumular a regência da cadeira de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa com o seu cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada, sobretudo porque afinal nunca existiu um protocolo entre as duas entidades.

    O diploma de 2015 explicita que “as funções militares são, em regra, em regime de exclusividade”, embora possa haver situações excepcionais, se forem compatíveis “com o seu grau hierárquico ou o decoro militar”. Sendo certo que a regência de uma cadeira de mestrado é uma função digna, Gouveia e Melo tinha um problema legal: o desempenho de funções em regime de acumulação, independentemente de serem exercidas graciosamente – como alegou a Marinha na semana passada –, “depende da autorização prévia do Chefe do Estado-Maior respectivo”.

    Ora, para a situação específica de Gouveia e Melo existia “um impedimento legal por interesse próprio”, como confirmaram ao PÁGINA UM dois professores universitários de Direito. Conforme estipula o Código do Procedimento Administrativo – que rege também actos desta natureza das Forças Armadas –, os titulares de um órgão no exercício de poderes públicos não podem intervir em qualquer processo “quando nele tenham interesse, por si, como representantes ou como gestores de negócios de outra pessoa”. Isto aplica-se mesmo se as funções forem exercidas a título gracioso, subentendendo-se sempre que Gouveia e Melo obteria, para si, o estatuto de professor universitário, melhorando o currículo público.

    Assunção Cristas (esquerda) e Margarida Lima Rego, actual directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Em concreto, a colaboração nos dois anos lectivos anteriores (2022/2023 e 2023/2024) de Gouveia e Melo – e de militares a si subordinados, que acabaram por leccionar as aulas, sem sequer serem (re)conhecidos os seus nomes como docentes – seria legal, mas mesmo assim sujeita a concordância da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), se estivesse suportada num protocolo. Porém, na verdade, esse propalado protocolo somente viu a luz do dia, passando então finalmente a existir, no final do mês de Dezembro passado, depois das revelações do PÁGINA UM.

    A revelação de que Gouveia e Melo nunca deu uma aula, que o seu nome nunca foi convenientemente aprovado pelo Conselho Científico da Facudade de Direito e que essa regência não estava prevista na renovação da acreditação pela A3ES estavam a constituir mais um incómodo do que uma vantagem para a instituição universitária.

    A própria coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, antiga ministra centristra, chegou mesmo a revelar uma fotografia a revelar uma visita à Base Naval do Alfeite em Novembro de 2022, acompanhada pela filha, e tendo como ‘cicerone’ o Almirante Gouveia e Melo, referindo-o como responsável da cadeira de Segurança Marítima, quando tal nem sequer fora divulgado pela Faculdade de Direito. Perante a celeuma, a continuação da regência por parte de Gouveia e Melo nem ao próprio seria vantajosa num cenário de candidatura às Presidenciais de 2026.

    Assunção Cristas: antiga ministra do CDS e coordenadora do mestrado tratou assuntos de uma universidade pública como se fosse ‘coisa caseira’.

    Em todo o caso, a Marinha, agora liderada pelo almirante Nobre de Sousa desde 27 de Dezembro passado, não quis remeter o seu conteúdo ao PÁGINA UM, recusando satisfazer um legítimo pedido de acesso em prol da necessária transparência, dizendo que “será divulgado publicamente em breve”. O gabinete de imprensa da Marinha não definiu o conceito de “breve”.

    A Marinha descarta também responsabilidades no afastamento de última hora do putativo candidato a Belém nas funções de regência da cadeira de Segurança Marítima. “No caso da eventual referência ao Senhor Almirante Gouveia e Melo nos horários do próximo semestre da Nova School of Law, bem como à sua divulgação, trata-se de matérias do foro exclusivo da referida faculdade, pelo que se sugere contacto directo com a mesma”, disse o gabinete de imprensa do Estado-Maior da Armada ao PÁGINA UM.

  • ‘Guerra de alecrim e manjerona’ (com 15 anos) entre Fisco e Infraestruturas de Portugal já custou 1,3 milhões

    ‘Guerra de alecrim e manjerona’ (com 15 anos) entre Fisco e Infraestruturas de Portugal já custou 1,3 milhões

    Tudo começou há uma década e meia, e não tem fim à vista. Por causa de um conflito com a arrecadação de IVA, a Infraestruturas de Portugal – a empresa estatal responsável pelas redes rodoviárias e ferroviárias – e a Autoridade Tributária ‘renovam’, ano após ano, diferendos semelhantes que acabam no tribunal administrativo. Junte-se à morosidade judicial que em 15 anos de quezílias ainda não conseguiu tomar uma decisão final em qualquer um dos 11 processos uma incompreensível inacção política para encontrar uma solução por via legislativa. Numa luta entre duas entidades da Administração Pública, cujos resultados serão indiferentes para os contribuintes, quem está a ganhar, e bem, nesta absurda ‘guerra de alecrim e manjerona’ tem sido a sociedade de advogados sistematicamente contratada por ajuste directo pela Infraestruturas de Portugal. Liderada por Eduardo Paz Ferreira, o marido da ex-ministra socialista da Justiça, Francisca Van Dunem, esta sociedade já amealhou 1,3 milhões de euros a tratar destes diferendos.


    O Fisco, já se sabe, não aceita de bom grado que não o deixem amealhar o máximo de imposto e de taxas. Nem as entidades públicas se livram desta sanha. E a antiga Estradas de Portugal, hoje Infraestruturas de Portugal (IP), foi uma dessas ‘vítimas’: no exercício financeiro do ano de 2008 e no primeiro semestre de 2009, esta empresa pública argumentou, perante a Autoridade Tributária, que tinha direito a deduzir o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativo à denominada Consignação de Serviço Rodoviário. Essa receita, apesar de legalmente pertencer à IP, era cobrada aos consumidores pelos distribuidores de combustível, que a encaminhava para o Fisco. Somente depois, de acordo com os mecanismos legais para cobrança e liquidação do imposto, esses montantes chegavam (e chegam) à IP.

    O diferendo de 2008 e primeiro semestre de 2009, que poderia ter sido pontual, e mediado, no limite, pelos Ministérios das Finanças e das Infraestruturas, não ficou resolvido nos gabinetes, como seria de esperar em entidades da Administração Pública, e acabou por parar no tribunal. Ou seja, o Tribunal Administrativo é que decidiria em que parte do Estado ficaria esse dinheiro: se no Fisco ou se na IP. Se o diferendo de 2008 foi parar ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, o mesmo destino teve um diferendo similar de 2009, e assim sucessivamente, em praticamente todos os anos até, por agora, 2020. À conta disto, estão ainda sem resolução 11 processos nas diferentes fases. Ou melhor dizendo, estão todos os processos, incluindo o de 2008, por resolver, porque nos tribunais administrativos anda tudo a passo de caracol.

    Um desentendimento entre a IP e o Fisco em torno do IVA está longe de entrar nos carris. / Foto: D.R.

    Com efeito, o primeiro processo, que envolve uma verba de 277 mil euros, teve uma decisão favorável ao Fisco na primeira instância, mas está parado desde 2013 por via do recurso da então Estradas de Portugal. Mas se a Autoridade Tributária começou por marcar o ‘primeiro golo’, sem ganhar em definitivo, os conflitos dos outros anos têm estado a dar ‘vitórias’ à actual Infraestruturas de Portugal. Porém, como há recurso do outro lado, contabilizam-se pelo menos oito processos que ainda estão muito longe do fim, porque aguardam acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul depois de um longo ‘calvário’ na primeira instância.

    Só para dar um exemplo, o diferendo relativo ao exercício de 2013 só teve sentença de primeira instância em finais de Março do ano passado – ou seja, assumindo que este conflito entre o Fisco e a IP se terá iniciado em 2014, a primeira decisão judicial demorou 10 anos. Mesmo assim pior está o diferendo de 2008 e primeiro semestre de 2009: depois da primeira sentença, aguarda-se por um acórdão do tribunal de recurso desde 2013. Ou seja, vai fazer, em Março, 12 anos.

    Os processos relativamente mais recentes (2017, 2018, 2019 e 2020) ainda estão numa fase mais atrasada. Nos dois primeiros casos, as impugnações no tribunal por parte da IP, depois do indeferimento do recurso hierárquico no Fisco, foram feitas em Abril de 2023, sem ter havido ainda sentença. Nos outros dois casos (2019 e 2020) ainda se está, respectivamente, na fase de recurso hierárquico e no projecto de relatório de inspecção tributária. Ignora-se se existem mais processos posteriores a 2020.

    Certo é que, com tudo isto, a empresa estatal que gere as redes rodoviárias e ferroviárias em Portugal está num impasse, que se prevê venha a durar anos, ou mesmo décadas, sobre montantes bastante significativos. De acordo com dados da empresa pública, no final de Junho de 2024, o saldo que reivindica deste conflito com o Fisco correspondia a 2,358 mil milhões de euros, um aumento face aos 2,254 mil milhões de euros no final de 2023.

    Com o ‘dinheiro’ empatado, porque contabilisticamente nem o Fisco nem a IP podem considerar aqueles elevados montantes como seus, quem está a pagar é, na verdade, o contribuinte, sendo que lhe será indiferente quem venha a ganhar as causas, uma vez que se tratam de conflitos entre duas entidades da Administração Pública. E o contribuinte está a perder já por uma simples razão: a IP está a contratar a ‘peso de ouro’ uma sociedade de advogados, por ajuste directo, liderada por Eduardo Paz Ferreira, marido da ex-ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que ocupou o cargo entre 2015 e 2022.

    A ‘colaboração’ entre Paz Ferreira e a IP nos chamados “processos IVA” começou em 2010, ainda com a Estradas de Portugal, para tratar das primeiras fases dos processos. Os montantes recebidos pela sociedade de advogados rondou os 184.500 euros entre 2010 e 2014. Nesta fase, apenas estariam em curso entre cinco e seis processos judiciais, pelo que cada processo, geralmente requerimentos, terá custado à actual IP mais de 30 mil euros.

    Em 2015, com IVA incluído, o montante recebido por Paz Ferreira foi de quase 37 mil, descendo para pouco mais de 21 mil no ano seguinte e em 2017 subiu para 60.270 euros e em 2018 para quase 73 mil euros. Mas depois disparou: em 2019 foi celebrado novo ajuste directo, desta vez pelo valor de quase 347 mil euros, com IVA, que deveria durar para tratar dos “processos IVA” até Fevereiro de 2022. Somente no primeiro semestre de 2023 surgiram dois novos ajustes directos, mas de baixo valor: o primeiro de 12.300 euros, e o segundo de 24.600 euros.

    Eduardo Paz Ferreira, advogado e marido de Francisca Van Dunem, ex-ministra da Justiça do governo socialista. / Foto: D.R.

    Porém, o ano não terminaria sem mais um chorudo contrato de ‘mão-beijada’: Paz Ferreira arrecadou uma adjudicação de mais de 258 mil euros (com IVA) para tratar dos “processos IVA” por três anos; em teoria, até Julho de 2026. Contudo, na prática o dinheiro esfumou-se, supostamente por prestação de serviços. E assim sendo, 17 meses depois, no passado dia 16 de Dezembro, foi assinado um novo ajuste directo com Paz Ferreira no valor de 253.134 euros, IVA incluído.

    Em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM, um porta-voz da IP diz que houve ” necessidade de um novo contrato decorrente do facto de o anterior se ter esgotado, dados os desenvolvimentos processuais entretanto ocorridos, quer decorrentes dos processos de inspecção anuais quer porque, em 2024, foram proferidas seis decisões judiciais favoráveis à IP, mas objeto de recurso” pela Autoridade Tributária.

    A IP tem justificado a contratação de Paz Ferreira através de uma norma que prevê o ajuste directo sempre que “a natureza das respetivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas para que sejam definidos os atributos qualitativos das propostas necessários à fixação de um critério de adjudicação […], e desde que a definição quantitativa dos atributos das propostas, no âmbito de outros tipos de procedimento, seja desadequada a essa fixação tendo em conta os objetivos da aquisição pretendida”. Essa tem sido uma forma enviesada para perpetuação de ajustes directos, afastando a concorrência.

    Mesmo que haja complexidade nos processos em tribunal, o certo é que a Paz Ferreira está longe de ser a única sociedade de advogados do país capaz de representar a IP em processos relacionados com IVA. Mas o argumento de que ‘só esta sociedade de advogados sabe da poda’ não é verídico nesta situação. Pode estar-se, mais uma vez, perante um abuso na interpretação das normas do Código dos Contratos Públicos.

    Segundo a empresa pública, a mais recente contratação decorre “da necessidade da IP em manter o patrocínio judiciário que tem vindo a ser assegurado, mantendo, deste modo, a estratégia e o sucesso da defesa adoptada, que tem subjacente um elevado grau de conhecimento nas valências de direito e processo tributário e o conhecimento efetivo de toda a tramitação inerente aos complexos processos em curso e aos que eventualmente se venham a iniciar, com a mesma natureza fiscal, valências essas que, pela sua especificidade, a equipa interna da IP não dispõe”.

    De entre os contratos públicos celebrados pelo escritório de Eduardo Paz Ferreira, a IP é, de longe, o seu melhor cliente, totalizando 13 contratos, todos por ajuste directo, a que acrescem mais seis pela Estradas de Portugal, até 2015. No total, este advogado celebrou 58 contratos desde 2013, segundo dados do Portal Base, sempre de ‘mão-beijada’, facturando cerca de 2,9 milhões de euros. Com a IP será previsível, se se mantiver, o facilitismo na contratação, que continue assim por muitos anos.

    Na plataforma que agrega os registos sobre contratos públicos, o Portal Base, encontram-se contratos adjudicados pela IP à Paz Ferreira desde 2015. No entanto, as verbas envolvidas eram bem mais baixas, situando-se entre os 7.500 euros e os 40 mil euros.

    Ainda não é visível a luz ao fundo do túnel nos processos que opõem a IP e o Fisco. / Foto: D.R.

    Saliente-se, por fim, que o diferendo com a Autoridade Tributária tem tido fortes reflexos negativos nas contas da empresa pública liderada por Miguel Cruz, que foi secretário de Estado do Tesouro entre Junho de 2020 e Março de 2022. No primeiro semestre de 2024, a IP teve mesmo de reforçar as suas provisões em 20,3 milhões de euros, ficando o valor acumulado nos 547,7 milhões de euros no final do primeiro semestre do ano passado. Esse montante que “corresponde ao IVA que o Grupo IP estima que deixaria de receber caso fosse considerado que a CSR [Consignação do Serviço Rodoviário] não é uma receita sujeita a IVA”.

    A empresa também registava, a 30 de Junho último, responsabilidades assumidas com garantias bancárias de 1,5 mil milhões de euros prestadas a favor da Autoridade Tributária decorrentes do processo do IVA, além de assumir ainda garantias no montante de 4,9 milhões de euros prestadas a favor de
    tribunais no âmbito de processos de contencioso e a outras entidades.


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  • Solar dos Presuntos com lucros de 2 milhões, mas novas admissões ‘corridas’ a salário mínimo

    Solar dos Presuntos com lucros de 2 milhões, mas novas admissões ‘corridas’ a salário mínimo

    O custo das refeições ultrapassa, facilmente, os 50 euros por comensal, mas consolidou-se como um ponto de referência para almoços e jantares de figuras públicas. O icónico Solar dos Presuntos, em Lisboa, aumentou em 2021 a sua capacidade e, em dois anos, ultrapassou facilmente a crise causada pela pandemia e mais do que duplicou o número de empregados. Na semana passada, o seu gerente, Pedro Cardoso, revelou que um quarto dos trabalhadores é de origem nepalesa, sendo que a experiência é tão boa que não os trocaria por nada. O PÁGINA UM foi olhar as contas da empresa gestora do restaurante para concluir que Pedro Cardoso só pode estar mesmo satisfeito: em termos reais, depois de um forte investimento em 2021, conseguiu um aumento real dos lucros da ordem dos 65% entre 2019 e 2023, que atingiram os dois milhões de euros, mas também muito por via do salário médio líquido dos empregados ter baixado 26%. Pela análise às contas, apesar de a margem líquida (lucro a dividir pelas receitas) ser mais de sete vezes superior à média do sector da restauração, grande parte dos novos contratados pelo Solar dos Presuntos estará a ganhar valores próximos do salário mínimo nacional.


    “Gosto muito deles, somos como uma família, são essenciais à nossa actividade e eu não faço qualquer distinção com os outros funcionários portugueses que aqui estão”. Foi com estas palavras ao jornal Expresso, na semana passada, que Pedro Cardoso, o proprietário do Solar dos Presuntos, supostamente quis homenagear a importância dos imigrantes, destacando mesmo que o famoso restaurante na Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa, não seria o mesmo sem os nepaleses, que constituem cerca de um quarto dos trabalhadores. “Se o pessoal do Nepal fosse todo embora, a restauração fechava, não tínhamos mão-de-obra necessária à nossa actividade”, afiançou o empresário.

    A falta de mão-de-obra, sendo questão recorrente, até para justificar a imigração, deve ser ponderada num contexto salarial. Ou seja, muitas vezes, a falta de mão-de-obra está sobretudo associada a um contexto salarial. Não é raro que a alegada escassez de trabalhadores provenha sobretudo da ausência de condições atractivas, sejam salariais, contratuais ou de progressão profissional. E isso mostra-se mais visível em determinados sectores, como a restauração. Daí que a entrada de imigrantes implica, em muitos casos, sobretudo em tarefas pouco qualificadas, mas exigentes em termos de condições de trabalho, um reajustamento salarial – para baixo. E não para sobrevivência das empresas, mas simplesmente para aumento dos lucros.

    Pedro Cardoso ‘herdou’ a gestão de um dos mais icónicos restaurantes de Lisboa fundado em 1974.

    Foi nessa óptica – e num contexto em que se sabe que a subutilização do trabalho em Portugal abrangia quase 614 mil pessoas em Novembro passado, ou seja, cerca de 11% da população activa alargada –, que o PÁGINA UM foi tentar perceber, através da análise das contas da empresa proprietária – a Gonzalez, Teixeira e Seoane, Lda. –, se o Solar dos Presuntos está com a ‘corda na garganta’ e, sobretudo, perceber a sua política salarial face à evolução da facturação e, em especial, do lucro.

    Analisaram-se assim, em detalhe, as demonstrações financeiras e outros elementos constantes da Informação Empresarial Simplificada (IES) da empresa proprietária do Solar dos Presuntos para os exercícios anuais de 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023. As contas de 2024 apenas serão conhecidas ao longo dos próximos meses. Aliás, a IES de 2023 somente foi reportada pela empresa no passado dia 18 de Outubro. Nesse contexto, mostrou-se desnecessário, até pela isenção jornalística que se pretende transmitir, solicitar mais esclarecimentos à Gonzalez, Teixeira e Seoane, dado que a IES oferece dados claros e suficientes para uma análise económica e financeira rigorosa.

    Convém desde já destacar que, tal como sucedeu com todo o sector da restauração, os anos de 2020 e 2021 foram complicados para o Solar dos Presuntos, por via dos confinamentos e da redução abrupta do turismo. Nesse contexto, mesmo com subsídios estatais nesses dois anos da ordem dos 520 mil euros, a empresa apresentou um inédito prejuízo de 60 mil euros em 2021. Mas esse desempenho também se deveu ao investimento numa profunda remodelação do restaurante que mais do que duplicou a capacidade. O restaurante reabriria em Agosto desse ano passando de cerca de 200 lugares para 450, com um investimento anunciado de quatro milhões de euros. Assim terá sido, até porque as contas o reflectem: os activos fixos tangíveis (que incluem sobretudo os edifícios) subiram de quase 2,6 milhões de euros em 2020 para um pouco mais de 6,4 milhões em 2021.

    A presença de futebolistas é o ‘prato forte’ do Solar dos Presuntos. Nesta foto, revelada pelo gerente Pedro Cardoso, estão Jeremiah St Juste, Franco Israel, Francisco Trincão e Viktor Gyökeres, todos jogadores do plantel do Sporting.

    Esse aumento da capacidade, a par da inauguração em 2023 do Gracinha – um espaço de petiscos que, aparentemente, não tem caído nas graças de muitos clientes –, catapultou a facturação e os lucros da empresa do Solar dos Presuntos. Depois dos dois anos da pandemia (2020 e 2021) com facturação em cada um dos exercícios a rondar os três milhões de euros – uma queda significativa face a 2019, que se cifrou em 5,9 milhões de euros –, a empresa conseguiu facturar mais de 7,7 milhões de euros em 2022 e terminou o ano de 2023 com quase 9,5 milhões, ou seja, uma receita diária superior a 28 mil euros.

    Mas se a facturação atingiu, em 2023, montantes elevados, mesmo para um restaurante popular – frequentado por VIPs, sobretudo futebolistas –, mais impressionantes foram os lucros, que mostraram o sucesso do investimento no período da pandemia. Com efeito, se em 2020 os lucros tinham recuado 63% face ao ano anterior (de 1,07 milhões de euros para 361 mil euros) e em 2021 foram contabilizados prejuízos (-60 mil euros), a recuperação iniciou-se de imediato em 2022. Nesse ano, a empresa do Solar dos Presuntos teve um lucro de 571 mil euros e em 2023 atingiu a cifra dos 2.006.040 euros.

    Parecendo evidente que o investimento no redimensionamento do Solar dos Presuntos em plena pandemia, que causou prejuízos em 2021, foi uma aposta ganha, há também outro factor: com o aumento do pessoal, os salários médios diminuíram, ou seja, uma parte dos trabalhadores contratados sobretudo a partir de 2022 passou a ganhar menos. E este menos é ainda menos se considerarmos o efeito da inflação.

    De facto, considerando os encargos com os empregados, bem como a retenção de IRS, o salário médio líquido dos funcionários do Solar dos Presuntos era, em 2019, de cerca de 1.340 euros, tendo baixado para os 1.123 euros em 2023. Entre 2019 e 2023, o número de empregados aumentou de 52 para 94. Mas a evolução salarial agravou-se ainda mais pela forte inflação que se registou sobretudo a partir de 2022.

    Assim, se se considerar o factor de actualização do Instituto Nacional de Estatística (INE), o salário médio em 2023 deveria ser 13,9% superior ao de 2019 para, em teoria, não ocorrer perda de poder de compra. Ou seja, em média o salário de 2023 deveria ser de 1.525 euros – porém, é de 1.123 euros, o que significa que a folha salarial média em valores reais desceu 26,4%.

    Não sendo de esperar que quem já trabalhava no Solar dos Presuntos em 2019 tenha passado a ganhar menos – pelo contrário, terá havido alguma actualização em virtude da inflação –, aquilo que estes valores revelam é que as novas contratações, em termos líquidos, tenham sido ‘corridas’ a salários próximos do ordenado mínimo nacional, que em 2023 estava fixado nos 760 euros. Ou seja, uma parte substancial dos contratados pelo Solar dos Presuntos desde 2022 estará a receber o salário mínimo nacional.

    Ao invés de uma redução do salário médio em termos reais de cerca de 26% entre 2019 e 2023, o lucro quase duplicou em termos nominais (passando de 1,07 milhões para 2,01 milhões de euros), registando um crescimento de 65% em termos reais. Se os salários de 2019 tivessem sido aumentados com um factor de actualização de 1,1389 (INE) e os salários médios dos novos contratados fossem semelhantes aos salários mais antigos, os gastos do pessoal seriam, de acordo com as estimativas do PÁGINA UM, de cerca de 2,9 milhões de euros, um pouco mais de 520 mil euros face aos valores reais. Nessas circunstâncias, o Solar dos Presuntos estaria muito longe de ficar aflito: a empresa ‘apenas’ baixaria os seus lucros de 2,01 milhões para cerca de 1,5 milhões de euros.

    Evolução (em euros) das vendas, dos custos das mercadorias vendidas e das matérias consumidas (CMVMC), dos fornecimentos e serviços externos (FSE), dos gastos com pessoal (incluindo todos os encargos) e dos lucros entre 2019 e 2023. Fonte; IES da Gonzalez, Teixeira e Seoane, Lda.

    Aliás, a situação da empresa gestora do Solar dos Presuntos era, no final de 2023 (só a meio do presente ano se saberão as contas de 2024), bastante desafogada, com activos no valor de quase 16 milhões de euros, dos quais mais de 3,2 milhões de euros em caixa e contas bancárias. Nos últimos cinco anos, período analisado pelo PÁGINA UM, o endividamento sempre foi relativamente baixo – o passivo era de dois milhões de euros – face a um robusto capital próprio de 13,9 milhões de euros, dos quais 10,4 milhões de lucros acumulados. A margem líquida (razão entre lucro e receitas) em 2023 atingiu os 21,2%, um valor mais de sete vezes superior ao do mercado da restauração, de acordo com os números de Banco de Portugal. Se a empresa do Solar dos Presuntos tivesse apresentado a taxa média de margem líquida do sector (2,94%), mesmo assim o lucro em 2023 seria da ordem dos 277 mil euros.

    Segundo as informações do IES da empresa, nos últimos cinco anos nunca houve distribuição de dividendos, nem tão-pouco gratificações declaradas quer à gerência quer ao pessoal.

    Apesar do volume de negócios, dos montantes do balanço e do número de empregados estarem em patamares que exigiriam a certificação das contas por um revisor oficial de contas (ROC), a empresa do Solar dos Presuntos continua a assumir ser, em termos contabilísticos, uma “pequena entidade”, algo que, a manter-se, pode suscitar uma intervenção da Autoridade Tributária.


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