Com o nome oficial de Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, a marca Nova SBE tem atravessado fronteiras pela excelência do ensino e investigação. Porém, nesta ‘casa de economistas’ optou-se por uma estratégia pouco ortodoxa, que espantaria um merceeiro, a partir de uma fundação mista (pública e privada) com vista à construção e gestão do campus de Carcavelos. Resultado, em menos de uma década, a Fundação Alfredo de Sousa soma prejuízos de quase 9 milhões de euros, fluxos financeiros absurdos, um vazio de liderança e os relatórios e contas de 2022 e 2023 sem estarem aprovados, quando já se está na segunda metade de 2024. Neste caso, uma ‘herança’ deixada por Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruturas, que foi presidente (CEO) da fundação entre 2021 e início deste ano, mas que ocupava já um cargo de administrador desde 2017. João Sàágua, reitor da Universidade Nova de Lisboa, também renunciou à presidência do Conselho de Curadores. Ninguém quis esclarecer ou comentar as trapalhadas detectadas pelo PÁGINA UM.
Em casa de ferreiro, se o forjador for adepto de Frei Tomás – aquele frade que bem pregava o que fazer, mas que não fazia –, só de pau se espera um espeto. Já da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE) – ou mais propriamente da fundação que gere desde 2018 o campus de Carcavelos –, uma das mais conceituadas escolas superiores públicas nacionais e internacionais de Economia e Finanças, poder-se-ia imaginar, num cenário tenebroso, que, enfim, nos fossem apresentadas ‘contas de merceeiro’. Porém, nem isso sucede, porque, em abono da verdade, e do rigor, estando o relógio universal a começar a segunda semana de Agosto de 2024, as contas dos exercícios de 2022 e 2023 ainda nem foram sequer aprovadas.
Nesses anos, essa tal fundação – baptizada Alfredo de Sousa, em homenagem ao primeiro reitor da UNL – foi presidida por Miguel Pinto Luz, então vice-presidente da autarquia de Cascais e agora ministro das Infraestruturas e Habitação. Pinto Luz ocupou o cargo de administrador desta entidade pelo menos desde 2017, assistindo assim ao acumular de prejuízos crónicos, que, na hora da sua entrada no Governo, se aproximavam já dos 9 milhões de euros. Porém, embora este seja o ‘problema’ mais sonante, muitos mais acumula o modelo de negócio gizado há cerca de uma década para gerir as modernas instalações da Nova SBE. E surgem mesmo indicadores sobre uma ‘dissolução’ desta Fundação, que serviu sobretudo para acelerar a construção do campus sem passar pelas ‘burocracias’ do Código dos Contratos Públicos.
Miguel Pinto Luz foi administrador da Fundação Alfredo de Sousa entre 2017 e início deste ano, tendo ocupado a presidência desde 2021.
Criada em Dezembro de 2015, a Fundação Alfredo de Sousa teve como fundadores empresas privadas, nomeadamente o Banco Santander – que prometia entrar com donativos para o fundo patrimonial de 6,3 milhões de euros, mas que tem sobretudo ganho bom dinheiro com juros de empréstimos –, a Jerónimo Martins – que avançou com 5 milhões de euros – e a Sindcom (actual Arica, da família Soares dos Santos, que disponibilizou um milhão de euros –, bem como pequenas participações da própria Nova SBE (10 mil euros), e da autarquia de Cascais (162.400 euros). Neste último caso, a ‘comparticipação’ do município foi em espécie, sob a forma de cedência por 50 anos dos terrenos para a instalação do campus universitário defronte ao mar. Esse valor, por força de um processo judicial relacionado com o baixo valor da expropriação daqueles terrenos, acabaria por implicar um reforço da ‘participação’ da Câmara Municipal de Cascais, uma vez que se viu ‘obrigada’ a revalorizar os terrenos para cerca de 9,7 milhões de euros.
Independentemente desta questiúncula, o projecto de construção do campus da Nova SBE em Carcavelos avançou rapidamente, até porque a Fundação Alfredo de Sousa não tinha de cumprir as normas do Código dos Contratos Públicos. As obras de maior monta foram directamente entregues às construtoras Alves Ribeiro e HCI. Inicialmente, o projecto entusiasmou muitos mecenas, que, com ou sem interesses futuros, foram sendo generosos em donativos. Só em 2016, a Fundação recebeu doações de mais de 2,5 milhões de euros para aplicar na construção do campus.
Em Setembro do ano seguinte, o projecto, que tinha uma estimativa inicial de custos da ordem dos 50 milhões de euros, levaria mais um ‘balão de oxigénio’ com um empréstimo do Banco Europeu de Investimento (BEI) de 16 milhões de euros. A cerimónia de assinatura desse contrato contou mesmo com a presença do então comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moedas, e do vice-presidente do BEI, Román Escolano. A sintonia entre o director da Nova SBE, Daniel Traça, do então presidente da Fundação Alfredo de Sousa, Pedro Santa Clara, e do presidente da autarquia de Cascais, Carlos Carreiras, era evidente: todos remavam no mesmo sentido.
Banco Europeu de Investimento e Santander foram as instituições bancárias, que a par de doadores, permitiram a construção do campus de Carcavelos em moldes poucos usuais.
Mas nem só de empréstimos do BEI e de donativos foi vivendo a Fundação. Em 2017 teve duas importantes ‘injecções’: um financiamento de 12,5 milhões de euros do Santander – que, só por aí, pelos juros a receber, beneficiou de ser um fundador – e um adiantamento de quase 9,9 milhões de euros por parte da Nova SBE relativo a um contrato de promessa de compra e venda da fracção do campus. Nesse ano de 2017, os donativos atingiram cerca de 1,3 milhões de euros. Por via do empréstimo, o Santander ficou com a hipoteca dos direitos de cedência do terrenos camarários. Saliente-se que, neste período, o presidente (dean) da Nova SBE era Daniel Traça, que a partir de 2018 acumulou com as funções de administrador do Santander.
Já com Miguel Pinto Luz na administração da Fundação, como vogal, o campus de Carcavelos teve inauguração com ‘festa rija’ e presença de Marcelo Rebelo de Sousa. E à boa moda portuguesa acabou por custar 63 milhões de euros, mais 13 milhões do que inicialmente previsto, entre construção (55 milhões), tecnologias de informação (5,2 milhões) e mobiliário e painéis fotovoltaicos (2,6 milhões). Mas como foi ano de inauguração, a derrapagem foi compensada com quase 18,5 milhões de euros em donativos do mundo corporativo e de antigos alunos.
Mas depois da festa, começaram a vir as receitas. Mas poucas, ou pelo menos poucas em comparações com os custos e outros gastos. Sem meios humanos e know-how para fazer autonomamente a gestão do campus – que passaria a ser a sua única receita, porque as propinas dos alunos mantiveram-se na Nova SBE –, a Fundação Alfredo de Sousa concessionou grande parte dos espaços do ‘seu’ campus a empresas privadas, recebendo também rendas da própria Nova SBE. Nesse ano, esta instituição sem fins lucrativos – ou seja, não distribui dividendos se tiver lucros – obteve receitas da ordem dos 1,5 milhões de euros, mas isso mais do que se esfumou em fornecimentos externos e em depreciações. Resultado: no seu primeiro ano de actividade operacional, a Fundação aumentou mais 635 mil euros os prejuízos.
Marcelo Rebelo de Sousa participou na inauguração do Campus de Carcavelos, em Setembro de 2018, na companhia do actual reitor da UNL, João Sàágua (segundo à esquerda) e do então presidente da Nova SBE, Daniel Traça (terceiro à esquerda). Foto: Miguel Figueiredo Lopes / Presidência da República.
Apesar de ter ficado estabelecido a reformulação do modelo de governo do campus de Carcavelos, aparentemente tudo ficou na mesma, o que significa que 2019, o primeiro ano completo de gestão por parte da Fundação, acabou no vermelho: prejuízo de quase 1,8 milhões de receitas, porque os rendimentos não chegaram aos 3,6 milhões de euros, sobretudo por via de rendas, mas com os fornecimentos e serviços externos (2,7 milhões de euros), as depreciações (1,9 milhões de euros) e os juros (mais de 950 mil euros) a pesarem muito negativamente nas contas.
Um ‘merceeiro’ diria logo que isto se mostrava insustentável, mas pouco ou nada se mudou no ano seguinte. Na verdade, só piorou, por causa da pandemia, embora o então presidente do Conselho de Curadores da Fundação Alfredo de Sousa, João Sàágua, reitor da Universidade Nova de Lisboa, se mostrasse optimista e orgulhoso dos resultados da Nova SBE nos rankings da especialidade. E também do reconhecimento do estatuto de utilidade pública pelo Governo, o que implicava, a partir daí, vantagens fiscais, mas também obrigações de transparência, a começar com a divulgação pública das contas.
E as contas de 2020 ainda foram divulgadas. Então com Nuno Fernandes Thomaz a presidir – que viria a falecer no ano seguinte – e ainda com Miguel Pinto Luz como vogal, a Fundação, que já não andava com contas saudáveis, acabou por ter a ‘obrigação’ de conceder donativos à própria Nova SBE. Nesse ano atingiram cerca de 1,65 milhões de euros. Mesmo com os custos dos serviços externos a diminuírem significativamente por força dos lockdowns e demais restrições da pandemia, as contas da Fundação em 2020 derraparam mais uma vez: prejuízo de cerca de 1,95 milhões de euros.
Espaço exterior do campus de Carcavelos. (Foto: D.R.)
Em Maio de 2021, Miguel Pinto Luz assumiria a presidência (CEO) da Fundação, e foi mais do mesmo. Ou seja, mais prejuízos: cerca de 1,3 milhões de euros, mantendo-se o passivo em nível bastante elevado (quase 39 milhões de euros). Nesse ano, a Fundação doou cerca de um milhão de euros à Nova SBE, o que se mostra absurdo numa instituição sem fins lucrativos, que nem sequer podem distribuir ‘dividendos’ quando der lucro, mas que, neste estranho modelo, pode doar dinheiro a um fundador minoritário quando tem prejuízos acumulados. Aliás, o absurdo é ainda mais sabendo-se que a Nova SBE é, na verdade, formalmente a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, que é fundação pública com regime de direito privado.
Depois de 2021, deixou então de haver relatórios e contas, contrariando a lei das entidades de utilidade pública. O PÁGINA UM solicitou na segunda-feira passada o acesso às contas de 2022 e 2023 da instituição – que, formalmente, tem apenas dois empregados, mas conta nove administradores, sem remuneração fixa –, quer à própria Fundação Alfredo de Sousa quer à Nova SBE. Na terça-feira à tarde, fonte oficial da Nova SBE remeteu os dois relatórios de 2022 e 2023, ambos datados de Abril deste ano, mas ainda sem todas as assinaturas de todos os administradores, o que constitui condição para aprovação. E, aparentemente, sem o necessário parecer prévio do Conselho de Curadores, que foi presidido pelo reitor da UNL, João Sàágua, mas que se demitiu desse cargo em Fevereiro deste ano, sem se conhecer a causa. E sem haver substituto conhecido.
De igual modo, actualmente existe um vazio na própria liderança da Fundação Alfredo de Sousa, após a entrada de Miguel Pinto Luz no Governo Montenegro em Abril passado. Os relatórios não formalmente aprovados de 2022 e 2023 já não têm sequer o nome do actual ministro das Infraestruturas. Contudo, pelo menos, o primeiro destes relatórios, referente a 2022, deveria ser por si assumido, bem como a falha pela sua não-aprovação em devido tempo, ou seja, na primeira metade de 2023.
Daniel Traça, antigo presidente da Nova SBE, foi o grande impulsionador do modelo de gestão assumido pela Fundação Alfredo de Sousa para o campus de Carcavelos, que acabou por ser um bom negócio para o Santander, instituição bancária onde exerce as funções de administrador . (Foto: D.R.)
Na análise desses relatórios (não aprovados), mostra-se que os prejuízos continuaram, embora tenham passado de 867 mil euros em 2022 para apenas 8.587 euros no ano passado, muito por via da revogação de despesas anteriormente assumidas pela Fundação na realização de mestrados, que transitaram para a Nova SBE, sem se saber se foi ‘decisão’ pacífica. No relatório não aprovado de 2023 faz-se referência a um “novo modelo de governo entre a Nova SBE e a Fundação Alfredo de Sousa, tendo sido constituído ao abrigo do mesmo um Conselho Consultivo entre as duas instituições”.
De qualquer modo, além da actual situação financeira da Fundação Alfredo de Sousa ser pouco saudável, com prejuízos acumulados de 8,7 milhões de euros e um passivo de 31 milhões de euros – nada elogiosa para uma universidade que se coloca na elite das escolas das ciências económicas a nível mundial –, acresce o vazio da sua liderança, sem presidente (CEO) do Conselho de Administração desde Abril, e o aparente desinteresse tanto da Nova SBE como da ‘casa-mãe’, a UNL.
Com efeito, além da renúncia de João Sàágua do Conselho de Curadores – que tem um papel de orientação relevante na estratégia da instituição –, o actual presidente da Nova SBE, Pedro Oliveira, nunca quis, ao contrário do seu antecessor (Daniel Traça), assumir qualquer lugar na administração da Fundação Alfredo de Sousa.
Desinteresse evidente, e aí generalizado, abrangeu todos os responsáveis associados às matérias aqui expostas pelo PÁGINA UM. Apesar de ter, mesmo sem presidente, oito membros do Conselho de Administração em funções, ninguém da Fundação Alfredo de Sousa quis prestar esclarecimentos. De igual modo, alegando fonte oficial o decurso do período de férias, ninguém da Nova SBE se mostrou disponível. Em todo o caso, o actual dean desta instituição universitária, Pedro Oliveira, esteve esta segunda-feira na rádio Observador numa longa entrevista sobre inteligência artificial,
Pedro Oliveira, actual presidente da Nova SBE, nem sequer ocupa, por opção, o cargo de administrador da Fundação Alfredo de Sousa.
Por sua vez, não houve também resposta do gabinete do reitor da UNL aos pedidos de comentário do PÁGINA UM, ficando-se assim sem saber os motivos para João Sàágua nem sequer mostrar curiosidade em saber qual a estratégia futura da fundação gestora do campus de Carcavelos, uma vez que saiu do Conselho de Curadores. Da parte de Miguel Pinto Luz, que foi sempre o ‘operacional’ da autarquia de Cascais na Fundação Alfredo de Sousa – e é o responsável máximo pelos atrasos da aprovação das contas de 2022 e 2023 –, veio o silêncio.
Saliente-se que, apesar de existir a referência à renúncia deste governante nos relatórios ainda não aprovados, o nome do actual ministro das Infraestruturas ainda consta na lista dos beneficiários efectivos da Fundação Alfredo de Sousa, não havendo também qualquer informação da sua renúncia ao cargo nos registos dos actos societários e de outras entidades, consultados pelo PÁGINA UM.
N.D. Pode consultar aqui os relatórios e contas de 2016 a 2021. Os relatórios não aprovados de 2022 e de 2023 podem ser consultados, respectivamente, aqui e aqui.
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A selecta e semi-secreta reunião anual do Clube de Bilderberg teve Lisboa como palco em 2023, sob a batuta de Durão Barroso. Apesar de o site do Bilderberg Meetings afirmar que cada um dos participantes custeou as deslocações e alojamento, certo é que foi criada em 2022 uma empresa, com um capital social de 20 euros, por Durão Barroso e o seu antigo ‘fiel ministro’ José Luís Arnaut, que movimentou em dois anos quase meio milhão de euros para organizar o evento. Para suportar os encargos da Bild – Encontro Internacional 2023 Lda., cerca de 150 mil euros vieram de donativos e um pouco mais de 360 mil pela prestação de (ignotos) serviços, uma vez que a empresa não tem empregados, estando sedeada no escritório da sociedade de advogados de Arnaut.
Trazer para Lisboa a reunião no ano passado do Clube de Bilderberg custou quase meio milhão de euros à empresa criada especificamente para organizar o evento, que tem como sócios Durão Barroso e José Luís Arnaut.
Criada em 2022, a empresa Bild – Encontro Internacional 2023 Lda. apresentou as contas anuais no final do ano passado, e ficou assim finalmente a saber-se os custos totais de trazer cerca de 130 líderes políticos e empresariais ao Hotel Pestana entre os dias 18 e 21 de Maio do ano passado para discutir, entre outros assuntos mais ou menos secretos, a inteligência artificial, o sistema bancário, a transição energética, a guerra russo-ucraniana e a liderança norte-americana.
Os encontros do Clube de Bilderberg ‘têm alimentando, desde 1954, as mais diversas teorias, e até já foram mais secretas – e também selectas –, arrastando uma aura de mistério e conspiração. Oficialmente, as reuniões anuais – este ano foram em Madrid – servem apenas para debater assuntos de interesse global. No seu site, o Bilderberg Meetings afiança que as reuniões constituem apenas “um fórum para discussões informais para promover o diálogo entre a Europa e a América do Norte”, congregando “aproximadamente 130 líderes políticos e especialistas da indústria, finanças, trabalho, academia e media”, segundo regras específicas: os participantes são livres de usar as informações recebidas, mas nem as identidades nem as afiliações dos palestrantes ou de qualquer outro participante podem ser reveladas.
Como os encontros são privados, no site diz-se ainda que “as participações são individuais e não em representação de qualquer função oficial”, não havendo assim agenda detalhada, nem nenhuma resolução e muito menos votação ou declaração política. Sobretudo nos últimos anos começaram a ser divulgadas as presenças mais sonantes – e sobretudo os convites a portugueses, primeiro sob a “égide” de Francisco Pinto Balsemão, e mais recentemente de Durão Barroso – e mesmo a lista de temas em discussão.
Por exemplo, além de personalidades estrangeiras, a mais recente reunião em solo nacional no ano passado – a anterior tinha ocorrido em 1999 – contou com um vasto contingente lusitano: além dos habitués Balsemão, Durão Barroso e Arnaut, foram convidados os directores executivos da EDP (Miguel Stilwell de Andrade), da Galp (Filipe Silva), da Feedzai (Nuno Sebastião) e da Zeno Partners (Duarte Moreira). No entanto, este ano, além de Durão Barroso e Duarte Moreira, só houve mais uma presença portuguesa: Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade Católica.
Também oficialmente, os financiamentos dos chamados Bilderberg Meetings não são propriamente públicos. De acordo com o Clube de Bilderberg, “as contribuições anuais dos membros do Steering Committee [actualmente com 32 membros, entre os quais o português Durão Barroso] cobrem os custos anuais de um pequeno secretariado”, para suportar despesas administrativas e de pessoal.
Hotel Pestana, em Lisboa, local da reunião do Clube de Bilderberg em Maio do ano passado.
Já em relação à reunião anual, as responsabilidades cabem ao denominado Comité Director do país anfitrião, não havendo taxa de participação, embora os convidados custeiem, segundo o site do Bilderberg Meetings, os “seus próprios custos de viagem e acomodação”.
Contudo, nas contas dos dois exercícios anuis da empresa Bild – que tem duas quotas de apenas 10 euros dos sócios Barroso e Arnaut – fica-se a saber que foram contabilizados, como vendas ou prestações de serviços, um total de 361.800 euros, havendo ainda rendimentos suplementares de 152.664 euros, que poderão ter sido sob a forma de donativos. Ou seja, no total, a empresa do antigo primeiro-ministro português e ex-presidente da Comissão Europeia teve um ‘bolo financeiro’ de mais de 514 mil euros. Não o gastou todo, mas quase.
Analisando os dois exercícios, incluindo o do ano da realização do evento – cujas contas foram depositadas no final da semana passada –, a Bld teve gastos da ordem dos 476 mil euros, para pagamentos de fornecedores e serviços externos, não sendo identificado nas demonstrações financeiras a quem se dirigiu. Em todo o caso, não incluirá, a atender à informação do Bilderberg Meetings, os custos de viagem e acomodação nem tão-pouco ao pagamento de salários.
Com efeito, a Bild não refere qualquer empregado e a própria sede é a da sociedade de advogados de Arnaut, a CSM Rui Pena & Arnaut, na selecta Rua Castilho, em Lisboa.
Depois do encontro de Maio, a empresa, que terminou o ano de 2023 com um pequeno prejuízo de 25 mil euros, não foi dissolvida nem existem indicação para tal, até porque isso poderia fazer perder um activo de cerca de 27 mil euros respeitante a impostos diferidos.
O documento consultado pelo PÁGINA UM da Informação Empresarial Simplificada (IES) não adianta também muito sobre o futuro da empresa. Embora não aponte para a sua dissolução, surge um trecho algo anacrónico se se considerar que se trata de contas de 2023. Ou talvez não, se se considerar que Durão Barroso é, actualmente, o presidente (Board Chair) da Gavi – The Vaccine Alliance.
José Luís Arnaut
Com efeito, os dois sócios, além de destacarem não terem impostos em atraso, recordam que “tendo por base a reavaliação da situação epidemiológica no país, o Governo português em 13 de janeiro de 2021, a exemplo de outros Estados, determinou um conjunto de medidas extraordinárias que têm por objectivo limitar a propagação da pandemia e proteger a saúde pública, que se consubstanciam numa restrição significativa da circulação de pessoas que conduzirá a uma forte retração da economia”, acrescentando que “como consequência desta situação, a economia revela atualmente um enorme estado de incerteza, cuja duração e consequências são ainda imprevisíveis” E concluem assim que, “com os elementos disponíveis, consideramos que estão criadas as condições operacionais para a manutenção da atividade da Empresa [Bild], estando assegurados os compromissos financeiros assumidos.”
Tendo em consideração que, no ano passado, José Luís Arnaut não respondeu a pedidos de esclarecimento adicionais, o PÁGINA UM considerou não ser necessário solicitar novos comentários, ademais atendendo que esta notícia se baseia sobretudo em factos contabilísticos.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Foi uma reunião com três secretários de Estado, incluindo Lacerda Sales, que deu o ‘pontapé de saída’ para um processo de cartelização de preços dos testes de detecção da covid-19 nas escolas que resultou num encargo público de quase 30 milhões de euros. O PÁGINA UM analisou em detalhe o processo da Autoridade da Concorrência (AdC), onde se mostram comunicações e actas, e os 163 ajustes directos celebrados pela Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE), concluindo que o preço concertado foi aquele que consta em todos os contratos. O Ministério da Saúde inicialmente propunha 15 euros como preço unitário, mas a Associação Nacional de Laboratórios Clínicos (ANL) conseguiu subir para os 20 euros com a concordância do Governo. Também fica patente que os dirigentes associativos estiveram a fazer ‘lobby’ pessoal: as empresas dos sete dirigentes amealharam 82% do valor dos contratos. Foram apenas essas as empresas multadas agora pela AdC por cartelização, uma prática usual em associações mafiosas.
O Governo, através da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) e dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), foi conivente e mesmo colaborativo na concertação de preços por parte dos principais laboratórios para a testagem massiva de alunos com vista à detecção da covid-19 durante a pandemia, prática alvo de um processo instaurado pela Autoridade da Concorrência (AdC) que levou à aplicação de coimas de quase 57,5 milhões de euros.
Chegou a haver mesmo uma reunião preparatória em 25 de Fevereiro de 2021 entre dirigentes da Associação Nacional de Laboratórios Clínicos (ANL), altos dirigentes da Administração Pública e membros do Governo, nomeadamente Lacerda Sales (secretário de Estado Adjunto e da Saúde), Inês Ramires (secretária de Estado da Educação) e Rita da Cunha Mendes (secretária de Estado da Acção Social), onde se debateu, entre outros aspectos, a capacidade máxima dos laboratórios existentes em Portugal para colheita com vista à testagem massiva em escolas e creches sem passar por qualquer procedimento contratual normal. A referência à reunião com os membros do Governo consta na página 203 da Decisão do Conselho da AdC de 17 de Julho, revelada esta quarta-feira.
Além das sucessivas reuniões e trocas de mensagens entre os dirigentes da ANL – algumas das quais citadas pela AdC no seu processo –, os Ministérios da Educação e da Saúde, neste caso a partir dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, acabaram por concordar com a concertação de preços, que ficou nivelado nos 20 euros por teste, e com a distribuição das análises a executar pelos diversos laboratórios, sugeridos pela própria ANL.
Tanto assim que nem sequer a DGEstE lançou qualquer concurso público ou fez um procedimento de consulta prévia, optando sempre por ajustes directos para o programa de testagem. As campanhas de testagem massiva em escolas e creches decorreu até Janeiro de 2022, em dois varrimentos: o primeiro, para o ano lectivo 2020/2021, decorreu entre Março e Julho de 2021, em oito fases, e o segundo, para o ano lectivo 2021/2022, entre Setembro de 2021 e Janeiro de 2022, em quatro fases, tendo ficado prevista a realização de mais de 1,4 milhões de testes.
De acordo com uma análise do PÁGINA UM no Portal Base, a DGEstE estabeleceu ao longo de 2021, para testagens específicas a alunos, um total de 163 ajustes directos, invariavelmente ao preço unitário de 20 euros, envolvendo 29,3 milhões de euros. Apesar de se contabilizarem 63 laboratórios a beneficiar destes contratos leoninos, que por terem tido preços exagerados penalizaram o erário público, cerca de 82% deste ‘bolo’ ficou em apenas seis empresas, todas alvo da mira e sanções da AdC.
Lacerda Sales foi um dos secretários de Estado presentes numa reunião com dirigentes da Associação Nacional de Laboratórios Clínicos que deu início ao processo de cartelização de preços penalizado agora pela Autoridade da Concorrência.
Três destas empresas de laboratórios clínicos ficaram com mais de 5 milhões de euros em ajustes directos: a Dr. Joaquim Chaves, com 5.311.2380 euros; a Centro Medicina Laboratorial Germano de Sousa, com 5.260.800 euros; e Hormofuncional, do Grupo Affidea, com 5.076.580 euros. Acima de um milhão de euros encontram-se mais três empresas: a Medicina Laboratorial Dr. Carlos da Silva Torres, do Grupo Unilabs, com 3.674.600 euros; a Synlabhealth, do Grupo Synlab, com 3.537.940 euros; e a Labeto, com 1.1270.040 euros.
Esta concentração elevada (ajustes directos de quase 24 milhões de euros), beneficiando tão poucas empresas, não esteve apenas relacionada com a sua dimensão, mas sobretudo com o facto de as negociações para o estabelecimento dos preços e demais combinações terem sido realizadas pelos dirigentes da ANL que são simultaneamente gestores de topo das principais empresas beneficiadas pelos testes pagos pela DGEstE.
Com efeito, o presidente da ANL é Pedro Oliveira, CEO da Synlab, empresa que decidiu pagar voluntariamente uma coima de 5 milhões de euros aplicada pela AdC. Os dois vice-presidentes da associação, Joaquim Paiva Chaves e Paulo Marques, são, respectivamente, CEO da empresa homónima (que recebeu uma coima de 11,5 milhões de euros) e director executivo comercial da Unilabs (que decidiu, também voluntariamente, pagar já a coima de 3,9 milhões de euros aplicada à sua subsidiária Medicina Laboratorial Dr. Carlos da Silva Torres). Por sua vez, o tesoureiro da ANL, Miguel Santos, é CEO da Affidea Portugal, que detém a Hormofuncional, a quem a AdC aplicou a maior coima: 26,1 milhões de euros.
Quanto à secretária da direcção da associação, Maria João Tomaz é administradora do Grupo Beatriz Godinho Saúde, que detém a Labeto, empresa a quem se aplicou uma coima de 1,4 milhões de euros. De entre os dois vogais da ANL está José Germano de Sousa, filho do antigo bastonário da Ordem dos Médicos que fundou uma das mais conhecidas e lucrativas redes de análises clínicas. O Centro Medicina Laboratorial Germano de Sousa – que contabilizou, segundos cálculos do PÁGINA UM com base nas contas do triénio anterior à pandemia, lucros acrescidos de quase 62 milhões de euros – recebeu a ‘notícia’ de ter de pagar agora uma coima de 9,3 milhões de euros por cartelização.
Na lista dos dirigentes da ANL ainda consta, como vogal, Gizela Santos, que também beneficiou directa e indirectamente dos contratos negociados entre a associação do sector e a Administração Pública, mas em menores montantes. Gizela Santos é presidente da administração da Laboratório de Análises Clínicas Dr. J. Leitão Santos e também da Redelab, que tem parcerias com diversos outros laboratórios, que beneficiaram de ajustes directos num total a rondar os 600 mil euros. Em todo o caso, a Redelab acabou por ver a AdC aplicar-lhe duas coimas, uma de 100 mil e outra de 200 mil euros.
O longo processo da AdC detalha, embora com algumas rasuras por alegada confidencialidade, vastos pormenores das negociações e da forma como, internamente, os dirigentes da ANL, e simultaneamente gestores de topo dos principais laboratórios, negociaram entre si os preços e distribuição dos testes, e portanto dos montantes a arrecadarem de dinheiros públicos por parte das suas empresas.
Numa das mensagens interceptadas pela AdC, Joaquim Chaves aborda a questão de o Ministério da Saúde ter manifestado, na tal reunião de Fevereiro de 2021, que “esperava um preço na ordem dos 15 euros”. “Deixámos claro que tal como na primeira fase”, escreveu aos seus ‘colegas’ da ANL (e concorrentes), “há um preço só para colheita que não poderá ser abaixo dos 10 euros. Agora teremos que determinar a que preços venderemos os testes. Pessoalmente acho que devemos estar alinhados e não concordo, nada, que numa fase destas cada um tente ir por si conquistar mercado com preços”. E colocava também como se deveria fazer “o levantamento” dos laboratórios que deveriam envolver, mostrando preocupação sobre como fazer “a distribuição geográfica sem que isto se torne uma batalha campal ‘entre aliados’”.
Testagem em escolas para apanhar assintomáticos começou em Janeiro de 2021 e prolongou-se até início do ano seguinte.
O preço final, combinado e acordado pelos dirigentes e empresários, ficaria decidido logo no dia 26 de Fevereiro de 2021. Em acta da ANL, com a presença de todos os gestores das empresas agora multadas pela AdC, fixou-se o seguinte, preto no branco: “Relativamente aos preços a praticar, considerando os volumes e economia de escala antecipados, foi consensual o valor a apresentar, de vinte euros, por teste (líquido). Será enviada circular aos associados solicitando [que] nos indiquem se estão interessados e com disponibilidade, que capacidade têm instalada e em que regiões do continente têm cobertura”. A AdC comprovou que os associados da ANL que não estavam representados na direcção estiveram alheados desta cartelização que beneficiou quase em exclusivo as empresas que ficaram com o maior ‘bolo’ deste negócio.
O valor de 20 euros por teste recebeu explicitamente a concordância do Governo, e tal não se mostrava necessário mesmo se o ajuste directo foi permitido durante a pandemia para qualquer valor de aquisição. Mesmo que tivesse em causa uma urgência imediata, a Administração Pública poderia (e talvez devesse) fazer uma consulta independente ao mercado para definir um preço negocial. Mas optou-se por nunca fazer concurso público nem uma consulta prévia do mercado, sendo evidente que o Governo, iniciando este processo – que a AdC considera de cartelização – envolvendo reuniões com dirigentes da ANL (e simultaneamente gestores de topo de laboratórios relevantes) em que intervieram três secretários de Estado, deram implicitamente ‘carta branca’ para se concertarem e estabelecer um preço unitário elevado.
Certo é que, sem excepção, o preço unitário de 20 euros é o que consta em todos os 163 contratos por ajuste directo celebrados pela DGEstE, desde o maior, assinado em Abril de 2021 pela Medicina Laboratorial Dr. Carlos da Silva Torres, no valor de 2,96 milhões de euros, até ao menor, assinado em Setembro desse ano com um pequeno laboratório de Coimbra, no valor de 760 euros. Convém referir que nem todos os contratos foram integralmente executados, uma vez que acabaram, em muitos casos, por serem realizados menos testes que os previstos.
A existência desta concordância entre o Governo e os processos de cartelização dos principais laboratórios, através da ANL, fica também patente numa tentativa de ser aumentado ligeiramente o preço unitário em 1 euro, o que resultaria em quase 1,5 milhões de euros de receitas adicionais para os laboratórios. No processo, a AdC salienta que, em resposta a esta tentativa de rectificação do preço por um dos dirigentes não identificados da ANL, o director-geral da DGEstE respondeu o seguinte: “Na reunião ficou também clarificado que recebendo nós essas listagens [dos laboratórios disponíveis], todo o trabalho logístico, conforme disponibilidade da SPMS, de cruzamento de capacidade de testagem e necessidades (construção do cronograma – matching) ficaria com eles. Razão pela qual, na própria reunião, tendo eu identificado os 20€/teste, não houve sequer lugar a debate sobre esse número. O preço acordado são os 20€/teste”.
Por tudo isto, se se mostra evidente a cartelização dos testes por parte dos laboratórios dos dirigentes da ANL, penalizados pela AdC, tal só foi possível com a conivência, concordância e aprovação da Administração Pública e do próprio Governo, que não apenas reuniram com cartelistas como aceitaram negociar com gestores de topo de empresas agora multados em 57,5 milhões de euros por causarem prejuízo ao erário público. Saliente-se ainda que a testagem em escolas teve uma taxa de positividade inferior a 0,1%, não havendo registo de qualquer aluno do ensino básico e secundário que tenha falecido devido à covid-19. No entanto, sempre que era detectado um único caso positivo numa escola chegou a ser determinado o isolamento profiláctico de toda a turma.
N.D. Pode consultar AQUI a lista discriminada dos ajustes directos e os montantes recebidos por cada empresa pela testagem nas escolas.
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Em Dezembro de 2021, o PÁGINA UM já escrevia sobre os lucros pornográficos dos laboratórios de análises clínicas só por causa dos ‘testes covid’, mas tudo andava a ser ‘turbinado’ por esquemas de cartelização típicas das famílias mafiosas como se vêem nos filmes, mas estas de ‘bata branca’ com uma associação a servir de charneira. Agora que a Autoridade da Concorrência aplicou coimas históricas a grupos laboratoriais a operar em Portugal, o PÁGINA UM foi ver a ‘mossa’ que vai causar às contas de uma das mais importantes empresas deste sector, e concluiu que o ‘crime’ compensou: o Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa foi condenado a uma coima de 9,3 milhões de euros, mas no triénio da pandemia (2020-2022) registou acréscimos de lucros da ordem dos 62 milhões de euros. Os capitais próprios da empresa fundada pelo antigo bastonário da Ordem dos Médicos mais que quadruplicaram entre 2019 e 2022, situando-se em quase 36 milhões de euros.
Haverá, por certo, nos próximos dias, ‘vestes rasgadas’ dos laboratórios, a clamar inocência e choque, por hoje terem sido condenadas pela Autoridade da Concorrência (AdC) a pagar coimas no valor total de 48,61 milhões de euros devido a esquemas de cartel que operam no mercado português entre, pelo menos, 2016 e 2022, e que atingiu o seu auge durante a pandemia com os testes PCR e antigénio de detecção do SARS-CoV-2. Mas a verdade é cristalina: mesmo parecendo haver mão pesada, o crime mais do que compensou: os milhões eventualmente perdidos em coimas não beliscam lucros fabulosos daquilo que pode vir a ficar conhecido por ‘Máfia dos Testes’.
Um dos casos mais evidentes passa-se com o Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, fundado pelo antigo bastonário da Ordem dos Médicos, que viu na covid-19 uma espantosa oportunidade de negócio, ainda mais potenciada pelos esquemas agora denunciados e penalizados pela Autoridade da Concorrência. Mesmo sendo certo que existia já cartelização antes da pandemia, nomeadamente em análise de vitamina D, foi nos testes à covid-19 que os laboratórios de Germano de Sousa, e todos os outros singraram.
De acordo com as demonstrações financeiras da empresa do antigo bastonário, antes da covid-19 a situação não era nada má: as vendas e prestações de serviços no triénio pré-pandemia (2017-2019) tinham sido de 29,1 milhões, 30,5 milhões e 35,7 milhões de euros, respectivamente, que resultaram em lucros líquidos de 3,7 milhões, quase 3,9 milhões e 8,1 milhões de euros, respectivamente. A margem de lucro líquida andava próxima dos 13% em 2017 e 2018, e subira para 17% em 2019.
Com a covid-19, a história foi outra: para melhor, na perspectiva da empresa; para pior, na perspectiva dos dinheiros públicos. Com efeitos, as receitas do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa dispararam literalmente, e ainda mais os lucros. Em 2020, a empresa mais que duplicou a facturação face ao ano anterior, com 74,4 milhões de euros, obtendo um lucro de 23,3 milhões de euros e uma margem de lucro líquida de 31%. Ou seja, os testes vendiam-se com elevadíssima margem. Em 2021, as receitas chegaram a uns impressionantes 115,4 milhões de euros e lucros de 35,1 milhões de euros, ou seja, de quase seis vezes o valor de 2019. Em 2022, os resultados decaíram um pouco, para os 17,1 milhões de euros, em virtude da retracção das vendas de testes (as receitas baixaram para os 78 milhões de euros) mas mesmo assim bem superior aos lucros do triénio de 2017-2018.
Na verdade, mostra-se impressionante comparar os lucros da empresa de Germano de Sousa no período pré-pandemia (2017-2019) com o período da pandemia (2020-2022): lucros acrescidos de 61.927.101 euros, ou seja, foi o ‘lucro da pandemia’ só para esta empresa, que agora viu ser-lhe aplicada uma coima de 9,3 milhões de euros. Contas feitas, fica um ‘saldo’ confortável de quase 52 milhões de euros a acrescer aos lucros expectáveis. Quem ganhou foram os capitais dos accionistas, que passaram de 7,9 milhões em 2019 para os quase 35,6 milhões em 2022. Ou seja, mais do que quadruplicaram.
(Foto: D.R./Germano de Sousa)
Com as devidas proporções, associadas aos volumes de negócios, os outros laboratórios terão tido um comportamento e sucessos similares, até por haver uma estreita relação quer na definição de preços quer na quota de mercado. Segundo o processo da AdC, “as visadas Affidea [Hormofuncional e Alves & Duarte], Germano de Sousa, Joaquim Chaves, Redelab, Beatriz Godinho e ANL [Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos] agiram deliberadamente, de forma ilícita e culposa, com manifesto dolo, implementando um acordo suscetível de consubstanciar uma infração por objeto ao direito da concorrência”.
De acordo com a decisão tornada hoje pública, a Hormofuncional/Alves & Duarte (grupo Affidea) foram condenadas a pagar uma coima de 26,1 milhões de euros, a coima aplicada à Joaquim Chaves foi de 11,5 milhões de euros, a Germano de Sousa terá de pagar 9,3 milhões de euros, a Labeto 1,4 milhões de euros, a Redelab (e Jorge Leitão Santos) 300 mil euros e a ANL 10 mil euros.
A AdC adiantou que a presente decisão anunciada hoje “foi precedida por duas decisões condenatórias no mesmo processo, adotadas em 21 e 26 de dezembro de 2023, que resultaram do recurso ao procedimento de transação por parte de dois grupos laboratoriais multinacionais”. Através da adesão ao procedimento de transação, estas empresas “abdicaram de contestar a imputação da AdC e procederam ao pagamento voluntário das coimas aplicadas no valor global de €8.900.000, tendo optado por colaborar com a investigação e fornecer à AdC prova relevante da existência das práticas anticoncorrenciais em causa”.
Existem dois acordos individuais que identificam a Synlab e a Unilabs como as duas empresas que pagaram voluntariamente as coimas, respectivamente de 5 milhões e 3,9 milhões de euros. No caso da Unilabs, a coima diz respeito à actuação da sua subsidiária Medicina Laboratorial Dr. Carlos da Silva Torres.
Uma vez que o processo teve origem em pedido de dispensa ou redução da coima ao abrigo do Programa de Clemência, foi concedida dispensa da coima à Affidea BV, que denunciara o esquema e que cumpria todos os requisitos aplicáveis. Segundo o regulador, a empresa Medicina Laboratorial Dr. Carlos da Silva Torres, uma das empresas que recorreu ao procedimento de transação, “beneficiou ainda de uma redução adicional da coima ao abrigo do Programa de Clemência”.
Ou seja, no conjunto, “este processo envolveu um total de sete grupos laboratoriais e uma associação empresarial, com um total de coimas aplicadas de €57.510.000, dos quais €8.900.000 foram voluntariamente pagos”.
Graças ao esquema, salienta a AdC, “a taxa de crescimento anual do volume de negócios agregado na prestação de análises clínicas em território nacional em 2020 e 2021, correspondente ao período da pandemia, por parte dos grupos laboratoriais visados foi entre 50 e 60% em cada um dos anos”. Não admira, só o Serviço Nacional de Saúde comparticipou 40 milhões de testes até finais de Março de 2022.
A combinação entre os laboratórios teve impacto significativo no preço unitário dos testes em Portugal. O regulador recorda que “em Setembro de 2020, o valor os testes covid (PCR) estavam, em Portugal, ao nível dos preços na Europa”, mas “em Junho de 2021, Portugal era o país da Europa com o preço por teste covid mais alto da Europa”.
Apesar da decisão de hoje, este caso remonta a Fevereiro de 2022, quando a Concorrência procedeu à abertura de inquérito na sequência de a decisão de “um pedido de dispensa ou redução da coima referente à existência de um conjunto de práticas” irregulares, mas sem haver então muitos elementos. Posteriormente, outro laboratório pediu clemência. Em Março de 2022, a AdC chegou a realizar diversas diligências de busca e apreensão na sede das empresas visadas, em Lisboa e no Porto. No entanto, o PÁGINA UM já escrevera em Dezembro de 2021 sobre os pornográficos lucros da laboratório de Germano de Sousa e também de Joaquim Chaves.
Segundo a AdC, o cartel forjado entre os laboratórios e com a participação da Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos procedeu à “fixação dos preços aplicáveis e a repartição geográfica do mercado de prestação de análises clínicas e de fornecimento de testes covid-19”. A Concorrência concluiu ainda que a “a concertação entre os cinco laboratórios ter-lhes-á permitido aumentar o seu poder negocial face às entidades públicas e privadas com as quais negociaram o fornecimento de análises clínicas e de testes COVID-19, levando à fixação de preços e de condições comerciais potencialmente mais favoráveis do que as que resultariam de negociações individuais no âmbito do funcionamento normal do mercado, impedindo ou adiando a revisão e a redução dos preços”.
“A partir de Março de 2020, os laboratórios visados concertaram entre si os preços para o fornecimento de testes covid aos utentes do SNS e da ADSE e impuseram-nos nas negociações com a tutela”, refere a AdC no comunicado. Adianta que “os laboratórios visados ameaçaram, aliás, a tutela com um boicote ao fornecimento de testes covid em represália contra as atualizações (reduções) dos preços convencionados”.
De acordo com a AdC, a ANL teve um “papel determinante” na formação do cartel, visto que “o acordo em que estiveram envolvidos os laboratórios Affidea, Joaquim Chaves, Germano de Sousa, Beatriz Godinho e Redelab, foi facilitado por esta associação a pretexto da respetiva atividade, alavancando-se os laboratórios visados no exercício de cargos de Direção na associação”.
Segundo o processo, a ANL – que só apanhou uma coima de 10 mil euros – foi crucial para a viabilização dos contactos entre os laboratórios visados, com a associação a actuar como um “elemento facilitador” da “formação de consensos que se concretizaram designadamente, na fixação de preços e na repartição do mercado entre as demais visadas, bem como na transmissão das posições acordadas às entidades com as quais, nas várias circunstâncias descritas nesta Decisão, foi negociada a prestação de análises clínicas/patologia clínica”.
Dos laboratórios, “as visadas Affidea, Joaquim Chaves e Germano de Sousa desempenharam um papel de destaque, estando diretamente envolvidas na quase totalidade dos comportamentos identificados, ao contrário das visadas Redelab e Beatriz Godinho”.
Os “os elementos probatórios juntos aos autos indiciam que as visadas Affidea, Joaquim Chaves e Germano de Sousa, que integram o grupo de laboratórios privados com maior capacidade de produção e rede de colheitas, integram um grupo de laboratórios privados representados na Direção ANL mais restrito que manteve um grau de proximidade maior entre si e uma cooperação mais estreita, levando a que, muitas vezes, estes laboratórios beneficiassem dos resultados da colusão em detrimento dos demais laboratórios visados”.
Mas a AdC destaca, na sua decisão, que “cumpre fazer uma distinção entre o grau de participação da Germano de Sousa e o grau de participação das visadas Affidea e Joaquim Chaves”. Assim, “embora a Germano de Sousa tenha estado diretamente envolvida” na formação do cartel, “cumpre constatar que o seu grau de envolvimento é menor face ao envolvimento das visadas Affidea e Joaquim Chaves, na medida em que, embora fosse consultada pela Direção ANL e convidada para as respetivas reuniões em data anterior a 18.07.2018, manifestando o seu alinhamento com os consensos alcançados”, a AdC observou que “a Germano de Sousa tem intervenção em menos conversações, só tendo sido nomeada vogal da Direção ANL nessa data”.
A decisão final da AdC é ainda susceptível de recurso de impugnação judicial e não se encontra ainda transitada em julgado. A ANL anunciou, através de um comunicado citado pelo Eco, que vai recorrer da decisão da Concorrência, manifestando “o seu total desacordo e indignação” face à decisão da AdC e defendendo que esta é “caracterizada por erros factuais e de direito” e “representa um grave atentado à justiça e à integridade do setor convencionado da saúde em Portugal”.
N.D.: Notícia actualizada às 21H20 do dia 25 de Julho com mais informação sobre as duas empresas que pagaram voluntariamente as coimas e as duas empresas que pediram dispensa ou redução de coima.
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Apesar de afirmar que concorda com a proibição de mineração em mar profundo açoriano até 2050, o Governo Regional dos Açores não adoptou nenhuma moratória para essa actividade, como recomendou uma decisão aprovada na Assembleia Regional em 2023. Pelo contrário. Apesar de colocar algumas salvaguardas, uma Resolução do Governo Regional, publicada este mês, deixa a porta aberta para a eventual possibilidade do uso do mar profundo açoriano para mineração. Agora, só uma moratória aprovada a nível nacional poderá garantir que fica blindada, a prazo, a violação do fundo marinho açoriano para mineração. Na anterior legislatura, chegou a ser aprovada na generalidade, na Assembleia da República, uma moratória da actividade até 2050, mas o diploma caducou devido à queda do Governo do PS. Agora, o Governo de Luís Montenegro é evasivo quanto à possibilidade de vir a defender uma moratória a nível nacional para aquela actividade. A ‘prova dos nove’ será dada quando for debatida e votada uma nova iniciativa legislativa do partido PAN para fixar uma nova moratória, mas não há ainda uma data marcada para a discussão da proposta.
Foi anunciada como certa pela comunicação social, mas, afinal, a fixação de uma moratória até 2050 para a actividade de mineração em mar profundo açoriano não passou de uma miragem. O Governo Regional dos Açores (GRA) não acolheu a recomendação aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa da Região Autónoma no ano passado. Numa Resolução do Governo Regional publicada este mês não consta qualquer moratória, ficando potencialmente, na prática, a porta aberta para a actividade de mineração em mar profundo dos Açores.
O Governo Regional garantiu ao PÁGINA UM que existe “um alinhamento Governamental e político-partidário generalizado na RAA [Região Autónoma dos Açores] no sentido de não permitir a mineração do mar profundo dos Açores”. Mas, reconhece que não acolheu, na prática, a recomendação.
Em respostas enviadas ao PÁGINA UM, a Secretaria Regional do Mar e das Pescas admite que “não há diligências” para passar para a lei nenhuma moratória. Pelo contrário: “foi colocado no PSOEM-A [Plano de Situação de Ordenamento do Espaço Marítimo – Açores] essa utilização”.
A mineração em mar profundo tem gerado a oposição de organizações ambientalistas e cientistas devido aos danos que a actividade potencialmente provocará, nomeadamente a espécies ainda não estudadas ou mesmo desconhecidas. (Foto: D.R.)
Segundo a mesma Secretaria Regional, a inclusão daquela actividade no PSOEM-A não significa que “se pretenda dar início a qualquer procedimento de mineração, mas porque está listado como um uso possível”. “Por outro lado, todo o procedimento de pedido de utilização e emissão de TUPEM [Título de Utilização Privativa de Espaço Marítimo] salvaguarda sempre a participação pública bem como a decisão do Governo”, garantiu.
A Secretaria Regional adiantou que “não há, no momento, nenhuma manifestação de interesse junto do GRA de sequer fazer qualquer tipo de prospecção, muito menos de minerar”.
A Secretaria garantiu ainda que, em todo o caso, “o GRA [Governo Regional dos Açores], na pessoa do seu presidente, José Manuel Bolieiro, vincou também o seu compromisso com esse objectivo [moratória] e a concordância com a iniciativa levada a discussão e votação” na Assembleia Legislativa dos Açores.
Mas, apesar de tantas garantias, o facto é que, não existe nenhuma proibição ou impedimento àquela actividade no rico mar profundo dos Açores e que é muito apetecível. O social-democrata José Manuel Bolieiro teve a oportunidade para materializar na Lei a moratória que diz defender, contudo não o fez.
José Manuel Bolieiro. O social-democrata lidera o Governo Regional dos Açores e está a favor de uma moratória. Contudo, não materializou uma moratória na lei como esperava a Associação Natureza Portugal, que no nosso país trabalha em consórcio com a World Wide Fund for Nature (WWF). (Foto: D.R./GRA)
Se agora não existem propostas para estudo e prospecção, é possível que surjam no futuro. “O espaço marítimo adjacente ao arquipélago dos Açores apresenta grandes extensões de mar profundo com profundidades superiores a 800 m, e com profundidades que atingem os 3000 m de profundidade, contendo um conjunto diverso de habitats associados”, pode ler-se na Resolução do Governo Regional agora publicada. “Este espaço é considerado de especial importância ao nível da ocorrência de recursos minerais metálicos, sendo exemplo os sulfuretos polimetálicos [contêm elevadas concentrações de cobre, zinco, chumbo, arsénio, cobalto, prata, ouro e outros elementos metálicos] associados aos campos hidrotermais de elevada profundidade e as crostas de ferro-manganês ricas em cobalto nos montes submarinos”, adianta.
O diploma do GRA salvaguarda que, “face ao desconhecimento atual sobre os impactes ambientais e socioeconómicos implicados à mineração do mar profundo, e numa abordagem precaucionária, considerou-se não se encontrarem reunidas condições para a delimitação de áreas potenciais para o seu desenvolvimento, obrigando assim a que qualquer pretensão seja sujeita a procedimento de Plano de Afetação”. Adianta que “não está prevista a médio-longo prazo a realização de atividades de prospeção, pesquisa e exploração de recursos minerais metálicos no espaço marítimo adjacente ao arquipélago dos Açores”. Para já. Mas, sem uma moratória, nada proíbe que não passe a estar prevista. Até porque, como o diploma recorda, alguns Estados-Membros da União Europeia “deram permissão a processos de licenciamento de exploração para algumas áreas dos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, conquanto não existam ainda projetos comerciais em áreas para além da jurisdição nacional”.
Recentemente, a Noruega deu ‘luz verde’ ao avanço da actividade no ártico norueguês o que gerou apelos e críticas de diversos países e cientistas e mensagens de protesto e preocupação de organizações ambientalistas . [Pode ler AQUI a reportagem do jornalista Boštjan Videmšek na Noruega, que publicámos hoje, em exclusivo em português, no PÁGINA UM.]
Octópode de mar profundo (Sauroteuthis syrtensis) que se pode encontrar a 800 metros de profundidade no Oceano Atlântico. (Foto: WWF).
No caso dos Açores, comparando a possibilidade de mineração com a actividade de exploração de petróleo, encontra-se uma diferença fundamental: a Lei de Bases do Clima, aprovada pela Lei n.º 98/2021, estabelece no artigo 45.º a proibição do licenciamento de novas concessões de prospecção ou exploração de hidrocarbonetos no território nacional. Além disso, como reconhece a Resolução do GRA, não é expectável o desenvolvimento de tal indústria em águas açorianas, “atendendo à provável indisponibilidade do recurso”, visto que “não se considera provável a existência de reservatórios de hidrocarbonetos no espaço marítimo adjacente ao arquipélago dos Açores”.
Agora, com o GRA a não garantir uma proibição expressa até 2050 da mineração em mar profundo, só a iniciativa legislativa do partido Pessoas Animais Natureza (PAN) pode criar uma proibição legal. O partido já tinha sido o autor de um diploma que propunha uma moratória até 2050 e que foi aprovado na generalidade na Assembleia da Republica. Mas, com a queda do Governo de António Costa, a proposta caducou. O PAN avançou com uma nova iniciativa, mas ainda não tem data para ser debatida e votada no parlamento.
A Secretaria Regional do Mar e das Pescas dos Açores considera que “é natural que uma nova proposta idêntica [à anterior do PAN], também o seja [aprovada]”. Mas a aprovação do projecto-Lei não são ‘favas contadas’.
Maria da Graça Carvalho, ministra do Ambiente e Energia. (Foto: D.R./PSD)
O Governo de Luís Montenegro é evasivo quando se toca no tema de uma moratória para a mineração em mar profundo. O PÁGINA UM questionou os Ministérios do Ambiente e da Economia sobre o tema. Só o Ministério do Ambiente e Energia respondeu, mas sem mostrar todas as ‘cartas’, escusando ser claro sobre se é ou não a favor de uma moratória.
Para o Ministério liderado por Maria da Graça Carvalho, “a mineração em mar profundo é um tema que tem vindo a ganhar mediatismo, mas esta atividade encontra-se numa fase de prospecção e desenvolvimento, pelo que ainda estamos longe da sua operação efetiva de forma global”.
Assim, “Portugal, tal como outros países, está a acompanhar o assunto, inclusivamente ao nível da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, importando acautelar quer as preocupações ambientais, quer as implicações jurídicas na gestão do espaço marítimo”.
Sem dizer se é a favor ou contra uma moratória, o Ministério limitou-se a referir que considera ser “fundamental assegurar que todas as decisões são tomadas com base em dados e conhecimento científico”. Esta posição parece também sinalizar uma abertura deste Governo para não fechar completamente a porta à possibilidade de ser autorizada a mineração no fundo marinho português.
Do Ministério da Economia, o PÁGINA UM ainda não obteve respostas mas sabe-se que está a par das preocupações ambientalistas. A organização ambientalista ANP/WWF disse anteriormente ao PÁGINA UM que reuniu recentemente com Lídia Bulcão, secretária de Estado do Mar, para “discutir a importância de manter uma abordagem precaucionária em relação à mineração em mar profundo e estabelecer o quanto antes uma moratória”. Resta saber se o silêncio do Ministério da Economia em relação a este tema não traz ‘água no bico’.
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Só faltava mesmo uma auditoria para ‘limpar’ a imagem de uma estranha campanha de solidariedade que, durante a pandemia, catapultou a imagem de Ana Paula Martins, a actual ministra da Saúde, e de Miguel Guimarães, actual vice-presidente da bancada social-democrata. A consultora BDO prestou-se a fazer uma prestação de serviços às Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos – que nem sequer está registada no Portal Base – para ‘comprovar’ que estava (quase) tudo bem numa campanha que envolveu cerca de 1,4 milhões de euros. Só encontrou um minúsculo desvio não-justificado de 18 mil euros, mas convenhamos que também não se procurou muito: a auditoria não viu (ou não quis ver) que a conta bancária (que até identifica) não era uma conta oficial de qualquer das Ordens profissionais, mas sim de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. E, sem ver isso, também não viu fugas ao Fisco (não-pagamento de imposto de selo) nem omissões ao Ministério da Administração Interna, nem contabilidade paralela com possível criação de um ‘saco azul’ nem falsas declarações sobre os doadores por parte dos beneficiários. E era tão fácil ver: hoje mesmo, o PÁGINA UM confirmou, através de donativos simbólicos, que a conta usada na campanha ‘Todos por quem cuida’ continua a ter Miguel Guimarães como beneficiário e que uma conta oficial da Ordem dos Médicos indica, como deve ser, apenas a Ordem dos Médicos como beneficiária.
A consultora BDO prestou-se a elaborar uma auditoria à campanha de solidariedade ‘Todos por uma causa’ – que, durante a pandemia, geriu cerca de 1,4 milhões de euros provenientes sobretudo da indústria farmacêutica – sem sequer detectar (ou ter pretendido detectar) que todos os fluxos financeiros se processaram usando uma conta particular detida pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e pelo deputado do PSD Miguel Guimarães, que então ocupavam os cargos de bastonários da Ordem dos Farmacêuticos e dos Médicos, respectivamente. Com essa inexplicável ‘cegueira’, surpreendente numa reputada consultora registada na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e na Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC), o aspecto mais grave detectado foi ‘apenas’ uma “diferença não justificada de 18.787 euros entre o somatório das aquisições efectuadas […] com os donativos em dinheiro […] e os valores entregues às entidades beneficiárias”.
De fora, ficou assim – tentando lançar um ‘lençol de legalidade’ – um vasto conjunto de ilegalidades e irregularidades desta campanha, logo detectadas pelo PÁGINA UM após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa ter obrigado em finais de 2022 as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a revelarem a documentação desta campanha. Aliás, a própria auditoria da BDO, agora revelada pelo PÁGINA UM, também somente foi acedida por determinação de nova sentença do Tribunal Administrativo, já do presente ano, uma vez que Carlos Cortes, o bastonário da Ordem dos Médicos que substituiu Miguel Guimarães em 2023, não aceitou entregar voluntariamente o documento, concretizado sem sequer ser conhecido um contrato público, uma vez que não existe qualquer registo no Portal Base.
Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram protagonistas de uma campanha solidária cheia de irregularidades e ilegalidades que a BDO quis ‘limpar’ com uma pseudo-auditoria (D.R./Ordem dos Médicos)
Apesar da suposta bondade desta campanha – atribuir sobretudo material e equipamentos de protecção contra a covid-19 a instituições de solidariedade social e unidades hospitalares –, de entre as irregularidades e ilegalidades detectadas pelo PÁGINA UM incluem-se contabilidade paralela, fuga ao fisco e falsas declarações para obtenção de benefícios fiscais e facturas falsas.
Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.
Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.
E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.
Ora, a pseudo-auditoria da BDO confirma o NIB (e IBAN) usado, referindo que “foi criada uma conta destinada a receber, através de depósito directo ou por transferência, os donativos angariados com o IBA P50 0035 0646 0001 7662 9302 1”. Porém, o documento assinado por Ana Gabriela Barata de Almeida (ROC nº 1366, inscrito na CMVM sob o nº 201606976, em representação da BDO & Associados – SROC) não se debruça nem uma linha no aspecto essencial: essa conta não era nem da Ordem dos Médicos nem da Ordem dos Farmacêuticos nem da própria Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), que se associou à campanha.
Não se diga que essa pesquisa era complexa. Na verdade, é pública e confirmável: hoje mesmo, o PÁGINA UM procedeu a uma transferência simbólica (1 euro) para esse IBAN, que pertence a uma conta da Caixa Geral de Depósitos, onde surge, como primeiro beneficiário “José Miguel R Castro Guimarães”. A actual ministra é (era) co-titular desta conta particular, havendo ainda outro co-titular, Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde do PSD e actual coordenador do Plano de Emergência de Saúde. A conta era movimentada com duas assinaturas. A actual ministra assinou diversas ordens de pagamento.
Para que não haja dúvidas sobre a contabilidade paralela desta campanha solidária, o PÁGINA UM procedeu também hoje a uma transferência simbólica (1 euro) para o IBAN de uma das contas da Ordem dos Médicos, usada pela secção Sul desta instituição no Millenium BCP. E esta conta tem, obviamente, como único beneficiário a Ordem dos Médicos, e não o nome do bastonário ou de outro qualquer responsável. Por regra, são depois documentos internos que indicam quem pode movimentar a(s) conta(s) institucional(is), e seria no mínimo irregular que housse pagamentos de terceiros ou contas abertas por outras entidades ou pessoas para pagar facturas de prestação de serviços ou aquisição de bens requeridas pela Ordem dos Médicos.
Dossiers com documentos da campanha ‘Todos por quem cuida’, consultados pelo PÁGINA UM depois de uma primeira sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.
Como a BDO não tomou sequer diligências sobre a existência de uma conta particular a gerir uma campanha, fez assim vista grosa a uma catadupa de ilegalidades e irregularidades, mesmo tendo-se debruçado em supostas “verificações factuais”, designadamente a confirmação da entrada das receitas angariadas na conta bancária, a conformidade com a regulamentação das acções de beneficência, as declarações emitidas aos doadores e de procedimentos de aquisição e entrega de bens, dando-lhes uma cobertura de aparente legalidade.
Nada mais falso.
Sendo que a conta da campanha “Todos por quem cuida” não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundo omitiu o facto de que o NIB em causa não ser das entidades oficiosamente promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, foram indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação, e que efectivamente pertencem a estas duas instituições. Ambas as contas (com o NIB 000334778686020 e o NIB 000000182339728) estão no Santander, sendo tituladas, respectivamente, pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticas.
A razão para não serem usadas contas oficiais de qualquer uma das ordens nunca foi dada, mas certo é que o Ministério da Administração Interna foi iludido, Além disso, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos para a conta paralela se iniciara em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes. Com efeito, à data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.
Pedido de autorização para angariação de donativos omite que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos. Nunca foi explicada opção por uma conta não-oficial, que permitiu uma contabilidade paralela cheia de irregularidades e ilegalidades.
Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a lei do mecenato ou outro tipo de benefício, porque em termos formais estava-se perante uma recolha de donativos por três pessoas, inexistindo uma justificação lógica (ou ilógica) para não se ter procedido sequer a qualquer correcção. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pagado solidariamente o imposto de selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros. E houve muitos.
Ora, face aos montantes das diversas transferências sobretudo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de imposto de selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.
Existiram pelo menos mais 13 transferências bem acima de 500 euros que também não terão sido declaradas às Finanças nem pago o imposto de selo, a saber: ASPAC (35.000 euros), Bial (20.000 euros), Bene (20.000 euros). Ipsen (12.000 euros), Atral (10.000 euros), Falinhas Mansas (10.000 euros), Angelini (10.000 euros), Apormed (5.000 euros), Rial Engenharia (5.000 euros), Medicina G Medeiros Marques (1.500 euros), Forex ACI (1.500 euros), Gin Lovers (1.080 euros) e Multiclínicas Far (1.000 euros).
Contas feitas, segundo os cálculos do PÁGINA UM com base nos extractos bancários, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves receberam 41 donativos superiores a 500 euros e deveriam ter pagado 138.333,10 euros de imposto de selo. E nunca o fizeram.
Confirmação de que a conta solidária tinha como titulares Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, ou seja, não era uma conta institucional.
A BDO, na sua auditoria, omite qualquer irregularidade, uma vez que omite que a conta não era institucional. No seu trabalho, a auditora apenas confirma os valores declarados e recebidos, elencando individualmente os donativos das farmacêuticas via Apifarma, que individualmente concedeu 90.000 euros. As farmacêuticas mais beneméritas foram a Novartis (215.751 euros), a AstraZeneca (200.00 euros), a Gilead (150.000, para onde Ana Paula Martins começaria a trabalhar depois da saída da Ordem), a Merck Sharp & Dohme (50.000 euros) e a Janssen (40.000). A Pfizer concedeu 30.000 euros de apoio.
Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da campanha –, as 16 entidades do sector farmacêutico que concederam apoios também deveriam ter feitos declarações no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, identificando expressamente Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. Estes profissionais de saúde – dois médicos e uma farmacêutica – também nunca procuraram que o Infarmed, que vigia os patrocínios neste sector, envidasse esforços para incluir essas referências no portal. E o Infarmed, presidido por Rui Santos Ivo, nunca se incomodou em incomodar as farmacêuticas por não declararem o ‘patrocínio’ de mais de 1,3 milhões de euros a três individualidades, uma das quais, Ana Paula Martins, que agora tutela o regulador do medicamento.
Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados. Ora, isso passou ao largo da BDO, apesar de se apresentar como uma das principais auditoras a operar em Portugal.
A Ordem dos Médicos tem várias contas bancárias institucionais, mas para a campanha solidária ‘Todos por quem cuida’, Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, com Eurico Castro Alves, decidiram criar uma conta particular, permitindo uma contabilidade paralela para gerir cerca de 1,4 milhões de euros, grande parte dos quais provenientes de farmacêuticas.
Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.
Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida em nome da Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declaração (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.
Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.
Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul’, ou mesmo um desvio de verbas até 968 mil euros. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.
Emcomendada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, auditoria garantiu que efectuou o trabalho “de acordo com os princípios técnicos-profissionais da BDO”, mas nem sequer detectou (ou quis detectar) que a conta que movimentou os dinheiros da campanha não era oficial, o que descambou numa catadupa de ilegalidades e irregularidades.
Ora, a alegada auditoria da BDO – pelo menos, o título do documento obtido pelo PÁGINA UM após sentença do tribunal diz “Prestação de serviços de autoria ás actividades e contas do fundo solidário #TodosPorQuemCuida” – comete aqui um erro de palmatória. Na página 10 da auditoria diz-se que “procedemos à análise dos gastos7aquisções efectuadas por forma a validar a documentação de suporte correspondente”, indicando que foram realizadas verificações às notas de encomenda, factura, evidência de entrega aos beneficiários e comprovativo do pagamento, concluindo que se confirmou “a existência destes elementos para todas as aquisições”.
Mas também aqui há uma omissão grave, que aparenta ser intencional. Com efeito, se e BDO conferiu facturas e pagamentos teria sido assim impossível não ter detectado que as facturas eram emitidas em nome da Ordem dos Médicos mas os pagamentos eram feitos por terceiros, neste caso pela conta titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Significa isso que, sem qualquer documento justificativo – e não existia quando o PÁGINA UM consultou todos os documentos após a sentença do Tribunal Administrativo –, deram entrada documentos de despesa elevados (cerca de 978 mil euros) sem qualquer fluxo de caixa associadas às respectivas facturas, ou seja, houve indicação de que terá saído dinheiro da Ordem dos Médicos sem ter havido.
Se houve ou não a criação de um ‘saco azul’, não se sabe – e nem o actual bastonário, Carlos Cortes, se disponibilizou voluntariamente a esclarecer esta estranha situação nem quis entregar os relatórios e contas de 2020, 2021 e 2022 da Ordem dos Médicos –, mas é estranho que haja uma completa omissão por parte da BDO neste aspecto sensível e de grande responsabilidade. Sabe-se apenas, que o saldo da conta solidária em 20 de Fevereiro do ano passado era de 107.382 euros, mas o actual bastonário, Carlos Cortes, nunca quis esclarecer se esse dinheiro remanescente continuava a ser gerido pelos três titulares ou se a verba fora transferida, e em que condições, para uma conta oficial da Ordem dos Médicos.
Através da conta pessoal de que era co-titular, Ana Paula Martins assinou, por exemplo, uma ordem de transferência bancária ao Hospital das Forças Armadas num acordo com a task force liderada por Gouveia e Melo para pagar a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários numa altura de escassez de vacinas. Mas a factura das Forças Armadas foi emitida em nome da Ordem dos Médicos.
Vejamos um exemplo desta situação. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária de Ana Paula Martins e dos outros dois co-titulares. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.
Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.
Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.
Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.
Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, e Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, ganharam protagonismo com a pandemia. A gestão de um ‘bolo’ de 1,4 milhões de euros numa campanha solidária, financiada sobretudo pelas farmacêuticas, deu uma ajuda.
Logo, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.
Neste caso particular – que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas nesta campanha –, a Gilead terá apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido (que agora a BDO diz ter sido de 150.000 euros), para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, teriam de ser as três titulares dessa conta (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves), e não as entidades beneficiadas com os géneros doados, a passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.
Outro caso paradigmático passou-se com a Associação Nacional de Farmácias que em 10 de Fevereiro de 2021 declarou que a Merck Sharpe & Dohme lhe doou 107.574 máscaras cirúrgicas no valor total de 50.000 euros. Nada poderia ser mais falso. Aquilo que sucedeu foi a Merck Sharpe & Dohme ter doado 50.000 euros a Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves que, depois aproveitaram para usar esse dinheiro para pagar máscaras a uma empresa – que emitira uma factura à Ordem dos Médicos –, sendo esses equipamentos de protecção individual entregues então à Associação Nacional de Farmácias.
Documento na posse da Ordem dos Médicos, consultado pelo PÁGINA UM após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, com a lista de entidade que concederam donativos à conta solidária titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves.
A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.
Assim, com este esquema falso as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.
Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo então seu bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.
Além de ser co-titular e co-gestora da conta solidária, e autorizar transferências de dinheiro para pagamento de facturas que, afinal, eram emitidas à Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins acompanhou pelo menos durante um anos as operações logísticas da campanha ‘Todos por Quem Cuida’.
Ora, perante este intrincado esquema de falsas declarações – as farmacêuticas doaram o dinheiro para a conta de três pessoas, e não fizeram donativos directos para os beneficiários –, a BDO nada diz na sua auditoria. No curto capítulo sobre a confirmação das declarações emitidas aos doadores, a auditora diz que “procedemos também à verificação das declarações emitidas aos doadores pelas entidades beneficiárias e pelo TPQC [‘Todos por quem cuida’].
Ora, das centenas de declarações que o PÁGINA UM consultou, os beneficiários finais nunca tiveram contacto com os doadores iniciais; e, na verdade, a haver declarações verídicas deveriam ser de dois tipos: declarações de Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves aos doadores, entre os quais as farmacêuticas; e depois declarações das diversas beneficiárias às referida pessoas que pagaram os bens doados. O facto de a auditoria da BDO referir que foi “possível confirmar a concordância dessas declarações” é, no mínimo, estranho.
Após a entrega pela Ordem dos Médicos da auditoria – que durante o processo de intimação, apresentado no final do ano passado, a Ordem dos Médicos garantiu ao juiz não estar concluído, apesar de ter data de 10 de Março de 2023 –, o PÁGINA UM colocou diversas questões à BDO e, em particular, à auditora Ana Gabriela Barata de Almeida. Numa primeira fase, a BDO respondeu que “no que respeita à auditoria/trabalho de procedimentos acordados às atividades e contas do Fundo Solidário ‘Todos por quem cuida’, informamos que está abrangido por segredo profissional […], pelo que não podemos prestar quaisquer informações relativas a factos, documentos ou outras de que tenhamos tomado conhecimento por motivo da referida prestação de serviços”.
Perante a insistência, dias depois foi remetida uma mensagem pelo advogado Pedro Guerra Alves, alegadamente representante legal da BDO, ameaçando o PÁGINA UM com um processo judicial. Essa pressão ilegítima, numa fase em que a investigação do PÁGINA UM ainda decorria, levou à apresentação de uma queixa contra o causídico no Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Médicos e na Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.
O PÁGINA UM também colocou questões sobre a qualidade desta auditoria da BDO à CMVM e à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas. No caso da CMVM veio a resposta da praxe para não dar resposta: “A CMVM está sujeita a sigilo profissional e não se pode pronunciar sobre situações concretas relacionadas com entidades sujeitas à sua competência de supervisão sobre a actividade de auditoria, nos termos previstos no Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria (RJSA).” Quanto à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas nem resposta veio.
Também sem resposta, até hoje, ficaram os diversos pedidos do PÁGINA UM ao bastonário da Ordem dos Médicos, que foi informando que, por serem assuntos anteriores ao seu mandato, reencaminhou para os serviços.
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Confidencialidade ‘ad hoc’ sobre os acordos parassociais, redução das entidades com obrigatoriedade de revelarem dados financeiros, expurgo eventual de informação sobre o governo societário e redução substancial de coimas, e mesmo a sua suspensão – eis a ‘resposta’ do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) para enfrentar a crise na imprensa portuguesa. A proposta de revisão da Lei da Transparência dos Media – uma legislação que, desde 2015 exige a revelação de informação essencial para perceber quem (e como) está a comunicação social -, apresentada este mês pelo regulador ao Governo e à Assembleia da República, ‘mutila’ diversos princípios de transparência e abre portas para a criação de modelos pouco ortodoxos de financiamento, através, por exemplo, de acordos parassociais a classificar como confidenciais. Com esse expediente, criam-se as condições para esconder do público quem são os ‘decisores’ efectivos de uma empresa de media, podendo os detentores do capital social serem meros ‘testas de ferro’, sobretudo em casos de ‘descapitalização’ ou falência técnica. Num período crítico para o Jornalismo, esta proposta do regulador é uma autêntica caixa de Pandora, de onde pode sair, efectivamente, todas as desgraças – se é que as já existentes não são suficientes.
A resposta do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) à crise financeira e de valores da imprensa é ‘escurecer’ ainda mais já pouco respeitada Lei da Transparência dos Media, aprovada em 2015. A proposta de revisão desta legislação enviada este mês pelo regulador para a Assembleia da República e o Ministério dos Assuntos Parlamentares – sob a forma de deliberação assumida no passado dia 2 pelo órgão presidido por Helena Sousa – integra um autêntico repositório de alterações e subtracções das obrigações das empresas de media em termos de identificação dos titulares directos e indirectos dos órgãos de comunicação social, bem como um aligeiramento das penalizações em caso de não indicação (ou lacunas e erros) de indicadores financeiros.
Uma das alterações mais relevantes com impacte futuro – por poder vir a ser explorada por grupos de media que pretendam esconder quem verdadeiramente os domina – é a possibilidade de acordos parassociais que visem adquirir, manter ou reforçar uma participação qualificada passarem a ser confidenciais se a ERC assim o determinar, impedindo assim o acesso por terceiros. Ou seja, uma Lei da Transparência dos Media passa a ser isso apenas por denominação.
Até agora, na actual legislação, uma empresa de media que estabelecesse um acordo parassocial teria de o enviar à ERC para ser analisado, podendo ser ou não publicitado por decisão do regulador. Porém, pela lei do acesso aos documentos administrativos seria sempre possível aceder aos textos, mesmo que eventualmente expurgados de matérias relacionadas com segredo comercial. Por exemplo, recentemente a ERC analisou um acordo parassocial da Medialivre e da sua holding – que controlam o Correio da Manhão, a CMTV e a Now –, tendo decidido não ser necessária a sua divulgação. Porém, em muitos casos, as decisões do regulador têm-se mostrado políticas, pelo que, por agora, se mostra possível legalmente requerer o acesso particular aos documentos, algo que deixará de ser possível se o novo articulado for aprovado.
Esta questão não é de somenos importância. Os acordos parassociais são contratos celebrados por sócios (ou accionistas) de uma sociedade, com a eventual inclusão de terceiros, onde eventualmente se estabelece, por exemplo, condições de investimento ou compra ou aumentos de participações em função de determinados critérios ou objectivos. Na prática, os acordos parassociais podem, no limite, esconder os verdadeiros ‘donos’ de uma empresa de media, funcionando os sócios conhecidos como ‘testas de ferro’. Actualmente, começam a surgir um cada vez maior interesse de fundos de investimento, ou outras entidades, em influenciar os negócios dos media sem ser através da entrada no capital social, mas sim por via de empréstimos obrigacionistas.
Regra geral, as obrigações não dão direito ao financiador de se imiscuir na gestão, excepto, claro, se houver um acordo parassocial que o determine ou que, por exemplo, seja acordado a possibilidade de conversão das obrigações em acções ou quotas (obrigações convertíveis). Essa possibilidade – ou perigo – ainda é maior em empresas de media descapitalizadas ou mesmo com capitais próprios negativos (falência técnica). Por isso, conceder apenas o controlo à ERC nesta matéria, tornando potencialmente secretos todos os acordos parassociais, constituirá um recuo clamoroso na transparência dos media.
Não é apenas neste aspecto que a ERC ‘convida’ as empresas de media a tornarem-se menos transparentes. Sobre o relatório do governo societário (ou organizacional, na proposta da ERC) – que passa a ficar restrito às empresas com mais de 10 empregados (o que, neste caso, retira a obrigatoriedade de a empresa gestora do PÁGINA UM de o enviar anualmente) –, o regulador também propõe uma alteração que promove o obscurantismo: o acesso pode ser restrito alegando-se “a protecção de dados pessoais ao abrigo do Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados”. Este tem sido, aliás, um argumento ‘estafado’, usado por outras entidades públicas, para apagarem até nomes, sabendo-se que esse regulamento define como dados pessoas a proteger apenas aqueles elementos que digam respeito à intimidade, designadamente dados de saúde, de orientação sexual, de religião e de associação. Ou seja, não abrange a reserva de nome nem outros elementos previstos nesse relatório.
Outro aspecto polémico da proposta do Conselho Regulador da ERC é a possibilidade isenção do cumprimento das normas de transparência sobre os meios de financiamento e o relatório organizacional por parte das “entidades que prossigam actividades de comunicação social a título acessório, em que a actividade de comunicação social tenha comprovadamente um peso diminuto nos rendimentos e um alcance residual ao nível das audiências”. A ERC não determina o que é “um peso diminuto nos rendimentos” nem “um alcance residual ao nível das audiências”, mas claramente esta norma, a passar, isentará os partidos políticos, diversas instituições religiosas, sindicatos e associações.
Por fim, ‘a cereja no topo do bolo’ diz respeito às penalidades previstas numa lei sistematicamente desrespeitada nas ‘barbas’ do regulador. Desde o ano passado, o PÁGINA UM detectou erros, alguns intencionais, ou omissões de grande relevância financeira na Global Media, na Trust in News, na Inevitável e Fundamental (Polígrafo), na Parem as Máquinas (do semanário Tal&Qual) e no Observador On Time. Muitos outros casos de incumprimento generalizado são evidentes, mesmo em projectos jornalísticos considerados independentes e alternativos.
Ora, a proposta do Conselho Regulador é de baixar de forma significativa as coimas. Por exemplo, as contra-ordenações muitos graves que são puníveis com coimas de 5.000 a 25.000 euros quando praticadas por pessoa singular, e de 50.000 a 250.000 euros quando praticadas por pessoa colectiva, passam, na proposta da ERC, para 1.250 a 20.000 euros, e de 5.000 a 120.00 euros, respectivamente. Mas fica ainda a possibilidade imediata de suspensão da coima se a entidade ou pessoa apanhada em falta, corrigir as declarações. Ou seja, é um autêntico convite para se esconder – e se se for apanhado, então corrige-se sem consequências, apenas tendo o ‘cuidado’ de não prevaricar durante um período entre dois e cinco anos a fixar pela própria ERC.
Posto tudo isto, se esta proposta do Conselho Regulador da ERC for aprovada nestes moldes pela Assembleia da República, à Lei da Transparência dos Media restará apenas uma coisa: a denominação enganadora. E não vai contribuir assim, nessa linha, para melhorar o cenário terrível da imprensa onde campeiam, entre os principais grupos de imprensa, casos de dívidas ao Estado, falências técnicas e dificuldades de tesouraria, em simultâneo à promiscuidade entre jornalismo e interesses económicos e financeiros.
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Em vésperas do Parlamento Europeu votar a eventual reeleição da actual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen recebeu uma má notícia: perdeu um processo junto do Tribunal Geral da União Europeia sobre o secretismo em torno dos contratos de compra das vacinas contra a covid-19. O Tribunal anulou a decisão da Comissão de manter secretos algumas das condições e termos do negócio e também esclareceu que as farmacêuticas são responsáveis por indemnizar os lesados das vacinas, mesmo que os contratos de compra as ilibem de responsabilidades. A sentença, tornada hoje pública, adianta que, no entanto, nada impede que outra entidade assuma o custo das responsabilidades pelos efeitos adversos das vacinas se assim o desejar. Este desfecho traz esperança ao processo rocambolesco que o PÁGINA UM tem a correr na Justiça contra o Ministério da Saúde desde Dezembro de 2022, ou seja, há mais de 18 meses. A existência de contratos secretos a nível europeu era um dos derradeiros argumentos do Governo para não se mostrar os contratos e correspondência entre as autoridades portuguesas e as farmacêuticas.
A derrota da Comissão Europeia no processo levantado por eurodeputados sobre o secretismo dos acordos prévios de compra (advance purchase agreement, APA) das vacinas contra a covid-19, celebrados entre Ursula von der Leyen e as farmacêuticas, vai retirar um ‘precioso argumento’ ao Ministério da Saúde num longo processo de intimação do PÁGINA UM para o aceder aos contratos e outros documentos assinados posteriormente pela Direcção-Geral da Saúde (DGS).
Este processo de intimação – instaurado pelo PÁGINA UM e que, por lei, tem carácter de urgente – decorre há mais 18 meses no meio de mentiras, traduções de centenas de páginas sem qualquer relevância e um pedido de incompetência de jurisdição para decidir o acesso a documentos administrativo por as compras nacionais decorrerem dos tais acordos prévios celebrados em Bruxelas.
Em Dezembro de 2022, o PÁGINA UM intentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa face à recusa da DGS em facultar os contratos de compra por si executados, bem como as guias de remessa e outra correspondência com as farmacêuticas. Quatro destes contratos chegaram a constar no Portal Base, onde surgiam alguns elementos, como preços e quantidades, mas depois do pedido do PÁGINA UM para aceder a todos, o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção – a entidade pública responsável pela gestão do Portal Base – permitiu que a DGS sonegasse esses quatro contratos e deixasse de colocar os restantes.
Neste processo no Tribunal Administrativo de Lisboa, dirigido pela juíza Telma Nogueira – que não é ‘mexido’ desde Fevereiro deste ano, apesar de ser considerado urgente, correndo mesmo durante as férias judiciais -, o Ministério da Saúde já tentou de tudo. Em Janeiro de 2023, a ainda directora-geral da Saúde Graça Freitas enviou um ofício ao PÁGINA UM remetendo apenas para os acordos prévios, apesar de aquela responsável ter assinado contratos para a aquisição de doses para Portugal. Além disso, Graça Freitas dizia, para convencer o Tribunal da impossibilidade legal de acesso, que estava a decorrer “uma auditoria aos procedimentos“, o que se mostrava falso. Nunca foi dado a conhecer qualquer auditoria.
Depois disso, o Ministério da Saúde tentou convencer a juíza Telma Nogueira de que os contratos que existiam eram apenas os que constavam no site da Comissão Europeia, o que era falso. Apesar de o PÁGINA UM ter apresentado requerimento a alertar a juíza de que aquilo que constava no site da Comissão Europeia eram os acordos prévios assinados por Ursula von der Leyen – e não os contratos nacionais que tinham sido pedidos -, o Tribunal Administrativo de Lisboa solicitou então que a DGS traduzisse para português os tais acordos, uma vez que não são sequer aceites textos em outras línguas. No processo de intimação constam centenas de páginas traduzidas para português, que demoraram mais de dois meses a realizar, com as imensas rasuras agora consideradas ilegais pelo Tribunal Geral da União Europeia. Todas essas páginas são completamente inúteis.
Graça Freitas assinou mais de uma dezena de contratos, uns sonegados do Portal Base, outros nunca ali colocados.
Perante a constatação de que não se tratavam dos documentos requeridos, o Ministério da Saúde usou outro estratagema, então sugerido por André Peralta-Santos, sudirector-geral da Saúde: como os acordos assinados entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas continham “cláusulas de confidencialidade que obrigam todos os intervenientes”, então “, donde, “os contratos nacionais subordinados a elementos legalmente considerados essenciais do contrato, como quantidades e preços, estipulados nos Acordos/Protocolos/Contratos-Quadro, ficam sujeitos às mesmas regras de confidencialidade, porquanto, devem ser considerados como contratos (parciais) integrantes dos Acordos assinados pela Comissão Europeia em representação dos Estados-Membros, que foram interessados [sic], como foi o caso de Portugal”.
Nesta sua temerária interpretação – que advoga que os Estados democráticos perdem o exercício de Justiça independente interna em caso de acordos comerciais por entidades externas e supranacionais não-eleitas (Comissão Europeia) –, o subdirector-geral da Saúde defendia ainda que o Vaccine Order Form – cujos primeiros quatro documentos estiveram no Portal Base, para serem depois sonegados pelo Ministério da Saúde – “não se trata, assim, de um qualquer contrato celebrado pelo Estado português, através da Direcção-Geral da Saúde”, mas “apenas da formalização necessária para operacionalização do APA/PA [acordos entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas] em território nacional com o pedido de entrega das vacinas respetivas”.
Contudo, a juíza Telma Nogueira aparentou acolher esta tese, concluindo em despacho de 15 de Dezembro do ano passado que “resulta dos documentos juntos e supra referidos, que os Formulários de encomenda de vacina são celebrados pelos Estados-Membros e as empresas da indústria farmacêutica em execução dos APA, nomeadamente os supra referidos, sendo que estes APA foram outorgados entre a Comissão Europeia e as empresas da indústria farmacêutica e contêm nas suas cláusulas um pacto atributivo de jurisdição”.
Esconder, mentir e ludibriar: esta tem sido a estratégia do Ministério da Saúde para não mostrar contratos de compra, guias de remessa e correspondência com farmacêuticas.
E a juíza solicitou então que o PÁGINA UM se pronunciasse “sobre a verificação da excepção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal decorrente da violação das regras de competência internacional, que a ser procedente conduzirá à absolvição da Entidade demandada da instância”. No entanto, depois da resposta do PÁGINA UM em 12 de Fevereiro deste ano, a juíza nunca mais se pronunciou. Ou seja, mais de cinco meses de silêncio. Em mais de duas dezenas de intimações do PÁGINA UM em tribunais administrativos, nunca nenhum outro demorou mais de um ano até à sentença de primeira instância. Este, sobre os polémicos contratos das vacinas, já vai em mais de 18 meses sem se vislumbrar uma primeira decisão, sempre passível de recursos de ambas as partes.
Em todo o caso, este inexplicável atraso do Tribunal Administrativo de Lisboa acaba por ser agora favorável às pretensões do PÁGINA UM. Com efeito, o acórdão de hoje do Tribunal Geral da União Europeia – que derrota a opacidade sobre os polémicos contratos de compra das vacinas contra a covid-19, que terão permitido a facturação pelas farmacêuticas de mais de 2,7 mil milhões de euros provenientes dos Estados-Membro – retira indelevelmente o argumento do secretismo para recusar o seu acesso. Além disso, a Lei do Acesso dos Documentos Administrativos refere-se sempre a documentos produzidos ou detidos por uma entidade pública, independentemente da sua origem..
Na sua histórica decisão, que constitui uma importante defesa dos princípios democráticos da transparência e boa gestão dos dinheiros públicos, o Tribunal Europeu considerou que a Comissão “não demonstrou que um acesso mais amplo a essas cláusulas [tornadas secretas] prejudicaria efetivamente os interesses comerciais” das farmacêuticas.
Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e Albert Bourla, presidente-executivo da Pfizer, na entrega de um prémio do Atlantic Council, em Novembro de 2021. (Foto: Captura a partir de vídeo do evento)
Nos últimos anos, Ursula von der Leyen vinha sendo pressionada para mostrar todos os termos e condições dos contratos, tanto por eurodeputados como por particulares, mas a Comissão Europeia sempre concedeu acesso muito limitado aos contratos, os quais foram disponibilizados online com muita informação expurgada.
Na sentença conhecida hoje, o Tribunal também proferiu decisão sobre as condições estipuladas nos contratos das vacinas contra a covid-19 sobre eventuais indemnizações por danos que estas empresas estão obrigadas a pagar em caso de defeito das suas vacinas. De acordo com o comunicado de divulgação da decisão, o Tribunal Geral da União Europeia sublinhou na sentença que “o produtor é responsável pelo dano causado por um defeito no seu produto e a sua responsabilidade não pode ser reduzida ou excluída em relação ao lesado por uma cláusula limitativa ou exoneratória de responsabilidade ao abrigo da Diretiva em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos”.
Contudo, salientou que “nenhuma disposição da referida Diretiva proíbe que um terceiro reembolse a indemnização a título de danos que um produtor tenha pagado em razão do defeito do seu produto”.
Quando era ministra da Defesa da Alemanha, Ursula von der Leyen também foi investigada num caso que envolveu o uso de telemóveis. (Foto: D.R./Comissão Europeia)
Não é a primeira vez que Ursula von der Leyen surge numa polémica de contratos milionários opacos envolvendo mensagens e chamadas por telemóvel. A ainda presidente da Comissão Europeia foi investigada quando era ministra da Defesa da Alemanha, entre 2013 e 2019. Ursula von der Leyen acabou por ser ilibada no chamado “Caso do Consultor”, em Junho de 2020, mas também aqui houve telefones à mistura.
A compra de vacinas contra a covid-19, à qual os Estados-membro estão ‘presos’, tem gerado um enorme desperdício, com milhões de vacinas a ir para o lixo. O próprio Tribunal de Contas, num relatório de Setembro do ano passado, apontava para um elevado desperdício financeiro devido à inutilização de doses não administradas, com o número provisório a atingir as 3,5 milhões de doses no valor de 54,5 milhões de euros, até ao final de Dezembro de 2022. Mas, segundo uma análise do PÁGINA UM, com base em informação oficial, Portugal terá desperdiçado mais de 40 milhões de doses de vacinas.
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Os registos do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) comprovam que as marcas das revistas mais emblemáticas da Trust in News — a Visão e a Exame — estão penhoradas desde 2020. Já o título da revista Activa ‘está no prego’ desde o ano passado. Em causa estão processos judiciais de execução iniciados pela Segurança Social e pelo Fisco relativos a dívidas que se acumulavam já desde 2019, segundo documentos consultados pelo PÁGINA UM. Apesar de ter um capital social de apenas 10 mil euros, a sociedade de Luís Delgado conseguiu, surpreendentemente, acumular dívidas da ordem dos 30 milhões de euros e não pagou contribuições dos trabalhadores à Segurança Social nem os descontos de IRS ao Fisco. Em Junho, iniciou um Processo Especial de Revitalização numa tentativa de evitar a declaração de insolvência. Há outros títulos da Trust in News sob penhor, como garantias de empréstimo do Novo Banco, mas Luís Delgado foi registando marcas ‘paralelas’, salvas agora de penhoras. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) nunca foi informada pela Trust in News destas penhoras.
A Segurança Social e o Fisco mandaram penhorar, em 2020, as marcas de dois dos principais títulos da Trust in News, Visão e Exame, na tentativa de recuperar dívidas acumuladas pela empresa desde 2019. A sociedade unipessoal do empresário e comentador Luís Delgado iniciou recentemente um Processo Especial de Revitalização (PER) para tentar evitar a falência quase iminente. O Estado é o maior credor da empresa de media que comprou, em 2018, o portfólio de revistas da Impresa, dona do Expresso e da SIC.
Segundo os registos no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), desde 23 de Novembro de 2020 que a marca da revista Visão tem o seguinte averbamento: “[sic] penhora à ordem do instituto de gestão financeira da segurança social, i.p. exequente: secção de processo executivo de lisboa ii – instituto de gestão financeira da segurança social, i.p. executado: trust in news, unipessoal lda”. Segundo os dados do INPI, o pagamento de taxas relativas à manutenção da marca está suspenso a aguardar “sentença de tribunal”.
Também a marca da revista Exame tem no seu registo no INPI um averbamento relativo a uma penhora por ordem do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social no âmbito de processo de execução da Trust in News desde a mesma data de 2020. No caso da marca da revista Activa, desde Maio de 2023 que o seu registo no INPI inclui um averbamento de penhora referente a um processo de execução fiscal da Autoridade Tributária, mais concretamente do ‘Serviço de Finanças de Oeiras 1’. Esta marca tem igualmente suspenso o pagamento de taxas a aguardar sentença. O Fisco também penhorou as marcas Tele Novelas e TVMais.sapo.pt.
No total, de acordo com os documentos de reclamação de créditos consultados pelo PÁGINA UM, a Autoridade Tributária efectuou 10 penhoras referentes a dívidas da Trust in News e exigiu ainda duas fianças. A titularidade das marcas é essencial para o exercício da actividade jornalística. Ou seja, Luís Delgado não poderia já usar os títulos se não houvesse uma autorização da Segurança Social e a Autoridade Tributária.
Segundo os documentos, a empresa unipessoal de Luís Delgado acumula dívidas ao Fisco desde Agosto de 2019 até ao anúncio do PER. Só a estas duas entidades, a dívida perfaz um total de 8.125.545,20 euros, sendo relativa a descontos dos trabalhadores para efeitos de IRS, IVA, juros e custas.
A marca da revista Visão é uma das que está sob penhora desde 2020 por parte da Segurança Social. O Novo Banco tem penhora de 2º grau sobre a marca.
Quanto ao incumprimento perante a Segurança Social, este ocorre desde Dezembro de 2019. Até Abril deste ano, a dívida da dona da revista Visão à Segurança Social ascendia aos 8.973.112,22 euros. Este montante engloba sobretudo contribuições não pagas relativas aos trabalhadores, mas também responsabilidades com trabalhadores independentes, juros e custas. Ou seja, há mais de quatro anos que Luís Delgado decidiu deixar de pagar as contribuições à Segurança Social, apesar da Trust in News nunca ter sequer sido inscrita na lista dos devedores, porque alegadamente chegou a um acordo de pagamento faseado que não só incumpriu como manteve a postura de não saldar as novas e sucessivas obrigações.
Tanto o incumprimento do pagamento de IVA como o não pagamento à Segurança Social de descontos retidos dos trabalhadores são considerados crime e passíveis de pena de prisão, independentemente da aprovação do PER.
Além das marcas acima mencionadas, outros títulos da Trust in News foram entregues ao Novo Banco como garantia do empréstimo que Luís Delgado assinou para efectuar a compra das revistas a Pinto Balsemão. O banco, que nasceu em 2014 para ficar com os ‘ativos bons’ do antigo BES, é um dos principais credores da Trust in News. Apesar do prolongado incumprimento por parte da empresa de media, só no ano passado é que o Novo Banco exigiu, como garantia, o penhor de sete marcas, nomeadamente, Exame Informática, Jornal de Letras, Visão Júnior, Visão História, Visão Saúde, Visão Biografia e A Nossa Prima (marca da União Europeia, já que o INPI recusou o registo como marca nacional). Mas o banco detém ainda penhor em segundo grau sobre outras marcas, incluindo a Visão, que será exercidas se o Estado permitir.
Registo do INPI que mostra penhora da marca Visão pelo Instituto de Gestão da Segurança Social.
Recorde-se que o Novo Banco arrisca perder 3,5 milhões de euros, uma verba que emprestou à Trust in News em 2018, quando ainda recebia injecções de capital com recurso a empréstimos do Estado.
Não é de estranhar a entrega das marcas como garantia. Numa empresa de media, são sobretudo os títulos o principal activo e Luís Delgado atribui um valor de quase 11 milhões de euros a esses activos intangíveis que detém. Trata-se de um valor próximo ao da venda pela Impresa do portfólio das revistas há cinco anos, que foi de 10,2 milhões de euros. E é essencial para qualquer entidade poder exercer a sua actividade com essa marca.
Contudo, no Portal da Transparência dos Media não se encontra qualquer referência ao facto de a maioria das marcas de publicações da Trust in News estarem penhoradas ou dadas como garantia a um possível futuro dono. Também não existe qualquer menção nas contas certificadas sobre os títulos penhorados, o que não se mostra compreensível por serem activos essenciais para a actividade de um grupo de media.
Questionada sobre se recebeu alguma informação sobre as penhoras por parte da Trust in News, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) indicou ao PÁGINA UM que “não dispõe dessa informação”. A ERC foi apenas “informada”, no início de Junho deste ano, “de que a empresa Trust in News, Unipessoal, Lda., deu início a um processo especial de revitalização”. Aliás, a ERC é uma das entidades credoras da Trust in News: Luís Delgado deixou de pagar taxas de regulação e supervisão de 35.088 euros.
Sobre se deveria ou não constar no Portal da Transparência a informação sobre a penhora das marcas dos títulos da Trust in News, a ERC remeteu para a legislação em vigor sobre a matéria, escusando-se a fazer mais comentários. Segundo o regulamento que estabelece as regras sobre a transparência dos media, as empresas têm de dar garantias de “independência em matéria editorial” e divulgar informação financeira, nomeadamente sobre os maiores credores, como é o caso da Segurança Social e do Fisco. Ora, o facto de existirem marcas de publicações dadas como garantia, constitui uma potencial ameaça à independência editorial.
Recorde-se que, em Julho de 2023, o PÁGINA UM revelou que a Trust in News registava uma dívida gigantesca ao Estado, a qual escondia da ERC e do Portal de Transparência dos Media. A empresa fez rectificação depois dessa notícia, mas mais uma vez enganou o regulador. Na declaração dos indicadores financeiros de 2022 – a Trust in News já está em falta sobre o ano de 2023 –, a empresa de Luís Delgado diz que a Autoridade Tributária e Aduaneira é detentora de 42% do passivo. Esse valor não estará correcto e, além disso, continuou omisso a existência de dívidas elevadíssimas á Segurança Social.
Independentemente disso, estas novas revelações confirmam que as dificuldades financeiras da empresa de media remontam ao primeiro ano da sua existência, após a compra das revistas à Impresa, o que indicia que o negócio nunca deu qualquer indicador de viabilidade financeira. E nem sequer pode ser assacada á pandemia, porquanto as dívidas começaram ainda muito antes de 2020.
Saliente-se também que, apesar de a Trust in News ter os seus títulos principais penhorados e outros dados como garantia, a Trust in News pediu, a partir de 2018, o registo junto do INPI de marcas ‘paralelas’, que estão, actualmente, livres de ónus, tais como Visão Digital; Courrier Internacional Digital; Activa Digital; Exame Informática Digital; Jornal de Letras Digital; e Visão Júnior Digital. Também é titular da marca Exame Digital, registada desde 2001, e da Exame Online, registada em 2000. Nenhuma destas marcas ‘irmãs’ dos títulos principais da empresa estão penhoradas ou dadas como garantia a grandes credores, mas subsistem dúvidas se serão de alguma utilidade sem as marcas originais.
De fora destes imbróglios, estão publicações que a Trust in News tem registadas junto da ERC, mas cujas marcas pertencem a outras entidades, como é o caso da Caras e da Caras Decoração, detidas pelo Grupo Perfil Inversora, e o Courrier Internacional.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
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Foi anunciado em 2021 com pompa e circunstância como o maior investimento estrangeiro desde a Autoeuropa, mas o ‘data center’ de Sines será sobretudo lembrado como o epicentro de um terramoto político de Novembro do ano passado que levou à queda do Governo Costa, com as réplicas ainda a sentirem-se. No terreno, as obras mantêm o seu curso, mas o primeiro edifício está já com atraso assinalável, tal como as contas da própria empresa. Somente no final do mês passado, a empresa detida por dois fundos divulgou as contas de 2022, com um ano de atraso, revelando um estilo de investimento muito peculiar: os accionistas não estão a investir o seu dinheiro – e os capitais próprios até já estão negativos, o que significa falência técnica – e optam por atrair empréstimos obrigacionistas. Até agora, tem tido sucesso, tanto assim que conseguiram duas ‘injecções’ de 45 milhões de euros nos últimos seis meses- Os bónus fiscais desta opção para accionistas e obrigacionistas são evidentes, mas torna também opaca a origem dos verdadeiros financiadores.
Em Abril de 2021, o então secretário de Estado da Internacionalização, o socialista Eurico Brilhante Dias, anunciava que um megacentro de dados global (data centre), com capitais anglo-americanos, tinha “potencial de ser o maior investimento estrangeiro captados pelo país desde a Autoeuropa”, num volume de até 3,5 mil milhões de euros.
Na assinatura do contrato entre a empresa responsável – a Start-Sines Transatlantic Renewable & Technology Campus e a AICEP – esteve então a ‘fina nata’ do Governo: o primeiro-ministro António Costa, os ministros da Economia, Pedro Siza Vieira, e das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, e ainda o secretário das Comunicações, Hugo Santos Mendes. Com início da construção em 2022, o chamado Sines 4.0, o primeiro dos cinco edifícios projectados deveria estar inaugurado no final de 2023.
Maquete da Start Campus.
Mas três anos depois, além de já ter causado indirectamente a queda do Governo socialista, no âmbito da Operação Influencer, além da Start Campus ter falhado as previsões iniciais para a conclusão da primeira fase da obra, mostra uma gestão financeira e contabilista profundamente amadora pouco condizente com pergaminhos de quem se anunciava como um dos grandes investimentos estrangeiros em Portugal nas últimas décadas. Paradigmático disso é o facto de somente no final de Junho, com um atraso de 12 meses, terem sido depositadas as contas de 2022 – e as referentes a 2023 deverão ter similar atraso.
Mas o atraso não é o pior: para uma empresa detida pelos fundos Foxford Capital (76,5%) e Pioneer Sines (23,5%) – onde se esperaria uma solidez inquebrantável na fase inicial dos investimentos, sem ainda haver receitas –, a descapitalização é a palavra de ordem, estando os investimentos a decorrer exclusivamente através do recurso à emissão de obrigações. Com efeito, de acordo com as demonstrações de resultados de 2022, acabou com um prejuízo 6,5 milhões de euros que, a juntar aos resultados transitadas (dos anos anteriores), ‘empurrou’ os capitais próprios para terreno negativo (-4,7 milhões de euros). Isto é, a empresa está em falência técnica.
A falência técnica da Start Campus – que ter-se-á mantido em 2023, porque não se registaram quaisquer aumentos de capital – será, porém, sobretudo uma estratégia financeiras, mesmo que pouco ortodoxa, de maximizar os investimentos que têm vindo da emissão de obrigações particulares, sob gestão da empresa irlandesa Adare Finance. Isto porque, apesar da aparente fragilidade do capital investido pelos dois accionistas (cerca de 4 milhões de euros, já ‘esgotado’ há muito pelos prejuízos anuais), tem havido injecção de dinheiro através de emissões obrigacionistas. Desde o ‘terramoto político’ de Novembro do ano passado, a Start Campus emitiu no antepenúltimo dia de 2023, uma emissão de 25 milhões de euros, e já este ano, no início de Abril, houve outra de 20 milhões de euros. No total, as 16 séries de obrigações emitidas, e que já totalizam cerca de 253 milhões de euros, o que revela que existem investidores (anónimos) pouco interessados em ver o polémico projecto.
Estaleiro das obras em Maio de 2023. A empresa não tem fotos nas redes sociais da actual fase.
Com o acumular de prejuízos – e até à eventualidade das receitas futuras começarem a dar lucros aos accionsitas da Start Campus -, o investimento por via de obrigacionistas (que, na verdade, podem até ser os accionistas, por estes serem fundos), mostra ser estratégia não desprovida de lógica, sendo em teoria até mais apetecível do ponto de vista financeiro a curto e longo prazo, embora com risco. Com efeito, os juros – que, no caso das obrigações da Start Campus eram, até 2022, de 10% – são sempre um rendimento anual para os obrigacionistas, enquanto os accionistas só recebem quando há lucros. Não havendo ‘falhas’ (default), os obrigacionistas recebem, passado o período, o investimento inicial de volta sem pagar impostos, ao contrário do que sucede com a saída de capitais próprios. Em teoria, os obrigacionistas não mandam numa empresa, mas se esta está com capitais próprios negativos, como sucede com a Start Campus, a realidade pode ser outra.
Sendo certo que os juros também pagam impostos, o facto de o serviço de dívida ir “empurrar” bastante os resultados para os prejuízos nos próximos anos, faz com que a Start Campus acabe por receber infindáveis bónus fiscais por via dos chamados activos por impostos diferidos. Por exemplo, sem essa regra contabilística, a Start Campus teria apresentado um prejuízo de 8,2 milhões de euros em 2022, em vez dos 6,5 milhões de euros declarados. E tudo isto encurta e muito o retorno do investimento – isto, claro, se o negócio não implodir entretanto. Por parte do Estado, investimento estrangeiro através de fundos é sempre algo arriscado, porque se mostra mais complexo conhecer quem está por detrás do investimento.
O PÁGINA UM pediu esclarecimentos e informações à Start Campus, mas ninguém se manifestou disponível para falar oficialmente. Na rede social Facebook, a empresa deixou de actualizar a informação desde o final do ano passado, embora no LinkedIn continue activa, tendo mesmo anunciado hoje a nomeação de dois administradores.
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