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  • Quedas de idosos fazem saltar mortes por covid-19

    Quedas de idosos fazem saltar mortes por covid-19

    O registo de doentes-covid pelo Ministério da Saúde inclui largas centenas de internamentos por quedas, trambolhões, escorregadelas e contusões por objectos. Estes doentes entraram na base de dados da covid-19 porque testaram positivo na admissão hospitalar. O PÁGINA UM teve acesso a informação clínica dos doentes-covid até Maio do ano passado, e contabilizou mais de 1.200 casos de hospitalizações nestas circunstâncias. Destas pessoas, 266 morreram, muitas num prazo muito curto. Mas todas foram contadas pelo Governo como vítimas da pandemia. Veja, no final do artigo, os casos mais bizarros.


    Em finais de Janeiro do ano passado, um homem de 60 anos caiu de uma janela no dia em que foi internado num hospital do Grande Porto – que o PÁGINA UM conhece mas não divulga para preservação da identidade num evento trágico. Era um doente terminal, com cancro do pâncreas e neoplasias secundárias no fígado. Tinha também covid-19 com manifestação de hipoxemia. A queda da janela, provavelmente suicídio, causou-lhe morte imediata. Porém, entrou nas estatísticas oficiais dos óbitos-covid da Direcção-Geral da Saúde.

    Este foi um caso raro num episódio de desespero, mas a base de dados do Serviço Nacional de Saúde (SNS) possui, na verdade, centenas e centenas de internados contabilizados como doentes-covid que foram hospitalizados por causas nada relacionadas com a pandemia, como sejam quedas no soalho, de camas, de varandas ou janelas, devido a escorregadelas ou tropeções ou colisões contra objectos.

    Em muitos casos, os danos físicos foram muitíssimo graves, incluindo traumatismos cranianos, membros partidos ou afectação de outros órgãos. No total, até Maio de 2021, terão ocorrido pelo menos 266 óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas cujo internamento foi subsequente a quedas e acidentes similares.

    Numa parte dos casos, a morte surgiu no próprio dia ou nos dias seguintes face à gravidade dos traumatismos. Porém, entraram na contabilidade dos casos e mortes por covid-19 porque, na admissão no hospital, tiveram teste positivo ao SARS-CoV-2.

    Numa análise detalhada do PÁGINA UM à base de dados do SNS, contabilizam-se pelo menos 1.207 casos de internamento até Maio de 2021 em que, subjacente à hospitalização inicial, estiveram quedas, em alguns casos especificadas (soalho, varanda, cadeira, cadeira de rodas ou cama).

    Em diversas situações, os traumatismos da queda podem ter sido subsequentes a um outro evento (como um ataque cardíaco ou um acidente vascular cerebral), mas na esmagadora maioria das situações tratou-se de quedas acidentais. Não consta, nem nos registos, nem em artigos científicos com peer review, que o SARS-CoV-2 possa ser responsável ou co-responsável por qualquer queda, trambolhão ou escorregadela.

    Nesta base de dados do SNS – convenientemente anonimizada, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística – estão incluídos todos os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento, seguindo os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os registos das doenças, maleitas e lesões (directas e sequelas) de cada doente surgem ordenadas cronologicamente (a partir do 0, embora sem referência à data de cada). Deste modo, sempre que as quedas (com o código iniciado pela letra W na CDI) constam nas primeiras linhas do registo individual, e geralmente antes do diagnóstico covid-19 (com o código U071 da CDI), mostra-se evidente que foram os traumatismos per si os responsáveis pelo internamento.

    De acordo com a informação analisada pelo PÁGINA UM, 86% das pessoas do grupo dos internados por traumatismos resultantes de quedas e contusões contra obstáculos – que não inclui acidentes rodoviários ou com maquinaria – tinham mais de 65 anos. Em termos absolutos, até Maio de 2021, a base de dados do SNS registou 178 internamentos por traumatismos desta natureza – e depois com teste positivo à covid-19 – de pessoas com 90 ou mais anos, e ainda de 502 com idades entre os 80 e 89 anos. A média foi de quase 78 anos, e mais de metade dos hospitalizados nestas circunstâncias tinha idade superior a 81 anos.

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    O idoso mais velho hospitalizado nestas condições foi uma senhora de 103 anos, bastante debilitada (já com caquexia) e com deficiência renal, que caiu da cama em Novembro de 2020, com perda de consciência. Internada no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, acabou por morrer ao quinto dia. Foi considerada mais uma morte por covid-19.

    No entanto, também houve crianças, adolescentes e jovens adultos internados por quedas que surgem como doentes-covid. O mais jovem foi um bebé de dois anos do sexo masculino. Esteve internado no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte apenas dois dias em Setembro de 2020, em observação, por ter perdido a consciência após a queda. Foi assim metido nas contas oficiais dos internados por covid-19 porque registou positivo no teste de admissão no hospital. Surgem mais cinco menores de idade em similar circunstância, com internamentos muito curtos (quase sempre apenas um dia), ou seja, a covid-19 não os afectou.

    A gravidade de algumas destas quedas e outras contusões, sobretudo dos mais idosos, mostra-se notória quer na taxa de mortalidade quer nos efeitos das quedas (traumatismos). De entre os 178 traumatizados (e depois com covid-19) com 90 ou mais anos, 65 morreram. Destes, 14 em menos de uma semana. Em todas as idades, 62 faleceram no período de uma semana, sendo que cinco morreram no próprio dia do internamento e 15 no dia imediatamente posterior.

    black and brown spiral staircase

    Observando o efeito directo de muitas das quedas – ou seja, os traumatismos resultantes –fica-se com a verdadeira percepção da sua gravidade, e da irrelevância da covid-19 no desfecho fatal.

    De entre os internados após estes acidentes que morreram nos primeiros dias de internamento, contam-se traumatismos crânio-encefálicos, hemorragias subdurais, fracturas da base do crânio, compressão do encéfalo, edemas cerebrais, etc.. Isto apenas se se considerar a cabeça. Se se incluírem também as fracturas e danos nos membros superiores e inferiores, ou fracturas ou contusões em outras partes do corpo, ainda mais em pessoas fragilizadas, então pode-se deduzir que a covid-19 – embora bastante letal em idosos – arcou com muitas mais culpas do que aquelas que, efectivamente, teve.

    Além destes cerca de 1.200 casos, o PÁGINA UM detectou na base de dados do SNS mais 719 doentes-covid que registaram quedas, mas a esmagadora maioria terá já ocorrido em meio hospitalar, tendo em consideração a ordem do registo clínico individual. Em alguns casos, essas quedas – muitas das quais da cama – podem ter contribuído para um desfecho fatal, mas apenas uma investigação clínica, ou judicial, daria uma resposta. Algo que o PÁGINA UM, neste aspecto concreto, não consegue fazer.


    Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas no próprio dia da morte após quedas e outros acidentes similares

    Homem, 91 anos
    Data de internamento: 28/11/2020
    Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hematoma subdural e lesão focal.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Homem, 87 anos
    Data de internamento: 15/01/2021
    Causa do internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano de doente diabético.
    Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)

    Mulher, 84 anos
    Data de internamento: 27/01/2021
    Causa do internamento: queda de doente acamado com doença de Alzheimer.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Setúbal

    Mulher, 65 anos
    Data de internamento: 24/11/2020
    Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico hemorrágico.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto)

    Homem, 60 anos
    Data de internamento: 27/01/2021
    Causa de internamento: queda de janela do hospital (suicídio?) de doente terminal com tumor de pâncreas e fígado, apresentando covid-19.
    Unidade de saúde: conhecida, mas não revelada


    Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas após quedas e outros acidentes similares e que morreram no dia seguinte

    Mulher, 99 anos
    Data de internamento: 17/06/2020
    Causa de internamento: queda de cadeira de rodas resultando laceração periocular e coma subsequente.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte

    Homem, 97 anos
    Data de internamento: 01/11/2020
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa

    Mulher, 97 anos
    Data de internamento: 23/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa

    Mulher, 89 anos
    Data de internamento: 05/02/2021
    Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e hemiplegia afectando o lado esquerdo do doente.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Mulher, 87 anos
    Data de internamento: 29/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano e perda de consciência de doente crónico renal, que vivia em lar de idosos
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Barreiro-Montijo

    Homem, 87 anos
    Data de internamento: 03/04/2020
    Causa de internamento: queda de doente em lar de idosos com cancro da bexiga, diabetes.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Homem, 86 anos
    Data de internamento: 30/12/2020
    Causa do internamento: queda resultando em fractura do fémur esquerdo de doente com demência e estenose da válvula aórtica, que vivia em lar de idosos.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Lisboa Ocidental

    Mulher, 85 anos
    Data de internamento: 12/12/2020
    Causa de internamento: queda resultando numa contusão não especificada da cabeça.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro

    Homem, 85 anos
    Data de internamento: 18/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano em doente com grave desidratação.
    Unidade de saúde: Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano

    Homem, 84 anos
    Data de internamento: 28/10/2020
    Causa de internamento: queda resultando em fractura do fémur direito de doente com doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), cancro do pulmão e dependência de oxigénio suplementar.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar do Oeste

    Mulher, 78 anos
    Data de internamento: 17/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e coma de doente com diabetes e antigo enfarte do miocárdio.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Homem, 77 anos
    Data de internamento: 06/01/2021
    Causa do internamento: queda envolvendo doente com rabdomiólise e hipopotassemia.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

    Mulher, 75 anos
    Data de internamento: 25/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando em fractura do colo do fémur de uma doente com obesidade mórbida e insuficiência cardíaca que sofreu ataque cardíaco.
    Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)

    Homem, 70 anos
    Data de internamento: 16/11/2020
    Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural, compressão do encéfalo, edema cerebral e coma em doente com diabetes e estenose aórtica.
    Unidade de saúde: Hospital de Braga

    Homem, 67 anos
    Data de internamento: 17/01/2021
    Causa de internamento: queda resultando fractura da base do crânio e em hemorragia epidural, e ainda fractura das costelas.
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

  • Quatro em cada 10 menores hospitalizados com covid-19 foram internados por outras causas

    Quatro em cada 10 menores hospitalizados com covid-19 foram internados por outras causas

    Para o Serviço Nacional de Saúde tudo conta para aumentar os números de internados por covid-19 em jovens. O PÁGINA UM, através de uma base de dados oficial a que teve acesso, revela como fracturas, apendicites, diabetes, cancros, infecções diversas, problemas congénitos, envenenamentos por inalação de monóxido de carbono, ideação suicida, complicações pós-parto em adolescentes e até torções de testículos são apanhados pelas “malhas” das autoridades de Saúde para classificar jovens como doentes-covid. Basta que tenham tido teste positivo na admissão ao hospital ou durante o internamento.


    Uma parte significativa dos menores de idade contabilizada na base de dados do Ministério da Saúde relativa aos doentes-covid esteve internada por causas não relacionadas com o SARS-CoV-2. De acordo com os registos hospitalares dos primeiros 15 meses da pandemia, de entre os 810 menores hospitalizados nas unidades do Serviço Nacional de Saúde entre Março de 2020 e Maio de 2021, cerca de 42% (342 bebés, crianças e adolescentes) foram contabilizados apenas porque, por regra, testaram positivo na unidade de saúde onde se deslocaram para receber tratamento a outros problemas, imediatamente no momento da admissão ou durante a hospitalização. Ou seja, a covid-19 foi detectada após a patologia ou afecção que justificou o internamento.

    Estes números não incluem os recém-nascidos – pelo menos 38 – que surgem contabilizados como doentes-covid por terem sido infectados pelas respectivas mães, sem daí ter advindo problemas de saúde relevantes.

    selective focus photography of baby holding wooden cube

    Tendo em consideração que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) mantém uma opacidade absoluta sobre dados fundamentais relacionados com o impacte da covid-19 nos menores de idade – recusando mesmo conceder acesso à base de dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) –, o PÁGINA UM decidiu começar a divulgar dados confidenciais a que teve acesso. E a análise detalhada aos registos clínicos, anonimizados, permite denunciar, desde já, que a gravidade da pandemia, sendo evidente nos idosos, está a ser empolada pela DGS e Governo em relação à população mais jovem, com o objectivo de pressionar e incentivar os pais a vacinarem os seus filhos.

    Com efeito, de acordo com a base de dados consultada pelo PÁGINA UM, até Maio de 2021 foram registados apenas 468 internamentos de menores cuja hospitalização se deveu directamente à covid-19, o que representava uma taxa de internamento de cerca de 0,4% dos casos positivos nesta faixa etária. Se se considerar a população total dos menores de idade (1,7 milhões, segundo as estimativas do INE), esse rácio de internamentos (em 15 meses) foi de 0,027%. Mesmo que se contabilizem os 810 menores internados com teste positivo, então esse rácio sobe para 0,048%.

    As causas de internamento dos 342 menores de idade que acabaram nas “malhas” do registo do SNS da pandemia – apenas por terem tido um teste positivo aquando da sua admissão hospitalar – são as mais diversas. Na verdade, reflectem as situações do quotidiano anteriores à pandemia, com toda uma panóplia de doenças e outras afecções pediátricas.

    baby on bed

    Na base de dados do SNS constam, como sendo doentes-covid, 44 menores com apendicites como justificação para internamento. Na admissão, como tiveram caso positivo à covid-19, ficaram nos registos. Houve ainda 22 hospitalizações deste género por pielonefrite aguda. Nos registos individuais, convenientemente anonimizados, observados pelo PÁGINA UM, contam-se 17 bebés com menos de dois anos internados por causa desta infecção do sistema urinário.

    Casos de anemia falciforme foram uma dezena (todos na região de Lisboa e Coimbra), destacando-se também a hospitalização para tratamento médico de 11 menores com diabetes tipo I, outros tantos com diagnóstico de sepsis, nove com meningites e cinco com inflamações dos nódulos linfáticos (linfadenites do pescoço e da cabeça). Foram ainda internados quatro jovens, entre os 7 e os 14 anos, com síndrome inflamatória multissistémica – a única doença, entre estes 342 casos, que pode estar associada a uma complicação por covid-19.

    Recorde-se que, até agora, morreram três menores de idade: dois bebés com menos de um ano e uma criança de quatro anos, todos com gravíssimas comorbilidades. Na faixa dos 10 aos 19 anos, de acordo com o intervalo de idade usados pela DGS, estão mais três óbitos, mas já de maiores de 18 anos e com graves comorbilidades. A mais recente morte neste grupo ocorreu em 14 de Dezembro passado: o de uma jovem de Braga que sofria de síndrome de Dravet. Relembre-se que a DGS, desrespeitando a confidencialidade de dados clínicos, divulgou que a jovem de Braga não estava vacinada.

    A lista de patologias que justificam internamentos directos, mas que são depois transformados em hospitalizações por covid-19, é quase interminável. De entre as patologias detectadas pelo PÁGINA UM, estão cancros em quatro menores, entre os quais uma criança de três anos hospitalizada devido a um tumor cerebral no Hospital de São João.

    E depois há uma gama de problemas que sempre preocuparam os pais antes da pandemia: 28 internamentos por fracturas diversas, quase sempre acidentais; cinco casos de intoxicação por inalação de monóxido de carbono; seis envenenamentos (entre os quais um bebé de um ano com derivado de canábis e outro com ansiolíticos); um caso de alcoolismo (um jovem de 17 anos); quatro por ideação suicida; dois por anorexia nervosa (duas adolescentes de 16 e 17 anos); um caso de transtorno ansioso; dois casos de hospitalização por torção dos testículos; um por laceração do tendão de Aquiles do pé esquerdo (um jovem de 14 anos em Lisboa); e um internamento por laceração do sobrolho (uma criança quatro anos em Coimbra).

    three women lying on bed while raising their feet

    Ainda se destacam, em particular, uma dezena de casos de adolescentes consideradas doentes-covid que foram parar ao hospital por razões mais relevantes: complicações pós-parto, que atingiram cinco jovens de 17 anos, quatro de 16 anos e uma de 15 anos.

    Mesmo em muitos internamentos em que a covid-19 surge no topo hierárquico dos diagnósticos no boletim clínico de internamento, mostra-se discutível se esta doença foi, efectivamente, a causa directa de hospitalização. Por uma razão simples: um grande número são recém-nascidos – ou seja, em concreto, nem sequer foram “admitidos” na unidade de saúde –, ou então menores de um ano. A base de dados do SNS contabiliza, porém, não deixou “escapar” 168 bebés dentro deste grupo etário, grande parte dos quais “apanharam” covid-19 das mães.

    Quase na totalidade destes casos, a covid-19 não teve qualquer relevância na situação clínica, mesmo quando houve necessidade de internamento em cuidados intensivos (UCI). Com efeito, nos menores de um ano, apenas cinco estiveram em UCI, mas devido à condição de prematuro ou por afecções congénitas. Foi o caso de um bebé internado durante três meses e uma semana, incluindo em UCI, no Hospital Garcia da Orta, porque nasceu com 27 semanas. Mesmo com covid-19 sobreviveu.

    Houve também dois recém-nascidos que estiveram em UCI no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental: um em observação por três dias; e outro em situação mais grave, por sofrer de síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), e que acabou por ter alta apenas ao fim de um mês e meio. Também dois casos de prematuros em UCI estiveram internados no Hospital do Espírito Santo de Évora. Ambos tiveram uma hospitalização de quatro dias, em observação. Curiosamente, um desses bebés nasceu na véspera de Natal de 2020.

    man in blue scrub suit holding baby

    O caso clínico mais grave passou pelo Hospital Dona Estefânia: um prematuro de 24 semanas – que também surge nos registos de doentes-covid – esteve internado seis meses por nascer com 24 semanas e gravíssimas malformações congénitas cardíacas e neurológicas. Aliás, sobreviveu à covid-19 “nas calmas” face à gravidade inicial do seu estado clínico. Na verdade, até a apanhou no hospital, já que nasceu em Janeiro de 2020 – antes da “chegada” do SARS-CoV-2 a Portugal – e só viu pela primeira vez na vida a luz fora do hospital em Julho desse ano.

    A partir do primeiro ano de vida, a taxa de internamento hospitalar por covid-19 mostrou-se ainda mais diminuta, mesmo quando esta doença foi a causa directa de hospitalização. De acordo com a base da dados consultada pelo PÁGINA UM, entre os 1 e os 2 anos de idade, apenas se contabilizaram, no período em análise, 41 internamentos em que a covid-19 foi considerada a responsável directa pela hospitalização, independentemente das comorbilidades pré-existentes. Somente um destes bebés esteve em UCI.

    No extenso grupo etário dos 2 aos 17 anos – que agrupam mais de 1,5 milhões de jovens – contam-se somente 259 internamentos “directos” por covid-19, dos quais 18 necessitaram de internamento em UCI, mas nem todos entubados. Nenhum destes jovens e crianças morreu.

    Artigo com colaboração de Maria Afonso Peixoto

  • Filipe Froes tem incompatibilidades para ser consultor da Direcção-Geral da Saúde

    Filipe Froes tem incompatibilidades para ser consultor da Direcção-Geral da Saúde

    O mediático pneumologista do Hospital Pulido Valente, que acumula com a coordenação do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a pandemia, é um dos médicos portugueses com maiores ligações à indústria farmacêutica. Mas tem mantido o seu estatuto de consultor da Direcção-Geral da Saúde porque alegadamente nunca ultrapassou o limite financeiro previsto por lei. O PÁGINA UM desvenda agora a contabilidade pessoal e empresarial de Filipe Froes – incluindo os montantes pagos por 22 farmacêuticas. E revela ainda que ele entrou em incompatibilidade a partir deste ano.


    O pneumologista Filipe Froes – uma das figuras mais mediáticas durante a pandemia – está em risco de perder o seu estatuto de consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS) por ultrapassar o limite de 50.000 euros anuais pagos por farmacêuticas no último quinquénio (2017-2021). Essa apetecível função, embora não remunerada, permite a certos profissionais de saúde acederem directamente às autoridades de Saúde e integrar grupos de trabalho ou equipas com poder de decisão em matérias normativas, abrindo assim possibilidades para as farmacêuticas exercerem “lobby” e terem eventualmente acesso a informação privilegiada.

    Para evitar conflitos de interesse, um decreto-lei de 2014 estabeleceu, entre outros impedimentos, que estes consultores não podem receber mais de 50.000 euros por ano provenientes de “empresas produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos”. Porém, esse limite máximo deve ser calculado com base na média móvel de cinco anos, embora o diploma legal não estabeleça quem ou como tal se inspecciona. Cabe a cada consultor, voluntariamente, atestar por escrito, num formulário, com uma simples cruz, que não tem qualquer incompatibilidade legal.

    Mostra-se, porém, notório que Filipe Froes – auferindo verbas tanto em nome individual como da sua empresa Terras & Froes, da qual é gerente desde 2012 – tem procurado, nos anos mais recentes, “gerir” os montantes recebidos das farmacêuticas para nunca ultrapassar o limite legal, embora esse exercício contabilístico possa tornar-se impossível de manter face aos montantes que recebeu em 2021. Pelo menos se houver oficialmente cruzamento de dados contabilísticos. A última declaração de ausência de incompatibilidades que Filipe Froes entregou na DGS data de 10 de Maio de 2021.

    Filipe Froes, durante um webinar em Abril de 2021, patrocinado pela Ascensia Diabetes Care, Boehringer Ingelheim, Roche, Gasomed e Medtronic, intitulado “Um ano de covid-19 ou o bom, o mau e o vilão”.

    De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Filipe Froes ultrapassou, desde 2013, a fasquia dos 50.000 euros anuais por três vezes (2016, 2018 e 2021), mas quando calculada a média móvel de cinco anos fica sempre ligeiramente aquém desse limiar.

    Através dos valores registados no Portal da Publicidade e Transparência do INFARMED, a média móvel de cinco anos dos recebimentos de Filipe Froes foi de 35.949 euros em 2017, de 44.043 euros em 2018, de 45.125 em 2019, de 45.457 em 2020, e de 45.349 em 2021. Ou seja, por aqui, até agora, nunca terá ultrapassado o valor “proibitivo”. Mas por uma “unha negra”.

    Ora, mas os valores constantes do portal do INFARMED referem-se tanto a verbas recebidas por Filipe Froes em nome individual como pela sua empresa Terras & Froes. E é no cruzamento contabilístico dessas duas “fontes” que se observam discrepâncias que podem, por um lado, indiciar “contabilidade criativa”, e, por outro lado, prenunciam, para já, uma incompatibilidade para o quinquénio 2017-2021.

    Com efeito, analisando todos os relatórios e contas anuais da Terras & Froes entre 2016 e 2020 (o último ano acessível) – como o PÁGINA UM fez –, as receitas (prestações de serviços) obtidas foi, para este quinquénio, de 47.271 euros. Assim, caso Filipe Froes venha a contabilizar na sua empresa os montantes pagos pelas farmacêuticas, e registado no portal do INFARMED, durante o ano de 2021 (56.097 euros), a média móvel passará a ser, para o quinquénio 2017-2021, de 50.381 euros. Ou seja, superará então os 50.000 euros, resultando assim numa incompatibilidade. Nessas circunstâncias, Froes não se pode manter como consultor da DGS.

    Contudo, não será de estranhar que Filipe Froes tente contornar esse “problema” como em anos anteriores parece já ter feito. De facto, no seu caso particular, observam-se grandes discrepâncias entre os valores registados no Portal da Transparência e Publicidade (onde se obtém supostamente os pagamentos a título individual e os feitos à sua empresa) e aqueles que contam nas contas da Terras & Froes.

    Por exemplo, em 2016, Froes declarou que recebeu 56.637 euros ao INFARMED das farmacêuticas, mas na contabilidade oficial da sua empresa aparecem apenas receitas anuais de 40.547 euros. Em 2020, Froes declarou no INFARMED apenas ter recebido 41.474 euros das farmacêuticas, embora as suas contas empresariais apontem 74.293 euros de proveitos, isto é, uma diferença de quase 33 mil euros.

    Receitas (em euros) de Filipe Froes declaradas pela sua empresa Terras & Froes e proveitos registados na Plataforma da Transparência e Publicidade do INFARMED.

    Recorde-se que, em Novembro passado, o semanário Novo anunciou que Filipe Froes estaria a ser alvo de um inquérito de averiguações pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde sobre as suas relações profissionais e financeiras com as farmacêuticas. As conclusões ainda não foram divulgadas.

    Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portuguesas com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também lidera o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.

    De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, um total de 263 contratos comerciais, em seu nome ou na Terras & Froes, envolvendo 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado é de 380.932 euros, o que representa um “salário” médio mensal superior a 3.500 euros nos últimos nove anos. Nos dois anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, superior ao que ganha como médico do SNS.

    No ano passado, este médico – que, como consultor da DGS, é um dos responsáveis pela determinação das terapêuticas contra a covid-19 – teve como principal beneficiário a Merck Sharp & Dohme, que lhe pagou 22.825 euros, sobretudo por palestras e webinars. Por cada uma, Filipe Froes recebeu valores que rondam os 1.100 euros, e mesmo mais, por vezes.

    Verbas recebidas por Filipe Froes, por ano e farmacêutica. Fonte: INFARMED

    Saliente-se que a Merck abandonou, há alguns meses, a “corrida” para as vacinas contra a covid-19, apostando agora sobretudo na comercialização de um anti-viral, o molnupiravir, já aprovado nos Estados Unidos e Reino Unido, mas ainda a aguardar decisão da Agência Europeia do Medicamento.

    Filipe Froes já teceu elogios a este medicamento – sem nunca emitir qualquer conflito de interesses. Por exemplo, em declarações em Novembro ao jornal Nascer do Sol, Froes considerou que o novo fármaco é “sem dúvida (…) um game-changer”, um complemento à vacinação, e garantindo também que “reduz a carga viral e reduz em 50% a gravidade da doença”.

    Apesar do reforço em 2021 do contributo da Merck nas finanças pessoais e empresariais de Filipe Froes (85.322 euros recebidos desde 2013), a Pfizer continua a ser a número um. Embora nos últimos dois Froes tenha auferido apenas 12.196 euros desta farmacêutica, o pecúlio acumulado desde 2013 é substancial: 134.574 euros, com o ano de 2016 a atingir os 47.544 euros). No ano passado, Filipe Froes realizou pelo menos 13 palestras financiadas por esta empresa norte-americana, quase sempre tendo a covid-19 como tema central.

    A terceira farmacêutica mais lucrativa para Filipe Froes é a Bial, que desde 2013 lhe rendeu 47.339 euros. A farmacêutica portuguesa, sedeada na Trofa, tem interesses comerciais na área da pneumologia (doença pulmonar obstrutiva crónica e asma brônquica). Um dos apoios mais substanciais que o pneumologista recebeu destinou-se à sua participação no CHEST Annual Meeting que se realizou em Outubro de 2019 em Nova Orleães, nos Estados Unidos. Froes embolsou 9.960 euros e mais 50 cêntimos.

    A francesa Sanofi – a principal produtora de vacinas contra a gripe –, a anglo-sueca AstraZeneca – uma das produtoras de vacinas contra a covid-19 –, a norte-americana Gilead Sciences e a alemã Bayer Portugal também têm sido relevantes “clientes” de Filipe Froes. No caso específico da Gilead Sciences, as mais recentes colaborações de Filipe Froes são polémicas. O pneumologista integrou o conselho consultivo (advisory board) do fármaco remdesivir – um anti-viral criado para tratamento do ébola, e cuja eficácia contra a covid-19 foi prometida, mas que se manifestou um logro –, enquanto tinha poderes de aconselhamento para a sua aplicação em doentes. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) acabou mesmo por fazer uma recomendação contra o seu uso em Novembro de 2020. Contudo, Filipe Froes sempre se mostrou favorável, desde o início da pandemia, ao seu uso, e a Comissão Europeia comprometeu todos os Estados-membro a fazerem compras massivas à Gilead. No caso português, a DGS adquiriu, em finais de 2020, doses no valor de cerca de 20 milhões de euros.

    Por esta prestação à Gilead, desenvolvida ao longo de 2020, Froes recebeu 4.330 euros, a que acresceram mais 3.690 euros em webinares sobre este fármaco. Mesmo depois dos conselhos contrários da OMS, Froes nunca se cansou de elogiar o remdesivir, e de mantê-lo, nas normas da DGS, como um medicamente a usar. Por exemplo, em Março de 2021, no âmbito do webinar “Avanços no tratamento antiviral da covid-19”, patrocinado pela Gilead, este médico (que recebeu 1.230 euros por este evento) manteve-se um adepto incondicional. Em declarações à revista digital Médico News, sem referir o seu estatuto de conselheiro da Gilead, o pneumologista garantia que “vários estudos publicados em revistas médicas de elevado factor de impacto têm documentado a utilidade do remdesivir em subgrupos de doentes hospitalizados”.

    O PÁGINA UM tentou obter comentários de Filipe Froes sobre os seus financiamentos da indústria farmacêutica, mas não obteve resposta.

  • Raio X à pandemia: uma análise descritiva e gráfica

    Raio X à pandemia: uma análise descritiva e gráfica

    Nascido em 2019, o SARS-CoV-2 deixou, até agora, muito mais do que as cerca de 5,45 milhões de mortes. Ao entrar pelo quarto ano da sua existência confirmada (2019, 2020, 2021 e 2022), a covid-19 transformou o Mundo em algo diferente, atulhado em pânico e medo, em medidas cada vez mais autoritárias mesmo em países democráticos, acentuando a falta de solidariedade dos países ricos com os pobres, e a Ciência – esse outrora bastião do conhecimento dinâmico e do perpétuo questionamento – por bolandas anda agora, ora demonstrando ser a solução, ora rodando ao sabor dos interesses financeiros, ora rodopiando pelos circunstancialismos políticos.

    No novo mundo distópico, o ano 2022 anuncia-se incerto, e despediu-se de um ano de 2021, que terminou paradoxal. O PÁGINA UM mostra como, através de uma análise detalhada à situação pandémica na Europa, incidindo sobre os países da União Europeia, onde também se incluiu, neste lote o Reino Unido.

    Quase com dois anos completos de uma pandemia em pleno, que já atingiu 290 milhões de pessoas, mesmo com vacinas supostamente milagrosas a proteger 48% da população mundial, os últimos dias de 2021 mostraram novos recordes de casos positivos. A culpa – pelo que argumenta a esmagadora maioria dos políticos – justifica-se pelos não-vacinados e pela nova variante Ómicron, mas a evidência mostra outras realidades.

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    A vacina acabou por não apresentar o desempenho prometido – e muito menos na inicialmente prometida capacidade de criar imunidade de grupo. A duração da protecção também se mostrou demasiado curta. Por outro lado, a suposta elevada transmissibilidade da variante Ómicron trouxe o resto: o ritmo de testagem subiu para níveis quase estratosféricos na última semana. Em Portugal, por exemplo, o máximo de testes por dia em 2020 foi ligeiramente inferior a 60 mil. Ao longo dos 11 primeiros meses de 2021 nunca superou a centena de milhar. No passado dia 30 de Dezembro foram feitos 402.756 testes.

    Mais testes sempre darão mais casos em termos absolutos, sabendo-se que uma parte significativa das pessoas infectadas não apresenta sequer sintomas, pelo que somente uma testagem massiva a apanharia. A nível mundial, em termos de média móvel de sete dias, o dia 31 de Dezembro passado registou 1.323.362 casos positivos– um valor jamais antes alcançado desde o início da pandemia. Fogo fátuo, mesmo tendo em conta o desfasamento entre casos e eventuais desfechos fatais. Com efeito, nesse dia, os óbitos contabilizados à escala mundial foram apenas de 5.919 – o valor mais baixo desde 24 de Outubro de 2020 –, evidenciando a consistente tendência decrescente da mortalidade por covid-19 desde finais de Agosto. Em contra-ciclo com aquilo que ocorrera no ano anterior.

    De facto, em contraste com o dia homólogo de 2020 (com 11.768 óbitos), o último dia de 2021 registou metade do número de mortes. Mais relevante se mostra essa tendência decrescente por ocorrer com a chegada do Inverno no Hemisfério do Norte – onde vive 87% da população mundial.

    Taxa de vacinação e óbitos por covid-19 em 28 de Dezembro de 2021 (padronizada à população portuguesa, e média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Recorde-se que o Inverno de 2020-2021 registou um padrão muito similar ao que ocorre com as épocas gripais, independentemente de mostrar um maior impacte. As infecções e a mortalidade por covid-19 começaram a subir, de forma consistente, a partir de Outubro, e agravou-se em Janeiro de 2021, com o pico de óbitos a nível mundial a ser atingido a 28 daquele mês (14.815, em média móvel de sete dias).

    Analisando a situação dos países da União Europeia – incluindo, neste lote, ainda o Reino Unido –, e tendo como referência a média móvel de sete dias em 28 de Dezembro, confirma-se, de uma forma ainda mais marcante, a falta de “sintonia” entre casos de infecção e mortes, o que pode, afinal, evidenciar a transição da pandemia para a endemia. Ou seja, mais infecções por um vírus menos letal.

    Com efeito, para o período de referência, observa-se que apenas a Espanha, Suécia, Roménia, Letónia, Hungria e Eslovénia apresentavam uma menor incidência (percentagem de casos positivos na sua população) em 2021 do que em 2020. Em alguns casos, a subida foi enorme. Por exemplo, a Grécia tinha uma incidência de 0,07% em 2020 e era de 1,0% em 2021, enquanto na Irlanda aumentou mais de 10 vezes: passou de 0,34%, em 2020, para 3,74%, em 2021. No entanto, a Finlândia – que é, de entre os países da União Europeia, aquele com menor impacte da pandemia em termos de mortalidade – registou nas últimas semanas um aumento muito significativo dos casos positivos. Se em 2020 este país escandinavo tinha, no período em análise, apenas 0,16% da sua população infectada, agora está com 3,48%, sendo apenas ultrapassada pela Irlanda.

    Em termos gerais, quase todos os países em análise registavam, no final de 2021, mais de 1% da respectiva população infectada. As únicas excepções eram a Suécia (0,98%), a Eslováquia e a Lituânia (0,91%, ambas), a Alemanha (0,86%), Eslovénia (0,80%), a Espanha (0,58%), a Letónia (0,57%), a Croácia (0,55%) e a Áustria (0,32%). No outro extremo, cinco países contabilizavam 3% ou mais da população infectada: Chipre (3,79%), Finlândia (3,48%), Irlanda (3,74%), Reino Unido (3,21%) e Bélgica (3,00%). Ao invés, em período homólogo de 2020, apenas a Espanha (2,11%) tinha mais de 2% da população infectada, registando-se mesmo 21 países com menos de 1%, dos quais nove abaixo dos 0,5% (Finlândia, Grécia, Malta, Roménia, Áustria, Croácia, França, Alemanha e Irlanda).

    Incidência cumulativa desde o início da pandemia e mortes por covid-19 em 28 de Dezembro de 2021 (padronizada à população portuguesa, e média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Embora haja um desfasamento temporal entre um pico de casos e a ocorrência de um pico de óbitos – geralmente, duas semanas –, a “agressividade” do SARS-CoV-2 aparenta agora ser francamente menor.

    Note-se, porém, que se deve ter em consideração que a política de testagem de assintomáticos tende, em princípio, a diminuir a taxa de letalidade, sobretudo se se concentra em população jovem, onde a gravidade da doença foi sempre estatisticamente irrelevante.

    Com efeito, padronizando os óbitos de todos os países da União Europeia (mais Reino Unido) à população portuguesa – de modo a se ter uma melhor percepção comparativa da actual situação pandémica na Europa –, constata-se uma redução quase generalizada, e muito significativa, das mortes no final de 2021 em relação ao final de 2020. De facto, apenas a Grécia, a Polónia e a Hungria apresentavam nos últimos dias de 2021 uma situação pior do que em período homólogo de 2020.

    A norma foi uma descida muito significativa. A maior redução relativa registou-se no Luxemburgo, um pequeno país de 630 mil habitantes. No final de 2020, os óbitos diários (padronizados à população portuguesa) foram 84; no final de 2021 nenhum. Outras reduções muito relevantes (superiores a 60%) observam-se em Portugal (71 óbitos em 2020 vs. 14 em 2021), no Reino Unido (70 vs. 11), na Suécia (95 vs. 2), Bélgica (81 vs. 23), Áustria (86 vs. 20), Itália (78 vs. 24), Malta (66 vs. 21), Eslovénia (148 vs. 40).

    Note-se, porém, que em alguns destes países, sobretudo no Leste europeu, verificou-se um pico muito relevante de mortalidade em Novembro, seguido de uma descida abrupta.

    Em todo o caso, aparentando ser um padrão sobretudo regional, a mortalidade atribuída à covid-19 ainda atingia valores elevados no final de 2021 na parte oriental da Europa.

    Incidência cumulativa e taxa de mortalidade por covid-19 desde o iníco da pandemia. Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    Numa altura em que os óbitos por esta doença em Portugal se situavam nos 14 por dia (média móvel de sete dias), três países superavam os 100 óbitos diários (padronizados à população portuguesa): Croácia (129), Hungria (126) e Polónia (111). Mais cinco registavam mais de 50 óbitos: Bulgária (97), Eslováquia (96), Lituânia (77), Grécia (70) e Letónia (59).

    A influência directa da vacinação na letalidade da covid-19 nos diversos países europeus tem sido uma discussão recorrente nos últimos meses. Ou seja, será que os países com maior taxa de vacinação automaticamente registarão uma menor mortalidade?

    Essa suposta evidência colocou-se sobretudo durante o mês de Novembro do ano passado, quando o Leste europeu foi “varrido” por um número inusitado de casos, enquanto os países ocidentais continuavam num Outono bastante ameno em termos de infecções e mortes.

    Porém, nessa “evidência” havia sempre um aspecto esquecido: a partir de níveis razoavelmente elevados de taxa de vacinação – dir-se-ia acima dos 60% da população do país –, mostra-se admissível supor que a quase totalidade das pessoas idosas e vulneráveis estarão já vacinadas. Recorde-se que, por norma, entre 25% e 30% da população de um país europeu tem mais de 65 anos, e é esta a faixa etária mais vulnerável à covid-19 e com prioridade na vacinação.

    Se se considerar os últimos dias de 2021, a relação directa entre a taxa de vacinação (com duas doses) e os óbitos por covid-19 (padronizados à população portuguesa) já não parece muito evidente. Na aparência os países com menor taxa de vacinação têm mais óbitos, mas existe também, de uma forma bastante clara, um padrão regional: Leste europeu tem mais mortes do que o Oeste europeu. Qual o factor que conta mais?

    Além disso, existem muitas excepções. Por exemplo, a Roménia, o Chipre e mesmo a Eslovénia estavam, no final de 2021, com níveis de mortalidade relativamente baixos, mas ainda com taxas de vacinação da população abaixo dos 65%. A Roménia, apesar de ter apenas 40,1% da sua população vacinada, apresentava mortalidade abaixo de seis países com taxas de vacinação superiores a 70%.

    Um outro aspecto interessante de observar é a evolução da pandemia na Europa desde 2020, e de como a maior ou menor incidência cumulativa nos diversos países se repercutiu em termos de mortalidade acumulada e actual por esta doença.

    Convém notar que estas comparações devem ser observadas com algumas reticências, por três razões. Primeiro, a incidência da covid-19 dependeu das distintas medidas não-farmacológicas adoptadas pelos diversos países, e da sua verdadeira eficácia, e também das respectivas estratégias de detecção das infecções (maior ou menor testagem de assintomáticos). Segundo, a introdução da vacinação, e a sua eficácia, pode ter alterado, de uma forma mais ou menos significativa, a taxa de letalidade ao longo do período pandémico. Terceiro, ignora-se ainda, em grande medida, a relevância de factores ambientais ou mesmo populacionais (ou sociais) que possam determinar uma menor ou maior mortalidade.

    Ponderado tudo isto, uma coisa parece certa: uma menor incidência cumulativa não constituiu, até agora, uma garantia de baixa mortalidade na população, nem ao longo da pandemia nem em relação à situação mais recente.

    Mas antes de dissecar esta questão, talvez seja mais importante relevar primeiro que o SARS-CoV-2 atingiu de forma muito distinta o continente europeu. Considerando a população respectiva dos 28 países em análise, a incidência vai desde os 4,3% na Finlândia até aos 23,1% da República Checa (ou seja, quase um em cada quatro checos tiveram covid-19 em menos de dois anos). Portugal regista 12,9% – isto é, quase 1 em cada 8 pessoas teve um teste positivo. Em todo o caso, a maioria dos países apresenta incidências relativamente próximas: 18 países estão com este rácio entre os 12,5% e os 18,5%.

    O senso comum diria que uma menor incidência resultaria, de imediato, numa menor mortalidade. O caso da Finlândia aparenta indiciar isso. Com apenas 4,3% da sua população com teste positivo desde o início da pandemia, a taxa de mortalidade por covid-19 é, até agora, a mais baixa da União Europeia: 2,8 por 10.000 habitantes. Porém, este país escandinavo é uma excepção.

    Taxa de vacinação e incidência em 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de 7 dias). Fontes: Worldometers e Our World in Data.

    De facto, alguns países com incidência cumulativa relativamente baixa (em comparação aos outros países) apresentam taxas de mortalidade muito mais elevada. São os casos, sobretudo, da Roménia (terceiro país com menor incidência, mas quarto com maior taxa de mortalidade), da Bulgária (sexto país com menor incidência, mas com a pior taxa de mortalidade) e da Hungria (décimo com menor incidência, mas a segunda pior taxa de mortalidade).

    Portugal – com uma incidência de 12,9% (12º maior no grupo de 28 países em análise) e uma taxa de mortalidade de 12,9 óbitos por 10.000 habitantes (17ª posição) – encontra-se numa situação intermédia.

    Existem muitos factores que podem explicar a ausência de relação directa entre incidência e mortalidade causada pelo SARS-CoV-2. Por um lado, a incidência pode ser muito distinta entre grupos etários, o que produz efeitos muito distintos. Ou seja, enquanto 1.000 casos positivos no grupo dos mais idosos pode resultar em muito mais de 100 óbitos, o mesmo número em jovens terá consequências irrelevantes, ou mesmo nulas.

    Nesse aspecto, a maior ou menor incidência da doença nos idosos, e particularmente nos lares, é um aspecto determinante para o impacte da doença em cada país. Além disso, cada país – e mesmo nas distintas regiões de um mesmo país – registaram-se níveis distintos de resposta à pandemia, incluindo ao nível do tratamento hospitalar, com efeitos directos muito relevantes na mortalidade.

    Por fim, a incidência cumulativa desde o início da pandemia não aparenta ser relevante nos níveis de mortalidade por covid-19 no período mais recente. Com referência aos óbitos de 28 de Dezembro de 2021 (média móvel de sete dias), e padronizados à população portuguesa, não se observa de forma directa um padrão de menor mortalidade nos países com maior incidência cumulativa desde o início da pandemia.

    A Croácia é o país que apresenta maior mortalidade na União Europeia (129 óbitos padronizados no dia 28 de Dezembro), mas contava já com 17,3% da sua população com teste positivo à covi-19. A República Checa, o país com maior incidência cumulativa na União Europeia (23,1%), apresentava mesmo assim o 9º valor mais elevado de mortalidade (58 óbitos).

  • Relatora da Ordem dos Médicos que quer condenar médica por ‘negacionismo’ tem ligações a farmacêuticas

    Relatora da Ordem dos Médicos que quer condenar médica por ‘negacionismo’ tem ligações a farmacêuticas

    A ex-presidente do INFARMED, a pediatra Maria do Céu Machado, tem sido o rosto da acusação da líder do extinto movimento Médicos pela Verdade, Margarida Oliveira. Por alegadas violações deontológicas quer aplicar uma suspensão de três meses à sua colega. Porém, enquanto decorria o processo disciplinar, a mulher do falecido neurologista João Lobo Antunes deu consultadoria pontual à Janssen, uma das produtoras das vacinas contra a covid-19. E foi também júri de um prémio patrocinado por uma farmacêutica, ao lado do bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e de Pedro Rebelo de Sousa, irmão do Presidente da República.


    A relatora do processo disciplinar da Ordem dos Médicos que castigou a anestesiologista Margarida Oliveira – acusada de “negacionismo” por integrar o extinto movimento “Médicos pela Verdade” e de violar uma dezena de normas do Regulamento de Deontologia desta profissão – tem ligações à indústria farmacêutica e, no ano passado, chegou a prestar serviços de consultadoria à Janssen Cilag, uma das produtoras de vacinas contra a covid-19. O acórdão final, datado de 7 de Dezembro do ano passado, foi divulgado no final da passada semana, podendo ser consultado aqui.

    De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Maria do Céu Machado – que foi casada com o cirurgião João Lobo Antunes, falecido em 2016 – tem colaborado pontualmente com empresas farmacêuticas, após a sua saída do INFARMED, a que presidiu entre 2017 e 2019.

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    Pela consulta do Portal da Transparência e Publicidade desta autoridade nacional que regula os medicamentos, a pediatra Maria do Céu Machado – também professora jubilada da Faculdade de Medicina de Lisboa e com um vastíssimo currículo académico e institucional – apresenta em 2021 um registo de recebimento por “serviços de consultoria” não especificados à Janssen, no valor de 700 euros, com duração e âmbito incertos.

    Também recebeu, naquele ano, montantes de mais três farmacêuticas: Lilly Portugal (600 euros), Ferrer Portugal (130 euros para participação no Congresso Português de Cardiologia) e ainda 1.550 euros pagos pela Boehringer Ingelheim por ser membro do júri no “BI Award for Innovation in Healthcare”.

    Note-se que estes montantes, constante numa base de dados do INFARMED, podem não reflectir todos as vantagens económicas que envolvem médicos e farmacêuticas, uma vez que basta ser usada uma empresa para que seja difícil rastrear o beneficiário final.

    Aliás, no caso específico dos montantes concedidos pela Boehringer Ingelheim para o júri daquele prémio, apenas Maria do Céu Machado e o psiquiatra Júlio Machado Vaz registaram um valor no Portal da Transparência e Publicidade. Sobre outros pesos-pesados da Medicina e influencers da política de Saúde do país que também foram membros do júri deste prémio, nada consta. São os casos, entre outros, de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem do Médicos; Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares; Ana Paula Martins, bastonária da Ordem dos Farmacêuticos; Carlos Robalo Cordeiro, catedrático de pneumologia da Faculdade de Medicina de Coimbra; David Marçal, comunicador de Ciência da Universidade Nova de Lisboa; Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde; e ainda Pedro Rebelo de Sousa, irmão do actual Presidente da República.

    Maria do Céu Machado consta da lista de membros do júri de um prémio da Boehringer Ingelheim, ao lado do bastonário da Ordem dos Médicos. Recebeu 1.500 euros pela tarefa.

    Estas ligações não terão sido consideradas incompatíveis pela própria Maria do Céu Machado, que liderou um grupo de 17 membros do Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Numa primeira decisão, em Fevereiro do ano passado, pretendeu suspender Margarida Oliveira por um período de seis meses. Agora, por recurso, estipula uma pena disciplinar de três meses.

    Em causa, neste polémico processo, iniciado em finais de 2020 após três denúncias – entre as quais a de Pedro Abreu, ex-presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior –, estão, segundo a relatora Maria do Céu Machado, “conversas na rede social Telegram” em que Margarida Oliveira terá aconselhado “terceiros nas formas de eliminação de ‘restos virais’ dos locais onde é feita a recolha das amostras para testagem (PCR) ao vírus SARS-CoV-2”, e a sua participação em Janeiro do ano passado “numa manifestação, junto da Assembleia da República, onde proferiu diversas declarações contra a DGS [Direcção-Geral da Saúde], a Ordem dos Médicos, os testes RT-PCR e as Vacinas”.

    Margarida Oliveira defendeu, segundo os autos, que “a dita ‘receita’ para a lavagem das fossas nasais e da orofaringe (…) é na sua essência uma recomendação de higiene e de hábitos de vida saudável a que qualquer médico está obrigado”. E, apesar de ser acusada de “negacionista”, sempre assumiu que “há efetivamente um surto epidémico associado a um agente virológico”, embora contestando o conceito de pandemia aplicado à covid-19 e muitas das medidas da DGS. Na mesma linha estiveram os médicos que testemunharam a favor desta anestesiologista, entre os quais Fernando Nobre, também ele alvo de um processo disciplinar.

    Margarida Oliveira, anestesiologista de uma clínica privada, tem a Ordem dos Médicos “à perna” desde o final de 2020. Processo deverá arrastar-se até aos tribunais.

    O fundador da AMI, que tem sido uma das poucas vozes críticas à gestão da pandemia, comparou mesmo o processo contra Margarida Oliveira aos processos inquisitoriais dos séculos passados: “No julgamento da inquisição, ele [Galileu] contestava aquela ideia peregrina que tudo girava à volta da Terra e para não ir parar à fogueira ele até, enfim, deu o dito por não dito, perjurou-se, não obstante à saída disse, no entanto, a Terra gira à volta do Sol”, afirmou Fernando Nobre, transcrito nos autos, defendendo o arquivamento por estar apenas em causa um delito de opinião.

    Os testemunhos dos defensores, ouvidos quase como pro forma, acabaram em saco roto. Maria do Céu Machado entendeu “que tem a médica arguida liberdade para ter as suas próprias convicções, todavia tais convicções devem estar associadas a um dever de cuidado no aconselhamento médico que faz à comunidade”. A pediatra defendeu também, por escrito, que ao médico não cabe proferir declarações “sobre a credibilidade em tratamentos, vacinas e testes numa situação em que impera o princípio da precaução em saúde pública.”

    Porém, Maria do Céu Machado entra aqui em contradição com o que praticou durante o ano passado, pois prestou, por diversas vezes, declarações sobre a credibilidade das vacinas em crianças, mas nesses casos sempre de forma muito favorável. Por exemplo, em Agosto passado, defendeu no Público “a vacinação de jovens saudáveis a partir dos 12 anos só com uma dose”. E ainda mais falou, no mês passado, em entrevista ao Diário de Notícias, quando estalou a polémica sobre o parecer da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 sobre as crianças, com alguns pediatras a aconselharem prudência ou a desaconselharem mesmo o avanço do programa vacinal para esta faixa etária. Recorde-se que, conforme revelou recentemente o PÁGINA UM, ainda não se registou ainda qualquer morte por covid-19 em crianças portuguesas e a taxa de internamento tem sido extremamente baixa.

    No acórdão do processo disciplinar a que o PÁGINA UM teve acesso, Maria do Céu Machado advoga mesmo a subjugação dos médicos, em geral, e de Margarida Oliveira, em especial, às posições e decisões governamentais. Na página 8 deste acórdão advoga “o dever especial de cuidado a que a médica [visada no processo] está adstrita, bem como o dever de garante da saúde em geral, norteada pelas orientações emanadas pela DGS, [que assim] deveriam tê-la impedido de expor as suas exaltações e preocupações em público e de dar recomendações públicas a terceiros, contrárias ao veiculado pelos órgãos de soberania portugueses.”

    E a antiga presidente do INFARMED ainda vai mais longe no veredicto, ao afirmar, de forma dogmática, que “a médica arguida, ao agir da forma como agiu actuou de forma leviana e infundada, utilizando tanto uma rede social, como o espaço público, para transmitir mensagens de inquietação pública, instigando a um clima de tensão e colocando em causa, tanto a DGS, como os seus colegas médicos, bem como, em última análise, esta ordem profissional.” No total, a relatora apontou a violação de uma dezena de normas do Regulamento de Deontologia Médica.

    O acórdão deste processo da Ordem dos Médicos – que curiosamente Maria do Céu Machado assina em nome de mais três colegas – ainda é passível de apelo para o Conselho Superior da Ordem dos Médicos, e posteriormente, se a defesa assim entender, para os tribunais. Ou seja, a anestesiologista Margarida Oliveira ainda não cumpriu nem cumprirá qualquer sanção enquanto a decisão sancionatória não transitar em julgado, algo que pode demorar anos.

  • Vacinar idosos e não vacinar jovens: a (mesma) opção lógica com base numa análise comparativa

    Vacinar idosos e não vacinar jovens: a (mesma) opção lógica com base numa análise comparativa

    Imaginemos, por absurdo, que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução da taxa de afogamentos para níveis próximos de zero. Nessa linha, impunham que toda e qualquer pessoa, em qualquer circunstância, teria de usar braçadeiras e bóias. No limite, mesmo que não estivesse próxima de algum espaço aquático, não fosse, por exemplo, uma conduta de água rebentar acidentalmente e causar uma inundação. Mesmo um Michael Phelps seria obrigado a usar bóia e braçadeiras; todos os nadadores, mesmo em provas olímpicas. Quem não aceitasse, seria discriminado.

    girl swims on swimming pool

    No final, a avaliação desta política revelaria, por certo, uma diminuição considerável das mortes por afogamento das pessoas que não sabiam nadar. Porém, para o extenso grupo de pessoas que sabia nadar, a aplicação destas medidas nenhum benefício traria; e talvez mesmo causasse transtornos e prejuízos. Acidentes, até. Não será, por certo, fácil conduzir um carro com braçadeiras e bóia.

    Imaginemos também, por absurdo, que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução da incidência de melanomas para níveis próximos de zero. E decretavam então que todos as pessoas, desde os mais esbranquiçados celtas até aos negros do Senegal, tivessem obrigatoriamente de usar protector solar factor 50, tanto no Verão como no Inverno, tanto nas chuvosas terras de Albion como na arizonense Yuma, conhecida por ser a mais soalheira cidade do Mundo. Quem não aceitasse, seria discriminado.

    No final, a avaliação desta política revelaria, por certo, uma diminuição considerável dos cancros de pele, mas introduziria um desperdício de recursos económicos incomportável e desnecessário. Sem contar, tendo em conta o uso massivo e intenso desses produtos, com os efeitos adversos, desde a simples irritação e acne até outros problemas dermatológicos mais graves.

    Agora, por fim, imaginemos que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução, para níveis próximos do zero, da taxa de mortalidade de uma certa infecção viral, que se manifesta(va), em termos de agressividade, de formas muito distintas. Ou seja, a maior ou menor susceptibilidade depende da idade, do sexo, das comorbilidades associadas e até das condições vivenciadas nas diferentes comunidades.

    Ora, dever-se-ia, nesse caso, depois de se fabricar um fármaco em tempo recorde, inocular toda e qualquer pessoa? Forçar todas pessoas a tomarem uma vacina, acenando ser voluntária, mas recorrendo depois a mecanismos pouco ortodoxos de coacção e discriminação?

    A resposta a estas perguntas deveria ser dada enquanto ainda se reflectisse sobre os exemplos das bóias e do protector solar.

    O risco e a incerteza

    As vacinas contra a covid-19 são, tecnicamente, medicamentos profilácticos que protegem cada pessoa inoculada de desenvolver doença grave ou de morrer. Não concedem imunidade de grupo. São como a bóia para quem não sabe nadar; o protector solar para quem é caucasiano. Talvez sejam um pouco mais: reduzem a transmissibilidade se o vacinado ficar infectado – embora num período muito curto –, mas trazem consigo uma desvantagem: a incerteza sobre os efeitos a longo prazo.

    Em Saúde Pública – que é uma vasta área que depende de muitas especialidades, e talvez, na verdade, até mais de Ciências Sociais do que de Medicina (no sentido de prática clínica) –, importam sobretudo dois aspectos fundamentais: a prudência e os custos-benefícios-incerteza, estando estes todos associados de forma íntima. E importa também, no meio de tudo isto, uma adequada gestão de recursos financeiros. O dinheiro, parecendo, não é elástico.

    Manda sempre a prudência – aplicada tantos aos cuidados de saúde como à gestão do quotidiano – que se pondere se uma solução no presente não se transforma num problema futuro. Note-se que a prudência tem em conta tanto o risco como a incerteza – que, muitas vezes, de forma equívoca, são considerados sinónimos. Não são. Muito pelo contrário.

    man standing on rock in the middle of clip

    Um risco constitui uma probabilidade conhecida em relação ao futuro. A incerteza mede o grau de ignorância sobre o futuro. O risco é uma probabilidade; tem sempre um número a si associado. Se não tem, é uma falácia. Quanto à incerteza, não se consegue quantificar, e muitas vezes nem se sabe muito bem o que seja ou possa vir a ser. É um buraco negro, mesmo se desconfiarmos daquilo que tenha dentro.

    Por exemplo, podemos hoje conhecer, com base no passado, qual o risco de ataque cardíaco de uma pessoa de determinada idade que andou a comer fast food durante anos. Por uma simples razão: existe um histórico; sabe-se que, no passado, X pessoas de um grupo de Y com maus hábitos alimentares tiveram essa consequência.

    No caso das vacinas contra a covid-19 – ainda mais por a maioria usar uma tecnologia nunca aplicada em larga escala em humano – , esse histórico é pequeno, demasiado curto. Tem pouco mais de um ano. Ou seja, no curto prazo até podemos estimar, com razoabilidade, uma razão custo-benefício muito favorável ao benefício, mas o longo prazo é uma incógnita absoluta.

    A história das outras vacinas não conta. Em Ciência, como na teologia, o hábito não faz o monge. Não houve tempo suficiente de observações empíricas. Ponto. O longo prazo é, assim, incerto. Pode ser nada; pode ser tudo. É como se aceitássemos um benefício (não ter doença grave ou evitar a morte numa certa probabilidade) por troca da compra de um bilhete para se jogar roleta russa no futuro, não se sabendo sequer se haverá revólver, se existe gatilho ou se afinal, dramaticamente, o carregador está cheio de balas. Há quem aposte, se o benefício em causa for relevante; outros não, se o ganho potencial poder ser muito menor do que a perda hipotética. A Psicologia e a Economia têm tratados sobre o assunto.

    Além de tudo isto, devemos enquadrar o conceito de longo prazo. Em Economia, o longo prazo são cinco anos. Em Saúde, ou em Demografia, aos 85 anos de idade, o longo prazo já nem quase faz sentido. Ultrapassado o limiar da esperança de vida, cinco anos pode ser muito. Para um adolescente de 15 anos, o longo prazo mede-se por década, podem ser 20, 30 ou até 70 anos. “Que se tenha noção”, como diria o outro.

    Perante isto, mas reconhecendo uma emergência sanitária decorrente desta pandemia (ou já endemia), que fazer se se tem um fármaco disponível, como as actuais vacinas, e impactes muitos distintos da covid-19 nos diferentes grupos populacionais? E que fazer quando a incerteza de longo prazo não aconselharia uma vacinação massiva?

    Ora, dever-se-ia olhar para os seus benefícios, analisar o custo-benefício, ponderar com prudência sobre as incertezas. Tudo em função do custo e do benefício, das opções individuais, mais ainda após se constatar que a imunidade de grupo se tornou uma quimera. Enfim, raciocinar e debater.

    Algo que jamais sucedeu quando se decidiu implementar os programas vacinais contra a covid-19. A politização da ciência e a ciência política dominaram e, hélas, tiraram aquilo que mais nobre tinha a Ciência: o permanente debate e questionamento.

    gray monkey under sunny sky

    A gravidade da covid-19 sempre foi apresentada – pelas autoridades de saúde, seus peritos, e pela imprensa mainstream – como se fosse similar para qualquer pessoa. Como se o risco fosse quase semelhante. Não é, nem nunca foi. Nesta, e em qualquer outra doença.

    A iliteracia científica permitiu, em parte, esta situação. Achou-se que, se qualquer pessoa podia ser infectada pelo SARS-CoV-2, então qualquer pessoa pode morrer de covid-19. E pode: só que entre o pode e o não vai morrer surge um fosso enorme quando olhamos individualmente as pessoas ou os grupos etários.

    Na verdade, felizmente, a covid-19 não apresenta um padrão extraordinário. A sua taxa de letalidade mostra uma perfeita diferenciação em função da idade, do sexo e das comorbilidades (que entram em linha com a idade e o sexo). Entre países haverá, por certo, idiossincrasias, talvez por razões genéticas, também porventura por motivos meteorológicos. E há também razões sociais: basta olhar para as taxas de mortalidade diferentes nos Estados Unidos entre brancos, hispânicos e negros. Ou entre os Estados mais ricos do Brasil e os mais pobres.

    Porém, em cada país ou região, há padrões facilmente identificáveis. A covid-19, em termos globais, de impacte, não é surpreendente, nem registou uma evolução que cause espanto. Aliás, como todos os outros vírus, o SARS-CoV-2 adaptar-se-á aos seres humanos; não os extinguirá nem matará uma franja significativa da população. Esquecemo-nos que vivemos na melhor época da Humanidade para enfrentarmos uma pandemia. Graças à Ciência.

    Portanto, nesse aspecto, se colocarmos a letalidade da covid-19 por idade ao lado do quociente de mortalidade no prazo de um ano também por idade, veremos curvas praticamente paralelas. A covid-19 tem-se mostrado, neste aspecto, muito previsível. Quase não mata população jovem; mata que se farta pessoas muito, muito idosas. Mata sobretudo pessoas que ultrapassaram a expectativa de vida. Há um sem-número de outras doenças e afecções com padrões similares, garanto.

    Em Portugal, no caso de um idoso de mais de 80 anos, sabe-se hoje que a taxa de letalidade atribuída à covid-19 ronda os 15% (em cada 100 casos positivos, morrem 15). Convém referir que, antes da pandemia, a probabilidade de morte nessas idades era praticamente semelhante. Uma pessoa de 90 anos tem um risco de morte de 20% no prazo de um ano.

    Voltando à covid-19. No grupo etário dos 70 aos 79 anos, a taxa de letalidade já anda pelos 5,6%. E baixa ainda mais à medida que se caminha para os jovens e crianças. Na faixa dos 30 aos 39 anos é somente de 0,027%. Nos 20 aos 29 anos é de 0,07%. E mais se reduz nos menores de 20 anos. Neste grupo não é um risco que se veja. A pneumonia, sendo rara nestas idades, chega a ser mais perigosa.

    A probabilidade de morte (risco) por covid-19 de um idoso com mais de 80 anos é, assim, mais de 4.000 vezes superior ao de um menor de 10 anos. E chega a ser superior a 9.500 vezes se confrontada com o grupo dos 10-19 anos. São dados nacionais, oficiais, indesmentíveis. Já escrevi sobre isto.

    Significa então que o risco é zero nos mais jovens? Não. Como nunca houve com nenhuma outra doença anterior à pandemia.

    A vida abre a possibilidade de se ficar morto – eis a célebre verdade do senhor de La Palice, cujos soldados cantaram a sua morte dizendo que ele ainda respirava antes mesmo de ficar morto. Mas a probabilidade de tal suceder é incomensuravelmente diferente em função da idade ou de outras características. Actualmente, a probabilidade do Michael Phelps morrer afogado não é zero, mas é tão improvável que seria estúpido obrigá-lo a munir-se de uma bóia na piscina. Mas se calhar, quando ele tiver uns 100 anos, porventura já será uma ideia a ponderar, embora talvez não seja eticamente muito correcto forçá-lo a tal.

    Uma análise comparativa

    Vou agora assumir uma premissa temerária para justificar a razão do título deste texto, porque necessito da argumentação das autoridades de saúde, dos muitos peritos e da imprensa mainstream. Fiz então um exercício académico, mas útil, assumindo ser a vacina eficaz, e a única causa para se registar agora uma variação muito favorável na mortalidade por covid-19 entre o ano de 2020 e o ano de 2021. E assumo também que esse efeito é global e se estende, por igual, a todos os grupos etários.

    Não vou sequer, portanto, sugerir que haja agora uma menor virulência do SARS-CoV-2, nem que há factores meteorológicos explicativos nem que a população potencialmente de maior vulnerabilidade, sobretudo idosos, foi em parte fatalmente “eliminada ao longo” de dois anos de pandemia, marcada também por um excesso na mortalidade por todas as causas. E nem sequer irei discutir se foram alterados os critérios para se “decretar” a covid-19 como causa de morte.

    Para esse exercício, não me bastou assim analisar e comparar valores absolutos. Morrer uma pessoa num grupo de 10 é pior do que morrerem 10 num grupo de um milhão. Por isso, além de desagregar os óbitos por covid-19, por grupo etário e sexo (porque o impacte desta doença é muito distinto entre homens e mulheres), procedi a uma padronização. Essa operação permite criar uma taxa de mortalidade, tendo como unidade o número de óbitos por 100.000 habitantes em cada um dos grupos. Isto possibilita assim comparações diacrónicas, entre grupos etários e entre sexos.

    Peguei assim nas estimativas da população, por grupo etário e sexo, feitas pelo Instituto Nacional de Estatística para os anos de 2019 e 2020, e apliquei-as, respectivamente aos anos de 2020 e 2021, para determinar, com base no número de óbitos por covid-19, as taxas de mortalidade desta doença. Em cada um dos anos e em cada grupo etário e sexo. Fiz isso para três períodos distintos: 13-26 de Dezembro (duas semanas), Dezembro (26 primeiros dias) e Novembro (30 dias).

    Taxa de mortalidade por covid-19 por grupo etário e sexo em Dezembro (até dia 26) de 2020 e 2021 (unidade: óbitos por 100.000 habitantes do grupo etário) – Fontes: INE e DGS.

    Ora, este “trabalho” – que demora não demasiado tempo – permite logo fazer luz sobre uma evidente, mas “escamoteada”, verdade: a vacina pode até ser eficaz e justificar-se em idades mais avançadas, mas um programa vacinal massivo nas populações mais jovens constitui um desperdício de recursos. E também introduz uma incerteza desnecessária.

    Os resultados que obtive para os três períodos são proporcionalmente similares, por isso decidi somente apresentar e escalpelizar o mês de Dezembro (até ao dia 26).

    Desde logo se constata, muito facilmente, uma acentuadíssima descida da taxa de mortalidade por covid-19 entre 2020 e 2021, mas somente nos grupos dos maiores de 65 anos.

    No caso dos homens de mais de 80 anos, em Dezembro de 2020 registaram-se 265 óbitos em cada 100.000 habitantes (nesse grupo etário) – ou seja, 0,265% –, enquanto em 2021, no período homólogo, se contabilizaram apenas 50. É uma redução relativa superior a 80%, o que é muito – e é muito bom. São 215 óbitos a menos por cada 100.000 pessoas.

    No grupo das mulheres desta faixa etária, a diferença também se mostra muito relevante, embora inferior: de quase 178 no ano de 2020 passou-se para 28 óbitos por 100.000 habitantes em 2021, ou seja, uma redução de 150 vidas por 100.000 habitantes.

    No grupo dos 70 aos 79 anos, tanto no caso dos homens como nos das mulheres, a redução foi inferior, embora ainda significativa, também porque a letalidade é muito menor. Entre 2020 e 2021, para o período analisado do mês de Dezembro, os óbitos nos homens desceram de 63 para apenas 17 por 100.000 habitantes; nas mulheres de 26 para 8.

    Nas faixas etárias subsequentes, a diferença começa a ser cada vez menos expressiva. Nos homens entre os 60 e 69 anos, a variação entre 2020 e 2021 foi quase de 13 mortes por 100.000 habitantes, sendo de apenas 1,7 no grupo dos 50 aos 59 anos. No caso das mulheres, este rácio ainda é mais baixo: entre os 60 e os 69 anos a diferença entre os dois anos foi apenas de 4,2 por 100.000 pessoas, e desceu para 1,7 entre os 50 e 59 anos.

    Abaixo dos 40 anos, a diferença entre 2020 (ainda sem vacina) e 2021 (com vacina) é estatisticamente nula, ou seja, nem sequer chega à unidade por 100.000 habitantes. No grupo dos 20 aos 29 anos, bem como nos menores de 10 anos, tanto nos homens como nas mulheres, a diferença é mesmo zero: quer em 2020 quer em 2021, durante o mês de Dezembro (até ao dia 26) não morreu ninguém por covid-19.

    Diferença de número de óbitos (por 100.000 habitantes), em Dezembro (até dia 26), entre os anos de 2020 (sem vacinas) e 2021 (com vacinas). Fontes: INE e DGS.

    Se considerarmos os valores absolutos em Dezembro de 2020 e 2021, o risco de morte por covid-19 antes dos 40 anos é ínfima, para não dizer praticamente improvável, sobretudo quando comparado com o risco em idades mais velhas.

    Por exemplo, no mês de Dezembro de 2021 (até ao dia 26) morreram por esta doença 70 homens com mais de 80 anos, sendo que este é um grupo constituído por cerca de 243 mil pessoas. No caso das mulheres – que são mais resistentes –, é certo que morreram em maior número absoluto neste período (99), mas também são muitas mais (cerca de 436 mil pessoas), portanto o risco relativo até foi bastante inferior ao dos homens da mesma idade.

    No total, nos 26 primeiros dias de Dezembro de 2021 morreram, no conjunto, 169 idosos com mais de 80 anos, numa população de mais de 681 mil pessoas. Significa isto que, em quase um mês, se registou uma taxa de mortalidade de 0,025%. No mesmo período de 2020, a taxa foi de 0,202%. Ou seja, sem dúvida, a situação no período “com vacina” foi claramente melhor do que no período “sem vacina”.

    Vamos então assumir que isto sucedeu apenas por causa da vacina, e sigamos na análise.

    Se, para o mesmo período, confrontarmos então estes números dos mais idosos com, por exemplo, os adultos entre os 30 e 39 anos, já olharemos para o impacte das vacinas com outros olhos. Neste grupo de jovens adultos apenas se registaram três óbitos por covid-19 em Dezembro de 2020 (até dia 26) e no mês de Dezembro de 2021 apenas um óbito. Isto tudo num grupo constituído por cerca de 1,2 milhões de pessoas, o que dá assim uma taxa de mortalidade atribuída a covid-19 de 0,00024% em Dezembro de 2020, e de 0,00008% no mesmo período de 2021.

    Foi por causa da vacinação que se passou de 0,00024% para 0.00008%? Se sim: bravo!

    Não valerá muito a pena “massacrar” com os valores para os grupos etários ainda mais jovens, porque apresentar as taxas de mortalidade quer em 2020 quer em 2021 necessitaria de muitas casas decimais antes de surgir um outro algarismo que não o zero para as quantificar. Em alguns grupos etários até é zero para ambos os anos.

    man standing in the middle of woods

    Enfim, julgo que este exercício servirá sobretudo para uma conclusão.

    Se se defende que a vacinação contra a covid-19 é o principal motivo para a descida acentuada da mortalidade dos mais idosos – e, pessoalmente, julgo que contribui, mas não é o factor único –, então dever-se-ia concluir, seguindo a mesma linha de raciocínio, não ser sequer razoável, do ponto de vista da Saúde Pública (e mesmo de protecção individual), um processo massivo de vacinação da população mais jovem.

    De facto, sendo certo que há sempre vidas que se podem salvar da covid-19 – mas nos menores de 40 anos poucas serão, porque poucas estiveram efectivamente em risco mesmo antes das vacinas –, também não é menos verdade que os custos de toda a ordem para potencialmente se salvar tão poucas vidas (de jovens) não compensa. E essa ausência de benefício nada tem a ver com a desconsideração pelas vida perdidas para a covid-19. Não, não e não. Tem a ver com as vidas suplementares que se podem salvar se os investimentos financeiros para a Saúde forem reorientados para onde possam alcançar melhores resultados. Mais vidas mantidas.

    Sejamos claros: vacinar ou não vacinar não é um acto “inócuo”. Estou, desta vez, a falar em Economia. E em Saúde. Vacinar massivamente tem custos enormes. Brutais. Por exemplo, se os montantes dispendidos nos programas de vacinação contra a covid-19 em menores de 40 anos, em situação saudável, fossem destinadas para outras áreas da saúde em défice, garanto que se salvariam mais vidas, dar-se-iam mais anos de vida a muita gente, e de uma forma mais sustentável.

    Não se está a ser demagógico, mas sim realista. Os menores de 40 anos são um grupo populacional de 4,25 milhões de pessoas, mais de 40% da população portuguesa. Quase a sua totalidade sobreviverá à covid-19 sem vacina – e aquelas que estão em risco, por comorbilidades prévias, podem e devem ser vacinadas. A vacina, para este vasto grupo, apenas constituiu uma despesa pública inútil, e nunca um investimento de protecção da vida e da promoção da Saúde Pública. Os custos de internamento por covid-19 dos menores de 40 anos são uma gota de água, porque os doentes que são internados são extremamente minoritários. Convinha, em todo o caso, o Ministério da Saúde mostrar-nos a “factura”, jogar o “jogo da transparência democrática”.

    Imaginem assim que se desviava, suponhamos, o dinheiro de seis milhões de vacinas – ou seja, neste grupo etário, não se inoculavam três milhões de pessoas – para outros sectores de Saúde, desde a pediatria até à geriatria. Não estou a contabilizar a poupança em termos logísticos. O processo de vacinação, incluindo pagamentos a empresas que forneceram pessoal de enfermagem, custou muitos milhões de euros.

    Deste modo, teríamos assim à “disposição”, assumindo um preço de 20 euros por dose, pelo menos 120 milhões de euros. Isto sem falar em doses de reforço. Que “milagres” se poderiam concretizar com 120 milhões de euros no sector da Saúde?

    Talvez dar médicos de família a muita gente que ainda não tem. Talvez reforçar os exames e cirurgias que deixaram de se realizar durante a pandemia. Talvez humanizar mais os lares de idosos. Talvez abandonar as políticas discriminatórias e de aberrante autoritarismo que envergonham a Democracia. Talvez decidir que, afinal, o Michael Phelps não precisa de bóia para entrar na piscina. Talvez começar a pensar com racionalidade. Talvez viver sem pânico.

  • Hospital de Cascais recebeu elogios no combate à pandemia mas silenciou surtos descontrolados de sépsis

    Hospital de Cascais recebeu elogios no combate à pandemia mas silenciou surtos descontrolados de sépsis

    A unidade de saúde de Cascais, integrada no SNS, mas gerida pelo Grupo Lusíadas, registou o pior desempenho no controlo de infecções hospitalares durante o primeiro ano da pandemia. O risco de morte de doentes com covid-19 que desenvolveram sépsis triplica em comparação com os outros. O ex-director da Visão, Pedro Camacho, foi uma das vítimas mortais.


    O Hospital de Cascais recebeu em Dezembro do ano passado um destaque da Federação Internacional dos Hospitais – ficando integrado numa lista de 103 unidades de saúde mundiais que prestariam “serviços de excelência no combate à pandemia” –, mas estava então a atravessar, no denominado “covidário”, um surto de septicémia – uma gravíssima infecção geralmente nosocomial (de origem hospitalar) da corrente sanguínea – que se prolongaria até Fevereiro deste ano.

    Na esmagadora maioria dos casos desta infecção de elevada letalidade – associada, em parte, a deficiências de higienização hospitalar – não foi identificada a bactéria na sua origem. Existem, porém, vários registos de sépsis causada por Escherichia coli, Staphylococcus aureus, pseudomonas e enterococos.

    De acordo com registos anonimizados do Hospital de Cascais, a que o PÁGINA UM teve acesso, contabilizam-se 119 doentes internados com covid-19 que desenvolveram sépsis entre Março de 2020 e Abril deste ano. Grande parte destes doentes eram idosos (mediana de 73 anos), havendo 78 homens e 41 mulheres. O mais novo doente tinha 31 anos e o mais idoso contava 98. Ao longo destes 14 meses, no decurso dessas altamente letais infecções, acabariam por morrer 72 destes doentes, mas a covid-19 ficou com a “culpa” exclusiva.

    Hospital de Cascais é gerido em PPP pelo Grupo Lusíadas Saúde.

    O impacte de uma sépsis num doente-covid – tal como em outros doentes internados com o sistema imunitário debilitado – é geralmente devastador, tanto mais que a sua evolução é “silenciosa”, e muitas das bactérias causadoras são multirresistentes a antibióticos.

    No caso particular dos doentes-covid internados no hospital de Cascais, a taxa de mortalidade daqueles que não tiveram sepsis foi de 19%; com sépsis subiu para 61% – ou seja, três vezes mais.

    Considerando a totalidade dos hospitalizados por covid-19 em Cascais entre Março de 2020 e Abril de 2021 (cerca de 1.400 doentes), a probabilidade de desenvolver sépsis foi de 8%. A nível nacional, segundo apurou o PÁGINA UM, a esmagadora maioria dos hospitais do SNS registou uma taxa de prevalência de sépsis a rondar os 2%. Ou seja, a prevalência, ou risco, nesta unidade de saúde da Grande Lisboa foi quatro vezes superior.

    Os casos fatais de sépsis no “covidário” do Hospital de Cascais começaram desde o início da pandemia, sempre em enfermaria – isto é, não estiveram associados às unidades de cuidados intensivos (UCI) –, mas em número diminuto. A situação agudizou-se sobretudo em Novembro do ano passado. Nesse mês já se registaram cinco mortes de doentes-covid associadas a sépsis – em parte de pessoas ainda internadas em Outubro. A partir de Dezembro aumentaram ainda mais. No último mês de 2020 contabilizaram-se nove óbitos, subindo para 15 em Janeiro deste ano. Em Fevereiro fixaram-se em 12.

    Nos meses seguintes, em parte também pela redução significativa dos internamentos, os óbitos associados à sépsis em doentes-covid desceram para seis e dois, respectivamente em Março e Abril.

    Uma das vítimas destes surtos no Hospital de Cascais terá sido o conhecido jornalista Pedro Camacho, ex-director da Visão e então director de inovação e novos projectos da Lusa. Falecido em 5 de Dezembro de 2020, após um longo internamento de cinco semanas por covid-19, as notícias de diversos órgãos de comunicação social – como o Público e o Expresso – revelaram que o seu estado clínico se agravara fatalmente “por duas infecções causadas por bactérias hospitalares”. Foi, no entanto, considerado um óbito por covid-19.

    Registo de doentes-covid com sépsis por data de início de internamento e número de óbitos.

    O PÁGINA UM apurou que, de facto, após ter sido internado no Hospital de Cascais em 29 de Outubro do ano passado, Pedro Camacho sofreu diversas complicações não directamente associada à covid-19, entre as quais duas septicémias distintas, incluindo um choque séptico.

    Os dados anonimizados que o PÁGINA UM consultou não permitem identificar em concreto as datas de detecção destas infecções nosocomiais, mas, mesmo que tal fosse possível, não seriam obviamente aqui reveladas.

    Em parte por ter sido um período crítico de internamentos, e de ainda estar em curso um problema de higienização, o mês de Janeiro deste ano foi aquele com maior número de internados por covid-19 que desenvolveram depois sépsis. No total contabilizaram-se 31 casos, mais 13 do que em Dezembro de 2020 e mais 14 do que em Fevereiro deste ano. Em Março e Abril, os casos passaram a ser pontuais. A partir desse período, o PÁGINA ainda não conseguiu obter mais dados.

    Oficialmente denominado Hospital de Cascais Dr. José de Almeida, esta unidade de saúde é gerida pelo Grupo Lusíadas Saúde, através de uma parceria público-privada (PPP) desde 2010. Este contrato deveria terminar dentro de dias, no final deste mês, mas foi prolongado por mais um ano por Resolução do Conselho de Ministros com um custo máximo para o erário público de 80 milhões de euros.

    Recorde-se, no entanto, que em Maio deste ano, em comunicado, Lusíadas Saúde anunciara não estar interessada em concorrer ao novo concurso de gestão no âmbito da PPP nos moldes estabelecidos num despacho de Maio do ano passado dos Ministérios das Finanças e da Saúde, por não ser possível “construir uma proposta sustentável que assegure a qualidade e excelência de cuidados que pautam a atuação do Grupo”.

    O PÁGINA UM enviou um conjunto de seis questões à administração do Hospital de Cascais, presidida por José Bento, mas não obteve qualquer reacção.

  • Pandemia e ajustes directos trazem ‘euromilhões’ e sonho do Dakar a empresário de brindes

    Pandemia e ajustes directos trazem ‘euromilhões’ e sonho do Dakar a empresário de brindes

    O empresário Lourenço Rosa transformou uma empresa de brindes e estampagem de t-shirts numa máquina de facturação de milhões que começou em contratos por ajuste directo com a autarquia de Cascais para aquisição de material de protecção contra a covid-19. Viralizou a sua actividade para o sector público, sempre sem visto do Tribunal de Contas e sem pormenores no portal BASE. Estendeu o negócio para o privado. Acabou o ano passado com um lucro de 18 milhões de euros, quase 60 vezes o valor registado em 2019. Quer que a pandemia acabe, para bem dos seus filhos, mas, enquanto tal não sucede, participa no próximo mês, pela segunda vez, no Rally Dakar. Tem um bom patrocinador: a ENERRE Pharma, a sua empresa.


    Três dias antes do anúncio da primeira morte oficial por covid-19, em 16 de Março do ano passado, Lourenço Rosa usava a sua página pessoal do Facebook para vender álcool gel estilizado em garrafinhas e canetas gravadas com marca da sua empresa. Prometia entregar qualquer encomenda, mesmo a particulares, no prazo de uma semana, e até respondia pessoalmente às (poucas) solicitações sobre entregas ao domicílio. Fornecia até o seu e-mail profissional da empresa – lourenco.rosa@enerre.com – a quem desejasse mais informações sobre onde e como comprar.

    A empresa em causa – a ENERRE criada em 1976 pelos pais de Lourenço Rosa, actual administrador único – sempre laborara em torno da produção e comercialização de brindes, têxteis e estampagem de t-shirts e outros artefactos de merchandising. Com armazém, loja e escritório na Matinha, em Lisboa, a ENERRE fazia pela vida. Em 2019, imediatamente antes da pandemia, registou um volume de negócios de cinco milhões de euros, e um lucro de 310 mil euros – ou seja, um pouco mais de 25 mil euros por mês. Não era mau, mas, em termos fiscais, estava classificada como “pequena entidade”.

    Lourenço Rosa, administrador único da ENERRE

    Pequena também, aparentemente, seria a qualidade apercebida de alguns dos seus serviços. Pelo menos a atender ao nível de satisfação dos clientes. Embora na página do Google sobre a ENERRE já constem agora algumas boas classificações (sem comentários), as “análises” anteriores à pandemia eram arrepiantes. Um dos clientes afiançava que «a qualidade dos produtos é baixa, [e] os atrasos são constantes”, acrescentando: “o atendimento ao cliente é péssimo”. Outro, assegurava que na ENERRE, “pensam em tudo, menos no cliente», dando uma dica: “se quiserem estampados em preto, peçam em branco”.

    As queixas não eram apenas de índole cromática. Um outro cliente lamentava que «sempre que a roupa é lavada, a roupa encolhe cada vez mais”, aditando que “só com 5 ou 6 lavagens, uma sweat tamanho L já está mais pequena do que roupa de 14 anos”. E, para terminar, mais um decepcionado cliente acusava a ENERRE de vender gato por lebre: “Tshirts? Parecem tops…”.

    A Câmara Municipal de Cascais – que apenas tivera um contacto em 2019 com a ENERRE para a produção de brindes – terá pensado de forma diferente. Na segunda quinzena de Março do ano passado – poucos dias, portanto, após o post de marketing de Lourenço Rosa –, a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras nem tempo quase teve de pestanejar entre contratos com a ENERRE para aquisição de material de protecção, máscaras e termómetros no valor total de 2.200.400 euros.

    Em menos de uma semana daquele mês foram três, todos por ajuste directo: o primeiro em 17 de Março por uma verba de 361.500 euros; o segundo três dias depois pelo montante de 1.178.900 euros; e o terceiro no dia 23 por um montante de 600.000 euros. Apesar dos contratos constarem no portal BASE, não estão incluídos os anexos que os integram, que listam a quantidade e preços unitários dos materiais comprados. Aliás, a exclusão de elementos essenciais sobre prestações de serviços ou aquisição de bens nesta base de dados começa a ser uma prática cada vez mais frequente – e aceite pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, que gere o portal BASE –, o que facilita a manutenção de negócios obscuros.

    Primeira página do contrato assinado entre a ENERRE e a Câmara Municipal de Cascais publicado no portal BASE

    Durante Abril do ano passado, ao segundo mês da pandemia, a autarquia de Cascais continuou a comprar materiais à ENERRE como se não houvesse amanhã. E com ajustes directos cada vez mais chorudos. Nesse breve período foram mais oito contratos relacionados com o combate à pandemia. Factura total: 6.474.900 euros. Também nestes casos se ignora detalhes das compras, por não constarem no portal BASE. Ou seja, em menos de 50 dias, o município de Carlos Carreiras – que tem uma população de 214 mil habitantes – despachou para a ENERRE cerca de 8,7 milhões de euros, portanto 40 euros por munícipe.

    No entanto, embora a Câmara Municipal de Cascais continue a ser um cliente privilegiado da ENERRE – até hoje foram assinados 24 contratos por ajuste directo relacionados com a pandemia no valor de 13.639.935 euros –, Lourenço Rosa já deixou há muito de ter necessidade (e interesse) em fazer marketing no seu mural da rede social de Zuckerberg. Nem tempo.

    Na verdade, nos primeiros meses da pandemia, a ENERRE não teve mãos a medir. Lourenço Rosa começou a despachar contratos num ritmo que se assemelhou ao da chegada de encomendas com máscaras e outros materiais da China, por avião ao aeródromo militar de Figo Maduro. Talvez não por acaso – porque, no mundo dos negócios, raramente há acasos –, o Estado-Maior-General das Forças Armadas também contratou, logo em Março, por ajuste directo, “equipamento de protecção individual (COVID)” no valor de 1.065.850 euros. No portal BASE, esta instituição tutelada pelo Ministério da Defesa “descartou-se” de elencar aquilo que se comprou, e meteu mesmo uma cláusula de sigilo com duração de cinco anos.

    Com o prolongamento da pandemia, o EMGFA ainda faria mais compras à ENERRE (já gastou, até agora, em mais de 2,2 milhões de euros), e a apetência pelos materiais contra a covid-19 pela empresa de Lourenço Rosa alastrou aos outros ramos: o Estado Maior da Força Aérea já lhe fez compras de 433.761 euros. A Marinha foi mais modesta: “apenas” 92.750 euros.

    Porém, ao nível da contratação pública, as autarquias e os hospitais são os principais clientes da ENERRE. Digamos que os contratos viralizaram a partir de Cascais. Desde Março de 2020, até ontem, a ENERRE assinou 217 contratos públicos com 66 entidades distintas num total de 31.645.963 euros – uma média mensal de 1,4 milhões de euros.

    No caso de hospitais e outras entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde, a ENERRE engordou a sua carteira de clientes em 24, e os seus cofres com 9.912.807 euros em contratos por ajuste directo. O Hospital Amadora-Sintra (2,1 milhões de euros), a empresa pública Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (1,7 milhões de euros) e o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (1,6 milhões de euros) foram os mais generosos para a saúde da empresa de Lourenço Rosa. Registam-se ainda mais cinco hospitais ou centros hospitalares com contratos entre 500 mil e um milhão de euros: Espírito Santo (Évora), Barreiro-Montijo, Garcia de Orta (Almada), Coimbra e Divino Espírito Santo (Ponta Delgada).

    Lucro de um ano vale 60

    Se a ENERRE já chegou a ser acusada por um cliente insatisfeito de vender t-shirts que se transformavam em tops, a sua influência comercial no apetecível mundo autárquico esbijou muito nos últimos dois anos. Depois de Cascais, Lourenço Rosa alargou o seu portefólio de máscaras e outros apetrechos a mais 17 concelhos, através de 37 contratos no valor total de quase 3,3 milhões de euros. Atrás da autarquia de Carlos Carreiras, surgem agora os municípios de Lisboa (cerca de 1,6 milhões de euros) e de Albufeira (quase 500 mil euros). Aveiro, Sintra e Porto contabilizam contratos entre 100 mil e 400 mil euros. Tudo por ajuste directo e contornando o visto do Tribunal de Contas. O regime de excepção por causa da pandemia tudo permitiu.

    Antes deste período, a ENERRE não era assim tão afortunada no universo público: entre 2010 e 2019 apenas conseguiu contratos públicos, grande parte dos quais por concurso, num total de 3.069.168 euros – portanto, em 10 anos, uma média mensal de pouco mais de 25 mil euros. De entre estes, destacam-se dois contratos com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de compra de brindes de promoção dos jogos no valor de cerca de 2,3 milhões de euros, contratualizado em 2015. Outros tempos, antes de uma pandemia “conceder” uma espécie de “euromilhões” a Lourenço Rosa.

    Não se pode dizer, em abono da verdade, que a ENERRE andou a viver exclusivamente à custa do Estado. Embora Lourenço Rosa não tenha reagido sequer às questões colocadas pelo PÁGINA UM, as demonstrações financeiras da empresa no ano passado mostram que a janela aberta pelos contratos públicos abriu portas no sector privado. Em 2020, segundo a contabilidade da empresa, as receitas e prestação de serviços atingiram os 68,8 milhões de euros.

    Tendo em conta os ajustes directos com entidades públicas atingiram, no primeiro ano da pandemia, cerca de 24 milhões de euros, significa então que dois em cada três milhões facturados vierem do sector privado. Recentemente, a CNN Portugal revelou que a ENERRE é o fornecedor principal de material médico relacionado com a covid-19 dos principais hipermercados do país.

    Em todo o caso, tenha o dinheiro vindo de onde se quiser, o contabilista da ENERRE já não trabalha em euros como unidade; já digita milhões. O volume de negócios da empresa da Matinha – que continuou, estranhamente, a reger-se pela norma contabilística e de relato financeiro para pequenas entidades – aumentou 14 vezes entre os anos de 2019 e 2020. E a margem de lucro subiu estrondosamente, porque a ENERRE serviu sobretudo como mero importador de produtos fabricados na China – o que deveria levar a uma reflexão sobre as razões do Estado português nunca ter accionado uma central de compras públicas durante a pandemia.

    Com efeito, a ENERRE conseguiu um “milagre de produtividade” com a graça da pandemia. Mantendo quase os mesmos custos com pessoal (subiram de 916 mil euros em 2019 para 1,17 milhões euros em 2020), Lourenço Rosa logrou transformar aquilo que comprou por um pouco menos de 44 milhões de euros em vendas de quase 69 milhões. Uma deliciosa receita que, deduzidos outros gastos e despesas, bem como impostos, lhe deu um lucro líquido no ano passado de 18.198.324 euros. E mais 28 cêntimos.

    Se Lourenço Rosa mantivesse a ENERRE com um desempenho ao ritmo de 2019 (lucro anual de cerca de 300 mil euros), teria de trabalhar quase 59 anos seguidos para alcançar o que na realidade obteve no primeiro ano da pandemia. Como tem 44 anos, teria de passar esse objectivo aos filhos.

    De Reguengos até ao Dakar

    Os negócios da ENERRE estão agora, mais do que nunca, de vento em popa, e Lourenço Rosa não tem parado de expandir a sua actividade. Em Fevereiro passado anunciou a construção de um edifício de raiz para a sua nova sede, no Prior Velho. Montou também uma unidade de produção de máscaras com capacidade de 40 mil por dia. E tem também projectada uma fábrica de luvas biodegradáveis em Grândola. Já recebeu entretanto subsídios estatais de 1,44 milhões de euros. Os resultados de 2021 não são ainda conhecidos, obviamente, embora seja de esperar que tenham superado largamente os já extraordinários registados no primeiro ano de pandemia.

    Apesar disso, em declarações recentes à CNN Portugal, Lourenço Rosa diz ansiar pelo fim da pandemia. “Sinceramente, queria que isto acabasse já. Não é vida para ninguém. Tenho filhos e não quero que eles vivam com este horror”, garantiu então o empresário.

    Porém, quem o vir em muitos vídeos pelo Youtube e posts da sua página do Facebook Lourenço Rosa – Adventure, com cerca de dois mil seguidores, não terá essa percepção.

    O sucesso empresarial em redor da pandemia empurrou, por exemplo, o seu hobby de piloto amador para planos estratosféricos. Em Maio de 2019 entretinha-se ele pela Baja TT Reguengos de Monsaraz, por pachorrentas terras alentejanas, mas agora apresta-se para o seu segundo Rally Dakar pelas areias da Arábia Saudita. Na primeira aventura, tripulando um veículo SSV (side-by-side) classificou-se em 15º lugar na categoria. Irradiava de felicidade quando saiu de Portugal no dia a seguir ao Natal do ano passado em direcção à mítica prova, enquanto, ao lado do seu navegador, gravava uma live no interior do aeroporto de Lisboa… sem máscara.

    Há dois meses, esteve também no Rally de Marrocos, e já passou pela Baja Hail, nos desertos árabes. Em todas as suas imensas lives e fotos, vestido à piloto profissional, nada nele transparece o “horror” destes tempos em que vivem os seus filhos. Talvez, porque as suas aventuras automobilísticas, aos comandos de um vistoso Can-Am Maverick XRS, estejam a ser suportado pelo patrocinador, ostensivamente mostrado no seu veículo: a ENERRE Pharma.

    Lourenço Rosa, com o seu navegador Joaquim, ambos sem máscara, no aeroporto de Lisboa, de partida para o Rally Dakar de 2021

    Esta empresa, como o nome indicia, pertence também a Lourenço Rosa. Tem sido, aliás, a ENERRE Pharma que tem ele usado na maioria dos contratos públicos desde Setembro último. Funcionando assim como uma espécie de “subsidiária” de produtos médicos da empresa-mãe, a ENERRE Pharma, deu pelo nome de Brindextil Print Solutions Lda. até 2019, tendo então atingido vendas de 79 mil euros e um lucro de 10 mil.

    No ano passado, apresentando as contas já como ENERRE Pharma, os resultados ainda foram mais modestos: 9.200 euros de receitas e um prejuízo de 483 euros. Apesar disso, teve “capacidade” para patrocinar as aventuras do seu proprietário Lourenço Rosa. Não em um Dakar, mas dois Dakar.

    E mais haverá, por certo, mais ainda, sobretudo se houver mais pandemia. Mesmo se o horror para os seus filhos se mantiver. E, claro, se se mantiverem os habituais contratos por ajuste directo, sem qualquer visto nem controlo com o Estado e as autarquias portuguesas.

  • Como se perde cedo demais (mas cada vez menos) o “milagre da vida” em Portugal

    Como se perde cedo demais (mas cada vez menos) o “milagre da vida” em Portugal

    Nunca é tema fácil, mas acaba por ser reconfortante saber que a perda prematura de bebés, crianças e adolescentes é cada vez mais rara. A evolução médica e das condições de vida transformaram um triste “hábito” ancestral – pais a assistirem à morte de filhos – numa raridade. No momento em que, muito por pânico, dezenas milhares de pais anseiam por vacinar as suas crianças contra a covid-19 – que ainda não matou nenhuma em Portugal –, o PÁGINA UM analisa um tema pouco apetecível mas necessário para um debate sobre Saúde Pública, e onde se revela que a gripe e as pneumonias, apesar de muito pouco frequentes, já causaram mais “baixas” nos mais jovens do que o SARS-CoV-2.


    Neste fim-de-semana, os pais de cerca de 77 mil crianças portuguesas correram a vacinar os seus filhos contra a covid-19. Correram, em sentido literal, porque a esmagadora maioria acha que estão em perigo de vida.

    Uma questão inquietante, no meio deste movimento social de forte pendor psicológico, e que levou muitos progenitores à beira de um ataque de pânicos, ou de nervos, deve ser colocada: esse perigo, decorrente de um risco, é real?

    A resposta é fácil: não.

    Neste momento, o risco de uma criança dos 5 aos 11 anos de morrer por covid-19 é zero, porque o risco é uma probabilidade. Até agora, desde a chegada do SARS-CoV-2 ao território nacional em Março de 2020, a pandemia não matou qualquer criança (entre os 5 e os 11 anos), o grupo agora prioritário no programa vacinal. As taxas de internamento situam-se em números baixíssimos: 0,2% dos casos positivos, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde.

    Não há, porém, risco zero absoluto. Donde existe uma incerteza quanto ao futuro. E pode sempre dizer-se que pode (ou não) ocorrer mortes de crianças dos 5 aos 11 anos, se até já se registaram três mortes de menores de idade: dois recém-nascidos e um bebé de quatro anos. Mas todos com gravíssimas comorbilidades.

    Poder, pode sempre. Ou não. Na verdade, pode sempre especular-se, mas até aí deve fazer-se com algum critério científico. Uma doença não deve ser olhada apenas em si mesma, mas também na pessoa que “ataca”, sobretudo porque a incidência e a letalidade variam. Por exemplo, no caso da covid-19 não é a mesma coisa estar a investir para se evitar uma infecção em crianças ou em idosos. Mil infectados com mais de 85 anos não-vacinados resulta, segundo dados oficiais, em 15% de mortes; no caso de menores de idade é necessário usar três casas decimais para evitar o 0%.

    Sendo certo que uma vida é uma vida, outra questão mais perturbadora tem, em todo o caso, e obrigatoriamente, que se colocar: deve lutar-se com todas as “armas”, a todo e qualquer custo, para salvar mais de 600 mil crianças de um desfecho fatal que é um pouco mais do que hipotético?

    A resposta é também deveria ser simples, mas foi complexificada com a covid-19. Uns defendem que sim; outros que não. Qualquer que seja, tem que haver sempre um “mas”.

    Com efeito, qualquer decisão para um programa vacinal deveria ter em consideração não apenas o risco absoluto de uma doença, mas também o seu risco comparativo em relação a outras doenças. Ora, a covid-19 até pode hipoteticamente matar, mas será a única com “capacidade” de tirar uma vida a quem agora começou essa “viagem”? Ou seja, será que, tendo em consideração as limitações da vacina contra a covid-19, se justifica priorizar a vacinação quando existem outras doenças que até matam, e onde haveria melhor retorno (em vidas) com maior investimento?

    Para haver esse debate teria de se conhecer melhor um tema tabu: as mortes dos recém-nascidos, bebés, crianças e jovens adolescentes, para em seguida saber qual a margem de melhoria que se tem. E o que é necessário fazer, se for possível.

    Uma evolução espectacular

    Não é um tema particularmente delicioso e atraente, confessa-se. Mas é necessário conhecer-se, saber-se. Até para enquadrar a covid-19 na sua verdadeira dimensão em relação aos mais jovens. E para saber se se justifica todo o pânico criado nos últimos meses junto dos pais e da sociedade em geral.

    Mas o PÁGINA UM meteu mãos à obra neste pouco apetecível tema, e foi desvendar como tragicamente podem morrer as crianças em Portugal, e também como tem sido a evolução nas últimas décadas e nos anos mais recentes.

    Comece-se então por uma boa notícia: nunca como nos últimos anos – e anos desta pandemia incluídos – se perderam tão poucas vidas de bebés, crianças e adolescentes jovens.

    Na verdade, seguindo a feliz tendência de decréscimo da mortalidade nestas faixas etárias, fruto da melhoria dos diagnósticos de detecção de malformações, da evolução da medicina – incluindo a proliferação de programas vacinais eficazes e comprovadamente seguros – e da melhoria das condições de vida, Portugal apresenta invejáveis indicadores de saúde. Encontra-se no clube dos países, quase todos europeus, com melhores indicadores de saúde, medidos por taxas de mortalidade. Neste aspecto, Portugal consegue estar muito melhor do que países mais ricos, como os Estados Unidos.

    Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 nascimentos) neonatal e infantil em Portugal entre 1970 e 2019 (Fonte: UNICEF)

    Por exemplo, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o nosso país apresentou em 2019 uma taxa de mortalidade neonatal de dois óbitos por 1.000 nascimentos. Os Estados Unidos tinham praticamente o dobro (3,7) e o Brasil quatro vezes mais (7,87). Países como a Índia e Angola estavam noutro “desgraçado campeonato”: no país asiático morreram quase 22 em cada 1.000 bebés, enquanto no país africano 28.

    Nas idades subsequentes, esta relação mantém-se similar. Os últimos dados da UNICEF colocam Portugal também no “primeiro mundo”, com taxas muito baixas de mortalidade infantil (3,05 óbitos até aos 5 anos por 1.000 nascimentos) e de crianças e jovens adolescentes (0,78 óbitos entre os 5 e os 14 anos por 1.000 crianças com 5 anos). Neste último indicador, os Estados Unidos apresentam quase o dobro desta taxa (1,37) e o Brasil três vezes mais.

    Se os pais portugueses com crianças e adolescentes podem dormir mais descansados do que os norte-americanos, e ainda mais em comparação com os dos países menos desenvolvidos, então nem vale a pena recuar para o tempo dos respectivos pais e avós. E muito menos olhar para passados longínquos. Em finais do século XIX, por exemplo, a taxa de mortalidade infantil chegava a ultrapassar os 30% – ou seja, havia 300 mortes em cada 1.000 nascimentos. O risco de um bebé morrer naquela altura era pelo menos 100 vezes superior ao dos nossos dias. Eram outros tempos.

    Porém, mesmo nos tempos modernos, chamemos assim, a morte esteve bem mais presente sobre os berços e pequenas camas do que hoje. Em Portugal, a taxa de mortalidade neonatal era em 1970 de 23,7 em 1.000 nascimentos, ou seja, 12 vezes superior à de 2019. No caso da taxa de mortalidade infantil, a descida foi ainda mais acentuada: em 1970 situava-se nos 55,7 óbitos por 1.000 nascimentos – significando que quase 6 em cada 100 crianças sucumbiam antes de perfazerem 5 anos –, enquanto agora está em aproximadamente três óbitos em 1.000 nascimentos.

    Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 crianças com 5 anos) no grupo etário 5-14 anos em Portugal entre 1900 e 2019 (Fonte: UNICEF)

    Embora a UNICEF não apresente dados anteriores a 1990 para a taxa de mortalidade no grupo etário dos 5 aos 14 anos, a evolução nas últimas três décadas impressiona: passou de 3,9 óbitos em 1.000 crianças (com 5 anos) para apenas 0,8. Estamos a falar de uma descida de 80% numa taxa de mortalidade já então bastante baixa em 1990.

    Em Portugal, a pandemia da covid-19 trouxe, quer directa quer indirectamente, praticamente zero impacte na sobrevivência de bebés, crianças e jovens adolescentes. Ou mesmo talvez tenha trazido um paradoxal benefício. Com efeito, em 2019 morreram 265 bebés com menos de um ano, e no ano passado apenas 214. Este ano, até 17 de Dezembro, foram registados 183 óbitos, devendo assim ser o ano menos mortífero em termos absolutos desde que há registos estatísticos.

    O número de óbitos na faixa etária seguinte – entre 1 e 4 anos – deverá em 2021 ser ligeiramente superior ao ano passado (53 mortes), mas ainda inferior a 2019. Nesse ano registaram-se 87 mortes neste grupo, enquanto este ano, até 17 de Dezembro, já se registaram 53.

    Apenas no caso do grupo etário das crianças entre os 5 e os 14 anos se verificará previsivelmente um ligeiro agravamento em relação ao período de 2019. Neste momento, os anos de 2021 e 2019 contabilizam o mesmo número de desfechos fatais em crianças, o que significa que, pelas lamentáveis leis na probabilidade, o presente ano terminará com um pouco mais de 90 óbitos neste grupo etário. Em todo o caso, no primeiro ano da pandemia, em 2020, tinha-se registado um número bastante baixo de óbitos (apenas 75).

    Enfim, mesmo num período distópico em que nunca se falou tanto em morte, “que se tenha noção” – como diria, embora noutra circunstância, o jornalista da SIC Rodrigo Guedes de Carvalho – de que se antes era frequente os pais verem filhos morrer, agora esses pais, como avós, raramente assistem a um desfecho fatal dos seus netos.

    Sempre más, mas raras

    Sigamos para a parte mais lamentável deste longo artigo: as causas das sempre e mais compreensivelmente tristes mortes de bebés, crianças e jovens adolescentes. Defenda-se, contudo, desde já que sendo certo serem todas as horas de vida importantes para todas as pessoas de todas das idades – como defendeu o vice-almirante Gouveia e Melo –, a razão dirá, se não se quiser ser populista ou demagógico, que as muitas e muitas horas já vividas por um idoso a morte não as tirará. Porém, ceifando a morte uma criança, muitas e muitas horas de vida, e de esperança, serão perdidas por aqueles que mereciam chegar a velho, tendo uma vida plena. Triste não é ser velho: triste é não chegar a velho.

    Não por acaso, aliás, os estatísticos – sempre classificados de insensíveis – usam um indicador aparentemente frio, mas que mostra bem o estado das políticas de saúde de um país: a taxa de anos perdidos por 100.000 habitantes. Quem deixa morrer as suas crianças, por um lado tem menos gente a chegar a velha, e a que chega maltratada será até à morte.

    Enfim, mas afinal, vejamos, em concreto, quais são as malfadadas doenças e enfermidades que ainda matam, por ano, algumas centenas de bebés e várias dezenas de crianças e jovens adolescentes – ao contrário da covid-19, que, em abono da verdade, e apesar do alarme social ceifou três vidas de menores de idade em quase dois anos.

    De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), nos últimos cinco anos com registos (2015-2019) faleceram 1.314 bebés com menos de um ano. A parte substancial destas mortes são derivadas de afecções originadas no período perinatal (775) – que corresponde ao período entre as 22 semanas de gestação e a primeira semana após o nascimento – ou de malformações congénitas de anomalias cromossómicas (313). Por causas mal definidas foram reportados 41 óbitos.

    Em todo o caso, estas mortes – que se diriam quase inevitáveis – têm registado um decréscimo acentuado, em parte como reflexo da melhoria na detecção de malformações em ecografias e outros diagnósticos complementares durante as gravidezes, mas também pela evolução da medicina.

    girl and boy playing on bed

    Com efeito, os óbitos perinatais eram ainda bastante elevados há algumas décadas. Por exemplo, em 1989 contaram-se 1.919 óbitos perinatais, segundo dados do INE, mas desde 1997 baixaram a fasquia dos mil. Em 2019 já foram apenas 104, o que representa uma evolução positiva espantosa.

    Por outro lado, torna-se notório que algumas afecções graves já não matam agora tantos bebés como no início do século XXI, mesmo se os primeiros 12 meses de vida continuam a ser “delicados”. Na verdade, a taxa de mortalidade nestes “primeiros passos” é similar à das pessoas com 51 anos.

    Se se comparar as causas dos óbitos infantis em 2002 com os registados em 2019 constata-se uma redução muito significativa naqueles associados à duração da gravidez e ao crescimento fetal (passaram de 83 para apenas oito), à hipoxia intra-uterina e asfixia ao nascer (passaram de 49 para 3) e a uma infinidade de outras enfermidades ou malformações congénitas. Segundo os dados do INE, os óbitos infantis entre aqueles dois anos reduziram-se de 580 para 255. Convém referir, no entanto, que no início do presente século nasciam ainda mais de 110 mil crianças por ano, cerca de 40% superior ao número que se registará este ano. De facto, tendo em conta os nascimentos até Outubro, nascerão este ano menos de 80 mil bebés, o valor mais baixo desde que meados do século XIX.

    Se excluirmos as causas decorrentes de malformações e doenças congénitas fatais nos primeiros meses, os óbitos de bebés com menos de um ano são cada vez mais uma raridade. No quinquénio 2015-2019, as doenças do sistema nervoso e dos órgãos encabeçam o grupo de enfermidades mais fatais, embora com um número muito baixo: 36 óbitos, o que representa cerca de sete por ano. Seguem-se as doenças do aparelho respiratório (29, no quinquénio), das quais 16 por pneumonia. Isto é, a pneumonia causou, em média anual, a morte de três menores de um ano – um valor muito baixo, mas superior ao registado para a covid-19 na mesma faixa etária.

    As causas externas – grosso modo, ferimentos de origem diversa – são outra relevante causa de morte, no período analisado, com 41 óbitos. Destes, 23 deveram-se a acidentes (ou suas sequelas), dos quais quatro foram acidentes de transporte. Houve também três mortes por agressão.

    Ultrapassado o primeiro ano de vida – em que as malformações mais graves acabam lamentavelmente por levar os mais infelizes na “sorte da vida” –, os óbitos decaem bastante na faixa etária até aos quatro anos: apenas 300 registos no quinquénio 2015-2019. E começam então a ganhar preponderância relativa outras causas, embora seja importante não esquecer que este grupo etário não pode ser comparado directamente com os bebés menores de um ano, uma vez que agregando crianças de 1, 2, e 4 anos – ou seja, é um grupo etário de quatro vezes superior. E há outro factor: os menores de um ano são muitíssimo mais frágeis. Mas mesmo muito mais.

    2 girls sitting on floor

    Se seguirmos as tábuas completas de mortalidade do INE, em cada 100.000 crianças nascidas nos anos mais recentes, 99.703 ultrapassaram o primeiro ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade é de 0,30%. Já entre o primeiro e o segundo ano de vida, essa taxa desce muito: em 100.000 bebés com 1 ano, 99.968 completam o segundo ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade já só é de 0,032%. E continua a descer até estabilizar em redor dos cinco anos, aumentando a partir daí, mas até à próximo da idade da reforma com grande suavidade.

    Por exemplo, aos 20 anos, a probabilidade de se chegar aos 21 anos continua a ser quase total: 99,98% alcançam essa meta, o que significa uma taxa de mortalidade de 0,02%. Aos 30 anos essa taxa continua quase inalterada, situando-se em 99,96%. E aos 40 anos é de 99,91%. Somente a partir dos 67 anos, a taxa de sobrevivência ao fim de um ano fica abaixo dos 99%, embora no caso das mulheres essa fasquia ocorra em idade mais avançada. Os homens, apesar dos músculos, são na verdade o sexo fraco em termos de sobrevivência.

    Depois dos 70 e sobretudo dos 80 anos, convenhamos que a vida começa então a andar para trás. Por cada 1.000 idosos com 80 anos haverá cerca de 38 que não chegam aos 81. E por aí fora, crescendo abruptamente à medida que se ultrapassa a esperança média de vida. Dos felizardos que chegam aos 100 anos – na verdade, apenas 0,62% das pessoas que nasceram há 100 anos –, as probabilidades já são muito tramadas: um pouco mais de metade (52%) não vai festejar o próximo aniversário.

    Mas voltemos à infância. E às malfadadas mortes dos mais pequeninos, até aos quatro anos. Embora praticamente já todos sobrevivam, o INE ainda contabilizou 300 mortes ao longo de todo o quinquénio 2015-2019. Todas contam, apesar de, em abono da verdade, constituírem eventos trágicos muito raros face ao período (cinco anos) e à população abrangida (cerca de 425 mil pessoas).

    Sendo certo que nesta faixa etária (1-4 anos) as malformações e outras causas congénitas ou mal definidas continuam, em conjunto, a ser o principal risco de morte – embora com apenas por 70 óbitos no quinquénio em análise –, os tumores infantis sobressaem. Entre 2015 e 2019 sucumbiram 57 neste grupo etário. No caso de leucemias – sempre uma temida e mediática doença nestas idades, mas muitíssimo rara – registaram-se 21 mortes neste período.

    Os acidentes e suas sequelas seguem atrás: 55 óbitos no quinquénio – ou cerca de 10 por ano. De entre estas, o INE reporta 17 mortes por acidentes de transporte e cinco por agressões. As doenças do sistema nervoso e afins causaram, neste grupo, 32 mortes, enquanto as doenças do aparelho respiratório provocaram 20 óbitos.

    Curiosamente, três dessas mortes no quinquénio foram directamente por gripe (influenza) e 10 por pneumonias. Mesmo considerando-se que estamos perante um período de cinco anos – e os “danos” destas doenças respiratórias são baixíssimos em termos relativos –, estramos perante números superiores aos da covid-19. Recorde-se que nunca houve qualquer programa intensivo de vacinação contra a gripe em crianças, sendo que apenas em casos especiais (comorbilidades graves se recomenda, sem alarido, a toma de vacina). E relembre-se ainda que em quase dois anos, a infecção causada pelo SARS-CoV-2 foi considerada como responsável pela morte de uma única criança de quatro anos.

    silhouette of man carrying child

    Os desfechos demasiado precoces da vida de crianças e jovens adolescentes (grupo etário dos 5 aos 14 anos) são também, felizmente, muito escassos. O INE aponta 452 óbitos entre 2015 e 2019, ou seja, menos de uma centena por ano. Os tumores representaram 30% do total. As leucemias causaram 42 mortes nestes cinco anos, embora este grupo etário ronda as 850 mil pessoas.

    Os acidentes, embora também muito raros, constituem um risco relevante nestas idades. No período em análise, faleceram 99 crianças e adolescentes deste grupo etário, dos quais 38 de acidentes de transporte e sete de agressões. Embora com um valor estatisticamente residual, impressiona saber-se que entre 2015 e 2019 houve seis crianças e/ou adolescentes desta faixa etária que morreram por “lesões autoprovocadas intencionalmente”.

    Por outro lado, as malformações congénitas como causa de morte perdem peso neste grupo, o que se mostra compreensível, uma vez que os casos mais graves têm desfechos fatais em idades mais jovens. Em todo o caso, os dados do INE revelam a ocorrência de 45 óbitos resultantes deste tipo de afecções naquele quinquénio.

    Menos letais neste grupo etário são as doenças do aparelho respiratório. Em cinco anos, e para uma faixa etária de 10 anos, apenas originaram 16 mortes, sendo cinco por gripe (influenza) e oito por pneumonias. Embora trágicos para as vítimas, familiares e comunidade próxima, estes valores são bastante baixos do ponto de vista de Saúde Pública, e sobretudo reflectem uma excelente evolução da medicina e da Ciência.

    Poderiam ser mais baixos? Claro que sim. É para isso que as políticas públicas servem. Aliás, a evolução das últimas décadas, que aqui se retratou, demonstram que pode sempre melhorar-se quando o risco, mesmo que baixo, se pode reduzir ainda mais. Com investimento e estratégias adequadas.

    Porém, no caso da covid-19, pouco ou nada se pode baixar, em parte devido a uma relativa benignidade do SARS-CoV-2 nas idades mais jovens. Porém, mesmo assim, o Governo preferiu investir um programa de vacinação de muitos milhões de euros – talvez mais de 10 milhões (não foram ainda tornados públicos os contratos com a Pfizer) – para afinal combater uma doença que não matou qualquer pessoa no grupo etário jovem que neste fim-de-semana começou a ser vacinado.

    Será que não haveria outras prioridades em sectores onde se pudesse obter melhores desempenho do ponto de vista do investimento por redução potencial de mortes? A resposta parece, mais uma vez óbvia: sim, havia. Como parece lógica.

    Mas a pandemia causada pelo SARS-CoV-2 já nos mostrou à saciedade que a lógica é já uma batata. Podre.


  • Parecer admite desconhecimento dos efeitos em crianças e usa estudos não publicados nem revistos

    Parecer admite desconhecimento dos efeitos em crianças e usa estudos não publicados nem revistos

    O cenário mais favorável da eficácia do programa vacinal proposto pela Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) empola o número previsível de infecções, de modo a maximizar os benefícios absolutos da vacina nas crianças. Na verdade, se a actividade viral for baixa durante o próximo Inverno, a “cura” pode vir a ser pior do que a doença para os mais novos. O PÁGINA UM analisou com detalhe o parecer da CTVC, que admite que os riscos a longo prazo das vacinas para crianças não são conhecidos, e utiliza apenas estudos, incidindo em adolescentes, que nem sequer estão publicados ou revistos por cientistas independentes. A CTVC também não garante que o programa de vacinação das crianças salvará qualquer vida. Neste caso, por uma razão simples: mesmo sem vacinação, até agora nenhuma criança morreu por causa da covid-19.


    A Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) recomendou a vacinação universal de crianças apesar de admitir que “os riscos, a longo prazo, associados à administração da vacina, nas idades 5-11 anos, não são ainda definitivamente conhecidos”. Esta incerteza está discretamente inserida no final da página 18 do parecer (com um total de 32), no capítulo intitulado “Sinal de Segurança: Miocardites e Pericardites”.

    Apenas divulgado na tarde da passada sexta-feira pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) – após fortes críticas ao secretismo que Graça Freitas desejava –, o parecer da CTVC confessa, de forma taxativa, que recomendou as vacinas em crianças mesmo ignorando as consequências a longo prazo. Isto para um grupo etário que não regista até agora qualquer morte.

    Mesmo assim, a CTVC disserta sobre a segurança baseando-se em estudos e ensaios aplicados a adolescentes. Porém, esses estudos não estão sequer publicados nem acessíveis, mesmo a investigadores, ou ainda nem foram sujeitos à revisão pelos pares (peer review) – um processo imprescindível em Ciência para garantir o seu rigor e integridade.

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    Um dos casos passa-se com o estudo intitulado “SARS-CoV-2 Vaccination and Myocarditis in a Nordic Cohort Study of 23 Million Residents”, cujo primeiro autor somente é identificado no parecer da CTVC pelo seu apelido. Será eventualmente o fármaco-epidemiologista norueguês Øystein Karlstad, que estudou este ano os efeitos de tromboembolismos e eventos similares causados pela vacina da AstraZeneca em adultos escandinavos.

    De acordo com o parecer da CTVC, uma equipa liderada por Karlstad terá concluído existir um risco acrescido de miocardite em adolescentes do sexo masculino com um excesso de 2,2 e 36,5 casos por 100 mil doses passados 28 dias do início do esquema vacinal, respectivamente para as vacinas da Pfizer (Comirnaty) e da Moderna (Spikevax). No entanto, como esse risco terá sido estudado apenas em jovens entre os 12 e os 15 anos, não se aplica obviamente às crianças.

    Um outro estudo citado pela CTVC, da responsabilidade do Ministério da Saúde de Israel, sofre do mesmo problema: apresenta resultados de farmacovigilância da vacina da Pfizer apenas em adolescentes vacinados, com idades entre os 12 e 15 anos.

    Um terceiro estudo, realizado no Canadá, e também referenciado pela CTVC, segue o mesmo padrão. Liderado por Jennifer Pillay, do Departamento de Pediatria da Universidade de Alberta, o estudo – que consiste sobretudo numa “revisão sistemática rápida” – conclui que a vacina da Pfizer causa uma maior incidência de miocardites em homens dos 12 aos 29 anos. Nada diz sobre crianças (5 aos 11 anos). E salienta mesmo que “pesquisas futuras são necessárias para examinar outros factores de risco e efeitos de longo prazo”.

    Este estudo tem outra “deficiência”: encontra-se publicado apenas no medRxiv – um site da Internet que distribui versões pré-publicadas de artigos científicos sobre ciências da saúde.

    Como habitualmente sucede, um aviso de entrada neste site alerta que o artigo em causa “não foi revisto pelos pares”, acrescentando-se ainda que se está em face de “novas pesquisas médicas que ainda não foram avaliadas e, portanto, não devem ser usadas para orientar a prática clínica”. Para os peritos da CTVC este aspecto não será relevante. Mas é.

    Um quarto estudo referenciado pela CTVC é, como os outros, uma análise do impacte de curto prazo em não-crianças, podendo-se somente saber o que sucedeu num grupo etário “próximo”: adolescentes e jovens adultos dos 12 aos 29 anos. Desenvolvido em França, este estudo também não está revisto pelos pares.

    Quase por ironia, o estudo francês encontra-se publicado no site do EPI-PHARE, uma entidade criada em 2018 pela Agência Nacional para a Segurança de Medicamentos e Produtos de Saúde (ANSM) e pelo Seguro Nacional de Saúde (CNAM), em consequência do escândalo do Mediator, e para melhorar a farmacovigilância.

    Recorde-se que este medicamento, da farmacêutica Servier, destinava-se inicialmente para tratamento de diabetes, mas passou a ser comercializado como produto de emagrecimento. Acabou suspenso em 2009 por se provar ter causado a morte de entre 1.500 e 2.100 pessoas.

    O julgamento deste processo ficou concluído em Março deste ano, tendo-se sentado no banco dos réus os responsáveis da Servier, por manipulação de informação sobre segurança, e a própria ANSM, por não ter actuado em devido tempo. A farmacêutica foi condenada a pagar indemnizações no valor de 2,7 milhões, e a agência estatal foi multada em 303 mil euros.

    Estimativas vista à lupa

    Os benefícios da vacinação de crianças em Portugal previstos pelos peritos da CTVC constitui também um exercício interessante de análise. O PÁGINA UM meteu-se nesta tarefa.

    Assumindo que “os benefícios da vacinação dependem da incidência da infecção por SARS-CoV-2” –, a CTCV propôs três cenários: optimista, mediano e pessimista, em função da actividade viral ao longo da pandemia. Curiosamente, o período em análise foi de apenas quatro meses, indiciando-se assim que a CTVC não acredita que eficácia da vacina se prolongará por mais do que esse período, necessitando de novo reforço no final da Primavera.

    Outro facto estranho: a CTVC considera, como efeito adverso das vacinas, o risco de miocardites e pericardites em crianças, mas para estimar o seu número potencial utiliza as incidências conhecidas em adolescentes. Essa extrapolação coloca sérias dúvidas de índole científica e mesmo ética.

    Assim, face aos pressupostos teóricos da eficácia do programa vacinal para as crianças – cobertura de 85%, uma efectividade vacinal contra infeção entre 70% e 85% e uma efectividade contra doença grave de 95% –, a CTVC compara, para cada um dos cenários, duas situações distintas: sem vacinação e com vacinação.

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    Deste modo, no cenário optimista sem vacinação, a CTVC aponta para a possibilidade de ocorrência de 5.551 casos positivos entre Dezembro de 2021 e Março de 2022, que desceria para apenas 1.540 casos naquele período se 85% das crianças fossem vacinadas.

    No cenário pessimista – ou seja, com elevada incidência –, sem vacinação a CTVC estimou que houvesse 45.442 casos positivos, reduzindo-se para 18.404 com o programa de vacinação. No cenário intermédio (mediano) foi estimado pela CTVC a existência de 21.189 casos positivos sem vacinação, baixando para 7.681 casos com vacinação.

    Estranhamente, a CTVC não explica no parecer a razão para, assumindo similar capacidade das vacinas em evitar as transmissões, se estimarem reduções relativas diferentes nos diversos cenários. Com efeito, para o cenário optimista com vacinação, a redução estimada das infecções é de 72% face à situação sem vacinação, mas desce apenas para os 64% no cenário mediano e para os 61% no cenário pessimista.

    Compreensivelmente, o cenário pessimista, que representa uma maior actividade viral no próximo Inverno, é aquele que mostra um maior benefício absoluto das vacinas. A razão é simples: se houver mais infecções, numa situação sem aplicação do programa vacinal em crianças, em termos absolutos maiores serão, em princípio, as hospitalizações e os internamentos em unidades de cuidados intensivos (UCI), e assim maior o diferencial quando se confronta com a situação de vacinação de 85% deste grupo etário.

    Contudo, o cenário mais pessimista (45.442 infecções) – aquele em que a vacinação potencialmente trará mais vantagens, com menos 147 hospitalizações, menos 16 internamentos em UCI e menos 15 casos de síndrome inflamatório multissistémico (MIS-C) – mostra-se muito pouco provável. Com efeito, face ao período considerado na avaliação da CTVC (Dezembro de 2021 a Março de 2022), significaria a ocorrência de 11.360 casos positivos por mês em crianças se o plano de vacinação não avançasse, mais do dobro da actual média mensal ao longo de 2021 (4.674 casos positivos) para este grupo etário.

    Mais sensato aparenta ser o cenário mediano. Neste caso, a média mensal é de quase 5.300 casos positivos, um valor mais consentâneo com a realidade e a época do ano (Inverno). Porém, com menos infecções, também os benefícios potenciais se tornam bem mais modestos. De facto, neste cenário os peritos da CTVC já só antevêem uma redução de 51 hospitalizações e de cinco internamentos em UCI.

    Se o cenário (mais) optimista estimado pelo CTVC se concretizasse – ou seja, uma menor actividade viral durante o próximo Inverno –, o programa vacinal ameaçaria então “parir um rato”. Nesse cenário, o programa vacinal – que poderá atingir um investimento superior a 10 milhões de euros, no pressuposto do preço unitário da dose infantil ser metade da dos adultos –, a vacina apenas causaria uma redução de nove hospitalizações, um internamento em UCI e um evento de MIS-C.

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    Em todo o caso, saliente-se que não é líquido que um maior número de infecções resulte num aumento proporcional de hospitalizações e internamentos em UCI. Ou seja, mesmo que a variante Ómicron ganhe prevalência, e um maior número de casos, tal não significará automaticamente um aumento proporcional de internamentos.

    Aliás, essa questão revela-se mesmo na página 10 do parecer da CTVC, onde se compara as hospitalizações em idade pediátrica em 2020 (quando a variante dominante era a Alfa) e em 2021 (com a Delta já dominante). Em todos os grupos etários a percentagem de hospitalização em função dos casos positivos diminuiu consideravelmente. Nas crianças (5-11 anos) passou de 0,61% (112 hospitalizações em 18.358 casos) em 2020 para apenas 0,21% (84 hospitalizações em 39.215 casos) este ano.

    Ou seja, numa faixa etária em que a prevalência de assintomáticos ou de sintomatologia ligeira é muito elevada, a subida de casos positivos em crianças pode estar intimamente associada sobretudo à estratégia de testagem. Em suma, se se aumentar consideravelmente a realização de testes em crianças sem que estas estejam com sintomas, o potencial aumento de casos positivos poderá estar relacionado sobretudo à maior detecção de assintomáticos, e sem necessidade de hospitalização.

    Ora, neste caso, uma consequência imediata é a redução da percentagem das hospitalizações (internamentos por 100 casos positivos), mesmo se houver um aumento absoluto no número de internados em relação ao período anterior, tal como se evidencia na situação das crianças quando se compara o ano de 2020 com 2021.

    Um último aspecto particularmente estranho das estimativas da CTVC observa-se também em relação às miocardites vacinais – que, recorde-se, são reportadas à incidência conhecida em adolescentes, e não a crianças. Embora todos os três cenários estabelecidos pelos peritos pressupõem uma cobertura vacinal de 85%, o número estimado de miocardites vacinais é de 12 para o cenário pessimista, mas de sete para os cenários mediano e optimista.

    Como as miocardites vacinais são, como a denominação indica, um efeito adverso apenas associado à vacina – e nada tem a ver com a maior ou menor actividade viral –, esse número distinto entre os cenários poderá ser ou um engano absurdo – por o parecer ser assinado por 13 peritos – ou uma forma de mascarar uma possibilidade atroz. De facto, se o SARS-CoV-2 estiver pouco activo neste Inverno – e se concretizar o cenário optimista –, a “cura” (leia-se, a vacina) será pior do que a doença.