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  • Carta aberta de médicos acusa bastonário Miguel Guimarães de violação deontológica

    Carta aberta de médicos acusa bastonário Miguel Guimarães de violação deontológica

    Uma carta aberta de destacados médicos acusa Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, de querer deter “poderes de autoridade científica suprema ou de verdade absoluta”. O PÁGINA UM revela em primeira-mão, em exclusivo, o teor integral de uma dura missiva enviada a todos os órgãos da Ordem dos Médicos, pedindo-lhes que “avaliem os factos recentes e incentivem a que todos os médicos sejam devidamente respeitados”.


    Um conjunto de 23 médicos – entre os quais o catedrático Jorge Torgal (antigo presidente do Infarmed) e o cardiologista Jacinto Gonçalves (vice-presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia) –, e mais dois médicos dentistas, escreveram esta tarde a todos os membros dos vários órgãos da Ordem dos Médicos (OM) acusando o bastonário Miguel Guimarães de “grave violação da dignidade que se espera” do máximo representante desta classe profissional.

    Os signatários da carta, a que o PÁGINA UM teve acesso em primeira-mão – que integram parte do grupo de 91 profissionais de saúde que apelaram ao Governo para suspender a vacinação universal de crianças saudáveis –, acusam Miguel Guimarães de desrespeito e mesmo de violação do Código Deontológico, e recordam ainda que o bastonário é apenas “o representante oficial da OM, mas isso não lhe confere poderes de autoridade científica suprema ou de verdade absoluta”.

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    Em causa está sobretudo a abertura de um processo disciplinar a Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da OM, por declarações contra a vacinação contra a covid-19 de crianças saudáveis. Esta decisão da OM surge após uma queixa de 16 médicos, encabeçados por Filipe Froes – um pneumologista com ligações financeiras à Pfizer e outras farmacêuticas. Quase todos são muito próximos ou homens de confiança de Miguel Guimarães.

    Embora seja urologista, nem sequer da área da pediatria, o bastonário tem vindo a menorizar o papel do presidente do Colégio de Pediatria – que sempre falou sobre a vacinação de crianças a título pessoal – e depreciado os médicos signatários daquele abaixo-assinado. E tem argumentado ser apenas ele que deve falar “Não são duas vozes [que há na OM], é só uma, pois o doutor Jorge Amil não fala em nome da Ordem”, esclareceu já Miguel Guimarães em declarações à CNN Portugal.

    Jorge Amil foi alvo de queixa de médicos próximos do bastonário Miguel Guimarães.

    Considerando que esta situação “tem de acabar”, o bastonário anunciou já a convocação de um Conselho Nacional Executivo para discutir o assunto. Em cima da mesa, sabe o PÁGINA UM, está a destituição imediata de Jorge Amil Dias da presidência do Colégio de Pediatria, antes mesmo da conclusão do processo disciplinar, que demorará sempre meses.

    A postura de Miguel Guimarães é duramente criticada agora pelos 25 médicos que entendem que “o conhecimento científico é dinâmico”, tanto assim que, salientam, “alguns países europeus, nomeadamente os nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega) e até o Reino Unido ou a Alemanha, decidiram reapreciar o benefício da vacinação contra a covid-19 em crianças, e não estão a recomendá-la de forma universal na população infantil.”

    E, lembrando ainda que as afirmações ou convicções científicas de Miguel Guimarães “não reflectem, nem vinculam, toda a população médica”, os subscritores desta carta aberta salientam que “são conhecidos contornos de documentos técnicos de grupos especializados e estatutariamente legitimados dentro da Ordem dos Médicos [como são os casos dos Colégios de Especialidade e de Competência], que devem ser devidamente ponderados nas decisões ou recomendações oficiais da Ordem, e tendo em exclusiva consideração a bondade das recomendações do ponto de vista do interesse dos doentes.”

    Saliente-se que o PÁGINA UM solicitou, no final do ano passado, o acesso a todos os pareceres dos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos. No entanto, Miguel Guimarães não acedeu ao pedido, tendo a Comissão de Acesso ao Documentos Administrativos dado razão ao PÁGINA UM, mas em moldes dúbios, e para os quais foi pedido uma clarificação que ainda não foi concluída.


    CARTA INTEGRAL – Pode ser descarregada AQUI.

    Dig.mo Bastonário,
    Dig.mo Presidente da Assembleia de Representantes,
    Dig.mos Membros do Conselho Superior,
    Dig.mos Membros do Conselho Nacional,
    da Ordem dos Médicos

    Os signatários fazem parte dum grupo de 90 Médicos, que entenderam subscrever um apelo público para que o programa de vacinação infantil contra a Covid-19 fosse suspenso e reapreciado nas suas vantagens em comparação com os riscos incorridos.

    Esta preocupação decorre do conhecimento de potenciais riscos a curto, médio e longo prazo, da existência de efeitos adversos documentados em registos amplos de farmacovigilância como o VAERS americano, ou a EudraVigilance europeia, para além de centenas de publicações isoladas. Por outro lado, alguns países europeus, nomeadamente os nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega) e até o Reino Unido ou a Alemanha, decidiram reapreciar o benefício da vacinação contra a Covid-19 em crianças, e não estão a recomendá-la de forma universal na população infantil.

    O apelo formulado pelos médicos subscritores desse documento tem, pois, fundamentação genérica, já que o conhecimento científico é dinâmico, particularmente neste domínio, e não ofendeu as recomendações da Autoridade de Saúde, nem convidou à desobediência civil.

    Os subscritores do apelo são médicos com competência e méritos demonstrados nos respectivos domínios de atividade.

    Todavia, a forma como o Dig.mo Bastonário a eles se referiu nas suas intervenções e comunicados públicos foi depreciativa e violou os deveres de representação profissional e de ética no relacionamento e referência pública.

    A Ordem dos Médicos estabelece princípios de deontologia entre Colegas no seu Art.º 128 do Código Deontológico, que não foram devidamente respeitados pelo Dig.mo Bastonário nas suas declarações públicas ao referir-se aos subscritores. O Dig.mo Bastonário é o representante oficial da Ordem dos Médicos, mas isso não lhe confere poderes de autoridade científica suprema ou de verdade absoluta.

    As suas afirmações ou convicções científicas não refletem, nem vinculam, toda a população médica. São conhecidos contornos de documentos técnicos de grupos especializados e estatutariamente legitimados dentro da Ordem dos Médicos, que devem ser devidamente ponderados nas decisões ou recomendações oficiais da Ordem, e tendo em exclusiva consideração a bondade das recomendações do ponto de vista do interesse dos doentes.

    Cabe a outras entidades tomar a responsabilidade de decisões políticas, pelos motivos que bem entendam considerar.

    Se um grupo de Médicos, neste caso perto de uma centena, faz um apelo público à reapreciação científica duma decisão, espera-se que o seu representante máximo aja com a devida compostura, dignidade e respeito, sugerindo que esse escrutínio seja feito.

    Tratar Colegas dignos e competentes com desprimor e acusá-los sumariamente de falta de rigor, é grave violação da dignidade que se espera do Bastonário da Ordem dos Médicos.

    Por todas estas razões, os signatários apelam a todos os órgãos nacionais da Ordem dos Médicos que avaliem os factos recentes e incentivem a que todos os médicos sejam devidamente respeitados em declarações públicas em nome da Ordem que a todos deve orgulhar.

    Jacinto Gonçalves (OM nº 9882), João Gorjão Clara (OM nº 12251), Ramiro Araújo (OM nº 12477), Jorge Torgal (OM nº 14433), Fernando Torrinha (OM nº 17492), Horácio Costa (OM nº 17788), António Neves Silva (OM nº 18873), Pedro Covas (OM nº 21555), Carlos Diogo de Matos (OM nº 24630), Teresa Gomes Mota (OM nº 27477), Cristina Nogueira (OM nº 30347), Pedro Girão (OM nº 31918), Óscar Prim da Costa (OM nº 35019), Marisa Vieira (OM nº 38193), António Caiado (OM nº 38427), Cristina Nunes (OM nº 40275), Carlos Mata (OM nº 41048), Leonor Boto (43033), Tiago Marques (OM nº 44104), Ana Rita Pereira (OM nº 46566), Sofia Almeida (OM nº 51699), Tiago Araújo dos Santos Silveira (OM nº 51992), Nuno Alfaro Simões (OM nº 55243), Eugénia Matos (OM nº 55288) e Pedro Rabaço (OMD 916).

    10 de fevereiro de 2022

  • Secretismo da Direcção-Geral da Saúde vai acabar

    Secretismo da Direcção-Geral da Saúde vai acabar

    Graça Freitas tem sido acérrima defensora do secretismo na gestão da pandemia. O PÁGINA UM tem recorrido sistematicamente à Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), um diploma com mais de 25 anos, criado para mudar a postura obscurantista da Administração Pública. Um processo lento, porque a comissão que regula este diploma demora meses a emitir um parecer, que nem sequer é vinculativo. O Tribunal Administrativo pode ter de ser o passo seguinte, mas com custos e maiores adiamentos.


    A Direcção-Geral da Saúde (DGS) tem de ceder ao PÁGINA UM todos os pareceres e comunicações dos membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), criada em Novembro de 2020, determinou a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) em parecer emitido na passada quinta-feira.

    Embora este parecer da CADA não seja vinculativo – podendo o processo “subir” ao Tribunal Administrativo –, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, fica mais pressionada a mudar a sua atitude de secretismo em redor da gestão da pandemia.

    Esta decisão da CADA surge no decurso de um requerimento do PÁGINA UM de Outubro passado – ainda antes do polémico programa vacinal das crianças –, e abrange assim a necessária disponibilização da totalidade dos documentos emanadas pela CTVC, pelos seus membros e pela própria DGS.

    Primeira página do parecer da CADA.

    Significa assim que, de acordo com o pedido do PÁGINA UM – considerado legítimo pela entidade presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira –, a DGS terá de revelar tanto os pareceres da CTVC, sobre todos os assuntos, como também os ofícios enviados por esta entidade ao Ministério da Saúde, “contendo o(s) dito(s) parecer(es) e recomendações, e também todos e quaisquer documentos escritos ou sob a forma áudio ou audiovisual de especialistas consultados pela CTVC”. Também no caso de existirem actas das reuniões, estas devem ser também disponibilizadas.

    Essa consulta permitirá, deste modo, e pela primeira vez, um escrutínio transparente e independente desta comissão, que esteve sempre envolvida em polémica, sobretudo a partir do Verão passado, quando a vacinação de menores de idade foi colocada em cima da mesa.

    Graça Freitas tem sido uma adepta tenaz e incondicional do secretismo e obscurantismo do Governo em matérias relacionadas com a gestão da pandemia, recusando sistematicamente disponibilizar informação ou responder a pedidos de esclarecimento sobre matérias mais sensíveis.

    Nos últimos meses, o PÁGINA UM enviou já uma dezena de requerimentos à DGS, nunca tendo obtido qualquer resposta favorável. A única informação que o PÁGINA UM recebe da DGS são os monótonos diários dos casos, dos óbitos e dos números de vacinação contra a covid-19, de utilidade reduzida para aferir a qualidade da gestão da pandemia.

    Mesmo no recente e polémico episódio dos pareceres da CTVC sobre o programa vacinal de crianças, na primeira quinzena de Dezembro passado, Graça Freitas sempre defendeu a não-divulgação de documentos, justificando serem “internos”, e que “o habitual é não serem divulgados”. Somente após pressão política, a DGS acabaria por disponibilizar o parecer integral da CTVC, incluindo outros dois pareceres: um de um grupo de pediatras e outro de uma jurista de bioética.

    Graça Freitas, directora-geral da Saúde.

    Devido à divulgação integral daqueles documentos administrativos, o PÁGINA UM pôde então revelar, em artigo publicado em 12 de Dezembro passado, que os membros da CTVC admitiam que “os riscos, a longo prazo, associados à administração da vacina, nas idades 5-11 anos, não são ainda definitivamente conhecidos”.

    Além disso, ficou também a saber-se que os membros da CTVC, alguns dos quais distintos professores universitários, usaram relatórios não publicados e outros sem revisão científica (peer review), sendo que, em todo o caso, estes abordavam impactes em grupos etários mais velhos.

    Perante o conteúdo do parecer da CADA agora conhecido, o PÁGINA UM já solicitou à DGS para indicar hora e local para a consulta da documentação em causa.

    Caso Graça Freitas mantenha a postura de secretismo, então apenas o Tribunal Administrativo a poderá obrigar a agir de forma diferente, mais transparente e prestativa perante os cidadãos.

    Quando o PÁGINA UM obtiver toda esta documentação da CTVC, irá disponibilizá-la imediatamente no seu servidor, para acesso geral e universal, excepto se a DGS o fizer, entretanto, no seu site.

  • Ordem dos Médicos tem de ceder documentos de donativo milionário da Merck, mas acusa PÁGINA UM de comportamento criminoso

    Ordem dos Médicos tem de ceder documentos de donativo milionário da Merck, mas acusa PÁGINA UM de comportamento criminoso

    Parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos determina que Miguel Guimarães deve permitir consulta a todos os documentos relacionados com a doação de máscaras no valor de 380.000 euros por uma farmacêutica norte-americana. A Ordem dos Médicos critica os pedidos do PÁGINA UM, considerando-os que integram “a prática de crimes” contra bastonário e alguns dos médicos seus membros.


    A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) considera que a Ordem dos Médicos “deve facultar o acesso” ao protocolo entre aquela entidade, presidida por Miguel Guimarães, e a farmacêutica Merck, bem como a todos os documentos que comprovem a aplicação de um donativo em género (máscaras FFP2) no valor de 380.000 euros. Este montante é o maior registado em 2021 na Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed.

    Saliente-se que, de acordo com esta base de dados, a Ordem dos Médicos recebeu só no ano passado um total de 448.326 euros de diversas farmacêuticas, um montante jamais visto anteriormente. No período anterior à pandemia, e desde 2013, esta instituição nunca tivera mais de 75 mil euros num ano provenientes deste sector empresarial.

    O parecer da CADA – que funciona junto da Assembleia da República e é presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira –, enviado hoje e emitido na quinta-feira passada, resulta de um pedido do PÁGINA UM em 10 de Novembro à Ordem dos Médicos.

    Primeira página do parecer da CADA sobre o acesso a processo do donativo da Merck à Ordem dos Médicos no valor 380.000 euros.

    Nesse requerimento solicitava-se, além do protocolo, “documento administrativo que confirme a recepção do donativo da Merck S.A. para a Ordem dos Médicos em numerário (por transferência bancária ou cheque) ou em género (máscaras propriamente ditas), documento(s) administrativo(s) que comprove(m) a distribuição das ditas máscaras FFP2 pelas diversas entidades, e correspondente identificação das entidades e quantidades, no âmbito da campanha Todos por Quem Cuida, e ainda o “relatório de execução, ou outro qualquer documento administrativo”, sobre a execução plena desta iniciativa.

    Recorde-se que esta campanha – fomentada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e APIFARMA – pretendia angariar dinheiro, material e equipamentos de combate à pandemia para depois distribuir por “profissionais que estão na linha da frente dos consultórios, hospitais, farmácias, lares e de todos os outros locais”, de acordo com um site específico.

    Até ao momento, a campanha terá recebido 1.401.545 euros, que beneficiou 1.238 entidades, mas os promotores não as identificam (nem os montantes financeiros ou géneros recebidos que cada uma recebeu), nada dizem sobre os critérios de distribuição nem se existiram fees arrecadados pelas duas Ordens e pela Apifarma.

    A campanha Todos por Quem Cuida contou com o apoio de inúmeras figuras públicas, entre as quais o próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que prestou um depoimento audiovisual. O site ainda está activo, embora a última informação nas redes sociais (Facebook) seja de Fevereiro do ano passado, e a conta bancária de angariação já foi eliminada, conforme confirmou o PÁGINA UM.

    Apesar de o PÁGINA UM ter invocado uma legislação de “arquivo aberto” com mais de 25 anos – promotora da transparência e administração aberta da res publica –, para o processo da CADA, que viria a determinar um parecer favorável às justas pretensões do PÁGINA UM, a Ordem do Médicos teceu um feroz ataque à liberdade de imprensa.

    Com efeito, de acordo com este organismo presidido por Miguel Guimarães, o “reclamante [jornalista e director do PÁGINA UM] (…) desde há vários meses, tem vindo a adotar um comportamento suscetível de integrar a prática de crimes [não especificados] para com a Ordem dos Médicos, o Bastonário (…) e alguns dos médicos seus membros, que, no tempo e lugar próprio, serão objecto da respectiva avaliação”.

    Financiamento anual (em euros) das farmacêuticas à Ordem dos Médicos desde 2012. Fonte: Infarmed.

    A Ordem dos Médicos acusa mesmo o PÁGINA UM de ter uma “atitude de manifesta animosidade”, a qual “pretende instrumentalizar a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para atingir os seus objectivos”. Como não explicita quais são esses objectivos, presume-se que sejam o direito de informar, previstos, consagrados e defendidos pela Constituição da República Portuguesa.

    Tendo chegado a exigir prova documental do estatuto de jornalista ao director do PÁGINA UM – algo que poderia ser confirmado em segundos no site da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista –, a Ordem dos Médicos também defendeu junto da CADA que, “atento até o volume de documentos que têm sido solicitados pelo Requerente, não está obrigada (…) a permitir o acesso ao solicitado”. Saliente-se que o PÁGINA UM apenas fez mais outro requerimento à Ordem dos Médicos nos últimos quatro meses.

    No seu parecer, aprovado por unanimidade, a CADA acaba por refutar toda o argumentário da Ordem dos Médicos. Confirmando que o director do PÁGINA UM, que possui a carteira profissional 1786, jamais sequer estava obrigado a provar o seu estatuto de jornalista, a CADA defende que se está perante documentos de “livre acesso”, ou seja, qualquer cidadão os poderia requerer.

    Por outro lado, quanto aos alegados pedidos de acesso reiterados – na verdade, dois requerimentos em quatro meses –, a CADA conclui que o comportamento do PÁGINA UM não “evidencia prosseguir finalidades que não se enquadrem nas razões do regime aberto – de garantia da transparência, do controlo da atividade administrativa, da participação dos cidadãos na vida pública – ou se apresenta de tal modo desproporcionado entre a vantagem que concede ao interessado e o sacrifício que impõe à entidade requerida.” Ou seja, como seria de esperar, legitima a acção do PÁGINA UM e do jornalismo de investigação independente integrado num sistema democrático.

    António Guterres depôs em campanha que a Ordem dos Médicos quer esconder de escrutínio.

    A CADA também relembra à Ordem dos Médicos, face à ameaça da instituição presidida por Miguel Guimarães de se reservar “o direito de continuar a recusar o acesso à documentação (para além daquela que se encontra publicada no seu site)”, que essa postura não pode ser pré-anunciada, mas sim, “sempre devidamente fundamentada”, feita “na sequência da apreciação de cada caso concreto, não sendo, por conseguinte, generalizável para pedidos ainda não formulados”. Ou seja, as recusas da Ordem dos Médicos não podem ser justificadas por caprichos ou baseando-se na falácia do argumentum ad hominem.

    Aliás, sobre as queixas da Ordem dos Médicos contra o alegado mau comportamento do PÁGINA UM, a CADA defende que não lhe cabe “pronunciar-se”, por serem assuntos fora do âmbito da questão essencial: o acesso a documentos administrativos.

    Como o parecer da CADA não é vinculativo, a Ordem dos Médicos tem agora um prazo de 10 dias para comunicar ao PÁGINA UM “a sua posição final fundamentada”. Em caso de manter a recusa, somente através de uma acção no Tribunal Administrativo o bastonário da Ordem dos Médicos de um país democrático poderá ser mesmo obrigado a abrir as portas à transparência e escrutínio independente. Algo que o PÁGINA UM, se necessário for, fará.

  • Opinião sim, insultos não: filho de secretária de Estado das Comunidades condenado a pagar 15 mil euros a Pedro Choy

    Opinião sim, insultos não: filho de secretária de Estado das Comunidades condenado a pagar 15 mil euros a Pedro Choy

    Tribunal diz que não vale tudo para criticar terapias alternativas – que até são praticadas em hospitais públicos – e condenou o médico João Júlio Cerqueira por difamar Pedro Choy em 18 publicações nas redes sociais durante quase dois anos. O autor do blogue Scimed defendia que Choy deveria “encaixar” as críticas, mas não está disposto agora a “encaixar” a condenação e vai recorrer da sentença. Se transitar em julgado, Cerqueira terá de pagar uma indemnização de 15.000 euros e mais 3.000 euros de multa.


    Por difamação agravada – e não por qualquer delito de opinião sobre medicinas alternativas –, o médico João Júlio Cerqueira foi esta manhã condenado em primeira instância a pagar 15.000 euros a Pedro Choy, um dos rostos mais conhecidos da medicina tradicional chinesa em Portugal.

    Em causa esteve em conjunto de 18 publicações e republicações deste médico da região do Porto no seu blog e na sua página do Facebook denominados Scimed – e que se auto-intitula “Ciência Baseada na Evidência” – e no seguimento de um escaldante programa Prós & Contras na RTP1 em 1 de Abril de 2019, em que esteve em representação da Ordem dos Médicos. Além de criticar as práticas seguidas por Pedro Choy, Cerqueira adornou-o com epítetos como “desonesto”, “burro”, “ignorante” “vigarista”, “Chop Choy” e “palhaço”, classificando-o ainda de “vendedor de carros em segunda mão” e “costureiro de pele”.

    Pedro Choy e João Júlio Cerqueira debateram ideias no Prós & Contras de 1 de Abril de 2019. A partir daí, o médico montou uma campanha de difamação cerrada contra as práticas do acupunctor português de mãe chinesa.

    A juíza do processo 7660/19.7T9LSB também aplicou a João Júlio Cerqueira uma multa de 300 dias à taxa diária de 10 euros, perfazendo 3.000 euros. A magistrada avisou que, se o processo transitar em julgado e não for feito o pagamento ou solicitado troca por trabalho comunitário, a multa “é passível de ser convertida em pena de prisão […] cumprida em estabelecimento prisional”.

    Apesar de defendido por Francisco Teixeira da Mota – um dos mais prestigiados advogados de direitos humanos e patrono de Rui Pinto, fundador do Football Leaks – e ter contado com testemunhas de relevo (como Carlos Fiolhais, David Marçal e Nuno Lobo Antunes), a juíza considerou que João Júlio Cerqueira não esteve sentado no banco dos réus por discordar das práticas da medicina chinesa. Foi sim pelas expressões reiteradamente usadas ao longo de dois anos.

    Nas sessões deste julgamento, iniciado em Setembro do ano passado, João Júlio Cerqueira e as suas testemunhas abonatórias sempre tentaram justificar as expressões, agora consideradas difamatórias pelo tribunal, como sendo um alerta para a suposta perigosidade das terapias alternativas na saúde dos pacientes.

    No seu blog e página de Facebook, João Júlio Cerqueira mimoseou Choy com várias expressões consideradas agora difamatórias pelo tribunal.

    Porém, a juíza clarificou, durante a sentença, que nunca esteve em julgamento comparar a eficácia entre a medicina convencional e as terapias alternativas, embora tenha relembrado que a acupuntura, mesmo podendo ser criticável, é uma competência acreditada na Ordem dos Médicos e usada em hospitais públicos.

    Saliente-se, aliás, que a mãe de João Júlio Cerqueira, a também médica Berta Nunes – actual secretária de Estado das Comunidades e ex-presidente da autarquia de Alfândega da Fé – é uma reputada especialista em Antropologia Médica, tendo lecionado esta disciplina na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A sua tese de doutoramento, publicada em livro sob o título “O saber médico do povo”, abrange “a cultura e as práticas do cuidado do corpo e da saúde de uma população rural” transmontana, demonstrando a “importância do conhecimento e valorização dos saberes locais pelo saber oficial”, ou seja, pela medicina convencional. Berta Nunes já participou mesmo no conhecido Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, no concelho de Montalegre.

    A juíza também não se mostrou sensível aos apelos das testemunhas de Cerqueira de ele usar certas expressões por ser “um homem do Norte”, defendendo que tal suposto estatuto nunca poderia legitimar ofensas. Aliás, a magistrada demonstrou que o médico nortenho tinha consciência de as suas palavras poderem resultar em processos judiciais, razão pela qual recorreu ao Patreon para obter financiamento, junto dos seus apoiantes, para sua defesa em casos de litígio. Saliente-se que a sua página no Facebook tem, neste momento, cerca de 79 mil seguidores.

    João Júlio Cerqueira reagiu já à condenação na sua página do Facebook.

    Pedro Choy manifestou ao PÁGINA UM alívio e satisfação pelo veredicto, embora não total, alegando que João Júlio Cerqueira teve também intenção de “achincalhar a medicina tradicional chinesa, ainda mais deturpando afirmações minhas”. Choy diz que, “tendo em conta aquilo que tem sido a interpretação dos tribunais para casos deste género, a sentença pode ser vista como uma condenação pesada”.

    Embora se queixe do “sofrimento, reclusão, vergonha e noites sem dormir” que todo este processo lhe causou, Pedro Choy tem esperanças de que o médico nortenho “reveja a sua forma de estar no mundo e aprenda a expressar as suas opiniões sem ofender as pessoas”.

    O estilo provocatório de João Júlio Cerqueira aparenta, contudo, manter-se incólume mesmo após esta sentença. Nas redes sociais, o médico anunciou esta manhã que “esta página [Scimed] pertence, a partir de hoje, a um criminoso (ainda passível de recurso)… Faz cuidado!”

    Em sede de julgamento, João Júlio Cerqueira defendeu que Pedro Choy deveria ter tido “poder de encaixe” perante as suas frases, mas aparentemente não quer “encaixar” a sentença. O seu advogado Teixeira da Mota já anunciou que vai recorrer da condenação para o Tribunal da Relação.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira

  • Conselho Superior da Magistratura exige justificação absurda ao Página Um para ponderar autorização de consulta a documentos públicos

    Conselho Superior da Magistratura exige justificação absurda ao Página Um para ponderar autorização de consulta a documentos públicos

    Um longo parecer do Conselho Superior da Magistratura, advoga que os jornalistas têm de justificar qual a finalidade dos documentos que desejam consultar para que se pondere uma autorização. A autora desta temerária tese num país democrático é filha de Vítor Manuel Wengorovius, que durante mais de duas décadas defendeu a imprensa como advogado do Sindicato dos Jornalistas e foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.


    Em 27 de Fevereiro de 2020, a juíza Ana Sofia Wengorovius – adjunta do Conselho Superior de Magistratura (CSM) – considerou, em apenas três páginas, que esta entidade nem sequer deveria pronunciar-se sobre um projecto de lei para a regulamentação da actividade de lobbying e para a criação de registo de transparência e de mecanismo de pegada legislativa.

    Menos de dois anos depois, a mesma juíza – destacada como Encarregada da Protecção de Dados do CSM – deu-se ao trabalho de elaborar um extenso parecer de sete páginas para exigir que o PÁGINA UM justificasse “a finalidade do acesso” a documentos administrativos relacionados com a Operação Marquês. Ou seja, que justificasse aquilo que é o direito e o dever de um jornalista: informar sem amarras num país democrático, sem censura nem condicionalismos. Como argumento, a juíza expôs seis diplomas legais, a Constituição, um acórdão judicial e ainda um regulamento e uma directiva europeia.

    Conselho Superior da Magistratura continua a lutar para não ceder documentos administrativos, exigindo que jornalistas expliquem os motivos para a consulta.

    Em causa estava somente um habitual pedido de um jornalista para consulta de documentos administrativos, neste caso o processo de averiguação sumária nº 2018-346/AV. Em concreto, trata-se do inquérito do CSM relativo aos procedimentos que nortearam a distribuição do processo da Operação Marquês em 2014 – então entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre –, que o ex-primeiro-ministro José Sócrates quis ver no ano passado. Numa primeira fase, os conselheiros do CSM recusaram essa pretensão, alegando “segredo de justiça”, mas Sócrates apresentou queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que lhe veio a dar razão em 13 de Outubro do ano passado, como o PÁGINA UM deu em primeira-mão.

    Considerando que “um documento administrativo [a averiguação sumária nº 2018-346/AV], ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”, a CADA – presidida pelo juiz desembargador Alberto Oliveira – recomendou que o CSM entregasse ao antigo governante uma cópia daquele inquérito à Operação Marquês, o que terá sucedido no mês passado.

    Perante o parecer da CADA, o PÁGINA UM decidiu também solicitar, no passado dia 2 de Novembro, o inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês – ou seja, os mesmos documentos concedidos a José Sócrates –, bem como o “acesso aos documentos administrativos elaborados na [sua] sequência”.
    Após uma troca de e-mails, em que o PÁGINA UM foi logo convidado a “esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha” dos documentos solicitados, o CSM acabou por elaborar um parecer, assinado por Ana Sofia Wengorovius.

    Ana Sofia Wengovorius, juíza de direito e adjunta do CSM (foto do site da CSM)

    Esta juíza – que de acordo com uma nota curricular, em Diário da República, concluiu a licenciatura em Direito na Universidade Lusíada (privada) em 1994 com 13 valores – defende que, mesmo após o arquivamento de um inquérito – que não teve qualquer sanção –, este é “confidencial”, porque se deve ter “em vista assegurar a defesa dos direitos fundamentais de personalidade como o direito ao bom nome e à reputação”, invocando a Constituição.

    Nem sequer justificando como o acesso a documentos administrativos por parte de um jornalista poderia violar ou afectar “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” – conforme estabelece o tal artigo da Constituição –, Ana Sofia Wengorovius salienta ainda que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.

    Ora, o PÁGINA UM invocou, implicita (porque o pedido foi feito por um jornalista) e explicitamente (repetindo, por palavras, quais as funções de um jornalista). Com efeito, não apenas a Constituição Portuguesa, a Lei da Imprensa e o Estatuto dos Jornalistas concedem direitos inalienáveis de acesso livre à informação para um jornalista como também a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos determina que “todos, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo.”

    Mesmo no caso de documentos com dados nominativos – como sejam moradas, e-mails, números de cartão de cidadão ou fiscal, mas não abrangendo o nome –, a lei concede legitimidade a um jornalista, uma vez que este “demonstra ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”. Mas mesmo que assim não fosse, a legislação determina que haja “comunicação parcial sempre que seja possível expurgar a informação relativa à matéria reservada.” Ou seja, no máximo, se o inquérito tivesse, por exemplo, o número de telefone pessoal de alguém, bastaria “apagar” essa informação e libertar o acesso.

    Primeira página do parecer do CSM enviado ao PÁGINA UM.

    No seu parecer, Ana Sofia Wengorovius faz também interpretações pouco ortodoxas do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD). Com efeito, a juíza chega a invocar como justificativa da não-cedência sem condições de documentos administrativos a um jornalista, um artigo da lei de execução do RGPD que estipula exactamente o contrário daquilo que ela defende.

    De facto, esse normativo destaca sim que “a proteção de dados pessoais (…) não prejudica o exercício da liberdade de expressão, informação e imprensa, incluindo o tratamento de dados para fins jornalísticos e para fins de expressão académica, artística ou literária”. Ou seja, o direito de informação está acima da protecção de dados pessoais, mesmo se existem depois normas que devam ser cumpridas, mas que um jornalista que cumpra princípios deontológicos sabe bem.

    De facto, as normas do RGPD apenas consubstanciam aquilo que o Código Deontológico dos Jornalistas já prevê, como por exemplo, o respeito, quando estejam em causa dados pessoais, pelo “princípio da dignidade humana previsto na Constituição da República Portuguesa, bem como os direitos de personalidade nela e na legislação nacional consagrada”, ou ainda as restrições de divulgação de “moradas e contactos, à excepção daqueles que sejam de conhecimento generalizado”.

    Porém, esses aspectos nem sequer estarão em causa nos documentos solicitados pelo PÁGINA UM que, enfim, se referem a um simples inquérito do CSM, e já arquivado e sem sanções, no decurso da Operação Marquês.

    Certo é que, apesar de uma reclamação do PÁGINA UM a considerar ser absurdo explicar, numa democracia, as razões de um jornalista – que se identifica como tal – para consultar documentos administrativos, Ana Sofia Wengorovius manteve a sua posição num segundo parecer, mais curto, assinado em 28 de Dezembro passado.

    A juíza – numa longa frase sem vírgulas – diz que “em face da resposta apresentada explicito que o requerente não atentou nos fundamentos do parecer querendo transpor o seu pedido para o campo dos documentos administrativos em geral sem curar na especificidade dos documentos constantes do procedimento especial de inquérito e escudando-se num parecer emitido pela CADA numa situação em que o requerente era parte nos autos o que não sucede no caso pois ainda que possa invocar as prorrogativas de ser jornalista não deixa de ser um terceiro em relação ao processo.” (sic)

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    Saliente-se que a Lei do Acessos aos Documentos Administrativos abrange todos os documentos administrativos independentemente da entidade pública, não discriminando qualquer tipo. Apenas os documentos classificados como “segredo de Estado ou por outros regimes legais relativos à informação classificada”, com legislação própria e procedimentos especiais – têm restrições de acesso, o que não é o caso de um simples inquérito administrativo de uma entidade como o CSM.

    Nesse seu segundo parecer, Ana Sofia Wengorovius mostra mesmo pretender condicionar o livre exercício da actividade dos jornalistas, ao defender que “o acesso e/ou recolha solicitada só é lícito se forem recolhidos apenas os dados estritamente necessários para uma finalidade reconhecida por Lei que o legitima, pelo que só conhecendo a finalidade se pode fazer a ponderação que a lei impõe”.

    Ora, como o PÁGINA UM se recusa a informar a juíza ou o CSM sobre se vai, ou como vai, fazer uma notícia com base em documentos que ainda nem sequer consultou, seguiu uma queixa para a CADA, sobretudo para defesa da liberdade de imprensa e contra obstáculos ao seu exercício pleno.

    Ana Sofia Wengorovius é filha de Vítor Manuel Wengorovius – fundador, com Jorge Sampaio, do Movimento de Esquerda Socialista (MES) –, que foi advogado do Sindicato dos Jornalistas durante mais de duas décadas, entre 1970 e 1991, tendo falecido em 2005. Considerado um homem “generoso, solidário, tribuno empolgado”, Wengorovius foi agraciado, em 1998, com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.

  • Relatora da Ordem dos Médicos que quer condenar médica por ‘negacionismo’ tem ligações a farmacêuticas

    Relatora da Ordem dos Médicos que quer condenar médica por ‘negacionismo’ tem ligações a farmacêuticas

    A ex-presidente do INFARMED, a pediatra Maria do Céu Machado, tem sido o rosto da acusação da líder do extinto movimento Médicos pela Verdade, Margarida Oliveira. Por alegadas violações deontológicas quer aplicar uma suspensão de três meses à sua colega. Porém, enquanto decorria o processo disciplinar, a mulher do falecido neurologista João Lobo Antunes deu consultadoria pontual à Janssen, uma das produtoras das vacinas contra a covid-19. E foi também júri de um prémio patrocinado por uma farmacêutica, ao lado do bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e de Pedro Rebelo de Sousa, irmão do Presidente da República.


    A relatora do processo disciplinar da Ordem dos Médicos que castigou a anestesiologista Margarida Oliveira – acusada de “negacionismo” por integrar o extinto movimento “Médicos pela Verdade” e de violar uma dezena de normas do Regulamento de Deontologia desta profissão – tem ligações à indústria farmacêutica e, no ano passado, chegou a prestar serviços de consultadoria à Janssen Cilag, uma das produtoras de vacinas contra a covid-19. O acórdão final, datado de 7 de Dezembro do ano passado, foi divulgado no final da passada semana, podendo ser consultado aqui.

    De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Maria do Céu Machado – que foi casada com o cirurgião João Lobo Antunes, falecido em 2016 – tem colaborado pontualmente com empresas farmacêuticas, após a sua saída do INFARMED, a que presidiu entre 2017 e 2019.

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    Pela consulta do Portal da Transparência e Publicidade desta autoridade nacional que regula os medicamentos, a pediatra Maria do Céu Machado – também professora jubilada da Faculdade de Medicina de Lisboa e com um vastíssimo currículo académico e institucional – apresenta em 2021 um registo de recebimento por “serviços de consultoria” não especificados à Janssen, no valor de 700 euros, com duração e âmbito incertos.

    Também recebeu, naquele ano, montantes de mais três farmacêuticas: Lilly Portugal (600 euros), Ferrer Portugal (130 euros para participação no Congresso Português de Cardiologia) e ainda 1.550 euros pagos pela Boehringer Ingelheim por ser membro do júri no “BI Award for Innovation in Healthcare”.

    Note-se que estes montantes, constante numa base de dados do INFARMED, podem não reflectir todos as vantagens económicas que envolvem médicos e farmacêuticas, uma vez que basta ser usada uma empresa para que seja difícil rastrear o beneficiário final.

    Aliás, no caso específico dos montantes concedidos pela Boehringer Ingelheim para o júri daquele prémio, apenas Maria do Céu Machado e o psiquiatra Júlio Machado Vaz registaram um valor no Portal da Transparência e Publicidade. Sobre outros pesos-pesados da Medicina e influencers da política de Saúde do país que também foram membros do júri deste prémio, nada consta. São os casos, entre outros, de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem do Médicos; Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares; Ana Paula Martins, bastonária da Ordem dos Farmacêuticos; Carlos Robalo Cordeiro, catedrático de pneumologia da Faculdade de Medicina de Coimbra; David Marçal, comunicador de Ciência da Universidade Nova de Lisboa; Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde; e ainda Pedro Rebelo de Sousa, irmão do actual Presidente da República.

    Maria do Céu Machado consta da lista de membros do júri de um prémio da Boehringer Ingelheim, ao lado do bastonário da Ordem dos Médicos. Recebeu 1.500 euros pela tarefa.

    Estas ligações não terão sido consideradas incompatíveis pela própria Maria do Céu Machado, que liderou um grupo de 17 membros do Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Numa primeira decisão, em Fevereiro do ano passado, pretendeu suspender Margarida Oliveira por um período de seis meses. Agora, por recurso, estipula uma pena disciplinar de três meses.

    Em causa, neste polémico processo, iniciado em finais de 2020 após três denúncias – entre as quais a de Pedro Abreu, ex-presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior –, estão, segundo a relatora Maria do Céu Machado, “conversas na rede social Telegram” em que Margarida Oliveira terá aconselhado “terceiros nas formas de eliminação de ‘restos virais’ dos locais onde é feita a recolha das amostras para testagem (PCR) ao vírus SARS-CoV-2”, e a sua participação em Janeiro do ano passado “numa manifestação, junto da Assembleia da República, onde proferiu diversas declarações contra a DGS [Direcção-Geral da Saúde], a Ordem dos Médicos, os testes RT-PCR e as Vacinas”.

    Margarida Oliveira defendeu, segundo os autos, que “a dita ‘receita’ para a lavagem das fossas nasais e da orofaringe (…) é na sua essência uma recomendação de higiene e de hábitos de vida saudável a que qualquer médico está obrigado”. E, apesar de ser acusada de “negacionista”, sempre assumiu que “há efetivamente um surto epidémico associado a um agente virológico”, embora contestando o conceito de pandemia aplicado à covid-19 e muitas das medidas da DGS. Na mesma linha estiveram os médicos que testemunharam a favor desta anestesiologista, entre os quais Fernando Nobre, também ele alvo de um processo disciplinar.

    Margarida Oliveira, anestesiologista de uma clínica privada, tem a Ordem dos Médicos “à perna” desde o final de 2020. Processo deverá arrastar-se até aos tribunais.

    O fundador da AMI, que tem sido uma das poucas vozes críticas à gestão da pandemia, comparou mesmo o processo contra Margarida Oliveira aos processos inquisitoriais dos séculos passados: “No julgamento da inquisição, ele [Galileu] contestava aquela ideia peregrina que tudo girava à volta da Terra e para não ir parar à fogueira ele até, enfim, deu o dito por não dito, perjurou-se, não obstante à saída disse, no entanto, a Terra gira à volta do Sol”, afirmou Fernando Nobre, transcrito nos autos, defendendo o arquivamento por estar apenas em causa um delito de opinião.

    Os testemunhos dos defensores, ouvidos quase como pro forma, acabaram em saco roto. Maria do Céu Machado entendeu “que tem a médica arguida liberdade para ter as suas próprias convicções, todavia tais convicções devem estar associadas a um dever de cuidado no aconselhamento médico que faz à comunidade”. A pediatra defendeu também, por escrito, que ao médico não cabe proferir declarações “sobre a credibilidade em tratamentos, vacinas e testes numa situação em que impera o princípio da precaução em saúde pública.”

    Porém, Maria do Céu Machado entra aqui em contradição com o que praticou durante o ano passado, pois prestou, por diversas vezes, declarações sobre a credibilidade das vacinas em crianças, mas nesses casos sempre de forma muito favorável. Por exemplo, em Agosto passado, defendeu no Público “a vacinação de jovens saudáveis a partir dos 12 anos só com uma dose”. E ainda mais falou, no mês passado, em entrevista ao Diário de Notícias, quando estalou a polémica sobre o parecer da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 sobre as crianças, com alguns pediatras a aconselharem prudência ou a desaconselharem mesmo o avanço do programa vacinal para esta faixa etária. Recorde-se que, conforme revelou recentemente o PÁGINA UM, ainda não se registou ainda qualquer morte por covid-19 em crianças portuguesas e a taxa de internamento tem sido extremamente baixa.

    No acórdão do processo disciplinar a que o PÁGINA UM teve acesso, Maria do Céu Machado advoga mesmo a subjugação dos médicos, em geral, e de Margarida Oliveira, em especial, às posições e decisões governamentais. Na página 8 deste acórdão advoga “o dever especial de cuidado a que a médica [visada no processo] está adstrita, bem como o dever de garante da saúde em geral, norteada pelas orientações emanadas pela DGS, [que assim] deveriam tê-la impedido de expor as suas exaltações e preocupações em público e de dar recomendações públicas a terceiros, contrárias ao veiculado pelos órgãos de soberania portugueses.”

    E a antiga presidente do INFARMED ainda vai mais longe no veredicto, ao afirmar, de forma dogmática, que “a médica arguida, ao agir da forma como agiu actuou de forma leviana e infundada, utilizando tanto uma rede social, como o espaço público, para transmitir mensagens de inquietação pública, instigando a um clima de tensão e colocando em causa, tanto a DGS, como os seus colegas médicos, bem como, em última análise, esta ordem profissional.” No total, a relatora apontou a violação de uma dezena de normas do Regulamento de Deontologia Médica.

    O acórdão deste processo da Ordem dos Médicos – que curiosamente Maria do Céu Machado assina em nome de mais três colegas – ainda é passível de apelo para o Conselho Superior da Ordem dos Médicos, e posteriormente, se a defesa assim entender, para os tribunais. Ou seja, a anestesiologista Margarida Oliveira ainda não cumpriu nem cumprirá qualquer sanção enquanto a decisão sancionatória não transitar em julgado, algo que pode demorar anos.

  • Sócrates é o primeiro antigo primeiro ministro a recorrer a entidade reguladora com 26 anos

    Sócrates é o primeiro antigo primeiro ministro a recorrer a entidade reguladora com 26 anos

    Lei para obrigar Administração Pública a ser mais transparente foi aprovada em 1993, mas perante a expectável dificuldade dos cidadãos, a Assembleia da República criou uma comissão reguladora presidida por um juiz. Mais de um quarto de século depois, e com o crescimento das queixas, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos continua limitada na sua acção, porque os seus pareceres não são vinculativo. Mas assim continua a ser uma opção derradeiras antes do recurso aos tribunais. Sócrates aproveitou.


    O facto inédito de um antigo primeiro-ministro recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) – que acabou por lhe conceder razão – evidencia como muitas entidades públicas, onde se insere o Conselho Superior de Magistratura, ainda se mantêm relutantes em ceder informação e documentos aos cidadãos. Aliás, o PÁGINA UM já apresentou à CADA, em menos de um mês, cinco queixas sobre a recusa de acesso a documentos administrativos por parte da Direcção-Geral da Saúde (3), Ordem dos Médicos e Comissão Nacional de Eleições. E, curiosamente, para aceder ao nome do requerente do processo de José Sócrates contra o CSM, o PÁGINA UM viu-se mesmo obrigado a apresentar um requerimento ao próprio presidente da CADA, uma vez que, na primeira consulta do processo, o nome do antigo primeiro-ministro estava “anonimizado” – como se pode confirmar no próprio site daquela entidade (vd. aqui).

    Desde 1993, com a aprovação da primeira Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), os cidadãos passaram a poder requerer, sem necessidade de justificação de interesse, o acesso a documentos administrativos, excepto em casos particulares de saúde ou de matérias classificadas. Mesmo no caso de documentos nominativos, embora com algumas restrições, o acesso passou a ser possível desde que fosse evidente o interesse directo e pessoal. Por esse motivo, a LADA tem sido uma ferramenta jurídica muito usada, por exemplo, por jornalistas ou associações ambientalistas.

    Para evitar o triste fado de boas intenções legais, sem efeitos práticos, a LADA estabeleceu a criação da CADA, com funções de regulação no acesso à informação. Assim, no caso de uma entidade pública indeferir expressa ou tacitamente um requerimento ou limitar o exercício do direito de acesso, os cidadãos passaram a poder dirigir reclamações à CADA, que, depois de auscultação à entidade requerida e uma análise jurídica, emitem um parecer. De igual modo, além de outras incumbências que foram variando ao longo do tempo – uma das quais relativas à emissão de parecer obrigatório para acesso a documentos clínicos –, a CADA tem a incumbência de emitir pareceres perante dúvidas solicitadas pelas entidades requeridas.

    No entanto, constituindo uma das principais falhas da LADA – que nunca foi melhorada ao fim de mais de duas décadas –, os pareceres da CADA não são vinculativos. Ou seja, mesmo que um seu parecer conceda razão ao requerente, a entidade requerida pode manter a recusa, não havendo nenhuma responsabilização por esse acto. Nessas circunstâncias, os cidadãos apenas têm como recurso a instauração de um processo nos tribunais administrativos. Aliás, em determinadas situações, a intervenção da CADA pode até ser um empecilho burocrático, pois um cidadão terá, em qualquer circunstância de apresentar primeira uma queixa à CADA e aguardar o seu parecer. Caso não siga estes procedimentos, o Tribunal Administrativo recusará a petição.

    O primeiro parecer da CADA surgiu em 21 de Fevereiro de 1995, relativo a uma queixa de um antigo funcionário do Centro Escolar de São Bernardino, instituição na dependência da então Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores, sob alçada do Ministério da Justiça. A leitura do parecer da CADA sobre este processo – que se referia ao simples pedido de acesso desse ex-funcionário aos «Livros de Ponto dos anos de 1987 a 1991, na parte que lhe respeita[va]», bem como às «Folhas de Remuneração, que lhe respeit[ass]em» – mostra bem a forma como então a Administração Pública geria este tipo de pedidos por parte dos cidadãos: não respondia.

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    E assim, analisado o indeferimento tácito e o enquadramento legal, a CADA deu provimento à reclamação, «reconhecendo-lhe o direito de consulta e reprodução dos documentos nominativos que haviam sido requeridos». Nesse ano de 1995 seriam, no entanto, registados na CADA apenas 72 processos, sendo concluídos 51 e emitidos 38 pareceres. No ano seguinte, registou-se um ligeiro aumento nas queixas, mensurável pelo número de processos iniciados, mas duplicando a emissão de pareceres.
    A relação entre o número de pareceres e de processos iniciados, embora podendo respeitar a questões diferentes, situava-se nos 80%, o que indicia que, neste período inicial, os níveis de conflitualidade, invisíveis antes da LADA, mostravam-se elevados entre a Administração Pública e os cidadãos.

    Esses níveis manter-se-ia altos, acima dos 75% até ao ano 2000, baixando a partir daí, mas aumentariam os processos (queixas) para números anuais geralmente entre os 500 e os 800 no período de 2001 a 2013, subindo depois para valores acima dos 800 processos entre os anos de 2014 e 2018. Este aumento de queixas implicou, embora com relação pareceres/processos menor do que nos primeiros anos, também um maior número de pareceres emitidos pela CADA. Com efeito, se apenas em 1998 a CADA ultrapassou a centena de pareceres, com um total de 177, nos anos seguintes o número avolumou-se, atingindo mais de quatro centenas de pareceres (414) em 2010. Em 2018, e fruto do reforço de meios administrativos e jurídicos, foram emitidos 556 pareceres, o valor mais elevado de sempre. No ano passado, em consequência da pandemia, foram apenas emitidos 337 pareceres, enquanto este ano foram concluídos somente 330, embora faltando ainda duas reuniões plenárias até ao final do ano.

    Um dos motivos para a discrepância entre processos iniciados e pareceres emitidos deve-se, em certa medida, ao efeito dissuasor de uma queixa junto da CADA, uma vez que esta faz um contacto formal à entidade requerida, de resposta obrigatória pelo responsável, o que, em muitos casos, impele a entidade requerida a satisfazer o pedido formulado pelo cidadão. Na verdade, por regra, a CADA apenas emite um parecer se a entidade, argumentando ou não na sua resposta, mantiver a recusa no fornecimento dos documentos solicitados.

    Estes números podem ter duas leituras. Por um lado, mostram que os cidadãos se mostram mais activos e conhecedores dos seus direitos perante a Administração Pública, que inclui entidades com funções delegadas. Porém, também revela que, ao fim de quase meio século de democracia, as entidades públicas – dinamizadas e lideradas por cidadãos – ainda não demonstram, em muitos casos, a transparência e a abertura que se esperaria na cedência de informação vital para as pessoas e a vida em sociedade.


  • Conselho Superior de Magistratura ‘obrigado’ a mostrar inquérito a José Sócrates

    Conselho Superior de Magistratura ‘obrigado’ a mostrar inquérito a José Sócrates

    𝐸𝑛𝑡𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑐𝑟𝑖a𝑑𝑎 𝑒𝑚 1993 𝑝𝑎𝑟𝑎 𝑟𝑒𝑔𝑢𝑙𝑎𝑟 𝑒 𝑎𝑝𝑜𝑖𝑎𝑟 𝑜 𝑎𝑐𝑒𝑠𝑠𝑜 𝑎𝑜𝑠 𝑑𝑜𝑐𝑢𝑚𝑒𝑛𝑡𝑜𝑠 𝑎𝑑𝑚𝑖𝑛𝑖𝑠𝑡𝑟𝑎𝑡𝑖𝑣𝑜𝑠, 𝑓𝑜𝑖 𝑢𝑠𝑎𝑑𝑎 𝑝𝑒𝑙𝑎 𝑝𝑟𝑖𝑚𝑒𝑖𝑟𝑎 𝑣𝑒𝑧 𝑝𝑜𝑟 𝑢𝑚 𝑎𝑛𝑡𝑖𝑔𝑜 𝑝𝑟𝑖𝑚𝑒𝑖𝑟𝑜-𝑚𝑖𝑛𝑖𝑠𝑡𝑟𝑜, 𝑎𝑝𝑜́𝑠 𝑢𝑚𝑎 𝑟𝑒𝑐𝑢𝑠𝑎 𝑖𝑛𝑖𝑐𝑖𝑎𝑙 𝑑𝑜 𝐶𝑜𝑛𝑠𝑒𝑙ℎ𝑜 𝑆𝑢𝑝𝑒𝑟𝑖𝑜𝑟 𝑑𝑒 𝑀𝑎𝑔𝑖𝑠𝑡𝑟𝑎𝑡𝑢𝑟𝑎 𝑒𝑚 𝑐𝑒𝑑𝑒𝑟 𝑐𝑜́𝑝𝑖𝑎 𝑑𝑒 𝑢𝑚 𝑟𝑒𝑙𝑎𝑡𝑜́𝑟𝑖𝑜 𝑖𝑛𝑠𝑝𝑒𝑐𝑡𝑖𝑣𝑜 𝑟𝑒𝑙𝑎𝑐𝑖𝑜𝑛𝑎𝑑𝑜 𝑐𝑜𝑚 𝑎 𝑒𝑠𝑐𝑜𝑙ℎ𝑎 𝑖𝑛𝑖𝑐𝑖𝑎𝑙 𝑑𝑜 𝑗𝑢𝑖𝑧 𝐶𝑎𝑟𝑙𝑜𝑠 𝐴𝑙𝑒𝑥𝑎𝑛𝑑𝑟𝑒. 𝐶𝑜𝑚 𝑜 𝑎𝑐𝑒𝑠𝑠𝑜 𝑙𝑖𝑣𝑟𝑒 𝑎𝑜 𝑟𝑒𝑙𝑎𝑡𝑜́𝑟𝑖𝑜, 𝐽𝑜𝑠𝑒́ 𝑆𝑜́𝑐𝑟𝑎𝑡𝑒𝑠 𝑎𝑏𝑟𝑖𝑟𝑎́ 𝑛𝑜𝑣𝑎 𝑓𝑟𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑑𝑒 𝑏𝑎𝑡𝑎𝑙ℎ𝑎 𝑗𝑢𝑟𝑖́𝑑𝑖𝑐𝑎 𝑛𝑎 𝑖𝑛𝑓𝑖𝑛𝑑𝑎́𝑣𝑒𝑙 𝑂𝑝𝑒𝑟𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑀𝑎𝑟𝑞𝑢𝑒̂𝑠.


    O Conselho Superior de Magistratura (CSM) vai conceder a José Sócrates o acesso ao relatório do inquérito à distribuição do processo da Operação Marquês em 2014, algo que já recusara por duas vezes este ano, invocando então que aqueles documentos estariam sob “segredo de justiça”, e portanto inacessíveis.

    Este volte-face vem no seguimento de um parecer solicitado em Agosto último pelo antigo primeiro-ministro socialista à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) – órgão independente, que funciona junto da Assembleia da República, e é presidida pelo juiz conselheiro Alberto Andrade de Oliveira.

    No parecer da CADA – discretamente publicado em meados de Outubro passado no respectivo site, sem identificar José Sócrates como requerente – considera-se que “um documento administrativo, ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”.

    Tendo como relator Tiago Fidalgo de Freitas, docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o referido parecer da CADA, aprovado por unanimidade, releva que mesmo se o inquérito conduzido pelo CSM se encontra agora nos autos da Operação Marquês, a autoridade judiciária jamais revelou “necessidade de segredo no respeitante à documentação ora solicitada” por José Sócrates, instando assim o CSM a facultar-lhe o acesso.

    Embora os pareceres da CADA não sejam vinculativos – ou seja, não obrigam entidades públicas a cumprirem as determinações –, já existe a garantia de o relatório ficar acessível, mas Sócrates ainda vai ter de aguardar mais algumas semanas, pelo menos.

    O CSM adiantou ao PÁGINA UM que no passado dia 9 de Novembro foi já decidido, em plenário, “dar cumprimento ao parecer da CADA (…), no sentido de disponibilizar a José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa um conjunto de documentos requeridos pelo mesmo”. No entanto, tal ainda não ocorreu porque, ainda segundo o CSM, “não se tratando de procedimento urgente ou de deliberação que careça de ser imediatamente executada por perder a sua utilidade prática, (…) a mencionada deliberação será objeto de cumprimento” somente na próxima sessão mensal do plenário, ou seja, no dia 7 de Dezembro.

    Saliente-se, porém, que no decurso do processo instaurado pela CADA, o CSM insistiu junto desta entidade na tese do “segredo de justiça” para defender a recusa no acesso aos documentos. Caso o parecer da CADA não fosse acatado, José Sócrates seria obrigado a recorrer ao Tribunal Administrativo, mas colocaria o CSM novamente na mira do ex-governante, que se tem sempre colocado num papel de vítima do sistema judicial.

    Além disso, causaria certamente um incómodo institucional se o CSM recusasse cumprir uma deliberação unânime da CADA, presidida por um juiz conselheiro e com membros nomeados pela Assembleia da República, Governo, Governos Regionais (Madeira e Açores), Associação Nacional de Municípios, Ordem dos Advogados e Comissão Nacional de Protecção de Dados.

    Cópia integral da primeira página do parecer da CADA

    Embora este seja apenas mais uma das muitas quezílias jurídicas da Operação Marquês, desencadeada em 2014, em causa estão, neste caso, os procedimentos aquando da distribuição inicial do processo ao juiz Carlos Alexandre, que decretou a prisão preventiva de José Sócrates, mas que se revestem de grande relevância jurídica.

    O antigo primeiro-ministro – actualmente pronunciado para ser julgado por três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos – apontou, desde sempre, para a existência de irregularidades na escolha de Carlos Alexandre como juiz de instrução, considerando que, ao não se proceder ao sorteio do juiz de instrução em Setembro de 2014 por meios electrónicos, se violaram princípios jurídicos susceptíveis de nulidade processual.

    O incidente acabou por ser corroborado pelo juiz Ivo Rosa, em sede do debate instrutório, que ordenou a extracção de uma certidão com vista à instauração de um inquérito às eventuais anomalias na entrega manual da instrução a Carlos Alexandre. No limite, se se provarem falhas insanáveis, a Operação Marquês corre o risco de voltar à estaca zero ou “eternizar-se” até à prescrição total, porque todas as decisões anteriores de Carlos Alexandre podem vir a ser consideradas nulas ou anuláveis.

    Sócrates tem, aliás, criticado duramente a postura do CSM neste particular caso do inquérito desencadeado por Ivo Rosa, censurando os conselheiros por pactuarem com uma “situação grave para o Estado de Direito como distribuições processuais irregulares”, insistindo na tese de “manipulação”. O ex-primeiro-ministro socialista – que se desvinculou do PS em rota de colisão com António Costa, seu antigo ministro – acusou até os conselheiros do CSM de “querer[em] transformar um documento público num documento secreto”, sentenciando ainda: “Nenhuma lei da República vos dá esse poder. A vossa decisão é inaceitável”.

    Com a divulgação para breve do teor integral do relatório de inquérito inicial e de avaliação complementar às alegadas anomalias na escolha do juiz de instrução da Operação Marquês, será previsível nova “frente de batalha” numa “guerra jurídica” que já conta sete longos anos sem fim à vista. Recorde-se que este relatório – e até agora considerado inacessível pelo CSM – foi conduzido pelo inspector judiciário Paulo Fernandes da Silva, também juiz desembargador.

    Há sete meses, em plenário, o CSM deliberaria por unanimidade que não fosse instaurado “qualquer subsequente procedimento disciplinar”. Porém, conforme consta da ata daquela reunião mensal, terão sido identificadas, embora ali salientadas de forma subliminar e diplomática, diversas falhas na gestão do Citius. Se são demasiado graves, saber-se-á a curto prazo, até porque o PÁGINA UM também já solicitou formalmente o acesso ao polémico relatório junto do CSM.