Etiqueta: Editorial

  • Ao pântano, a ERC adiciona a pulhice

    Ao pântano, a ERC adiciona a pulhice


    A notícia de manchete desta noite do PÁGINA UM – sobre os 14 “jornalistas comerciais” identificados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – demonstra sobretudo o estado pantanoso (e já comatoso) da nossa imprensa.

    Sob a capa de necessidades de mercado e das sempre presentes dificuldades económicas (não se falando que, por regra, o mercado não aprecia produtos de má qualidade e fraca credibilidade), grande parte dos grupos de media lançaram-se para os braços de empresas privadas e entidades públicas, mercadejando o trabalho dos jornalistas, que se exige independente.

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    Não está aqui em causa a publicidade ou a existência de parcerias comerciais estabelecidas pelos departamentos de marketing dos grupos de media, mas sim o uso da figura do jornalismo e da actividade do jornalista para promoção de produtos e de marcas, incluindo o nome de empresas públicas ou privadas, ou mesmo de actividades governamentais.

    Nos últimos anos, os grupos empresariais de media, com a lamentável anuência, compadrio e participação activa de muitos directores editoriais, não se importaram de prostituir o jornalismo, vendendo “notícias”, “reportagens” e “artigos de opinião” a quem pagasse, viesse de onde viesse, a ponto de hoje já não ser nada claro se uma verdadeira notícia é afinal uma notícia feita por interesse editorial (para o público) ou por interesse económico (para o parceiro comercial).

    Há hoje cadernos de encargos de contratos públicos – e imagine-se o que serão os contratos com entidades privadas, que não são de acesso público – que estabelecem até o número de reportagens e entrevistas, exigem análise prévia de conteúdos pela empresa adjudicante, diversas penalizações se não se cumprir níveis de cobertura noticiosa, e até se prevê a substituição de equipas. Uma podridão.

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    Que faz a Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Uma análise pela rama, deixando escapar escandalosamente os principais responsáveis pelo pântano na imprensa: os directores editoriais, que não apenas sabem o que se faz, como participam à laia de mestres-de-cerimónia (moderando eventos), contratando e indicando (ou obrigando mesmo) jornalistas (seus colegas de profissão) a violarem o Estatuto do Jornalista, escrevendo conteúdos comerciais.

    Nada contra conteúdos comerciais, mas estes têm de cumprir duas premissas: nunca serem escritos por jornalistas (nem terem participação activa de jornalistas da “casa”), devendo por isso conhecer-se uma equipa redactorial sem carteira profissional de jornalista; e haver uma clara distinção sobre os conteúdos comerciais e aquilo que é actividade jornalística.

    Nada que não esteja definido na Lei há várias décadas. Sucede, porém, que a ambiguidade interessa aos grupos de media e às empresas e entidades públicas. Uma empresa ou um Governo ou autarquia não quer gastar dinheiro em anúncios nem em publicidade clássica; prefere pagar, até mais, se puder associar-se (e associar a sua mensagem) a um evento com um jornal ou televisão, e ter depois uma cobertura noticiosa como se uma verdadeira notícia se tratasse. Vende-se notícias, é o slogan que se poderia agora anunciar em muitos órgãos de comunicação social. Normalizou-se o pântano, esquecendo as leis e esquecendo que o público não é parvo. As fracas vendas e a fraca credibilidade dos media devem-se a isto.

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    Com as sete deliberações que o PÁGINA UM começou hoje a apresentar, a ERC aparenta querer mudar este promíscuo pântano. Aparenta, repete-se, porque o faz a contragosto. E com pulhice.

    De facto, os processos intentados pelo (ainda) presidente da ERC, Sebastião Póvoas, não são fruto de uma análise de rotina, necessária e constitucionalmente prevista, mas por uma reacção às notícias do PÁGINA UM que, desde a sua fundação, elegeu o estado da imprensa (e a sua independência e rigor) como uma das suas prioridades.

    Porém, o PÁGINA UM faz isto dentro de um espírito deontologicamente irrepreensível. Sem corporativismo nem amiguismo. Por isso, depois de ter escrito uma primeira série de casos de suspeitosa promiscuidade – que culminou numa notícia que revelava 56 contratos públicos envolvendo sete grupos de media –, decidi endereçar um e-mail ao (ainda) presidente da ERC, juiz conselheiro Sebastião Póvoas, em 15 de Junho do ano passado.

    A missiva tinha como assunto explícito: “Pedido de depoimentos e informações para notícia do PÁGINA UM”.

    Início da missiva de 15 de Junho de 2022 do PÁGINA UM para o presidente da ERC, colocando perguntas. ERC “transformou” perguntas e pedido de informações para notícia em “exposição” e “comunicação”, como se se tratasse de uma denúncia formal.

    Nessa missiva fazia-se primeiro o enquadramento devido, informando da notícia dos 56 contratos, a que se ajuntava uma outra notícia sobre um caso envolvendo o Diário de Notícias e mais uma lista de oito contratos, e ainda uma outra notícia sobre as ligações jornalístico-comerciais da imprensa com empresas farmacêuticas.

    E terminava a missiva, escrevendo: “Nessa medida, e tendo em consideração outras intervenções da ERC, gostaria que V. Exa. informasse se está a decorrer ou vai ser aberto qualquer diligência para analisar estes contratos comerciais e a participação evidente (pelo menos em muitos dos casos) de jornalistas e responsáveis editoriais”, acrescentando ainda que “quaisquer outras informações e depoimentos que V. Exa. considere oportunos nessa fase serão, obviamente, bem-vindos, e desde já se agradece”.

    A ERC tinha várias possibilidades depois de receber este e-mail, incluindo ignorar-me e ignorar o PÁGINA UM, ou exercer as suas funções de regulador, investigando e agindo em conformidade.

    A ERC – e, portanto, os seus membros do Conselho Regulador – é uma entidade reguladora da comunicação social, e não a gerência do Zé dos Frangos a quem, inopinadamente, incumbem de decidir o que se deve fazer a perguntas de um jornalista no exercício da sua função de jornalista, que ainda por cima indica para que servirá a informação que eventualmente lhe for remetida.

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    Não poderia a ERC assim, jamais, pelas regras da decência – e até pelo rigor que exige à imprensa (e farta-se de produzir deliberações sobre essa matéria) – escrever invariavelmente nas deliberações (em seis das sete) que “deu entrada” na ERC “uma exposição [que repete duas vezes] de Pedro Almeida Vieira – PÁGINA UM”, rotulando ainda aquilo que são e foram legítimas perguntas jornalísticas como uma “comunicação”.

    O PÁGINA UM – e eu, em particular – não faz exposições, não faz comunicações, não faz participações, não faz queixas a reguladoras ou a quaisquer entidades públicas no exercício das suas funções jornalísticas

    O PÁGINA UM – e eu, em particular – faz notícias e faz perguntas. Catalogar perguntas como “exposições” ou “comunicações” não é apenas abusivo, é um acto escabroso, ainda mais tendo em consideração o melindre da situação: um órgão de comunicação social (PÁGINA UM) a escrever sobre assuntos sensíveis relacionados com grandes grupos da imprensa nacional.

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    O PÁGINA UM – e eu, em particular – sabe já bem (porque não se é ingénuo) quais foram os (baixos) propósitos da ERC e do seu Conselho Regulador quando “transformou” perguntas (que, aliás, nunca foram respondidas) numa “exposição” e “comunicação”.

    A ERC tinha uma indisfarçável necessidade de transmitir aos grupos de media, responsáveis pela promiscuidade reinante, que só assim procedia porque um desgraçado “mensageiro” andava a chatear, a dizer que ela nada dizia sobre andar nu o rei. E, portanto, quiseram alçar-me como alvo.

    A ERC, aliás, não estava verdadeiramente interessada em regular (e moralizar) a imprensa sobre os contratos promíscuos, tanto assim que pouco mais fez do que o PÁGINA UM já revelara. Nem sequer exigiu, como poderia, os cadernos de encargos (muitos são escondidos ilegitimamente do Portal Base), onde se revelam as promiscuidades em todo o seu esplendor. Nem sequer escalpelizou as relações comerciais ambíguas (para usar eufemismo) que saltam aos olhos diariamente em grande parte da nossa imprensa.

    O PÁGINA UM – e eu, em particular – pediu ao (ainda) presidente da ERC para corrigir esta parte das deliberações e se retractar quer perante mim quer perante os órgãos de comunicação social que foram abrangidos pelos ditos processos, escrevendo-lhe no passado dia 25 de Junho.

    Intencionalmente, o presidente do Conselho Regulador nem se dignou responder ou reagir, o que só lhe aumenta o grau à pulhice de tudo isto, mesmo que ninguém do Conselho Regulador seja pulha. São todos uns santos, aliás. Amen.

  • Repórter TVI: jornalismo deplorável sobre um milionário improvável

    Repórter TVI: jornalismo deplorável sobre um milionário improvável


    Apresentada como uma reportagem de investigação pela jornalista Raquel Matos Cruz (CP 7077), o Repórter TVI do passado dia 21 de Junho, em horário nobre, intitulado “Júnior, o milionário improvável”, da autoria da jornalista Conceição Queiroz (CP 7851), não é apenas uma peça antológica de péssimo jornalismo.

    É sobretudo um retrato cruel da imprensa sem ética, sem moral, sem responsabilidade, que deveria envergonhar qualquer jornalista, sobretudo os bons, onde se incluirá os bons que ainda haverá (não sei por quanto tempo) pela TVI. Cada dia que passa sem que ninguém na TVI se pronuncie sobre “aquilo” é um prego no caixão do moribundo jornalismo lusitano.

    Raquel Matos Cruz, jornalista e coordenadora do Repórter TVI.

    A suposta reportagem, recordemos, começou pela boca de Raquel Matos Cruz, que a apresenta. O texto, também escrito, e ainda agora disponível no site da TVI, e guardado aqui, continua sem qualquer nota ou aviso, e é exemplar:

    Ao longo dos últimos anos as criptomoedas, sobretudo a bitcoin, já fizeram muitas fortunas. Este é também um mercado perigoso por ser extremamente volátil e de risco muito elevado, onde basta um instante para perder tudo. O português Renato Júnior teve a sorte, e naturalmente a sabedoria para sobreviver às oscilações deste mercado e para hoje viver faustosamente às custas da bitcoin.

    Tem 29 anos e é um exemplo de quem conseguiu singrar no mercado da moeda virtual. Deixou a escola para trás e aos 17 anos emigrou para o Canadá, onde foi trabalhar nas obras. Com o dinheiro que amealhou investiu num computador e num telemóvel e esta foi a porta de entrada para o mundo do dinheiro digital.

    Começou com um investimento de 100 euros. Atualmente, vive no Dubai e é de lá que gere um negócio de milhões. Para trás fica uma infância nem sempre fácil de um rapaz que fintou o destino.

    Esta é a história de Renato Júnior: o milionário improvável.

    Toda a peça retrata Renato como um herói, e aquilo que mais salta à vista é a ausência de confirmação sobre tudo aquilo que diz, e sobretudo sobre a empresa e actividade (supostamente legal) que diz desenvolver.

    A jornalista Conceição Queirós aparenta não ter procurado saber se a empresa tinha registos, se era credível, se era reconhecida por entidades reguladoras, se havia clientes satisfeitos ou insatisfeitos. Nada.

    Aquilo que a jornalista Conceição Queirós, a sua coordenadora, a também jornalista Raquel Matos Cruz, e, enfim, o director da TVI, o também jornalista José Eduardo Moniz – que tem uma das mais antigas carteiras profissionais no activo, a número 71 – permitiriam com a emissão desta reportagem foi promover uma quase certa fraude, a atender pelo que se observa no site do suposto Digital Bank Labs.

    Os incautos, que foram no canto da sereia da reportagem da TVI, podem bem cair no logro de investir milhares de euros – aliás, o mínimo do “investimento” é de 10 mil euros, segundo o site da dita Digital Bank Labs – numa suposta empresa de um “herói” (com uma fortuna “avaliada acima de um bilião de dólares americanos”, segundo as palavras do próprio) que, na verdade, nem contacto nem escritório físico possui ou é conhecido.

    E, agora, quando se procura um contacto no site, surge o aviso “We’re experiencing Over Demand and it’s impossible to contact us at this moment, please come back later”.

    Ainda se poderia acreditar numa ingenuidade quer da jornalista Conceição Queirós – que mal disfarçou, ao longo da reportagem, a sua alegria pela estada no Dubai no meio daquele suposto luxo adquirido pelas bitcoins, ao ponto de até agradecer e desejar felicidades ao Renato – quer da sua coordenadora quer do director da TVI.

    Embora não seja nada agradável, até por se ter sempre responsabilidades nem que seja por negligência, ninguém no jornalismo está livre de ser ludibriado. Mas uma coisa é ser enganado, outra é não admitir erros e manter tudo como se nada se tivesse passado de anormal.

    Passou sim, e tudo aquilo é absolutamente anormal.

    Aviso actual que surge nos contactos da suposta empresa Digital Bank Labs.

    Uma dezena de dias após a emissão de uma vergonhosa reportagem que vergasta a verdadeira investigação jornalística – e sabendo-se o quão improvável é a legalidade dos “negócios” de Renato Duarte Júnior (e do seu obscuro Digital Bank Labs) no mundo dos cripto-activos, e sabendo-se ainda da abertura de um procedimento por parte da ERC, e sobretudo os avisos formais da CMVM e do Banco de Portugal –, o silêncio e a inacção da TVI é intolerável.

    Ou talvez não. Afinal, já tudo é tolerável quando o jornalismo se mostra deplorável.

  • Tedros, o super-herói, e Froes, o super-Onan

    Tedros, o super-herói, e Froes, o super-Onan


    Não foi a primeira vez que Tedros Adhanom Ghebreyesus, o director-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), recebeu um doutoramento honoris causa. Nem será a última, com a cerimónia hoje na Universidade de Coimbra.

    Antes da pandemia, já ele coleccionara pelo menos três: um pela Universidade sueca de Umea, em 2018, e as outras duas em instituições de ensino superior inglesas: Universidade de Nottingham e Universidade de Newcastle, ambos em 2019.

    Depois do surgimento da covid-19 foi ele já distinguido por mais quatro vezes. Em Julho do ano passado, pela Universidade de Edimburgo, na Escócia. Já este ano foi a vez da Universidade de Pretória, na África do Sul, e da Universidade Mediterrânica da Albânia lhe darem o consolo de mais honoris causa, antes da Universidade de Coimbra.

    Tudo isto é banal, e não deveria causar-nos assim tanta celeuma ver uns universitários a entreterem-se a atribuir honoris causa a torto e a direito, muitas vezes não por razões científicas ou intelectuais mas mais por causas de índole pessoal ou política que beneficia mais quem entrega do que quem recebe.

    Enfim, vanitas vanitatum et omnia vanitas. Já vi bem pior, como, por exemplo, agraciar Gouveia e Melo com um honoris causa pela Universidade Nova de Lisboa apenas pela sua “eficácia” como operador de logística de um fármaco, cuja administração até envolveu crianças e jovens saudáveis que nunca precisariam do dito.

    Por isso, debater o polémico passado público e político, como governante etíope, de Tedros Adhanom Ghebreyesus não me interessa demasiado para o caso em apreço. Talvez interessasse mais saber a falta de coragem da OMS em apurar a verdadeira origem do SARS-CoV-2, por exemplo.

    Ou a própria gestão caótica e ineficiente da OMS, que jamais teve liderança na pandemia, e ademais mostrou-se incapaz de manter sem constrangimentos os programas de rotina de vacinação para doenças evitáveis e de apoio sanitário em países subdesenvolvidos.

    Falhou rotundamente, e em franjas da população mundial com elevadíssimas taxas de mortalidade infantil. Por exemplo, em Julho de 2021, a própria OMS e a UNICEF revelaram que 23 milhões de crianças perderam as vacinas básicas, mais 3,7 milhões do que em 2019. Mais recentemente, a UNICEF relatou que os níveis de vacinação infantil (segura) para doenças evitáveis desceu para níveis de 2008.

    Também poderia questionar como é possível a OMS ter recentemente aceitado eleger um representante da Coreia do Norte para o seu Conselho Executivo.

    Ou também debater a influência das farmacêuticas e de organizações supostamente beneméritas mas com demasiada influência supranacional no seio da OMS, que se prepara para ter a tutela “política” em futuras pandemias.

    Mas não. Interessou-me mais, por puro entretenimento de uma hora e meia, assistir à sessão encomiástica ao director-geral da OMS na vetusta Universidade de Coimbra, vestida a rigor, com capelos e verdeais, e música, e toda a parafernália que nos remeteu quase aos tempos do rei D. Dinis.

    Nem de propósito, a alusão às Cortes régias faz aqui todo o sentido, porque ali sempre foram apreciadas tanto os bobos como os cortesãos. Os primeiros, com as galhofas, entretinham; os segundos, com as lisonjas, também.

    Ora, ambos os papéis ficaram, nesta sessão da Universidade de Coimbra, a cargo do pneumologista Filipe Froes, o médico com mais relações promíscuas com farmacêuticas, que se consegue livrar das consequências de um processo disciplinar da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde com um “veto de gaveta” patrocinado pelo ministro da Saúde, e que tem artes e manhas para continuar a ser ouvido pela comunicação social mainstream. O facto dessa comunicação social ter cada vez mais relações comerciais com as farmacêuticas é apenas uma coincidência…

    Mas não fujamos do foco. Filipe Froes foi escolhido para o elogio académico do director-geral da OMS na entrega do doutoramento honoris causa pela Universidade de Coimbra. Aconselho vivamente o visionamento, a partir do minuto 23, porque estamos perante não propriamente um Discurso do Rei mas sim perante um Discurso do Hipócrita. Froes é, de facto, um personagem. Um François Vatel do século XXI, sem a parte do suicídio, que adula e encanta “cozinhando” o seu “peixe”. Se salva vidas como pneumologista, não sei – acredito que sim. Mas ressuscita seguramente mais egos com a sua léria.

    A minha passagem predilecta na sua louvaminha ao Tedros é, confesso-vos, aquela em que compara a acção do director-geral da OMS ao Santo António do sermão aos peixes do Padre António Vieira.

    Disse ele, sem se rir, que Tedros “não necessitou da alegoria de se dirigir aos peixes para falar aos homens e às mulheres”; falou, actuou e interveio directamente “para enaltecer o valor sagrado da vida humana, de todas as vidas humanas, e para alertar os perigos da corrupção, da vaidade, do egoísmo, da intolerância, da prepotência e sobretudo da ignorância muitas vezes com a ilusão do conhecimento”. Eis um tratado da hipocrisia em poucos segundos.

    Depois, elogiando Tedros como “salvador” de milhões de vidas, e investido de engenho camoniano, Flipe Froes amaciou a glande política do Governo, ao glosar que “também aqui Portugal honrou a sua História e o seu passado de glória, e foi pioneiro em mostrar ao Mundo, por mares dantes pouco navegados e tumultuosos, o caminho para a vacinação e para a mitigação de um pandemónio que tanto atormentou o Mundo”.

    Mas isto da erudição cansa, e portanto Froes não podia deixar de fazer o papel de truão, concluindo que “numa linguagem mais próxima dos tempos e, sobretudo, dos jovens de hoje, se a OMS foi a Guardiã Planetária e a Estrela da Vida, Tedros Adhanom Ghebreyesus foi o nosso Super-Herói”.

    E Filipe Froes foi e será sempre o nosso Super-Onan. O nosso masturbador-mor.

    Longa e boa vida terá, que o mundo sempre lhe concederá, portando-se assim, boas prebendas e melhores sinecuras, porque isto anda bem para quem se banqueteia, como já dizia Erasmo de Roterdão.

  • O venenoso abraço das farmacêuticas à imprensa

    O venenoso abraço das farmacêuticas à imprensa


    A entrevista que hoje publicamos no PÁGINA UM, conduzida pela Elisabete Tavares, ao jornalista norte-americano Paul D. Thacker, é de leitura obrigatória porque constitui uma peça fundamental para compreender os tempos mais recentes, e sobretudo o papel vergonhoso da comunicação social. Dos jornalistas. De muitos jornalistas. De demasiados jornalistas, daqueles que dirigem órgãos de comunicação social, daqueles que pactuam com as promiscuidades, daqueles que agem por omissão.

    A entrevista tem como pano de fundo a Ciência e o sector das farmacêuticas, mas incide, e muito, na forma como a comunicação social tradicional se deixou envolver num venenoso abraço, se foi vergando ao “canto da sereia”, e aos milhões, da indústria farmacêutica.

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    Paul D. Thacker, que tem um percurso invejável, ostentando vários prémios de investigação – um dos mais recentes pela denúncia de conflitos de interesse de conselheiros do Governo do Reino Unido durante a gestão da pandemia (onde já vimos isto?) –, afirma, por exemplo, que “se entrarmos em qualquer livraria encontramos livros sobre o historial de corrupção na indústria farmacêutica; é a indústria que mais multas pagou na História dos Estados Unidos. Mas, a partir de 2015, todas as pessoas que faziam perguntas sobre o sector começaram a ser chamadas de “anti-vacinas”.  

    E, depois conta, como de repente, deixou de ser possível colocar qualquer questão sobre fármacos e sobre vacinas. “As pessoas que fazem essas perguntas são chamadas de ‘anti-vacinas’. A forma como, nos últimos anos, sobretudo a partir da pandemia, os órgãos de comunicação social introduziram rótulos, deixando de questionar, enquanto se amancebavam com as farmacêuticas, deve fazer-nos reflectir sobre que imprensa temos, já que sobre as farmacêuticas sempre soubemos o que são: empresas com accionistas, que legitimamente querem vender um produto que beneficia os seus clientes mas que estão ali para beneficiar sobretudo os seus accionistas num mercado fortemente concorrencial. Não são, nunca foram a Madre Teresa de Calcutá, e por isso a necessidade de uma regulação independente e de uma comunicação social independente e atenta.”

    Não sejamos ingénuos. Sabe-se como a comunicação social e jornalistas sem escrúpulos conseguem “matar” mensageiros que trazem más notícias: silenciamento e difamação. Não foi por acaso que o nascimento do PÁGINA UM, em Dezembro de 2021, foi brindado por um ataque torpe da CNN Portugal (ladeado por Lusa, Expresso, Público e Observador), que “conseguiu” transformar uma investigação jornalística exemplar da minha autoria numa acusação de desinformação de movimentos negacionistas. Ainda hoje a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) continua a recusar abrir um processo à CNN Portugal por essa canalhice.

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    Aliás, a CCPJ, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas são bem a imagem, à escala lusitana, da forma como contribuem para a agenda do silenciamento de um projecto jornalístico incómodo como o PÁGINA UM. Por exemplo, não é normal que todos os três processos instaurados pela ERC contra mim tenham sido espoletados por notícias que envolvem pessoas ligadas à indústria farmacêutica, e que duas das intervenções da CCPJ contra mim tenham também o DNA daquele sector. Não surpreende também que eu seja arguido num processo judicial desencadeado pela própria Ordem dos Médicos, pelo seu ex-bastonário Miguel Guimarães e por dois “avençados” pela indústria farmacêutica: o pneumologista Filipe Froes e o pediatra Luís Varandas.

    Também a forma como a imprensa mainstream não acompanha nem dá eco das notícias do PÁGINA UM sobre a pandemia e outros escândalos relacionados com fármacos (e não apenas vacinas) mostra bem a outra face da indústria farmacêutica a corromper moralmente a sociedade. Hoje, jamais se põe em causa um fármaco, jamais se fala de efeitos adversos, de más práticas, de manipulação, de corrupção. Paul D. Thacker fala-nos disso, com propriedade, até porque foi afectado por campanhas de difamação, promovidas por agências de comunicação e pela própria imprensa mainstream.

    Por isso mesmo, cada vez se mostra menos concebível a dependência financeira que grupos de media internacionais e portugueses – por exemplo, a Impresa, a Global Media e o Público, só para citar alguns – têm hoje da indústria farmacêutica, e que coloca sérias dúvidas sobre a independência da informação quando o tema são fármacos.

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    Não encontramos, hoje, nenhum órgão de comunicação social generalista de grande dimensão que coloque em causa medicamentos (incluindo vacinas) das farmacêuticas; pelo contrário, hoje a comunicação social constitui um veículo de excelência para as farmacêuticas criarem lobby em conluio com “especialistas” associadas a dependentes sociedades científicas, através de eventos e mesmo notícias. Concretizarei ainda mais esse tema muito em breve.

    Urge, nesse aspecto, que o Infarmed – essa entidade, que parece andar mais a proteger a indústria farmacêutica e o Governo do que a proteger a saúde colectiva e individual dos portugueses– exerça o seu papel de moralização, obrigando a que sejam revelados, como indica a lei, os montantes envolvidos nas parcerias entre comunicação social e farmacêuticas.

    Já seria um começo.

    Até lá, uma coisa parece-me evidente: uma entrevista como esta a Paul D. Thacker nunca seria hoje publicada em qualquer jornal de âmbito nacional de Portugal, muito menos com este título: “As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção“. E sendo essa uma afirmação verdadeira, e não sendo agora previsível aparecer num qualquer jornal mainstream, isso diz muito da nossa imprensa. E das capacidades das farmacêuticas em influenciar e condicionar a liberdade de informação.

  • Decreto: é racismo caricaturar lábios de António Costa. Promulgue-se!

    Decreto: é racismo caricaturar lábios de António Costa. Promulgue-se!


    O Polígrafo – essa entidade obscura financiada pelo Facebook para combater a desinformação e censurar quem foge da narrativa – faz hoje, sob a  pena do jornalista Gustavo Sampaio, uma das peças mais enviesadas do wokismo de que já assisti, para gáudio dos bons costumes. A partir de agora está decretado: caricaturar os lábios do Primeiro-Ministro é racismo. Daqui a nada, caricaturar só. Falar mal dele, também. Promulgue-se!

    Para vitimizar o primeiro-ministro, fazendo eco do guru Luís Paixão Martins, de um suposto jornalista que faz serviços no Partido Socialista, e de uma directora de uma revista que adora parcerias com empresas estatais, que por sua vez terá aproveitado as palavras de António Costa a chamar “racista” a um dos manifestantes no passeio à Régua.

    Escreveu Gustavo Sampaio que “sob uma caricatura do rosto de António Costa com nariz de porco, lápis espetados nos olhos e lábios sobredimensionados – ao estilo das personagens de “Tintim no Congo”, álbum de banda desenhada de Hergé publicado em 1931, notório estereótipo racista que era comum nos desenhos de pessoas africanas nessa época –, o primeiro-ministro enfrentou ontem um grupo de professores em protesto,”, para depois concluir ser “Verdadeira” a auto-pergunta: “Cartazes com caricatura racista de António Costa têm sido utilizados em manifestações de professores desde há meses?

    A caricatura – como forma de humor e sarcasmo, mesmo como crítica política – é assumidamente exagerada, jamais pode ser vista em sentido literal. Pode, no limite, uma caricatura ser de mau gosto, mesmo feia, falhar o alvo, mas jamais a expressão exagerada de uma característica física se deve classificar como racista. Enfim, tal como uma caricatura com lápis espetados nos olhos, não deve ser vista à letra. De contrário, comportamo-nos como os extremistas religiosos.

    Mas aquilo que verdadeiramente se mostra surpreendente nesta tentativa de vitimização de António Costa – e na postura de um fact-checking enviesado – é a intencional falta de memória.

    Fui rever a memória, pesquisando sobre caricaturas de António Costa, para saber como antes dos (agora racistas) professores lhe faziam os lábios, incluindo ao seu boneco no programa humorístico Contra-Informação.

    Enfim, surpresa! Ó surpresa! Todas as caricaturas, sem excepção, o retratam com lábios exagerados. Eram preconceitos racistas e ninguém dizia nada? Foi preciso Luís Paixão Martins, Filipe Santos Costa, Mafalda Anjos e Gustavo ‘Polígrafo” Sampaio descobrirem racismo em lábios exagerados, tal como fazia esse malvado do Hergé nas aventuras do Tintim, não é?

    Deixo aqui uma galeria “sacadas” da Internet, uma parte das quais publicada em órgãos de comunicação social. Escolhi as 20 primeiras que me apareceram.

    Estas não eram racistas, portanto. Não, não eram. Só agora aquela que apareceu na Régua e em outras manifestações de professores são racistas, porque, enfim, começam a irritar o Primeiro-Ministro confrontando-o com erros de governação. Em que Mundo sisudo vivemos agora em que se pode desarmar um manifestante munido de uma caricatura chamando-lhe racista? E o Polígrafo foi criado mesmo para isto, não foi?

  • Amílcar Falcão: As universidades e os medíocres (que não podem vencer)

    Amílcar Falcão: As universidades e os medíocres (que não podem vencer)


    Nos últimos três anos – a bem dizer, desde que eclodiu a pandemia da covid-19 –, aquilo que mais me surpreendeu não foi tanto a irracionalidade das massas – ou melhor dizendo, a cedência do pensamento individual, no torpor do pânico, ao seguidismo de uma narrativa imposta pela máquina estatal (nacional e internacional) auxiliada pelos media –, mas sim o conformismo, a covardia e a conivência (perante o poder e os interesses económicos) das elites.

    De elites falo aqui dos académicos – ou, melhor dizendo, dos universitários.

    Bem sei, todos sabemos, como, tanto a nível nacional como internacional, as universidades tiveram de fazer pela vida quando se lhes impôs (ou elas quiseram) a sua autonomia financeira, deixando de ser apenas centros de excelência na formação e na investigação pura para passarem a ser centros de captação de financiamentos para projectos de investigação e desenvolvimento (I&D), e sobretudo de investigação aplicada.

    Por esse motivo, hoje, as universidades integram uma importante componente de marketing, e quem fala de marketing, fala de relações públicas; e quem fala de relações públicas, fala de diplomacia; e quem fala de diplomacia, fala de cortesias; e quem fala de cortesias, fala de fretes; e quem fala de fretes, fala de lambe-botas; e quem fala de lambe-botas, fala de medíocres. No meio disto, vai-se perdendo a ética e vai-se mercadejando a Ciência ao cinzel que melhor paga.

    Vejam, hoje, malgrado termos investigadores de primeira água, naquilo que se tem transformado a academia: cérebros que medem as palavras, que refreiam opiniões, que se auto-censuram e censuram, que manipulam e obscurecem factos, que defendem uma verdade indicada por terceiros (Governo, empresas, opinião pública), que seguem padrões de catavento.

    Nunca mais me hei-de esquecer da forma como se procedeu ao silenciamento para uma discussão participada durante a pandemia.

    Não me esquecerei do unanimismo silencioso das universidades e dos académicos quando o Governo, ignorando comissões independentes que estavam previstas na lei (p. ex., o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Nacional de Saúde Pública), foi escolhendo a dedo os “peritos” e os “especialistas” que ousavam assumir-se como os arautos de uma Verdade Científica Imaculada e Inquestionável.

    Não me esquecerei, por exemplo, do subsequente silêncio de uma das mais prestigiadas cientistas portuguesas, Maria Manuela Mota, directora executiva do Instituto de Medicina Molecular, quando afirmou ao Expresso em Abril de 2020: “Não entrem em pânico. Vírus [SARS-CoV-2] é relativamente bonzinho”. Compreende-se: na altura, alimentava-se o pânico como estratégia, e perante a sua posição isolada (por cobardia dos pares), não se lhe pode censurar o auto-silenciamento posterior quando se dirige um centro de investigação a carpir financiamentos para mais de 700 trabalhadores.

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    Foi esta dependência – alicerçada na ascensão de pessoas sem perfil ético para compreender o papel das universidades e dos académicos numa sociedade democrática, por mais extraordinariamente inteligentes que sejam – que causou o sequestro da Ciência pela política. Não apenas pela política governamental, mas também pela política empresarial – leia-se, neste caso, também farmacêutica, mas não só.

    Foi alicerçado neste tipo de nefasta dependência que, por exemplo, o Instituto Superior Técnico – e particularmente o seu presidente, Rogério Colaço – acabaram compondo uns miseráveis relatórios epidemiológicos alarmistas a partir do Verão de 2021, para gáudio de uma néscia imprensa (que nada questiona), e tão vergonhosos foram esses ditos relatórios que até recusaram facultá-los, vendo-se envolvidos, por mor do PÁGINA UM, num deprimente processo de intimação no Tribunal Administrativo que só pode obrigar que cedam aquilo que voluntariamente tinham o dever ético de mostrar.

    Acabada a pandemia – ou cronologicamente, no epílogo da pandemia –, a indecência da academia, como um vírus, pareceu alastrar-se à invasão da Ucrânia. Sem prejuízo de estarmos perante um acto inadmissivelmente hostil da Rússia e de este país não ser propriamente dirigido por um Governo democrático (costumo dizer que Putin não está à frente dos destinos daquele país há meia dúzia de dias), não há inocentes políticos nesta guerra (a começar no chamado Ocidente) nem se deveria, em Estados democráticos, responder à barbárie com censura, hostilização, ostracismo e perseguição apenas por razões de cidadania.

    Vladimir Pliassov numa reportagem de 2018 para a RTP2 sobre o Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra.

    Não ouvi – e pode ter sucedido por distracção – nenhuma universidade com abertura para ser o palco de debates em redor da guerra da Ucrânia, com centro de reflexão para se encontrar uma forma de pacificação, sem colocar premissas nem condicionamentos. Não ouvi – e pode ter sucedido por distracção – nenhuma universidade a criticar a censura a órgãos de comunicação social da Rússia nos países ocidentais, ao mesmo tempo que se alcandora a Ucrânia a um patamar de democracia que nunca teve (e não tem).

    Na verdade, as universidades seguiram o mesmo padrão da pandemia: atentas às consequências dos seus actos, seguiram o que o Governo e as instâncias europeias (seus principais financiadores) foram ditando.

    Por isso, não surpreende demasiado que, neste cenário, o reitor da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão tenha demitido, sem apelo nem agravo, o director do Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra, Vladimir Pliassov, apenas porque dois alegados activistas ucranianos decidiram acusar aquele cidadão russo de “propaganda russa” nas suas aulas. Amílcar Falcão não ouviu sequer o docente, radicado em Portugal desde 1998 e com nacionalidade portuguesa desde 2002, e que até dava agora aulas (de Literatura) em regime gracioso.

    O caso é tão lamentável que causa dó.

    Olga Filipova (à esquerda) e Viacheslav Medvediev (à direita). Bastou um artigo de opinião num jornal regional para espoletar uma demissão-relâmpago por iniciativa do reitor da Universidade de Coimbra sem apelo nem agravo.

    Eis que tivemos um Falcão, aspirando aos voos do populismo, tornando medíocre uma universidade, e com os seus actos resgatando das tenebrosas páginas negras da Inquisição o estilo “caça-bruxas” com aplicação de sanções antes sequer de uma inquirição, quanto mais um julgamento justo.

    Eis que tivemos a mediocridade mais uma vez no topo de uma universidade, em todo o seu esplendor, com o seu fautor talvez almejando comendas pela prontidão de um acto de justiceiro em prol das “vontades do vento”.

    Bem sei que os tempos não andam fáceis para quem, minoritário, rema contra a corrente – no seio de um Jornalismo decrépito e em perda de princípios, sei por experiência própria, os custos da ousadia –, mas há um sinal de esperança quando o vil acto de Amílcar Falcão está finalmente a ser contestado dentro da própria Universidade de Coimbra. Primeiro de uma forma mais discreta (e ainda minoritária), mas nos últimos dias de um modo mais substancial e impossível de se silenciar.

    Porém, isto sabe a pouco. Até se poderia chegar à (porventura absurda) conclusão de que Vladimir Pliassov era o mais empedernido putinista, mas um reitor não pode arvorar-se de polícia, de procurador de acusação, de juiz e de executor, e tudo isto feito no reduto dos seus neurónios. Se pensa que poderia fazer tudo isto perante um caso desta delicadeza, não pode continuar a ser reitor. Se sabia que não poderia fazer isso e fez, não pode continuar a ser reitor.  

    Depois de tudo isto, e independentemente de quem é, na essência, Vladimir Pliassov, temos apenas como certo que Amílcar Falcão não tem estaleca – digamos assim, de sorte a soar mais popular – para ser reitor da Universidade de Coimbra.

    Manter-se nesse posto será a vitória da mediocridade – o que tornará medíocres os demais. Mesmo daqueles académicos que, agora, o criticam em abaixo-assinados, porque dos outros que se mantêm, mesmo assim, em silêncio, não rezará a História.

  • PÁGINA UM: 20 meses que são 20 vitórias

    PÁGINA UM: 20 meses que são 20 vitórias


    O PÁGINA UM faz hoje 20 meses. Eu conto os meses de existência. Não apenas por serem as primeiras fases da infância o período mais crítico de qualquer ser, mas sobretudo porque, neste modelo deste projecto jornalístico independente, se mostra obrigatório definir o futuro a curto prazo. O PÁGINA UM nasceu pelo apoio financeiro dos seus leitores, com donativos desde 1 euro até algumas centenas de euros, e 20 meses depois vivemos da mesma forma.

    Não quisemos publicidade nem parcerias comerciais: e sabemos que estamos no fio da navalha, mas com a possibilidade impagável de fazer jornalismo sem concessões nem constrangimentos nem medos. Essa liberdade é inexcedível, e não acreditem que seja coisa vista por aí na chamada imprensa mainstream. Aliás, por esse motivo, o PÁGINA UM é tão criticado.

    Mas sabemos que o nosso sucesso não depende apenas das notícias. Depende sobretudo dos nossos leitores e da suas capacidades para avaliarem dia a dia o nosso trabalho, e dar um apoio concreto que não seja só aplausos (lembram-se dos aplausos aos médicos?).

    Ao longo destes 20 meses, já ganhámos muitos apoiantes pontuais ou regulares; fomos perdendo muitos outros, alguns por dificuldades, outros por discordância, outros talvez porque, enfim, consideram que não conseguiremos fazer a diferença. Para estes últimos, e na verdade para todos, gostaríamos de os convencer que queremos fazer a diferença. Podemos mesmo ser a diferença, se meios houver.

    Cada novo apoio e cada saída de um antigo apoiante do PÁGINA UM não me é indiferente: o meu desejo é ver o PÁGINA UM com um maior desafogo financeiro para permitir uma maior aposta no jornalismo de investigação, de pressão, de denúncia. Por agora, temos conseguido muitas vitórias, mas queremos muitas mais.

    A principal vitória parece óbvia; aos fim de 20 meses somos a prova viva de que a qualidade do jornalismo independente é mesmo valorizada pelos leitores, mesmo quando o acesso é completamente livre, ou seja, acesso aberto. Isto vai até contra os modelos clássicos da Economia.

    blue bird on gray rock

    Manter por 20 meses (ou um pouco mais, porque houve dois meses de preparação) um jornal nestas condições é o mais nobre reconhecimento que os nossos apoiantes (financeiros) nos concedem: mesmo sabendo que poderiam ler o PÁGINA UM gratuitamente, assumem que o jornalismo independente necessita de recursos para fazer um bom trabalho. Contribuem também para que os leitores de menores posses possam aceder aos nossos artigos noticiosos e outros conteúdos.

    Em todo o caso, sabemos que este modelo – uma independência extrema e quase estóica – traz enormes limitações de crescimento, porque o orçamento do PÁGINA UM não tem chegado, nos últimos meses sequer aos 5.000 euros mensais, e a gestão do jornal tem uma regra: não há empréstimos bancários e não há dívidas ao Estado.

    Apesar da empresa gestora do PÁGINA UM ter o mesmo capital social da Trust in News, a dona da revista Visão e de outras publicações, não queremos (nem nos permitiriam) viver com um passivo de 11,4 milhões por via de calotes fiscais ou por empréstimos da banca. Ter empresas de media com endividamentos de milhões e dívidas ao Fisco pode ser fácil e cómodo, mas não se faz aí verdadeiro jornalismo. Pelo contrário, mata-se o jornalismo.

    Pedi ao Midjourney para imaginar uma reunião na sede do PÁGINA UM daqui a 20 meses… Na verdade, pode ser qualquer uma destas quatro alternativas… Excepto a gravata.

    Por esse motivo, sabemos o “custo da independência”. E não é apenas o de sofrer os ataques de alguns colegas de profissão – e sobretudo da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (que mantém há um mês um vergonhoso frete sob a forma de falsa deliberação, votada fora das reuniões ordinárias, feita à margem de qualquer ética, na homepage do Sindicato dos Jornalistas).

    Esse “custo da independência” é o de mantermos uma dimensão pequena, com uma redacção minúscula e com um (extraordinário) punhado de colaboradores (quase todos pro bono) que oferece uma diversidade ao PÁGINA UM que muito me orgulha.

    Mas, na verdade, aquilo que me orgulha mais é o reconhecimento dos leitores. E mais não digo, que amanhã é um novo dia e há mais notícias para revelar. Sempre para os leitores. Sempre com os leitores. Obrigado por tudo. E continuem a ler e a apoiar o PÁGINA UM.

  • O PÁGINA UM: um ano e meio de vida em prol do verdadeiro jornalismo

    O PÁGINA UM: um ano e meio de vida em prol do verdadeiro jornalismo


    Nascemos há um ano e meio, era o dia 21 de Dezembro de 2021.

    Nascemos para mostrar que pode haver jornalismo independente, com princípios e incómodo, e por isso mesmo perseguido.

    Em 18 meses fizemos o que todos não fizeram em 18 anos: exigir em tribunais administrativos o acesso à informação.

    Denunciámos as promiscuidades da imprensa mainstream, que está a aniquilar os princípios do jornalismo, e por isso tenho à perna três “reguladores”; e pelo menos dois processos judiciais em que sou arguido (e ainda sem acusação).

    Com uma pequena redacção, publicámos já 1.444 textos, entre artigos de investigação jornalística, entrevistas, opinião e recensões.

    Somos o único jornal que tem como único activo a sua credibilidade, que a expõe apenas ao leitores, que são a nossa única fonte de financiamento. Não escrevemos para agradar aos nossos anunciantes, porque não os temos; nem para agradar aos nossos potenciais parceiros comerciais, porque não os queremos; nem para agradar ao poder, porque só os queremos sindicar.

    Em 18 meses, continuamos e continuaremos sem publicidade nem parcerias comerciais. Pelos nossos leitores. Para os nossos leitores. Obrigado pelo vosso apoio.

  • Não suportemos a normalização do pântano

    Não suportemos a normalização do pântano


    Temos mais um escândalo com Medina. Ou melhor dizendo, este também mete Duarte Cordeiro. E também o inefável Luís Filipe Vieira. E mais ainda umas cunhas para tachos.

    Coisas banais nos tempos que correm, num Governo que já não é Governo se não tiver um escândalo semanal. Cada novo escândalo dos membros do Governo Costa é mais um elefante a passar desapercebido no meio de uma cidade: esse novo escândalo consegue esse feito porque segue em manada, rodeado de outros elefantes, de outros escândalos.

    Começa a ser necessário fazer uma lista para não esquecer de se enumerar todos os escândalos dos últimos meses com membros do Governo, ou seus adjuntos.

    Quem se recorda ainda de Miguel Alves, secretário de Estado-adjunto do Primeiro Ministro, que se demitiu em Novembro do ano passado, acusado de crime de prevaricação?

    E do marido de Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, que, além de receber uns subsidiozitos que não eram para todos, se associou a um chinês acusado por corrupção activa?

    E já agora, de Tiago Cunha, o assessor de Mariana Vieira da Silva, 21 aninhos, saído da Universidade directamente para um gabinete ministerial a facturar 3.700 euros?

    De Alexandra Reis, demitida de secretária de Estado do Tesouro em Dezembro do ano passado, provavelmente todos se recordam. Bem como das consequências que a sua indemnização da TAP teve na demissão de Pedro Nuno Santos, de super-ministro das Infraestruturas e Habitação, bem como da saída do secretário de Estado Hugo Mendes.

    Aliás, ao pé do caso TAP – que teve “ondas” com a inenarrável cena do novo Ministério de Galamba & Companhia –, já nem sequer damos importância a todo um rol de pequenos e grandes escândalos.

    Como, por exemplo, a contratação (gorada) de Rita Marques, secretária de Estado do Turismo até Março do ano passado, por uma empresa que obtivera benefícios enquanto ela fora governante.

    Ou ainda o caso de Manuel Pizarro, que aceitou ser ministro da Saúde enquanto se mantinha como gerente de uma estranha empresa de consultadoria sobre a qual se ignora quem tenham sido os clientes.

    Também pouca repercussão já tiveram as habilidades de João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros, na renovação da sua carta de condução caducada, sem contar já com a empresa onde partilha sociedade com um sócio condenado por fraude fiscal.

    E já poucos se recordam da fugaz Carla Alves, secretária de Estado da Agricultura por 24 horas, por conta de contas arrestadas do seu marido, antigo autarca de Vinhais.

    Enfim, talvez esteja a escapar-me algum caso, mas todos estes são a ponta de um icebergue da cultura de corrupção moral – certamente não apenas moral, ainda mais sabendo-se que os três últimos anos os ajustes directos se tornaram uma prática banal na Administração da res publica – que tem sido alimentada e estimulada por António Costa.

    A operação Tutti Frutti, onde de novo surge o nome de Medina como peça principal, terá, do ponto de vista político, o mesmo tratamento por parte de António Costa que deu a todos os escândalos anteriores: deixa andar.

    O país transformou-se num couto de imoralidades, numa mina de saque, onde a indecência se banqueteia alarvemente. Em menos de um ano, Costa apenas saltita de escândalo em escândalo, como pedras, no meio de um pântano. Não governa; governa-se e os seus apaniguados assumem os escândalos com naturalidade. É só mais um antes do seguinte.

    Como se o seu objectivo deles fosse atapetar o pântano com tantas pedras como escândalos para não se afundarem. O problema é que podem eles não se afundarem, mas o ar fétido é insuportável.

    Não podemos admitir a normalização do pântano.

  • A morte do Jornalismo pela pena de dois carrascos

    A morte do Jornalismo pela pena de dois carrascos


    Este editorial estava simplesmente para se intitular Quo vadis, Jornalismo?, mas soou-me demasiado reflexivo. E não poderia ser. É mais um manifesto. Um manifesto a favor da sobrevivência da nobre profissão do Jornalismo e da função primordial da Comunicação Social, e contra aqueles que eliminam sorrateiramente, como lobos vestidos de pele de ovelha, a independência dos jornalistas, enquanto batem muito no peito com o cravo na lapela.

    Detesto hipócritas – e é sobre dois hipócritas que quero escrever. Como um é mulher e outro homem, está aqui consagrada a paridade, e confirmado que o deslustre não escolhe géneros.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Pois bem, depois de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) sobre pedidos de documentos administrativos feitos pelo PÁGINA UM, e recusados pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), houve dois jornalistas que integram o Secretariado da dita entidade que ontem deram a sua decisão.

    Destaco uma frase – toda ela um tratado – como argumento para manter a recusa do acesso a actas – a simples actas, ó Céus! – das suas reuniões, assinadas pelos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho, que formam o Secretariado da CCPJ:

    Não existindo a concretização de uma finalidade específica para aceder às atas do Plenário (que, sobretudo, contém informação relativa a jornalistas, apreciações e ou juízos de valor sobre estes e, ainda outros dados suscetíveis de pôr em causa o seu bom nome) sendo, como se demonstrou, insuficiente evocar a qualidade de jornalista para aceder a documentos que pela natureza do seu conteúdo são nominativos, é legítima a avaliação da CCPJ no que respeita aos eventuais fins para que possam ser usados os documentos caso a eles o requerente tivesse acesso.

    Há momentos em que sinto vergonha alheia. E também incredulidade. E falta de empatia. Tenho dificuldades de me colocar na pele de Licínia Girão e de Jacinto Godinho – ainda mais neste, outrora reputado repórter de investigação premiado da RTP e professor de Comunicação Social numa universidade pública, que até aprecia contar histórias contra a PIDE – para compreender como o seu azedume ao PÁGINA UM, e a mim, os pode fazer escrever tamanha monstruosidade atentatória da Liberdade de Imprensa.

    Licínia Girão

    Agora um jornalista tem necessidade de concretizar a “finalidade específica” para aceder a documentos públicos, como simples actas?

    E sobretudo se esses documentos contêm “informação relativa a jornalistas”? São agora os jornalistas insindicáveis? Podem eles cometer as maiores barbaridades e corporativamente ser tudo escondido?

    Se assim é, porque não conceder similar benesse a políticos, magistrados, administradores públicos, funcionários públicos, enfim, a todos?

    Ademais, se a CCPJ assume ser legítimo a sua avaliação “no que respeita aos eventuais fins para que possam ser usados os documentos”, por que não considerar então legítimo que o Governo implemente um Serviço de Exame Prévio aos pedidos de jornalistas, recusando liminar e discricionariamente se estes não forem “simpáticos”?

    Só esta frase de Licínia Girão e Jacinto Godinho merecia que jornalistas com um pingo de decência nesta pobre democracia se insurgissem e os corressem a pontapé do Palácio Foz. Mais não seria necessário; mas também nunca menos. Merecem. São gente desta jaez que assassina, literalmente, o Jornalismo; que já perderam os escrúpulos e a vergonha por um par de vinténs, ou já perderam a noção do que escrevem, das posturas que tomam, das consequências dos seus actos e das suas mesquinhas raivas.

    Jacinto Godinho

    A frase acima exposta é o corolário daquilo que nenhum jornalista pode aceitar – porém, é uma frase escrita por jornalistas, defendida por jornalistas e aplicada por jornalistas. E apenas porque assumem eles que os ando a “perseguir” e a fazer pedidos “manifestamente abusivos”.

    E, no entanto, estou a fazer no PÁGINA UM a essência do Jornalismo: perguntar, sindicar, expor, denunciar, informar – usando todos os expedientes legais, incluindo judiciais. Livremente. Sem agendas. Sem interesses económicos, financeiros, partidários e ideológicos. A minha independência mete-lhes medo, porque imprevisível e incontrolável. Por isso, fazem-se de vítimas de perseguição se lhes faço quatro pedidos de documentos. A hipocrisia em seu esplendor.

    Que achará então o Governo e outras entidades quando o PÁGINA Um, perante recusas similares a pedidos de documentos, apresenta intimações no Tribunal Administrativo?

    Devem essas entidades – listemo-las: Conselho Superior da Magistratura, Infarmed, Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos, Ministério da Saúde, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, Administração Central dos Sistema de Saúde, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Banco de Portugal, Instituto Superior Técnico, Presidência do Conselho de Ministros e Parque Escolar –, algumas já com mais do que um processo de intimação nos tribunais, juntarem-se, em coro aos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho, e promoverem um clube anti-PÁGINA UM para me meterem em ordem? Talvez pelourinho?

    Presumo que seria dia de festa numa Comissão que acredita os títulos (carteiras) de uma profissão cada vez mais desacreditada aos olhos dos cidadãos.

    Não foi para assistir a vergonhosas atitudes destes pequenos ditadores travestidos de jornalistas que se estabeleceu a democracia.

    Fico por aqui, poupando a análise do argumentário de 11 páginas – que pode ser lido aqui, na íntegra –, onde os ditos Licínia Girão e Jacinto Godinho expõem os seus motivos salazarentos para recusar, entre outros documentos, o acesso a processos concluídos a jornalistas em violações da ética profissional e aos ganhos em senhas de presença e outros rendimentos para gerirem um organismo público.

    O caso seguirá, obviamente, em breve, para as instâncias judiciais. Até lá, espero que os jornalistas decentes não se calem agora, pois se assim procederem, um dia, quando quiserem falar, talvez o “trabalhinho sujo” de tipos como Licínia Girão e Jacinto Godinho tenha já contribuído para lhes tirarem a língua. Ou as mãos. E até também as pernas. Ou mesmo a cabeça.