Ontem, na entrevista à TVI e CNN Portugal, Gouveia e Melo garantiu ser “muito imune” a cunhas, quando questionado pela jornalista Sandra Felgueiras sobre a eventualidade de se repetir um ‘caso das gémeas’ durante uma sua Presidência da República. “O que eu fiz na pandemia, quando tomei conta da pandemia, dos casos e casinhos, responde por mim” — disse o ex-coordenador da task force da vacinação contra a covid-19 entre Fevereiro e Novembro de 2021. E acrescentou: “Eu sou o que sempre fui. E podem contar comigo com essa segurança. […] Eu sou muito imune. As pessoas que me conhecem e que andam comigo há muito tempo sabem disso” — concluindo que “[n]a minha forma de agir e de estar, eu não dou abrigo a esse tipo de procedimento; procedimentos de excepção e de favoritismo. Algum procedimento de excepção é por motivos humanitários ou outro qualquer; agora, não porque conheço o A ou conheço o B, ou porque [sou] amigo do A ou amigo do B, ou porque alguém se cruzou comigo no passado — isso nunca acontecerá.”
Essa postura de Gouveia e Melo entra em contradição com factos já revelados pelo PÁGINA UM, e que constam mesmo de documentação de um procedimento da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) que, apesar da gravidade da situação, menorizou os procedimentos do então coordenador da task force e também do então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.
Com efeito, durante o processo de vacinação de médicos não-prioritários — cerca de quatro mil que não estavam em funções operacionais, não cumprindo assim os critérios de prioridade da DGS, numa altura ainda de escassez de doses — Miguel Guimarães escreveu um e-mail, a 17 de Março de 2021, para o endereço electrónico de Gouveia e Melo, reiterando aquilo que lhe transmitira “telefonicamente”.
O bastonário salientava o processo da primeira fase de vacinação, em que se tinham administrado as doses de desperdício, mas que uma dose tinha sido “administrada em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.
A missiva com esta confissão consta na página 19 destes documentos que se encontram no processo aberto pela IGAS. Miguel Guimarães nunca quis esclarecer o PÁGINA UM sobre quem foi o político beneficiado, nem a IGAS atendeu a esta confissão, que é de enorme gravidade, porque se tratou de uma ‘cunha’, além de infracções éticas, legais e até penais.
Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.
De acordo com o Código Penal, quem, no exercício de funções públicas — neste caso, Gouveia e Melo enquanto coordenador da task force de vacinação — teve conhecimento de uma infracção penal (como, por exemplo, o abuso de poder ou prevaricação de titular de cargo político por parte de um político que recebeu indevidamente a vacina, em desrespeito às normas definidas para a campanha de vacinação) e não comunicou tal facto ao Ministério Público ou a uma autoridade competente, poderá estar abrangido pelo crime de prevaricação ou abuso de poder.
Mas o próprio processo de vacinação destes médicos esteve, logo na génese, ferido de irregularidades e de favorecimentos, com Gouveia e Melo a sair beneficiado por ter feito um favor a Miguel Guimarães na sua ascensão política.
No início de 2021, com a insatisfação da Ordem dos Médicos por não estarem incluídos na totalidade os clínicos na Fase 1 da vacinação, Miguel Guimarães negociou directamente com Gouveia e Melo uma alternativa, que passaria por desviar doses do sistema normal para serem administradas aos cerca de quatro mil médicos não-prioritários nas instalações do Hospital das Forças Armadas, a troco de uma contrapartida de 27 mil euros. Gouveia e Melo acumulava, na altura, funções de adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas.
No processo instaurado pela IGAS, e concluído em Maio do ano passado, Miguel Guimarães referiu que, desde Janeiro de 2021, remetera à então ministra da Saúde, Marta Temido, uma reclamação por causa da existência de médicos não integrados no grupo prioritário, que, na verdade, seria um parecer do Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem dos Médicos. O conteúdo deste parecer não foi sequer enviado à IGAS, nem a IGAS o solicitou posteriormente, pelo que a sua existência é duvidosa.
Nos documentos enviados por Miguel Guimarães à IGAS constam ainda missivas do primeiro coordenador da task force, Francisco Ramos, em papel timbrado da Secretaria de Estado da Saúde, onde informa que, na “sequência de reuniões realizadas”, solicitava à Ordem dos Médicos uma lista de médicos que “exerçam a sua actividade de prestação directa de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de saúde já mobilizadas para a execução do plano de vacinação”. Mas essa lista nunca se viu, nem Miguel Guimarães a enviou à IGAS; e nem a IGAS a quis ver.
Com a chegada de Gouveia e Melo à task force em Fevereiro de 2021, de acordo com a documentação a que o PÁGINA UM teve acesso, a informalidade espraiou-se. Já não há papel timbrado nem ofícios. Fez-se tudo por correio electrónico, embora com uma inusitada reverência. Miguel Guimarães tratava Gouveia e Melo por “Distinto Senhor Coordenador da Task-Force Mui Ilustre Vice-Almirante”.
Gouveia e Melo foi coordenador da task force.
Em 19 de Fevereiro de 2021, poucas semanas depois de Gouveia e Melo ter tomado posse como coordenador da task force, Miguel Guimarães envia-lhe por e-mail “uma base de dados com médicos que querem ser vacinados, e cumprem os critérios definidos pela DGS”. Essa lista não é conhecida, não foi fornecida pela task force nem pela Ordem dos Médicos à IGAS. E a IGAS não a quis sequer ver, sendo que essa era a questão óbvia num decente e idóneo processo de esclarecimento.
Mas, de acordo com esse e-mail de Miguel Guimarães, nessa altura a lista nem estava ainda concluída, dizendo ele que “continuamos a receber mais inscrições de médicos que ainda não foram vacinados e continuam no activo”, prometendo enviar mais tarde “uma nova base de dados de forma a evitar sobreposições”. Embora estranhamente não haja qualquer resposta de Gouveia e Melo às missivas de Miguel Guimarães, tudo evoluiu rapidamente para a vacinação de cerca de quatro mil alegados médicos — e reitera-se “alegados médicos” porque nunca se conheceu a lista final de nomes, nem a IGAS a quis conhecer —, cujas vacinas foram administradas em unidades militares. Pelos e-mails de Miguel Guimarães sabe-se o número daqueles que tinham menos de 65 anos, porque receberam a vacina da AstraZeneca, e daqueles que tinham mais de 65 anos, pois receberam a da Pfizer.
Em finais de Fevereiro de 2021, além das pessoas indicadas pela Ordem dos Médicos a viverem no Continente, Miguel Guimarães ainda indicaria 27 médicos da Madeira e 42 dos Açores para serem vacinados, mas no processo fica-se sem saber também quem eram e se houve mesmo inoculação das doses. A IGAS não teve curiosidade em saber.
Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, ao lado de Miguel Guimarães. Geriram em conjunto uma conta solidária, titulada por eles juntamente com Eurico Castro Alves, de onde saiu o dinheiro para pagar cerca de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida da vacinação de médicos não-prioritários.
Mas essa informação até existirá, eventualmente, num “relatório final da primeira fase” desta operação de vacinação que Miguel Guimarães prometeu, em mensagem de correio electrónico de 17 de Março de 2021, enviar “brevemente” a Gouveia e Melo. Também a IGAS não quis saber deste relatório nem quis saber se houve outros relatórios.
A forma como o procedimento da IGAS foi conduzido mostra ou negligência ou intencionalidade em isentar de culpas Gouveia e Melo e Miguel Guimarães. O relatório final do processo de esclarecimento, da autoria da inspectora Aida Sequeira, retira conclusões que nem sequer se encontram plasmadas em qualquer documento.
Por exemplo, o relatório destaca que “a ponderação e preparação do processo de vacinação foi do conhecimento da DGS e do responsável máximo pela tutela da saúde, a então Ministra da Saúde”, mas, na verdade, não existe no processo consultado pelo PÁGINA UM qualquer documento que comprove esse conhecimento por parte da DGS, que é a Autoridade de Saúde Nacional e a única entidade responsável pela norma eventualmente violada.
Acresce também que a IGAS omite na sua análise a impossibilidade legal da então task force dirigida por Gouveia e Melo negociar procedimentos com a Ordem dos Médicos ou outra qualquer entidade. Somente em Abril de 2021, Gouveia e Melo obteve poderes reforçados através de um despacho governamental.
Mas o relatório final da IGAS fez ainda pior, numa tentativa de ‘legalizar’ os médicos não-prioritários. Com efeito, a inspectora Aida Sequeira diz que a norma 002/2021 tinha tido uma “actualização a 17 de Fevereiro de 2021”, que passava a incluir na Fase 1 os “profissionais envolvidos na resiliência do sistema de saúde e de resposta à pandemia e do Estado”, bem como “outros profissionais e cidadãos, definidos pelo órgão do governo, sobre [sic] proposta da Task-Force”.
Porém, isso é completamente falso.
Na verdade, houve uma actualização da norma em 17 de Fevereiro, mas não em 2021 (ano dos factos), mas sim em 2022, no ano seguinte, conforme se pode constatar no texto. E, de facto, esse alargamento até se verificou inicialmente em 31 de Agosto de 2021, numa fase de maior oferta de vacinas pelas farmacêuticas. Ou seja, a introdução de uma referência completamente falsa por parte da inspectora da IGAS sobre uma alteração da norma da DGS no dia 17 de Fevereiro de 2021 não aparenta nada ser um mero lapso.
Não existe também no processo qualquer documento que comprove a afirmação da inspectora Aida Sequeira de que “em Janeiro de 2021, o Secretário de Estado da Saúde, com conhecimento da DGS, oficiou a Ordem dos Médicos no sentido de que fosse disponibilizada ‘(…) uma base de dados de contactos de médicos com actividade de prestação de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de cuidados de saúde já mobilizadas”. A inspectora da IGAS diz que essa informação proveio de “diligências adicionais promovidas por esta Inspecção-Geral”, embora não haja qualquer nota sobre a fonte nem sequer o documento que confirme o necessário conhecimento, verificação e aprovação da lista enviada pela Ordem dos Médicos.
Carlos Carapeto: A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde também viu a ‘cunha’, mas preferiu fechar os olhos. A alteração da data de uma norma, introduzida pela inspectora responsável pelo processo, permitiu ilibar Gouveia e Melo e Miguel Guimarães de procedimentos irregulares na vacinação dos médicos não-prioritários.
Assim, e apesar de se ficar sem saber quem, afinal, eram as cerca de quatro milhares de pessoas vacinadas sob a batuta de Miguel Guimarães — e se eram todos médicos, e se todos cumpriam os critérios da norma da DGS, porque a IGAS nada pediu —, a inspectora concluiu “pela conformidade legal da inoculação da vacina contra a covid-19 aos profissionais de saúde, circunscrita a Fevereiro de 2021”, determinando o arquivamento. Ficou assim também ‘apagado’ o pecadilho da “personalidade política” vacinada à margem da lei por uma “questão de necessidade e oportunidade”, bem como o exorbitamento de funções por parte de Gouveia e Melo.
Em todo o caso, sobre as suspeitas de irregularidades na contabilidade financeira da Ordem dos Médicos no processo de ‘contratação’ do Hospital das Forças Armadas, a IGAS decidiu enviar o processo para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa, mas até à data não existem quaisquer informações sobre o avanço deste processo.
Os resultados do primeiro trimestre deste ano, divulgados na semana passada pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), voltam a comprovar aquilo que os ‘barões da imprensa’ persistem em negar com a habitual táctica da avestruz: escondem a cabeça nos slogans sobre “transformações digitais”, “modelos sustentáveis” e “novas formas de chegar ao leitor”, enquanto o corpo editorial se afunda no pântano da irrelevância.
A verdade, nua e crua, é esta – e é tão clara quanto dramática: a imprensa escrita generalista portuguesa colapsou. Os números não mentem. São mais de duas décadas de declínio contínuo, mascarado por anúncios piedosos e relatórios internos que já ninguém leva a sério.
Foto: PÁGINA UM
Em 2025, nem os comunicados eufemísticos do trust da comunicação social, nem os generosos orçamentos de publicidade institucional, nem sequer o ‘balão de oxigénio’ do Governo – travestido de distribuição gratuita de assinaturas digitais para os jovens – conseguem disfarçar o desastre. A erosão é estrutural e terminal.
A evolução das vendas em banca – com quebras brutais em todos os títulos – e das assinaturas digitais – com valores unitários largamente inferiores aos do papel e sem escala de massa crítica – espelham o fim de um modelo baseado na fuga para a frente: redacções inexperientes, pouco cultas, reféns de agendas e compromissos, divorciadas dos leitores e cada vez mais promíscuas nas relações com o poder político e económico.
Mais do que um fim de ciclo, talvez este seja mesmo o fim de linha para alguns dos títulos – o que, convenhamos, não seria necessariamente mau. A extinção natural poderá limpar o terreno dos vícios acumulados, permitir um reequilíbrio do ecossistema mediático e abrir espaço a novas formas de jornalismo, menos dependentes da subsidiação crónica e da formatação ideológica. A imprensa escrita colapsou, mas o jornalismo ainda pode sobreviver – desde que se liberte das amarras que o arrastaram até aqui.
Foto: PÁGINA UM
O PÁGINA UM analisou a evolução das vendas dos últimos 30 anos de cinco jornais generalistas portugueses: quatro nascidos como diários – Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público – e um de origem semanal – o Expresso. A linha temporal inicia-se em 1996, quando ainda não existia o conceito de assinaturas digitais e os portugueses, então leitores assíduos, consumiam jornais em papel como parte integrante do café da manhã.
Foi apenas em 2009 que esse “novo e maravilhoso mundo” digital começou a dar os primeiros sinais de vida, ainda timidamente. Ao longo da década seguinte, foi ganhando terreno, até se tornar, nos últimos anos, o eixo dominante das estratégias editoriais. Hoje, as edições impressas são cada vez mais residuais, enquanto a produção de conteúdos se rege pela lógica do imediato – e pelos inúmeros erros que daí decorrem.
A própria natureza do jornalismo transformou-se: os diários deixaram de ser apenas diários para se tornarem plataformas de informação em torrente contínua, ao passo que o Expresso, tradicionalmente semanal, passou a comportar-se como um diário digital, pressionado pelo mesmo ritmo.
Mais ainda: a transição é já estrutural em dois casos. O Público e o Expresso são, desde 2020 e 2023 respectivamente, jornais maioritariamente digitais, com as assinaturas electrónicas a superarem as vendas em banca. Esta inversão de paradigma, longe de ser sinónimo de sustentabilidade, levanta sérias questões sobre a viabilidade económica, a qualidade editorial e o impacto social do jornalismo tal como está a ser praticado.
Mas vejamos, com rigor e em detalhe, os números de cada jornal, tomando como referência os dados relativos ao primeiro trimestre de cada ano, de forma a permitir comparações homogéneas ao longo do tempo.
Comece-se pelo Público, o diário fundado pelo Grupo Sonae. No primeiro trimestre de 1996, vendia diariamente, em banca, cerca de 58 mil exemplares. Este ano, pela primeira vez, caiu abaixo dos 10 mil. Uma queda de mais de 84%, que nem o empolamento das assinaturas digitais – muitas de acesso gratuito ou incluídas em pacotes promocionais – consegue mascarar. A versão digital, é certo, regista agora cerca de 54 mil assinaturas pagas, quintuplicando os valores registados há uma década, mas à custa de uma política de produção intensiva de conteúdos e de receitas unitárias substancialmente mais baixas que o papel. E a matemática é simples: mais trabalho, menos rendimento. E menos impacto.
O simbolismo do papel, mesmo no efémero diário, é superior – nesse aspecto, o diário da Sonae é hoje um fantasma: o ano de 2005 foi o último acima dos 50 mil exemplares vendidos por dia; 2015 foi o último com vendas diárias em banca acima dos 20 mil, e agora já está abaixo de 10 mil. Sinal de que o digital não é sustentável mostra-se nas contas. O Público, que sempre foi um jornal deficitário, apresentou em 2023 – os resultados de 2024 ainda não são conhecidos – um prejuízo recorde de quase 4,5 milhões de euros.
Passemos ao Diário de Notícias, ou àquilo que resta do diário nascido no século XIX e que só existe por um ‘milagre’ não explicado pelas ciências económicas. No primeiro semestre do ano 2000 vendia mais de 70 mil exemplares diários, mesmo mais do que em 1996. Mas várias promiscuidades entre o jornalismo e o mundo político e empresarial foram aniquilando o jornal depois da saída de Mário Bettencourt Resendes em 2004, e da passagem de nove directores (sem contar com os interinos).
Entre 2003 e 2013, as vendas no primeiro trimestre passaram de cerca de 52 mil exemplares por dia para menos de 24 mil. Mas isso foi apenas o princípio do descalabro.
Em 2018, as vendas já estavam abaixo dos 10 mil, e dois anos depois mal ultrapassavam os quatro mil. No primeiro trimestre deste ano, o DN nem chega a mil exemplares por dia. Não, não leu mal: são 966 exemplares em banca, em média, no primeiro trimestre de 2025. Trata-se de um nível de circulação impraticável para qualquer modelo de imprensa de massas – e apenas sustentável graças a expedientes editoriais de sobrevivência. A edição digital, por sua vez, ronda os 700 acessos pagos, uma ninharia irrelevante do ponto de vista económico e social.
Já o Jornal de Notícias, outrora o orgulho da imprensa nortenha. E chegou a ser um jornal centenário por duas razões: por ter mais de cem anos (foi fundado em 1888) e por ter ultrapassado os 100 mil exemplares por dia no final dos anos 90.
No período em análise, o pico surgiu em 2004 com cerca de 127 mil exemplares diários. Embora até 2009 se tenha mantido em redor dos 100 mil exemplares, a partir desse ano iniciou uma rota descendente. Em 2014 já estava abaixo dos 60 mil exemplares, ou seja, uma queda de 40% em apenas cinco anos. Mas ainda se afundou mais.
No primeiro trimestre de 2020 já surge abaixo dos 40 mil, e os últimos anos têm sido penosos, mesmo com a sua suposta saída do universo da Global Media. O primeiro trimestre deste ano mostra vendas de 16.613 exemplares, que representam apenas 13% das vendas do pico de 2004.
Ainda por cima, a digitalização, longe de salvar o navio, apenas está a apressar o naufrágio: 3.300 assinaturas digitais pagas em 2025. Com uma assinatura anual a custar 24,95 euros, não é por aqui que o JN se salvará.
O Correio da Manhã, tradicionalmente o mais resiliente entre os generalistas, e que se anuncia como o jornal diário mais lido em papel, está agora reduzido a um rei de um só olho em terra de cegos. Há dias, o jornal da Medialivre regozijava-se por vender “mais de 1 milhão de exemplares por mês” em banca, o que corresponde a “um número superior a 34 mil exemplares por dia”. No actual contexto, em que entra em competição o Diário de Notícias com menos de mil, parecem valores extraordinários – mas não.
Desde 2011 não há ano em que o Correio da Manhã tenha conseguido inverter a tendência de queda. No auge de 2011, vendeu 125.354 exemplares diários – ou seja, mais de 3,75 milhões por mês; cinco anos depois já estava abaixo da fasquia dos 100 mil por dia, mesmo assim cerca de três vezes mais do que os valores do primeiro trimestre de 2025. Ou seja, em 14 anos, entre 2011 e 2025, o Correio da Manhã teve uma quebra de vendas de 73%, que nem sequer é mitigada pelas assinaturas digitais, que começaram em 2012 e apenas rondam agora os 2.700.
Mesmo sem o descalabro dos outros diários, a imprensa popular também sofre, tanto mais que a transição digital não casa com o público tradicional do Correio da Manhã.
Finalmente, o caso do Expresso, sendo diferente por ter nascido como semanário, também merece destaque pelo contraste entre o passado de prestígio e o presente de perda. Jornal que, nos anos 90, começou paulatinamente a vender em redor dos 130 mil a 140 mil exemplares por edição – também fruto do célebre saco de plástico que garantia o seu fácil manuseamento –, o Expresso deu-se mal com os ares fora de Lisboa, depois de ter saído da sua célebre redacção na Rua Duque de Palmela. Em 2002, atingiu o seu máximo de vendas por edição no primeiro trimestre, com mais de 143 mil exemplares, mas foi depois paulatinamente decaindo. Em 2012 contabilizou pela primeira vez valores de vendas abaixo de 100 mil exemplares, numa altura em que o digital ainda dava os primeiros passos.
Nos anos seguintes, o Expresso deixou de ser um semanário com uma edição online para se tornar num diário digital com uma edição semanal em papel. Esta nova versão teve duas consequências: quebras brutais em banca, sobretudo a partir de 2021, que fazem com que por edição se tenham vendido apenas 33.603 exemplares durante o mais recente trimestre; e um aumento nas assinaturas pagas, rondando agora as 50 mil. Dir-se-ia que, somando ambas as categorias, se teria mais de 80 mil leitores, mas esse número fica aquém dos valores da edição semanal da primeira década do presente século.
Além disso, mesmo considerando que os lucros são teoricamente maiores nas assinaturas digitais – por não implicarem os custos de produção e distribuição da edição em papel –, os custos redaccionais aumentam (porque há mais conteúdos), e o impacto real diminui. O Expresso de hoje, com 33.603 exemplares vendidos em banca, mesmo com 49.987 assinaturas digitais, não tem o mesmo estatuto do Expresso de 2002, com 143.222 exemplares vendidos em banca.
E se isto se passa com os cinco maiores e mais relevantes jornais generalistas de Portugal, estamos perante um cenário de terra queimada. Nenhum jornal conseguiu fazer a transição para o digital com equilíbrio económico. As receitas digitais, em média, representam uma fracção das impressas – mesmo com maior volume. Os custos redaccionais mantêm-se elevados, pela sofreguidão noticiosa de repetir primeiro tudo aquilo que os outros dão, mas com salários baixos e uma enxurrada de comentadores a opinar, de sorte que há jornais que mais parecem opinativos.
Em suma, o papel está em agonia, o digital não sustenta. A imprensa escrita generalista portuguesa está, literalmente, em coma induzido por financiamento público e contratos opacos. Mais grave ainda: esta agonia arrasta consigo a função essencial de contrapoder e de vigilância do jornalismo. Num país onde os jornais vivem de publicidade institucional e do favor dos grandes grupos económicos, a queda das vendas significa também a queda da publicidade sem compromisso, da independência. A maioria dos jornais já não vive dos leitores, mas do poder político, da publicidade camuflada e das agendas de grupo. O resultado é uma imprensa cada vez mais alienada do interesse público, cada vez mais dependente da narrativa oficial.
Os números do primeiro trimestre de 2025 não deixam margem para dúvidas. A crise deixou de ser conjuntural e tornou-se estrutural e terminal. Nenhuma newsletter ou podcast salvará o que já está morto. Nenhuma “estratégia digital” ressuscitará o que foi enterrado há uma década. A imprensa escrita portuguesa, tal como a conhecemos, está nos últimos estertores – até porque quem vende menos, cada vez mais recorre a esquemas que matam o jornalismo.
“Estimados, Terei todo o gosto e interesse em esclarecer o vosso site pois acompanho á [sic] alguns anos e sempre apreciei a forma isenta como escrevem e por achar (e provo) que tem muitas incorreções achei de [sic] devia enviar este comunicado e também colocar-me ao dispor.”
Foi através de correio electrónico que Ricardo Leitão Marques reagiu à notícia do PÁGINA UM, que revelava que a Gesticopter Operation, uma subsidiária da Gestifly, apenas tinha sido adquirida pela Helifinance Asset Management, detida pelo empresário casado com a irmã do ministro Leitão Amaro, em Março deste ano, ou seja, antes do contrato de 20,1 milhões celebrado apenas no mês passado, no dia 7.
Na sua missiva ao PÁGINA UM, Ricardo Leitão Marques envia igualmente o comunicado divulgado no passado sábado pela generalidade da imprensa, no qual refere que já detinha a maioria do capital da empresa Gestifly desde Junho de 2023, o que significa que a transmissão da Gesticopter constituiu uma mera operação formal de reestruturação societária, sem efeitos substanciais de alteração no controlo efectivo. De facto, a Gestifly é agora detida, de acordo com o Registo de Beneficiário Efectivo, por Ricardo Leitão Marques através da Demeter, uma empresa com sede no mesmo local da Helifinance Asset.
Porém, apesar dos posteriores pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM, Ricardo Leitão Marques acabou por não responder às questões mais essenciais nem esclarecer algumas das syas ‘garantias’.
Com efeito, no comunicado deste sábado, Ricardo Leitão Marques diz que a sua entrada na Gestifly em 22 de Junho de 2023 ocorreu quando a empresa “enfrentava sérias dificuldades financeiras e tinha acabado de ser seleccionada para três contratos públicos de aquisição de serviços de disponibilização e locação de meios aéreos para o dispositivo aéreo do DECIR de 2023”.
Efectivamente, apesar de constar no Portal Base que a Gestifly teve divulgados quatro contratos em 2024, três destes foram assinados ainda em 2023 para o fornecimento de 10 helicópteros, alguns dos quais para dois anos. O incompreensível atraso na divulgação dos contratos no Portal Base por parte da Força Aérea foi, aliás, detectado em primeira mão pelo PÁGINA UM em finais de Janeiro de 2024. O Estado-Maior da Força Aérea(EMFA) justificou então o atraso como “falha técnica”. Mas, na verdade, tratava-se de uma intencional ocultação de contratos durante meses, pois este era um problema crónico.
Nessa altura, o PÁGINA UM analisara os 500 contratos mais recentes publicados pelo EMFA – que apanham um período desde 27 de Fevereiro de 2023 e 30 de Janeiro de 2024 – identificaram-se quatro contratos em que se demorou mais de 1.000 dias a inserir-se a informação no Portal Base, um dos quais a aquisição de um boroscópio de medição no valor de quase 31 mil euros à Olympus, adquirido em Agosto de 2020 e que só deu entrado no Portal Base em Agosto de 2023.
Mas isto são só os casos extremos. Se se considerar os atrasos superiores a um ano, ou seja, 365 dias, encontravam-se 64 contratos, e aí o montante subia para os 69,2 milhões de euros. Com atraso superior a meio ano eram já 212 contratos, envolvendo um montante total superior a 100 milhões de euros. Contudo, considerando que os prazos de divulgação genericamente previstos no Código dos Contratos Públicos são de 20 dias úteis, o EMFA estava num cumprimento inferior a 20% dos contratos.
Considerando os 15 contratos acima de um milhão de euros, de entre os 500 mais recentemente divulgados pelo EMFA, apenas em seis se cumpriram os prazos, sendo que nos restantes nove encontram-se três em que a demora foi superior a dois longos anos. Neste caso, destaca-se o contrato de fornecimento de combustíveis por cerca de três anos à Petrogal no valor de 57,3 milhões de euros. A celebração foi a 30 de Setembro de 2021, mas a informação só viu a luz no Portal Base no passado dia 16 de Janeiro. Portanto, uma demora de 838 dias.
Mas regressando aos contratos com a Gestifly, após a afirmação de Ricardo Leitão Marques ter dito que a empresa enfrentava “sérias dificuldades financeiras” em 2023, o PÁGINA UM foi analisar as contas da empresa. Apesar de ter sido criada em 2021, nos dois primeiros anos a Gestifly não teve qualquer actividade e, por isso, os pequenos prejuízos foram irrelevantes.
Em 2021, o prejuízo foi de apenas 4.060 euros e no ano seguinte de 7.122 euros — nada de dramático para um capital social de 50 mil euros, e para uma empresa que estava à procura dos primeiros negócios. Mas no final do ano de 2022 — ou seja, antes da data que Ricardo Leitão Marques diz ter tomado o domínio da Gestifly —, a empresa até ficou com uma elevada liquidez, porque conseguira um financiamento bancário de 1,6 milhões de euros, conforme se detecta no balanço das demonstrações financeiras desse ano consultadas pelo PÁGINA UM.
Esse financiamento de 2022 terá permitido que a Gestifly se lançasse para finalmente começar a concorrer a concursos públicos de prestação de serviços de meios aéreos de combate aos incêndios rurais. E em 2023 — o tal ano que o cunhado de Leitão Amaro diz que esta empresa estava em “sérias dificuldades financeiras” —, a Gestifly conseguiu ganhar três concursos e acabar o ano com uma facturação de 6,4 milhões de euros. Uma grande parte das receitas (mais de 5,9 milhões de euros) serviram para pagar a subcontratação de serviços. Mesmo assim, sobraram 401.255 euros de lucro nesse ano, conforme as contas de 2023 consultadas pelo PÁGINA UM, que desmentem a alegada má situação financeira nesse ano.
Na verdade, os resultados podem mesmo considerar-se excelentes, se atendermos que a Gestifly tinha em 2023… um único empregado. E nem se diga que era um, mas um que era um génio que valia por cem, porque o accionista principal, Ricardo Leitão Marques, apenas lhe pagou um salário bruto de 13.458 euros — ou seja, cerca de 960 euros por mês, o que é compatível com o salário de um contabilista mal pago.
Em suma, e também considerando que o activo tangível da empresa em 2023 rondava apenas 1,4 milhões de euros —a Força Aérea comprou há três anos seis helicópteros de combate aos incêndios por 8,8 milhões de euros (com IVA) por unidade —, o negócio da Gestifly aparenta ser um simples intermediário: subcontrata os 10 helicópteros a outras empresas, subcontrata pilotos e manutenção, e fica com uma ‘comissão líquida’ de 6,4%. Assim, com um único empregado, a quem pouco mais pagou que o salário mínimo nacional, Ricardo Leitão Machado conseguiu uma produtividade de 400 mil euros por trabalhador, cerca de 20 vezes o valor médio nacional.
Força Aérea adquiriu seis helicópteros em 2022, mas Portugal está dependente de empresas privadas para o combate aéreo aos incêndios rurais.
Em 2024, a empresa terá facturado valores sensivelmente idênticos, mas apesar das insistências do PÁGINA UM , Ricardo Leitão Marques nas quis revelar esses dados financeiros.
Em todo o caso, para justificar a relevância da sua entrada em 2023 na Gestifly — por alegadas “serias dificuldades financeiras” da empresa —, Ricardo Leitão Machado disse ao PÁGINA UM que, quando a adquiriu, esta “não tinha meios para cumprir os contratos que tinha ganh[ad]o, visto não ter tesouraria para as Garantias Bancárias a prestar e para o investimento para montar uma operação deste calibre”.
Esta justificação não deixa de ser surpreendente sob duas perspectivas. Primeiro, pelo lado da Força Aérea, que atribuiu três vitórias a uma empresa sem histórico relevante e que, aparentemente, não deu garantias, na fase de concurso, de possuir capacidades operacionais e financeiras para cumprir contratos desta natureza.
Por outro lado, no caso das garantias bancárias — exigidas como caução obrigatória em determinados contratos públicos (equivalente a 5% do valor adjudicado) —, a Gestifly já as tinha constituído antes da entrada formal do empresário, uma vez que esta ocorreu a 22 de Junho de 2023 e os contratos com a Força Aérea foram celebrados a 1 e a 16 desse mês. Além disso, convém referir que os custos das garantias bancárias, concedidas por instituições de crédito, rondam, por norma, 0,25% do montante em causa. Mesmo que essa percentagem fosse de 1%, os encargos nunca seriam verdadeiramente insustentáveis, tratando-se de três cauções que totalizavam 648 mil euros — o que corresponderia, nessa hipótese, a um custo real de pouco apenas 6.480 euros.
Saliente-se também que Ricardo Leitão Machado não esclareceu quantos meios aéreos próprios a Gestifly possui ou possuía nem qual o valor da transacção de um negócio que logo no primeiro ano, em poucos meses, lhe concedeu um lucro de 400 mil euros. Numa primeira fase, o empresário disse ao PÁGINA UM que “a empresa é proprietária de parte dos helicópteros que utiliza no dispositivo”, acrescentando que “os pilotos são todos prestadores de serviços, quer diretamente, quer através da empresa subcontratada”. Mas confrontado com o facto de o activo tangível da Gestifly ser pouco superior a um milhão de euros — o que, no máximo, daria para um helicóptero pesado em segunda-mão —, o empresário esquivou-se a dar uma resposta.
E diz mesmo estar a sentir-se prejudicado nos concursos públicos mais recentes. Já com outra empresa, a Gesticopter, Ricardo Leitão Machado somente ganhou em 2025 um concurso público (um contrato de três anos no valor de 20,1 milhões de euros, com IVA), perdendo todos os outros os outros, mais de uma dezena, incluindo um para fornecimento de meios aéreos ao INEM. O empresário recusa também qualquer benefício familiar, porque os contratos da Gestifly em 2023 ocorreram ainda durante o Governo Costa.
Pela segunda vez em 17 legislaturas, a Assembleia da República vai sentar três deputados de partidos políticos sem grupo parlamentar, ou seja, deputados únicos. Amanhã, na primeira sessão da nova composição do Parlamento, Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda, que viu o seu grupo parlamentar colapsar em apenas seis anos — elegeu 19 deputados em 2019), Inês de Sousa Real, do Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN, que repete a experiência da legislatura anterior), e o estreante Filipe Sousa, do partido regional madeirense Juntos pelo Povo (JPP), não terão companheiros de bancada.
Estes deputados vão partilhar assim a mesma solidão parlamentar vivida em 2019, quando, pela primeira vez, mais de dois partidos conseguiram eleger um único deputado: Joacine Katar Moreira (eleita pelo Livre, mais tarde independente), João Cotrim de Figueiredo (Iniciativa Liberal) e André Ventura (Chega). Curiosamente, todos os partidos então com representação unipessoal conseguiram ampliar a sua presença nas legislaturas seguintes, sendo que o Chega lidera hoje a oposição com 60 deputados.
Porém, o PÁGINA UM sabe que Bloco de Esquerda, PAN e JPP vão, contudo, tentar quebrar uma duradoura praxe em Conferência de Líderes, ainda que a hipótese de sucesso seja escassa: um lugar na primeira fila do hemiciclo parlamentar.
Apesar de o longo e detalhado Regimento da Assembleia da República, nos seus 265 artigos, ser totalmente omisso sobre a distribuição dos deputados no hemiciclo, essa competência cabe, por tradição, à Conferência de Líderes e, em última instância, ao Presidente da Assembleia. Por regra, nunca um deputado único conseguiu acesso aos lugares da primeira fila, pois assume-se que não possui representatividade suficiente para ocupar um dos 24 lugares dianteiros habitualmente disponíveis.
Com efeito, se a atribuição dos lugares da primeira fila fosse feita com base estritamente proporcional — isto é, através de um critério aritmético rigoroso —, os partidos minoritários como o BE, o PAN e o JPP estariam manifestamente fora de qualquer expectativa de acesso a esse espaço. Mas o mesmo sucederia com outros partidos que, não obstante, terão presença na frente.
Filipe Sousa, deputado do JPP: pela primeira vez, um partido regional elege para Assembleia da República.
Num Parlamento com 230 deputados e apenas 24 lugares na primeira fila, o direito proporcional a um lugar dianteiro corresponderia a cerca de 9,58 deputados. Assim, apenas os partidos com pelo menos 10 deputados poderiam ambicionar legitimamente essa posição. Aplicando esse critério, a selecção tornar-se-ia inevitavelmente excludente — e não apenas para o BE, o JPP e o PAN. Só três partidos atingem esse limiar: o PSD, com 89 deputados; o Chega, com 60; e o PS, com 58.
Todos os restantes ficariam automaticamente arredados da primeira fila: a Iniciativa Liberal, com 9 deputados, não atinge o mínimo necessário; o Livre, com 6, também não; e o mesmo se aplica ao PCP, com 3 deputados. Até o CDS-PP, que regressou ao Parlamento à boleia da Aliança Democrática com dois eleitos, ficaria fora desse espaço, se a lógica fosse puramente aritmética.
Esta análise evidencia que, do ponto de vista estritamente matemático, permitir que partidos com uma expressão parlamentar reduzidíssima ocupem lugares de destaque na primeira fila constitui uma desproporção evidente. Um deputado único, que representa 0,43% do Parlamento, ao sentar-se na primeira fila — ocupando 1 em 24 lugares, ou seja, 4,17% do espaço visível — multiplicaria por quase dez vezes o seu peso real no hemiciclo.
Contudo, a democracia parlamentar não se resume à aritmética. Colocar deputados únicos na primeira fila pode ser interpretado, mais do que como um acto injusto de concessão de privilégios desproporcionados, como a expressão de um princípio democrático de inclusão representativa. Num sistema como o português, que adopta o método de Hondt e favorece os partidos mais votados em cada círculo, a eleição de deputados únicos representa, em si mesma, uma superação notável de barreiras estruturais. Em muitos casos, essa eleição constitui um primeiro passo para afirmações políticas mais robustas — como se viu com o Chega, a Iniciativa Liberal e o Livre, que em 2019 tinham apenas um deputado e hoje ocupam posições reforçadas.
Conceder-lhes maior visibilidade simbólica — através da sua colocação na linha da frente do hemiciclo — traduz-se, assim, num reconhecimento do pluralismo político e da legitimidade de minorias que, mesmo em desvantagem no sistema, conseguiram representação.
De facto, a visibilidade atribuída a essas vozes solitárias não distorce a democracia; pelo contrário, reforça-a, ao garantir que nenhuma corrente legitimada pelas urnas seja remetida ao esquecimento visual ou ao silêncio institucional. Trata-se, pois, não apenas de uma questão de espaço, mas de princípio: assegurar que o Parlamento se veja a si próprio como espelho, ainda que fragmentado, da pluralidade nacional.
Na reunião da Conferência de Líderes de 21 de Maio, três dias após as eleições e ainda com os deputados da anterior legislatura em funções, foi apresentada uma proposta provisória de distribuição de lugares no hemiciclo para a sessão inaugural. Contudo, José Pedro Aguiar-Branco — que deverá manter o cargo de Presidente da Assembleia da República — sublinhou que “a disposição definitiva de lugares na XVII Legislatura só será decidida” após a sessão desta terça-feira. Para já, ficou esclarecida a posição do JPP, que recusou ficar junto ao Chega, como se chegou a aventar inicialmente.
Em 2019, então como deputado único, André Ventura foi relegado para a segunda fila, aproveitando sistematicamente o púlpito para ter destaque. Agora, seis anos depois, com 60 deputados, o Chega terá seis deputados em primeira fila.
Assim, nesta terça-feira, o Chega ocupará, segundo apurou o PÁGINA UM, seis lugares na primeira fila, previsivelmente mais um do que o Partido Socialista. O PSD deverá sentar-se em oito lugares dianteiros, restando dois para a Iniciativa Liberal, um para o CDS-PP, outro para o Livre e outro para o Partido Comunista Português.
Depois, será a política — e o bom senso — a ditar se a tradição se mantém ou se Portugal opta por inovar. Porque, nos parlamentos de diversos países europeus, dificilmente o JPP, o Bloco de Esquerda e o PAN arrecadariam uma cadeira da frente. Veremos se Portugal decide olhar mais para os princípios ou para as proporções.
Poucos dias depois de o PÁGINA UM ter revelado que a participação de Portugal na Expo 2025 Osaka estava a sofrer uma invisibilidade mediática, subalternizando a própria língua portuguesa, a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) deu uma resposta robusta — pelo menos no orçamento: vai gastar 220 mil euros pelos serviços de uma das mais relevantes agências de comunicação mundiais, a sueca Kreab.
O contrato, assinado ontem com o escritório japonês desta empresa fundada em 1970 em Estocolmo, foi realizado com carácter de urgência e ao arrepio do Código dos Contratos Públicos, uma vez que as normas de execução do Orçamento do Estado para 2025 permitem que, na exposição no Japão, a AICEP tenha ‘carta branca’ para gastar em prestação de serviços, a seu bel-prazer, e para escolher quem quiser, até ao limite de 221 mil euros. Portanto, curiosamente, o valor acordado entre a AICEP e a agência de comunicação ficou no limiar dessa fronteira a partir da qual as normas comunitárias obrigariam à realização de um concurso público.
Pavilhão de Portugal na Expo 2025 Osaka. Foto: AICEP.
Sem se conhecer, até agora, qualquer plano público de promoção da presença portuguesa no certame — na semana passada tinha também sido contratada a agência de João Libano Monteiro, mas ‘apenas’ por 19.500 euros —, a AICEP apressa-se para uma desesperada operação de cosmética mediática.
Apesar de a Expo 2025 Osaka ter sido inaugurada em 13 de Abril — ou seja, há mais de um mês e meio — e de encerrar no final da primeira quinzena de Outubro, o contrato vai durar até ao final do ano, porque a AICEP quer agora maximizar a presença portuguesa junto da comunicação social nipónica. As actividades previstas incluem a organização de conferências de imprensa, produção de vídeos promocionais, elaboração de conteúdos para redes sociais e publicação de publirreportagens pagas na revista Nikkei Business, considerada a principal publicação empresarial do Japão.
Mas está também implícita a ‘sedução’ de jornalistas porque, segundo o contrato, a Kreab está obrigada a conseguir a publicação de entrevistas com o embaixador português Gilberto Jerónimo e com a comissária-geral Joana Cardoso ou com o próprio presidente da AICEP, Ricardo Arroja, bem como a apresentar “propostas aos media económicos”.
À esquerda, Joana Gomes Cardoso, comissária-geral do pavilhão português: contrato com agência sueca visa também conseguir-lhe uma entrevista num jornal nipónico.
As entrevistas devem ter como foco a sua publicação “nos principais jornais diários e no influente [sic] Nikkei Shimbun”. Este jornal, considerado um dos periódicos financeiros mais influentes do mundo, conta com duas edições diárias (matutina e vespertina) e tem uma circulação total superior a 2,8 milhões de exemplares.
Embora a AICEP — que foi a entidade escolhida para organizar a presença portuguesa nesta exposição, que é sobretudo um encontro de culturas — mostre que a sua prioridade são os negócios, acaba por colocar como primeiro dos três eixos da narrativa, para envolver os jornalistas nipónicos, a interacção entre Portugal e o Japão. Porém, de forma patética, o contrato comete logo um erro histórico ao afirmar que “Japão e Portugal têm interagido através do Oceano há mais de 500 anos”.
Ora, essa alegação é anacronicamente redonda e imprecisa: o primeiro contacto entre os dois países ocorreu apenas em 1543, quando três portugueses chegaram à ilha de Tanegashima a bordo de um navio chinês, ou seja, há pouco mais de 480 anos.
Imagem mural da Catedral de Kagoshima que mostra São Francisco Xavier com Anjiro, um samurai convertido ao cristianismo.
E mais: essa interacção foi esporádica, dependente das condições políticas internas japonesas e da presença missionária jesuíta, que se iniciou com São Francisco Xavier em 1549, tendo cessado a partir de 1614, com a proibição do cristianismo, e quase por completo com o encerramento do Japão ao exterior a partir de 1639 — o qual se prolongou até meados do século XIX. Por isso, falar de uma interacção contínua “há mais de 500 anos” é, pois, uma construção ficcional mais próxima do marketing do que da História. Ou da ignorância.
Mas isso é apenas um pormenor — embora maior, por se tratar de ignorância histórica e cultural — numa exposição que ficará marcada pela subalternização da língua portuguesa: na parte principal da exposição, os visitantes são confrontados com uma imersão de luzes e cores, com referência a Portugal e ao mar, mas apenas com legendagem em japonês e inglês. A língua portuguesa ficou — e aparentemente vai ficar, porque eventualmente custaria mais 220 mil euros — submersa. No esquecimento.
O cunhado do ministro Amaro Leitão, o empresário Ricardo Machado – que passou a ostentar também o apelido Leitão depois de casar com uma irmã do governante – apenas comprou em Março passado a empresa contratada pela Força Aérea para fornecer três helicópteros para combate a incêndios rurais por cerca de 20 milhões de euros, com IVA. A empresa em causa, a Gesticopter Operation Unipessoal tem sido apontada como uma das visadas na operação ‘Torre de Controlo’.
De acordo com elementos recolhidos pelo PÁGINA UM, a empresa em causa, a Gesticopter Operation, foi criada em Março de 2024, mas nessa altura ainda não tinha qualquer ligação ao familiar do actual ministro da Presidência. De facto, a sociedade, que apresenta um capital social de apenas 5.000 euros, teve como primeiro proprietário a Gestifly, uma empresa surgida em 2021 e que, em apenas três anos, acumulou contratos milionários com o Estado português – todos por ajuste directo – no sector altamente rentável da locação de meios aéreos de combate aos fogos florestais.
Segundo os registos do Portal Base, a Gestifly celebrou quatro contratos com o Estado-Maior da Força Aérea no âmbito do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), todos em 2024. O primeiro, com data de 16 de Janeiro, refere-se à aquisição de serviços no valor de 3,8 milhões de euros. Seguiram-se, a 9 de Maio, mais 2,3 milhões de euros; a 3 de Junho, um novo contrato por 3,7 milhões de euros; e finalmente, a 7 de Agosto, o mais modesto, mas ainda assim expressivo, montante de 870 mil euros. No total, só com a Força Aérea, a Gestifly encaixou mais de 10,5 milhões de euros (sem IVA) em contratos de aluguer de meios aéreos no espaço de sete meses.
Já a Gesticopter, que acabaria por substituir a Gestifly – que deixou de concorrer aos meios aéreos, tendo apenas um pequeno contrato de pouco mais de 5 mil euros de venda de combustível à Força Aérea –, não registou qualquer contrato com o Estado ao longo de 2024. Contudo, nos últimos meses do ano passado e no início deste ano, começou a apresentar-se como concorrente em vários concursos públicos.
Os dados recolhidos pelo PÁGINA UM mostram que a empresa participou em mais de uma dezena de concursos lançados pela Força Aérea nos últimos seis meses, sempre contra um lote recorrente de concorrentes do sector. A aparente repetição e previsibilidade das empresas candidatas – algumas das quais dificilmente teriam capacidade para assegurar todos os meios exigidos nos cadernos de encargos – suscitam, aliás, fundadas suspeitas de cartelização. Tal como não se monta um rent-a-car do dia para a noite, muito menos se arranjam helicópteros pesados de combate a incêndios com simples telefonemas ao fornecedor. Em muitos casos, as empresas subcontratam meios aéreos aos concorrentes que perderam concursos.
Leitão Amaro, actual ministro da Presidência.
A entrada de Ricardo Leitão Machado na Gesticopter fez-se através da Helifinance Asset Management, uma sociedade espanhola com sede em Madrid, constituída em Fevereiro de 2024. Formalmente, a compra da Gesticopter Operation, por valores desconhecidos, ocorreu a 12 de Março deste ano, segundo os registos comerciais consultados pelo PÁGINA UM.
Curiosamente, em nenhum desses registos consta o nome do cunhado do ministro como sócio ou gerente, mas a consulta ao Registo de Beneficiário Efectivo revela que Ricardo Leitão Machado é o proprietário integral quer da Gesticopter, quer da Helifinance. Contudo, há algo surpreendente: nos registos de beneficiário efectivo, o nome de Ricardo Leitão Machado surge como titular das duas empresas desde a primeira quinzena de Janeiro, ou seja, antes mesmo da aquisição formal da Gesticopter. A incongruência entre os registos não deixa de levantar dúvidas sobre a transparência do processo de aquisição e da verdadeira data de entrada de Ricardo Leitão Machado no negócio.
Também pouco transparente é o contrato celebrado entre a Força Aérea e a Gesticopter. Contrariando a lei – e mesmo decisões sobre esta matéria do Tribunal Administrativo, por estarem em causa actos administrativos em funções públicas –, a Força Aérea rasurou tanto o nome do adjudicante como do adjudicatário. Ou seja, ignora-se ainda quem da Gesticopter assinou o contrato. No caso da Força Aérea, é apagado o nome de quem assina o contrato, mas mantém-se a referência ao cargo: chefe do Serviço Administrativo e Financeiro. Esta função é actualmente ocupada pelo coronel Carlos Miguel de Amorim Inácio, que é economista.
Helicopter: empresa com capital social de 5.000 euros ganha concurso de 20,1 milhões de euros.
O contrato de 20,1 milhões de euros (quase 16,4 milhões sem IVA) agora atribuído à Gesticopter pela Força Aérea, para fornecimento de três helicópteros pesados durante três anos, constitui assim a primeira adjudicação pública da empresa sob a nova direcção. Mas não deixa de ser inquietante que uma empresa sem qualquer histórico de execução de contratos semelhantes, com um capital social mínimo e sem meios próprios conhecidos, vença um concurso desta dimensão.
A avaliação de risco por parte da Força Aérea levanta, por isso, justas interrogações. Afinal, o custo de um helicóptero com as características técnicas exigidas pelo concurso oscila, segundo fontes especializadas contactadas pelo PÁGINA UM, entre 7 e 25 milhões de euros por unidade, dependendo do modelo, estado e equipamentos opcionais. Como pode uma empresa com 5.000 euros de capital social garantir três helicópteros, com estas especificações, por três anos, e cumprir as exigências operacionais e de manutenção previstas nos cadernos de encargos? Com meios próprios ou subcontratando concorrentes, ficando apenas com uma comissão?
Saliente-se que este contrato não é, contudo, a primeira experiência de Ricardo Leitão Machado associado ao sector florestal. Há uma década, segundo uma investigação da revista Visão publicada no início de Agosto de 2022, o cunhado do ministro da Presidência foi arguido num processo judicial relacionado com fraudes no acesso a apoios do Fundo Florestal Permanente. No processo, julgado no Tribunal de Sintra em Outubro de 2014, o empresário foi inicialmente acusado, juntamente com três outros arguidos, de burla qualificada e falsificação de documentos.
Registo mostra que a Helifinance Asset Management foi adquirida por Ricardo Leitão Machado apenas em 12 de Março de 2025.
Durante o julgamento, veio a ser alegada – e aceite pelo tribunal – a reparação integral dos prejuízos causados aos lesados, nomeadamente ao BPI, que reclamava cerca de 321 mil euros. Essa reposição permitiu a extinção da responsabilidade criminal pelo crime de burla, mas o julgamento prosseguiu quanto à falsificação de documentos, pelo qual Ricardo Leitão Machado acabaria condenado a pagar uma multa de 10.000 euros. Tentou ainda recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas sem sucesso.
No seu percurso empresarial, Ricardo Leitão Machado, que conta 45 anos, tem acumulado projectos e interesses diversos, incluindo a criação de cavalos e direitos nas Termas de Monfortinho, tendo também adquirido a Herdade do Vale Feitoso, uma propriedade com 7.300 hectares, que pertenceu a Ricardo Salgado. Terá pagado 25 milhões de euros. O cunhado de Amaro Leitão também teve negócios em Angola, onde terá enriquecido sobretudo durante o ‘reinado’ de José Eduardo dos Santos. Com a presidência de João Lourenço, os negócios complicaram-se. Em 2019, o Estado angolano arrestou os activos de uma sua empresa, a Aenergy, acusando-a de fraude num negócio de turbinas de mil milhões de euros. O caso está ainda num tribunal arbitral nos Estados Unidos.
Onde há fumo há fogo. E onde há contratos chorudos ganhos pelas mesmas empresas de sempre, há suspeitas de corrupção e cartelização. No caso da indústria de combate aos incêndios rurais, só o negócio de aluguer de meios aéreos já envolveu, desde o início do ano, 16 contratos de valor global superior a 181 milhões de euros.
Estes contratos são adjudicados pelo Estado-Maior da Força Aérea e o ‘bolo’ tem sido dividido por meia dúzia de empresas, incluindo a Agro-Montiar, uma subsidiária da empresa espanhola Titan (ex-Avialsa), condenada este ano em Espanha no âmbito do processo do ‘Cartel del Fuego’, como o PÁGINA UM noticiou em primeira mão, em Março passado.
Foto: D.R.
Não surpreende assim que a Polícia Judiciária (PJ) tenha hoje executado 28 mandados de busca a domicílios, sedes de empresas (não identificadas) e organismos públicos numa operação policial que decorreu de norte a sul do país. A operação ‘Torre de Controle’, levada a cabo pela “Unidade Nacional de Combate à Corrupção, em inquérito titulado pelo DCIAP”, segundo o comunicado da PJ, já levou à constituição de diversos arguidos, entre “pessoas singulares e coletivas”.
Segundo a PJ, “em causa estão factos suscetíveis de integrar os crimes corrupção ativa e passiva, burla qualificada, abuso de poder, tráfico de influência, associação criminosa e de fraude fiscal qualificada, através de uma complexa relação, estabelecida pelo menos desde 2022, entre várias sociedades comerciais, sediadas em Portugal, e que têm vindo a controlar a participação nos concursos públicos no âmbito do combate aos incêndios rurais em Portugal, no valor de cerca de 100 milhões de euros”.
O esquema criminoso envolverá, alegadamente, “concursos públicos [que] incidem na aquisição de serviços de operação, manutenção e gestão da aeronavegabilidade dos meios aéreos próprios do Estado, dedicados exclusivamente ao Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), com a intenção de que o Estado português fique com carência de meios aéreos e, dessa forma, se sujeite aos subsequentes preços mais elevados destas sociedades comerciais”.
Foto: D.R.
Ora, só este ano, num levantamento do PÁGINA UM, os contratos referentes a aluguer de meios aéreos no âmbito do DECIR superam os 181 milhões de euros, valor ao qual há que ser acrescentado o IVA. Foram sete as empresas que beneficiaram destes contratos: Agro-Montiar, Helibravo Aviação, HTA Helicópteros, Gesticopter Operations Unipessoal — ligada a familiares do ministro da Presidência, conforme revelou a SIC Notícias—, Airworks Helicopters, Avincis Aviation Portugal e Shamrock.
A empresa que mais facturou este ano com estes contratos foi a Agro-Montiar, subsidiária da Titan, que ganhou mais de 59 milhões de euros através de três contratos obtidos através de concurso público, como o PÁGINA UM noticiou em Março.
Segue-se a Helibravo, que facturou mais de 47 milhões de euros em quatro contratos ganhos num concurso público, segundo uma análise do PÁGINA UM, que consultou os contratos. A empresa ganhou três lotes daquele concurso, tendo os contratos sido assinados a 4 de Abril.
Um dos contratos, no montante de 12.860.005,40 euros, diz respeito ao aluguer de cinco helicópteros ligeiros por um período de quatro anos, no âmbito do dispositivo aéreo do DECIR 2025-2028. Um segundo lote, no valor de 13.241.995 euros, abrange o aluguer de mais cinco helicópteros ligeiros pelo mesmo período. Um terceiro lote ganho pela empresa, no montante de 13.292.000 euros, envolve o aluguer de outros cinco helicópteros ligeiros, até 2028.
Helicóptero da Helibravo em operações de combate a incêndios. (Foto: D.R.)
A Helibravo ganhou ainda um quarto contrato por concurso público, assinado no passado dia 7 de Maio, no valor de 7.737.201,12 euros para a locação de quatro helicópteros ligeiros no período de 15 de Maio a 30 de Setembro até 2027.
A terceira empresa que mais facturou este ano com contratos no âmbito do aluguer de meios aéreos para o combate aos fogos é a HTA que já ganhou quatro contratos que superam os 37 milhões de euros.
Três dos contratos foram obtidos num concurso público, tendo a assinatura dos documentos ocorrido a 13 de Março. O primeiro contrato, para o aluguer de dois helicópteros ligeiros até 2027, custou ao Estado 11.156.959,52 euros. O segundo, no valor de 2.951.546,87 euros, visou o aluguer de um helicóptero ligeiro de 1 de Junho a 31 de Outubro, até 2027. O terceiro contrato, no montante de 9.230.447,18 euros, assinado na mesma data, é relativo à locação de três helicópteros ligeiros até 2027. Esta empresa ganhou ainda um quarto contrato, no dia 2 de Abril, no valor de 13.807.929,20 euros, mas o documento não é público.
A Gesticopter teve ligações a um irmão e a um cunhado do ministro da Presidência, António Leitão Amaro. / Foto: D.R.
Outra empresa beneficiada, foi a Gesticopter, que, segundo a SIC Notícias, tem ligações a um irmão e a um cunhado do ministro da Presidência, António Leitão Amaro. Esta empresa facturou 16.375.617 euros num contrato assinado no passado dia 7 de Maio e que envolve a locação de três helicópteros pesados até 2027.
A Gesticopter foi constituída a 8 de Março de 2024 com um capital social de apenas cinco mil euros, com sede em Macedo de Cavaleiros. A empresa era detida pela Gestifly e tinha três gerentes: Pedro Alexandre Fernandes dos Santos Bento, Nuno Alexandre Pinto Coelho Torres de Faria e Luís Manuel Gil Pires Ferreira.
Outra empresa que não se pode queixar é a espanhola Airworks, com sede em Salamanca, que ganhou este ano dois contratos de aluguer de meios aéreos para combate aos incêndios. O primeiro, datado de 12 de Março, no valor de 5.671.680 euros, é relativo à locação de dois helicópteros ligeiros até 2027. O segundo, no montante de 10.060.864 euros, foi assinado a 2 de Abril, e visa o aluguer de quatro helicópteros ligeiros até 2028.
Segue-se a Shamrock, com sede em Carnaxide, que facturou 2.988.000 euros num contrato adjudicado no passado dia 7 de Maio relativo ao aluguer de dois aviões ligeiros de reconhecimento até 2027.
Por fim, o contrato mais recente, assinado no dia 8 de Maio, que foi adjudicado à Avincis Aviation Portugal, com sede em Loures, com um valor de 2.349.937,08 euros. Este contrato visa a locação de um helicóptero ligeiro de 15 de Maio a 15 de Outubro até 2027.
Em Portugal, surge o calor, surgem os incêndios; surgem os incêndios, surgem as acusações de incendiarismo. Por mais que se conheçam as causas e o regime dos fogos devastadores em Portugal, todos os anos aos primeiros fogos com alguma dimensão, além do pânico cada vez maior, sobretudo após as mortandades de 2017, aparece uma miríade de «comentadores de bancada» apontando quase exclusivamente o dedo ao São Pedro (leia-se, clima mediterrânico, com os seus Verões quentes e secos, por vezes ventosos) e aos malévolos incendiários, como se os fogos de grande dimensão, e só esses, tivessem um ADN próprio.
Viu-se isto esta semana, não pela boca apenas de um bombeiro mais extenuado ou de um autarca mais estouvado, mas do próprio primeiro-ministro, Luís Montenegro, que prometeu “ir atrás” dos criminosos e dos “interesses que sobrevoam” os incêndios florestais. Encontrar um ‘inimigo’ vago, mas que apela à emoção popular, é uma típica estratégia da ‘falácia do espantalho’, que servia, aliás, na perfeição para não discutir como foi possível não se ter encerrado a tempo a A1. Foi um milagre não ter ocorrido uma tragédia pior do que a de Pedrógão Grande em 2017.
No meio disto, culpa-se sempre a floresta “desregrada”, mas as mudanças espoletadas pelos Governos, desde os anos 90, quando se agravou a incidência destrutiva, e sobretudo desde os trágicos anos de 2003, 2005 e 2017, são pouco mais do que incipientes e conjunturais. Nada se muda de estrutural, nada se modifica. É tudo para fazer de conta, como os “pechisbeques” dos kits de protecção anti-fogos comprados a uma empresa de turismo, e que afinal eram os primeiros a arder – uma situação tão ridícula que até causa vergonha alheia.
Incêndio em Vale da Carreira, Sardoal. Foto: Paulo Jorge de Sousa/mediotejo.net
Infelizmente, esta irritante tendência dos políticos de “fazer que fazem”, e dos portugueses em geral a culpar entes diabólicos ou a opinar com base na ignorância – vulgo, a dar bitaites –, constituem os principais factores sociopolíticos para não se mudar o paradigma de gestão da floresta e dos espaços florestais.
Afinal, porquê mudar se tudo estaria bem sem os incendiários a colocar fogos? Não bastaria apanhá-los todos e metê-los na prisão? E não bastava que os proprietários “limpassem” os matos? Infelizmente, a resposta é não.
Procurarei, em traços muitos breves, neste texto, apresentar algumas reflexões.
Comecemos, assim, por «desculpabilizar», desde já, o clima mediterrânico. Na verdade, a Natureza é como é. Em termos de risco, o clima mediterrânico está para Portugal como os terramotos estão para o Japão. Não quer isto dizer que são situações similares, mas apenas que o Japão soube ao longo do tempo minimizar os riscos (através da construção anti-sísmica e planos de prevenção e acção). O Japão não se queixa dos deuses por causa dos terramotos e, apesar de quando em vez serem graves, não causam agora as mortandades que se registavam até ao início do século XX.
A analogia nem sequer é muito feliz, porque o clima mediterrânico tem inegáveis vantagens que os terramotos obviamente não têm. Além de nos beneficiar com uma meteorologia que inveja meio mundo, e que fornece matéria-prima para o turismo, o clima mediterrânico concede à nossa floresta – e à vegetação em geral – condições quase únicas para um elevado crescimento, e portanto um elevado potencial económico, se bem gerido.
De acordo com um recente estudo internacional, Portugal é o país mediterrânico que, potencialmente, maior riqueza no sector florestal pode extrair por hectare (344 euros por ano). Por exemplo, França regista 292 euros e Espanha apenas 90 euros. Devíamos agradecer à Natureza este clima; não “amaldiçoá-la”.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017) Foto: Paulo Jorge de Sousa
Sendo incontornável que haverá sempre incêndios, porque o mundo não é perfeito, vejamos onde está o cerne do problema em Portugal. Sobretudo nas últimas três décadas, o regime do fogo tem estado sobretudo associado a dinâmicas antropogénicas, tanto ao nível de acções danosas (negligência à cabeça, e algum dolo) e da (in)capacidade de supressão de incêndios, como ao nível da gestão de combustíveis e de planeamento territorial.
No entanto, embora exista uma forte correlação entre número de ignições e a densidade populacional em regiões mediterrânicas – por exemplo, o distrito do Porto é historicamente aquele que regista mais ignições –, tal já não se verifica entre o número de ignições e área ardida. Com efeito, são factores como a orografia, a precipitação fora da época de estiagem e a percentagem de área inculta que apresentam maiores correlações positivas com a área ardida total.
Os efeitos dos incêndios apresentam-se assim, numa base regional, como problemas de distinta intensidade e dimensão. Mais população significa maior número de ignições, mas a maior área ardida observa-se sobretudo em regiões de menor densidade demográfica. Exemplo paradigmático dessa “dualidade” regional observa-se num dos períodos de recrudescimento dos incêndios florestais, entre 1996 e 2005, período sobre o qual me debrucei com detalhe quando escrevi o ensaioPortugal: O Vermelho e o Negro‘, publicado em 2006, mas que ainda hoje, retirando a parte estatística mais ‘datada’ mantém uma infeliz actualidade.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017) Foto: Paulo Jorge de Sousa
Tendo sido contabilizadas, neste intervalo, cerca de 284 mil ignições e uma área ardida de quase 1,64 milhões de hectares, a distribuição foi a seguinte: 39,2% do total das ignições (cerca de 111 mil) concentraram-se em apenas 25 concelhos (quase todos do litoral, mais densamente povoado), mas ardeu aí apenas 10,3% do total nacional (menos de 170 mil hectares); e nos 25 concelhos com menor número de ignições (todos do interior despovoado) registaram-se apenas 10,7% do total (pouco mais de 30 mil) mas contribuíram em 39,0% (cerca de 640 mil hectares) para o total da área ardida.
O êxodo rural em Portugal, iniciado nos anos 60 e agravado significativamente a partir de meados da década de 1980, mostra-se, sem dúvida, como uma das principais causas para o surgimento de fogos devastadores. Um dos efeitos da perda demográfica especialmente sentida nas aldeias, após a implementação da Política Agrícola Comum, foi a eliminação quase total e imediata de práticas e usos tradicionais associados à agricultura, pastorícia e silvicultura, que contrariavam a ocorrência e a propagação dos incêndios.
A sociedade rural, imagem de marca de Portugal durante séculos, modificou-se de forma abrupta em poucas décadas, levando simplesmente ao abandono de vastas áreas agrícolas e florestais, sem a ocorrência de qualquer transferência relevante de direitos de propriedade para quem não seguiu esse êxodo para as cidades e litoral. A população empregada no denominado sector primário tradicional passou de expressivos 47,6% em 1950 para apenas 2,8% em 2011.
Como reverso dessa “moeda de modernidade”, foi colossal a redução de actividades permanentes no espaço rural: em 2011 eram apenas 120 mil pessoas com emprego no sector primário, enquanto em 1950 suplantavam 1,5 milhões. Paradoxalmente, apesar dessa evolução, e por via de planos directores municipais demasiado permissivos, aumentaram as habitações em espaço florestal ou contíguo, sobretudo de segunda residência, levando não só a uma maior probabilidade de procedimentos negligentes causadores de fogos como também a um agravamento da complexidade do combate.
Efectivamente, muitos dos grandes incêndios tomaram proporções incontroláveis porque o sistema de combate, bem como os investimentos de prevenção, tem tido como prioridade a defesa de bens (habitações e equipamentos) em detrimento da protecção da floresta. O problema desta estratégia é de aumentar a probabilidade de incêndios devastadores, que assim destroem mais floresta e, provavelmente, mais casas.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
O aparente paradoxo patente na ocorrência de uma maior destruição pelos incêndios onde mais se reduziu a quantidade de pessoas – sabendo-se serem estas que causam os fogos –, explica-se facilmente. O surgimento de incêndios devastadores sobretudo desde o início do século XXI decorre do incremento muito significativo da biomassa vegetal nos espaços florestais, tanto horizontal como verticalmente, em virtude das mudanças socioeconómicas – que levaram ao desaproveitamento de subprodutos florestais (e.g., lenha, matos, etc.) – e do forte abandono agrícola e florestal.
Em 2010 a área agrícola era a menor desde o início do século XX e a área e mato (com pastagens) estava em vias de ultrapassar a área florestal, algo que não acontecia desde a década de 1940. Entre 1950 e 2010, a área de matos e pastagens quase quadruplicou, passando de 885 mil hectares para um pouco acima de três milhões de hectares, o valor mais elevado desde a década de 1920.
Por outro lado, a política florestal a partir dos anos 80 – que coincidiu com o agravamento do problema dos incêndios – privilegiou sobretudo a substituição de áreas de pinhal, algumas afectadas pelos fogos, por eucaliptais (ambas espécies altamente combustíveis), mantendo-se na generalidade dos casos uma deficiente gestão antrópica, enquanto ao redor desses espaços florestais medraram matagais.
Para agravar a situação, aumentaram os fenómenos meteorológicos extremos, bem patentes no ano de 2017, com dois devastadores períodos a ocorrerem fora do Verão (Junho e Outubro). As condições meteorológicas do mês de Setembro deste ano foram também muto agressivas, e localizadas em regiões restritas, bem patente em destruições que, por vezes, ultrapassam meia centena de milhar de hectares, ou mesmo mais, em apenas um dia. Isso é uma consequência não apenas meteorológica. Com uma floresta mesclada com matagais e densos estratos vegetais, por vezes intransponíveis, também pela orografia, e sem o “obstáculo” das outrora zonas agrícolas – que serviam de zonas-tampão –, os fogos encontram agora extenso e contínuo combustível para galgarem milhares e milhares de hectares.
Outro aspecto particularmente grave, que se tem vindo a intensificar, é a recorrência do fogo, i.e., a maior susceptibilidade de determinadas regiões a serem percorridas ciclicamente por incêndios, retirando-lhes assim qualquer possibilidade de rentabilidade económica, o que incentiva a manutenção deste status quo.
Por exemplo, um estudo desenvolvido pelo Instituto Superior de Agronomia para um período de 16 anos (entre 1990 e 2005) apurou que quase 300 mil hectares arderam duas vezes, cerca de 83 mil hectares três vezes e uma área de 28 mil hectares foram afectados pelo menos quatro vezes, estando essa recorrência associada a queimadas para pastagens. Torna-se assim absurdo, com tamanhas recorrências, tentar encontrar interesses, urbanísticos ou mineiros, como causa para os fogos. Até porque a eliminação das árvores não traz sequer vantagens, a não ser em zonas periurbanas, para a construção, além de que, no caso de explorações mineiras, a autorização nunca estará condicionada à existência ou não de cobertura arbórea na zona a licenciar.
Nas análises sobre os incêndios florestais em Portugal um outro factor que sempre surge é o alegado contributo do regime de propriedade, marcadamente de minifúndio sobretudo a norte do rio Tejo e no Algarve. Embora os dados oficiais sejam pouco precisos sobre o cadastro e a propriedade rústica em Portugal, e sobretudo em relação às propriedades com uso silvícola, sabe-se que Portugal está, segundo a FAO, entre os 10 países do mundo com maior percentagem de área florestal privada, ocupando a primeira posição a nível europeu.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Os valores geralmente apontados para caracterizar o regime fundiário na floresta portuguesa baseiam-se em estimativas ou em amostragens, ou também em informação dos recenseamentos agrícolas. Por esse motivo, embora a Autoridade Tributária e Aduaneira indique a existência de 11.578.124 prédios rústicos no ano de 2015, ignora-se os que são ocupados por floresta, e nem se sabe se este número corresponde à realidade, uma vez que nem existe coincidência entre os registos do Cadastro Predial, da Matriz das Finanças e do Registo Predial. Esta ignorância é também demonstrativa do desleixo geral do país relativamente a um problema crucial. A criação do Balcão Único do Prédio (BUPi) tem contribuído para inverter esta situação, mas também tem revelado uma tenebrosa realidade: há uma parte substancial dos prédios rústicos sobre os quais ninguém reivindica a propriedade. Ou seja, estão ao abandono, são ‘pasto de chamas’, e se arderem levam muitas outras áreas atrás.
Em todo o caso, grosso modo estima-se que as propriedades públicas, incluindo os baldios (com gestão conjunta do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas), agrega cerca de 540 mil hectares, estando assim a restante área ocupada por proprietários privados.
Na região a norte do Tejo, onde se localiza a esmagadora maioria da área de pinheiro e eucalipto, e se concentra o minifúndio, cerca de 54% da área florestal encontra-se distribuída por povoamentos com menos de 10 hectares. No caso do pinheiro, 63% dos povoamentos têm áreas inferiores a 10 hectares e 25% áreas inferiores a dois hectares, enquanto no caso do eucalipto cerca de metade dos povoamentos têm dimensão inferior a 10 hectares.
Há cerca de uma década, aquando da elaboração da Estratégia Nacional para as Florestas, estimou-se que cerca de 61% do total dos proprietários florestais possuíam parcelas com menos de cinco hectares, embora apenas detivessem cerca de 26% da área florestal do país, dando assim uma ideia clara da predominância do regime de minifúndio.
Com efeito, cerca de 10% da área florestal era formada por parcelas com menos de um hectare e 16% por parcelas entre um e cinco hectares, significando isto ser muito frequente um proprietário possuir, de forma disseminada, um elevado número de parcelas de reduzidíssima dimensão.
Para agravar a situação, grande parte das propriedades com área inferior a cinco hectares possuíam povoamentos dominados por pinheiro, dimensão onde impera geralmente ausência de investimento, e também pouca expectativa de obtenção de rendimento. Numa postura optimista, estas minúsculas parcelas florestais – que podem representar, em manchas contínuas, centenas de milhar de hectares – constituem, individualmente, meros fundos de poupança para satisfação de necessidades económicas conjunturais. No caso das propriedades inferiores a um hectare não existia mesmo qualquer produção, tanto mais que numa percentagem significativa os proprietários nem sequer sabem identificar nos terrenos as suas parcelas.
Nas ciências económicas, a denominada Teoria dos Jogos mostra, infelizmente, que a melhor decisão de um qualquer agente numa parcela de “floresta” rodeada por proprietários absentistas é não fazer qualquer gestão, porque a probabilidade de arder gastando ou não dinheiro é praticamente a mesma, e assim optando por não fazer gestão, pelo menos “poupa-se” nesses custos.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Ou seja, não há receitas mas também não há custos, logo não há prejuízo. Claro, o prejuízo vem para a sociedade, através da destruição dos incêndios, i.e., de uma externalidade negativa. Esta é a triste realidade portuguesa: face à ausência de associativismo florestal, a inacção de diversos agentes causa uma generalizada inacção, porquanto o risco de um investimento se “esfumar” com um incêndio, proveniente da ausência de gestão em redor, acaba por determinar, como estratégia dominante, ninguém fazer gestão.
No caso do eucalipto, a situação era um pouco melhor, tendo em consideração que grande parte da sua área se situava em propriedades com dimensão entre os cinco e os 20 hectares (12% do total da área florestal) e entre os 20 e os 100 hectares (7% do total). Nestes casos verificava-se já uma presença de investimento e gestão, tendo a exploração um rendimento relevante para os proprietários. A restante área (55%), agregando 15% dos proprietários, possuía uma dimensão superior a 100 hectares, embora dominada por sobreiros e azinheiras, portanto sobretudo localizadas a sul do Tejo e em herdades do distrito de Santarém.
Porém, este cenário, que desde 2007 não se terá alterado, pode induzir a uma conclusão precipitada. Sendo certo que uma estrutura de minifúndio pode conduzir mais rapidamente à ineficiência económica, será imprudente generalizar e determinar uma correlação imediata entre incêndios e minifúndios. De facto, mostra-se conveniente investigar antes esta questão por duas novas perspectivas, complementares.
Primeiro, deve analisar-se diacronicamente o regime fundiário português para determinar se ocorreu algum fenómeno que tenha alterado a estrutura da propriedade típica e que per si justifique um agravamento dos incêndios florestais a partir da década de 1980.
Segundo, comparar a afectação das áreas ardidas em função da tipologia dos proprietários, ou seja, pôr em paralelo o grau de destruição das áreas de gestão pública, de gestão pelas empresas de celulose (que gerem áreas de maior dimensão) e as restantes áreas privadas que incluem o minifúndio.
No primeiro caso, analisando a informação disponível em diversas fontes, verifica-se que o fraccionamento da propriedade rústica é um fenómeno antigo e já bastante estabilizado. Com efeito, a génese do minifúndio surge no decurso de um processo político iniciado nos anos 30 do século XIX, com a instauração da Monarquia Constitucional, que resultou na desamortização de grandes propriedades então pertencentes à nobreza e à Igreja.
Posteriormente, teve ainda um maior impulso com a definitiva abolição dos morgados e a entrada em vigor do Código Civil de 1867, quando estabeleceram sem excepção direitos de herança a todos os filhos. Uma década depois existiam cerca de 5,05 milhões de prédios rústicos, manifestando-se já nesse período excessiva fragmentação, sobretudo na região do Noroeste, com efeitos perniciosos em termos de desenvolvimento agrícola.
Apesar de várias tentativas políticas para evitar o contínuo fraccionamento por via das heranças, somente nos anos 20 do século XX, quando o número de prédios rústicos já ultrapassara os 10,7 milhões, se criou legislação para o estancar, através do Decreto nº 16731 (vd. artigo 107º) que decretou a nulidade de qualquer partilha de prédios com menos de um hectare ou que daí resultassem parcelas inferiores a meio hectare. Esta medida travou fortemente o fracionamento, embora não o impedisse na totalidade.
Se até 1930, em comparação com o último quartel do século XIX, numa parte considerável dos distritos a norte do Tejo mais que duplicou o número de prédios rústicos, a partir dessa década o ritmo estancou. Em 1960 verificou-se até um decréscimo de cerca de 2% em relação ao início do Estado Novo.
Incêndio em Saramaga, Sardoal (2017). Foto: Paulo Jorge de Sousa
A partir dessa década registou-se um novo crescimento no fracionamento, mas mesmo assim suave, atingindo-se um máximo de 11,17 milhões de prédios em 1971. A partir da instauração da democracia, em 1974, o acréscimo foi ligeiro, da ordem dos 0,12% por ano até 2015, estando nessa data contabilizados cerca de 11,58 milhões de prédios rústicos.
Sendo assim, outros factores, e não (apenas) o minifúndio, terão determinado a perda de interesse económico da floresta nas pequenas parcelas e a eclosão de incêndios catastróficos. Uma explicação encontra-se por via sociológica. Durante o Estado Novo, com uma sociedade marcadamente rural, as vivências sociais permitiam um uso comum das propriedades florestais privadas. Ou seja, de modo informal mas cooperativo, os proprietários concediam livre acesso aos não-proprietários para estes, graciosamente, recolherem alguns produtos (e.g., lenha, caruma, matos, etc.), para uso doméstico e agropecuário, «recebendo» em troca uma gestão de combustíveis.
A presença de pessoas nas florestas constituía também uma vigilância quase contínua e dissuasora de comportamentos dolosos ou negligentes por parte de terceiros. Além disso, tendo presente que, durante o Estado Novo, a produção de resina constituía um importante suplemento económico dos pinhais, fica-se com uma ideia clara dos motivos muito prováveis para que, neste período, mesmo os minifúndios florestais fossem rentáveis e estivessem longe de constituir um factor de risco de incêndios. Na verdade, as condições sociais e de cooperação tradicional, que então se viviam nas zonas rurais portuguesas, parecem ter constituído um sistema benigno de interligação entre regime privado e comunal por via da cooperação entre agentes que visam a um equilíbrio sustentável.
Deixando de existir esse ténue equilíbrio, por força do êxodo rural e da perda económica dos pinhais, a gestão de combustíveis foi desaparecendo, redundando num aumento do risco de incêndio, desincentivador de investimentos e promotor de absentismo.
Na análise desta evolução não podem dissociar-se as reestruturações neste sector pela Administração Pública a partir dos anos 80, que contribuíram decisivamente para retrocessos na prevenção silvícola e na eficácia e eficiência do sistema de combate aos incêndios.
Nesse aspecto convém destacar o diagnóstico traçado em 2012 na Estratégia para a Gestão das Matas Nacionais, promovida por técnicos da própria Administração Pública onde se apontam os principais factores que contribuíram para a degradação da protecção das florestas e espaços florestais: a diminuição dos condicionamentos de acesso às matas nacionais e da fiscalização dos guardas florestais (a partir de 1974), a transferência do combate aos incêndios dos Serviços Florestais para as corporações de bombeiros voluntários (a partir de 1981), o encerramento das administrações florestais a nível regional (a partir de 1996), bem como, mais recentemente, o desligamento das tarefas de gestão do corpo de guardas e mestres florestais, e a transferência da competência de análise e decisão dos projectos florestais para o actual Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) e outros organismos sem vocação nem técnicos nas áreas silvícolas.
O esvaziamento dos Serviços Florestais (com distintas denominações), criados no início do século XX, intensificou-se desde a década de 1990, passando em poucos anos de cerca de quatro mil funcionários para menos de mil. Inclui-se neste lote o Corpo Nacional de Guardas Florestais – que tradicionalmente viviam no interior dos espaços florestais em cerca de mil casas de função –, cuja estrutura foi extinta em 2006, tendo sido integrados os trezentos elementos remanescentes nos Serviços de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Estas alterações políticas resultaram, sem dúvida, num aumento do risco de incêndio e da susceptibilidade das florestas e dos espaços florestais em geral, mas também particularmente das matas nacionais e perímetros florestais (que integram os baldios), geridas pelos Serviços Florestais. Essa situação mostra-se evidente quando se comparam os registos da área ardida das florestas sujeitas a regime público até à década de 1970 e posteriores à década de 1980.
A situação apresenta contornos catastróficos nos últimos anos. Por exemplo, nos anos de 2016 e 2017 cerca de 20% da área sob gestão pública foi afectada por fogos, sendo que em 18 perímetros e matas nacionais se registaram destruições superiores a 70% das respectivas áreas, estando aqui incluído o secular Pinhal de Leiria.
Lamentavelmente, a destruição das florestas públicas desde 2001 (4,62% em média por ano) ultrapassa largamente os valores das propriedades das celuloses (2,33%) e mesmo da restante área privada (2,28%), que inclui o minifúndio.
Por todos estes motivos, a análise da perda de sustentabilidade da floresta portuguesa e os prejuízos recorrentes das externalidades negativas, encabeçadas pelos incêndios, não deve ser feita de forma simplista face à complexa teia de factores: a quebra dos vínculos sociais informais nos meios rurais, o abandono de actividades agroflorestais tradicionais, a emigração e êxodo rural, a perda da sustentabilidade da agricultura de minifúndio, etc.. Porém, quando se recomendaria que o Estado, perante estas variáveis, tivesse uma intervenção determinante para corrigir falhas de mercado, sucedeu o oposto: um desinvestimento no sector florestal. O único sector com orçamento reforçado foi o do combate aos incêndios.
As autoridades nacionais portuguesas somente a partir de meados da década passada começaram a contabilizar os custos directos e prejuízos resultantes dos incêndios, incluindo uma parte das externalidades, embora recorrendo a métodos muito simplistas, que requerem alguma reserva. Antes desse período, a Universidade Católica de Lovaina, no âmbito da Emergency Disasters Database, estimara que os prejuízos dos fogos de 2003, que destruíram cerca de 425 mil hectares, ascendiam aos 1,5 mil milhões de euros.
Nos trabalhos preparatórios realizados em 2006 para a Estratégia Nacional para as Florestas estimou-se que os incêndios representavam uma externalidade negativa de cerca de 380 milhões de euros por ano, reduzindo em 30% a riqueza anual produzida pelas florestas. E, de acordo com dados oficiais, os incêndios rurais entre 2000 e 2016 provocaram perdas da ordem dos 5.232 milhões de euros. No ano de 2017, o pior desde a existência de registos estatísticos, os prejuízos ter-se-ão aproximado dos mil milhões de euros.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Até recentemente estes aspectos eram ignorados pelas autoridades oficiais, e mesmo os custos de supressão – associados às infraestruturas e equipamentos, aluguer de aeronaves e pagamentos aos bombeiros – eram vistos como investimento, e um Governo considerava ser-lhe favorável politicamente conceder acréscimos sucessivos à componente de combate.
Contudo, a realidade demonstra, infelizmente, que os gastos públicos na vigilância e supressão dos incêndios florestais têm estabilizado em torno dos 100 milhões de euros por ano, mas sem quaisquer efeitos positivos. Os prejuízos dos incêndios mostram variações aleatórias sem relação com os gastos em combate. Esse cenário demonstra que, na verdade, os gastos na prevenção e em equipamentos e meios humanos para controlar os incêndios (supressão) não têm um efeito determinante na área ardida e, portanto, nos prejuízos, evidenciando-se que o actual modelo de gestão se mostra insustentável.
A solução para este grave problema económico, social e ambiental, que já se mostra tragicamente crónico, terá de passar, na minha opinião, pela assumpção da defesa da floresta como um bem público (no conceito das ciências económicas), implementando, a partir daí, uma reforma administrativa intersectorial já defendida por diversos especialistas.
No entanto, considero que, ao contrário daquilo que têm sido os recentes sinais de política económica para este sector, o Estado deveria deixar de desempenhar apenas um papel de mero coordenador, regulador e redistribuidor de recursos financeiros; antes sim deveria passar a exercer uma função interventora de gestão directa dos espaços florestais, incluindo obviamente, até para dar exemplos de boas práticas, as florestas de regime público.
Isto não significa a privatização das florestas, antes sim assumir-se que o Estado é indubitavelmente a única entidade com capacidade de intervenção global para implementar, gerir e executar um modelo centralizador para a gestão dos espaços florestais. Note-se que existe uma distinção entre floresta – bens privados – e os espaços florestais – conjunto de parcelas que fornecem externalidades positivas, como ar limpo, paisagem e outros benefícios para a sociedade, e por isso são bens públicos, na visão económica do termo –, e daí necessitam de abordagens distintas.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
Distinguir estes dois bens que, na verdade, coexistem – e, por vezes, se confundem por «comungarem» do mesmo espaço físico – serve sobretudo para colocar, de um lado, um bem sobretudo privado (floresta) que, por razões complexas, tem vindo a criar externalidades negativas (incêndios); e, do outro lado, um bem público (espaços florestais) que criam benefícios para a sociedade.
Ora, actualmente, porque estes benefícios não são convenientemente remunerados (ou compensados) acabam por ser «lesivos» para todos. Com efeito, o conjunto de proprietários que produz esse benefício para a sociedade nada recebe, e, em alguns casos, até tem de suportar mais encargos para proteger bens alheios.
Face ao carácter de minifúndio das propriedades, a ausência de uma compensação aos proprietários florestais por essa externalidade positiva para a sociedade contribui para o agravamento da sustentabilidade económica dessas parcelas e induz a um maior absentismo. Ou seja, a existência de uma externalidade positiva (porque um serviço ambiental não é pago pela sociedade) pode estar na origem de uma externalidade negativa (os incêndios). E havendo incêndios, não apenas ocorrem danos económicos e sociais directos como se perdem os benefícios fornecidos pelos espaços florestais. Daí a necessidade de intervenção directa do Estado, bem diferente daquela que até agora tem sido, para equilibrar aquilo que se chama uma “falha de mercado”.
Justifique-se, com um simples mas elucidativo exemplo, as razões para se defender uma intervenção directa do Estado, e não apenas reguladora e distribuidora de fundos. Quando, como actualmente sucede, o Governo determina administrativamente (e sem critério técnico, por vezes) que sejam os proprietários das florestas a proceder e a assumir os custos da desmatação e desarborização em redor de habitações (das quais, por vezes, nem são os proprietários), não está a seguir princípios de eficácia, de eficiência e de equidade.
Por um lado, porque essa obrigação quase nunca é eficaz nem eficiente, uma vez que não se baseia em estratégias de prevenção nem em estudos que definam adequadamente faixas de gestão de combustíveis, nem existe a garantia, face ao absentismo de muitos proprietários, de que essas operações sejam executadas. Por outro lado, obrigando apenas certos proprietários a assumir esse ónus, o Estado beneficia free-riders, i.e., os proprietários das habitações em redor (muitas das quais autorizadas após a existência da floresta) e os vizinhos florestais isentos dessas operações.
E mesmo que este controlo de vegetação fosse eficaz para eliminar a externalidade negativa (incêndios), manter-se-ia a iniquidade, porquanto o proprietário responsável pela operação de limpeza não fora compensado por esse serviço – i.e., a criação de uma externalidade positiva – com a agravante de ainda ter uma perda de rendimento potencial por redução de biomassa florestal.
Não se está a advogar um Estado a gerir as florestas privadas, mas sim a exercer a gestão dos espaços florestais, podendo eventualmente «entrar» em áreas privadas, como já sucede em outros casos, através de servidões administrativas, de modo a corrigir externalidades, sempre também com uma visão nas funções de redistribuição e mesmo de estabilização.
Assim, de uma forma muito sucinta, por via de um reforço da Administração Pública do sector florestal, proporia a criação de um denominado Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF) numa instituição estatal autónoma que deveria agregar equipas de técnicos, vigilantes e sapadores florestais, com a missão de executar no terreno as operações necessárias de gestão de combustíveis (biomassa), de vigilância e controlo de acessos, e ainda supressão de incêndios. Por outro lado, no âmbito deste modelo, deveria ser criado um mecanismo de compensação económica ou fiscal, através de um sistema de perequação, para benefício dos proprietários dos terrenos florestais onde se fizessem intervenções de controlo de vegetação.
Incêndio em Vale da Carreira (2016). Foto: Paulo Jorge de Sousa
No sentido de o Estado financiar este sistema como uma provisão de um bem público – e sem necessidade de contabilizar os rendimentos de um previsível aumento das receitas dos impostos (IRC e IRS) associados à melhoria da produtividade das actividades silvícolas por eliminação das externalidades – poder-se-ia apostar em três fluxos financeiros: separando-o do mastodóntico Fundo Ambiental, um reforço no Fundo Florestal Permanente (cujas receitas, para além do actual adicional ao ISP, poderiam ser provenientes de um «imposto» específico similar a aplicar aos produtos de origem silvícola, sendo assim uma forma de internalização pela sociedade das externalidades positivas concedidas pelos espaços florestais); um adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis rústicos (aplicando uma taxa regressiva por prédio rústico em função da área, também como incentivo ao emparcelamento e/ou como penalidade à manutenção de áreas improdutivas); e uma denominada Taxa de Protecção de Espaços Florestais (sob a forma de taxa fixa por prédio urbano e veículo).
Um sistema deste género implicaria elevados investimentos, mas esse montante será incomensuravelmente menor do que as externalidades negativas existentes.
A versão original, sem a actualização agora realizada, foi publicada na revista PONTO – revista do mediotejo.net, em 2021, acessível aqui. O PÁGINA UM apresenta os agradecimentos à directora do Médio Tejo, Patrícia Fonseca, e ao fotógrafo Paulo Jorge de Sousa.
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O maior incêndio deste ano, reactivado ontem, dois dias após ser considerado controlado, vem mostrar sobretudo as crónicas falhas no combate e na gestão florestal, sobretudo em zonas sob gestão do Estado. As áreas protegidas continuam a ser as zonas mais fustigadas ano após ano. Na Serra da Estrela, metade da área foi atingida pelas chamas desde 2017. No presente século, pouco ou quase nada não foi passada pelo fogo. Mas não é um exclusivo. O PÁGINA UM apresenta um retrato de uma triste realidade que atinge as nossas áreas (des)protegidas.
O Parque Natural da Serra da Estrela não é apenas a maior área protegida do país. Com o violento incêndio da última semana – acrescido de reacendimentos que vieram reavivar as crónicas deficiências do sistema de gestão florestal e de combate aos fogos –, também já é aquela com maior superfície ardida desde o início do século em função da área total.
Embora ainda seja prematuro estabelecer a dimensão final, por ainda estar em curso o incêndio que começou no dia 6 – e que ontem se reactivou –, estima-se que já tenham sido destruídos 22.343 hectares este ano na Serra da Estrela, de acordo com valores avançados pelo Público.
Considerando este valor, os incêndios nesta área protegida – que ocupa 89.132 hectares no centro do país, quase nove vezes a cidade de Lisboa – já lavraram cerca de 85 mil hectares desde 2001, segundo os registos do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) consultados pelo PÁGINA UM.
Embora algumas partes da Serra da Estrela – como sucede noutras regiões – tenham sofrido mais do que um fogo ao longo das últimas duas décadas, a área ardida acumulada nesta área protegida é agora de quase 96%. Ou seja, são poucas as zonas desta região que não “sentiram” o fogo no presente século.
Os incêndios deste mês fizeram assim que o Parque Natural da Serra da Estrela ultrapassasse aquele que era então a área protegida mais vulnerável ao fogo: o Parque Natural do Alvão, com 84,2% da área ardida acumulada desde 2001.
Contudo, esta área protegida de reduzidas dimensões – com apenas 7.238 hectares, localizada nos municípios de Mondim de Basto e Vila Real, e que tem as Fisgas de Ermelo como principal atracção – tem sido poupada aos fogos nos últimos anos.
Desde o início do século, quase toda a área ardida no Parque Natural do Alvão se concentrou em 2001 (6.094 hectares) e em 2013 (3.154 hectares).
Ao invés, o Parque Natural da Serra da Estrela regista sistematicamente fogos com dimensão relevante. Desde 2001 contabiliza nove anos sempre com mais de 2.000 hectares ardidos, sendo que em três se superaram os 10 mil hectares: 2003 (11.593 hectares); 2017 (20.202) e este ano, onde já se terá superado os 22 mil hectares.
A situação dramática da Serra da Estrela é apenas o reflexo supremo do estado calamitoso das áreas protegidas do país que, embora naturalmente de maior risco de incêndios pela abundância vegetal, se mostram, na prática, completamente desprotegidas. Na verdade, ardem mais do que as áreas não-protegidas, apesar de ocuparem apenas 742 mil hectares, ou seja, cerca de 8% do território português.
De acordo com uma análise do PÁGINA UM, os incêndios dentro das 48 áreas classificadas em Portugal Continental – sendo 32 geridas pelo ICNF, 15 por municípios e uma por privados – afectaram, desde 2001, um total de 229.559 hectares, ou seja, 31% do total. Convém referir, contudo, a existência de recorrências em determinadas áreas.
Zonas protegidas classificadas com área total e área queimada (em hectares) e área afectada (em percentagem) entre 2001 e 2022 (dados provisórios). Fonte: ICNF.
Embora a destruição em 2022 em áreas classificadas esteja já próxima dos 30 mil hectares, o pior ano continua ainda a ser 2003. Nesse ano, os incêndios afectaram 40.717 hectares, dos quais 20.139 hectares no Parque Natural de São Mamede e 11.5593 hectares na Serra da Estrela.
Há cinco anos, em 2017, os fogos dizimaram mais 34.608 hectares de áreas protegidas, com destaque para os 20.202 hectares também na Serra da Estrela e os 9.986 hectares no Parque Natural do Douro Internacional.
Destaque-se, de igual modo, os anos de 2010 e 2016 com vastas zonas de áreas protegidas fustigadas por incêndios. No primeiro ano ardem 16.225 hectares e no segundo 16.695 hectares.
Porém, o fenómeno dos incêndios não é homogéneo por todas as zonas classificadas, tanto mais que uma quantidade substancial é de pequena dimensão, de carácter menos rural e/ ou integrando sobretudo ecossistemas menos propensos ao fogo (zonas húmidas, por exemplo).
Assim, de acordo com os registos do ICNF, 98% de toda a área ardida desde 2021 concentra-se em apenas 14 zonas protegidas.
Além da Serra da Estrela e do Alvão, as áreas protegidas mais fustigadas são a Área de Paisagem Protegida do Corno do Bico (70% da área afectada), o Parque Nacional da Peneda-Gerês (46%), os Parques Naturais da Serra de São Mamede (39%), do Douro Internacional (38%), da Serra de Aire e Candeeiros (31%), do Montesinho (24%), da Ria Formosa (16%) e de Sintra-Cascais (11%).