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  • Tráfico de influências: a viçosa e perniciosa raiz da corrupção

    Tráfico de influências: a viçosa e perniciosa raiz da corrupção


    Muitos dizem já que a montanha pariu um rato – e que António Costa se precipitou na demissão. Como o Ministério Público não terá conseguido sustentar a tese da corrupção, e ‘apenas’ a do tráfico de influências, logo surge a ideia de um certo esvaziamento da gravidade, e o Partido Socialista, perante o ânimo e apreço da media mainstream, mostra uma pujança para uma recauchutagem rápida através de um ex-ministro que ainda há meses se demitiu por uma embrulhada com meio milhão de euros.

    Numa democracia não há pior erro do que minimizar o tráfico de influência – que é, na verdade, a génese da corrupção financeira, porque constitui, antes de tudo, uma corrupção moral. Ainda mais neste caso do data center de Sines, que me faz lembrar a implantação do Freeport de Alcochete há cerca de duas décadas, também numa zona de protecção ambiental, e que resultou numa estranha e polémica reviravolta na avaliação de impacte ambiental nos tempos de José Sócrates como ministro do Ambiente.

    Causou, aliás, um breve frisson em 2009, e não deixa de ser curioso que, daquela vez, não tivemos envolvidos um chefe de gabinete e um (ex-)amigo do primeiro-ministro, mas sim um tio e um primo do então primeiro-ministro. Sugiro a leitura de uma antiga edição do Público sobre esta matéria, de 2009, para descobrir as semelhanças – e já agora, também com um texto de opinião da minha autoria, na página 3.

    Na verdade, quando o Ministério Público apanha casos de tráfico de influências, devíamos ficar satisfeitos com a celeridade da sua acção e pela função preventiva e profilática. O tráfico de influência para um servidor do Estado corrupto é, na essência, a sua quota-parte do negócio, que o levará a receber, mais tarde, o suborno.

    Cortar esse mal logo à nascença, antes que o corrompido receba o suborno, parece-me de elementar necessidade. Quando a corrupção é apanhada, nos poucos casos, e porque a corrupção já anda numa fase endémica (sem ser necessário de ser antecedida por pandemia), por regra já o mal está feito: a decisão política tomada, a adjudicação consumada, a construção erguida.

    Mas, por outro lado, nos tempos modernos, em que se sabe de antemão haver um risco relevante de se ser apanhado pelas tecnologias, um potencial corrupto minimamente inteligente não se expõe, pelo menos de imediato; não recebe envelopes com dinheiro; não revela sinais exteriores de riqueza.

    Mostra-se paciente. Recebe mais tarde, sob a forma de remunerações ‘legais’, de sinecuras ou veniagas por parte do beneficiário da acção de corrupção Para passar desapercebido, o suborno pode ser recebido, assim, por consultorias futuras bem pagas.

    Cria-se então uma empresa, arranjam-se uns ‘estudos’, e já flui o dinheiro por ‘serviço’ de tráfico de influência cometidos meses ou anos antes.

    Por isso, devíamos festejar quando o Ministério Público apanha criminosos públicos, ainda com a boca na botija, por tráfico de influências, porque assim o corrupto sem sequer recebeu o ‘doce’ do corruptor.

    Além disso, o tráfico de influências é, muitas vezes, o máximo que se deve esperar conseguir apanhar num acto de corrupção – e há imensa corrupção, não tenho dúvidas, desde o pequeno benefício de um jantar até os muitos milhares em contratos chorudos na área da construção e, cheira-me cada vez mais, no sector da saúde.

    A não ser por estupidez do corruptor (activo) e/ ou do corrompido (passivo), a prova da corrupção é extremamente complicada de alcançar, e muitas vezes “travestida” de evasão fiscal. Além disso, como o enriquecimento ilícito – ou seja, um rápido acréscimo patrimonial não explicável – não é prova de existência de corrupção, estamos perante uma dificuldade acrescida para o Ministério Público.

    Por isso, o tráfico de influências por parte de um político ou de alguém na esfera governamental ou da Administração Pública deveria ser visto como um crime socialmente tão grave como a corrupção passiva e activa. É um vil e grave acto, ultrajante para uma democracia – e é sobretudo a viçosa raiz da corrupção, porque degrada moralmente toda a sociedade que passa a estar sedenta de pequenos e grandes favores e favorecimentos. Da pequena ‘cunha’ para desbloquear aquela ‘burocraciazita’ até à mega ‘cunhagem’ de um projecto em área interdita.

    Até porque o tráfico de influência se exerce muitas vezes sobre funcionários públicos, com contas para pagar e objectivos de vida por concretizar, e que seriam impolutos na defesa de legalidade se não houvesse um superior político a ‘ameaçá-lo’ implicitamente de consequências se não fizessem um ‘favorzinho’.

    O tráfico de influências deve ser combatido ferozmente como um cancro social, arrancado como escalracho e lançado ao fogo. E não pode ser menorizado como tem estado a ser feito por alguns opinion makers, para grande satisfação do Partido Socialista. Aliás, fazem-lhe um ‘favorzinho’ na esperança de, depois, ser-lhes retribuído, presume-se.

  • Costa não é a ‘camisa’ do PS; é mais do que a pele: é o corpo

    Costa não é a ‘camisa’ do PS; é mais do que a pele: é o corpo


    Quem foi assistindo, ao longo desta semana, às movimentações em torno da demissão do primeiro-ministro, após as diligências do Ministério Público na denominada Operação Influencer, está a ser ‘bombardeado’ com a ideia de que António Costa é a ‘camisa’ do Partido Socialista. Ou seja, por uma qualquer razão, que convém menorizar, desgastou-se, troca-se e continua-se com a mesma pele, o mesmo corpo, os mesmos procedimentos.

    Não. António Costa não é um mero actor secundário de um partido que, desde o início da democracia – já lá vão quase 50 anos – compartilha a cena política, e a governação, de um país que ‘custa’ a desenvolver-se de forma ética e democraticamente saudável. António Costa é o pulso, ou melhor, o coração do actual Partido Socialista, até em termos históricos. Está na política que mexe desde 1995. São 28 anos, dos quais os últimos oito anos ele se serviu para ‘secar’ a ideologia de um Estado Social, substituindo-o por Estado Negocial.

    Na verdade, nos últimos anos, em parte fruto da infalível ceifeira do tempo, o Partido Socialista moldado por António Costa perdeu todas as suas referências: hoje, não há ideólogos para ‘cantar os amanhãs’; hoje não há ‘senadores’; hoje não há referências, hoje, não há auto-crítica. Estou a falar de gente credível. Hoje, apenas temos negócios e negociatas.

    Aproveitando uma comunicação social branda – fruto da crónica crise financeira dos media agarrados a um modelo de negócios de ‘prestação de serviços’ –, a máquina do Estado confundiu-se com a máquina do Governo. A Administração Pública, que serve os cidadãos, passou a servir o Partido Socialista.

    Aquilo que vem sendo revelado pelas diligências do Ministério Público – corrupção financeira e moral, tráfico de influências, pressão sobre funcionários públicos, alterações legislativas a pedido, benefícios ilegítimos de interesses empresariais em claro prejuízo do interesse das comunidades – não é um caso isolado. É o quotidiano. Como jornalista desde os anos 90, foi um ‘choque’ confrontar-me com uma máquina administrativa tolhida por um Governo, onde tudo se esconde, onde as negociatas se ‘cheiram’ na forma como os contratos públicos – o ‘sangue’ dos nossos impostos – são elaborados.

    No PÁGINA UM temos levantado o véu de alguns destes negócios, através da análise de contratos públicos ou mesmo na procura de informação, onde escritórios de advogados bem pagos pelo Estado se esforçam caninamente para manter o obscurantismo, para esconder o icebergue de corrupção que grassa o país.

    Perante tudo isto, não consigo compreender, portanto, como possa ser possível – e até admissível numa democracia adulta – que o Partido Socialista possa passar incólume pela Operação Influencer, e sobretudo por aquilo que representa e exemplifica. Não pode o Partido Socialista sair incólume com elogios ao estadista António Costa que, independentemente da sua culpa pessoal, tem desde já enormes responsabilidades políticas, nem que seja pelo ‘legado cáustico” do Governo Sócrates, onde ele chegou a ser o número dois.

    Não se pode assistir agora a um frenético passear de putativos candidatos a secretário-geral do Partido Socialista, onde até já despontam dois dos ‘coadjuvantes’ de António Costa, como são exemplo Pedro Nuno Santos (mas ninguém se lembra dos motivos da sua recente demissão?) e José Luís Carneiro. Não há ‘salvação’ possível, nem deveria haver perdão aceitável, para um partido que, depois do “pântano” de Guterres e da “cloaca” de Sócrates, leva agora, de novo, o país para os braços de mais uma etapa de uma crise crónica, de uma incessante crise moral, social e económica em que o Estado – dividido entre o Partido Socialista e o Partido Social Democrata – se esforça apenas para sacar o máximo possível dos contribuintes para distribuir o máximo possível entre os seus apaniguados e clientes.

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    Como escrevi no início, não pode ser admissível aceitar-se – mesmo sabendo dos alegados ‘perigos’ de uma viragem à direita, e o risco do crescimento da influência política de uma direita mais ‘radical – que o Partido Socialista saía de António Costa da mesma forma que o Partido de António Costa fez com José Sócrates. Não pode sequer ser aceitável sequer que, perante a gravidade das fortes suspeitas do Ministério Público –, o Governo ainda em funções mantenha pessoas como João Galamba ou Duarte Cordeiro, como se nada sucedesse.

    Aliás, na verdade, nem António Costa deveria, moralmente, manter-se em funções de gestão governamental até às eleições legislativas. Politicamente, deveria estar ‘morto’ e enterrar-se, e o Partido Socialista ‘refundar-se’, fazendo uma ‘purga’ ideológica, de pessoas, de procedimentos. Mudar simplesmente Costa, como se fosse uma ‘camisa’ gasta, não assumindo que a ‘doença’ do Partido Socialista é o seu já disforme e irreversível ‘corpo’, pode a curto prazo servir os interesses corporativos que se têm alimentado do Estado nas últimas décadas.

    Conseguindo convencer o eleitorado que basta trocar a ‘camisa’ Costa, mantendo-se o status quo, para assim evitar uma ascensão imediata da direita ao Governo – e fazendo até ‘ressuscitar’ a famigerada geringonça – pode até convencer o eleitorado a curto prazo. Mas apenas vai adiar uma solução para o país, que não passa por ideologias, mas sim por pessoas, ou melhor por corporações de políticos, como aqueles que António Costa foi alimentando no Partido Socialista, enquanto todos se banqueteavam com as benesses do Estado.

    Tudo isto não nos deve impedir de olhar para uma alternativa a António Costa e ao Partido Socialista com apreensão. Mas mais do que temermos Luís Montenegro como primeiro-ministro (que, concedo, pode vir a ser pior do que Santana Lopes no seu efémero mandato) ou uma ascensão do Chega ao Governo (que a ocorrer será mais uma ‘lição’ para a forma como não se geriu a democracia pós-25 de Abril e não a uma colagem ideológica dos portugueses à extrema-direita), devemos sim temer mais anos de um Partido Socialista pós-Sócrates e pós-Costa com os mesmos vícios.

    Talvez seja melhor, como cidadãos, que procuremos antes que o Estado – como entidade própria e ao nosso serviço – se proteja, e nos proteja, com instrumentos de controlo e fiscalização dos políticos, com o reforço da transparência, da estrutura do Ministério Público e do Tribunal de Contas, e com um aumento da celeridade e melhoria nas decisões por parte dos tribunais.

    Numa democracia sólida, eu não temo nenhum partido. Numa democracia débil, eu temo qualquer partido, mas ainda mais aqueles que transformaram a democracia portuguesa numa coisa débil – como o fez António Costa e o ‘seu’ Partido Socialista nos últimos anos. E quem assim escreve ainda acredita no Estado Social, apesar de tudo.

  • Metam a amnistia onde o sol não brilha

    Metam a amnistia onde o sol não brilha


    Em Dezembro do ano passado, após ver-me obrigado a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a documentos em posse da Ordem dos Médicos, publiquei um artigo de investigação que revelava as negociações, à margem das normas da DGS, entre a Ordem dos Médicos e o almirante Gouveia e Melo para a vacinação de médicos não-prioritários em Fevereiro de 2021. Além de ser ilegal, estávamos perante uma grave falha de ética, até porque, semanas antes, Gouveia e Melo substituíra Francisco Ramos por irregularidades similares no programa de vacinação contra a covid-19, que então se iniciara num (então) cenário de escassez de doses.

    O artigo intitulava-se “Gouveia e Melo ‘mercadejou’ administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force”, tendo como antetítulo “Factura ao Hospital das Forças Armadas associada a donativos não declarados de farmacêuticas à Ordem dos Médicos”. Como baseado em documentos, mostrados à luz das normas em vigor e às competências que então o actual Chefe de Estado-Maior da Armada detinha, se tivéssemos num país decente, aquele conjunto de artigos que então se publicou no PÁGINA UM daria mais do que um (nunca mais concluído) inquérito da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    Mas como estamos num país indecente, o almirante Gouveia e Melo viu na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) uma excelente guarita para descredibilizar, não apenas o meu trabalho, como também para me punir.

    E assim, munindo-se de recursos humanos da Armada – o Almirante Gouveia e Melo mandatou o seu próprio porta-voz para apresentar uma queixa contra um jornalista sobre um assunto que nada tinha a ver com as suas funções militares –, a sua queixa foi recebida de braços abertos por dois dos membros do Secretariado da CCPJ, que lestos concluíram que eu fizera “acusações sem provas”.

    E foi-me aberta instrução, dirigida por um jornalista do Correio da Manhã com responsabilidades editoriais no CMTV. Instrução à qual, formalmente, me pronunciei em Agosto passado, segundo normas do Direito Administrativo, porque a CCPJ rege-se por normas legais, e não pelas chico-espertices e demais safadezas da quadrilha (N.B.: não é a primeira acepção do termo na Infopédia) que integra o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    Artigo de investigação do PÁGINA UM baseou-se em documentos obtidos após uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Andava eu, curioso, em saber que sairia da instrução do meu processo disciplinar, e eis que recebo hoje o seguinte e-mail da CCPJ, que transcrevo na íntegra (com negritos da minha responsabilidade):

    “Incumbe-me a Secção Disciplinar desta CCPJ de informar V. Exas. do despacho emitido por essa Secção e que a seguir se transcreve:

    ‘Encontra-se a decorrer a instrução do processo disciplinar nº 1/2023, sobre possível infração do dever previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 14º do Estatuto do Jornalista, punível com uma das sanções disciplinares previstas no artigo 8º do Estatuto Disciplinar dos Jornalistas, contudo, como:

    • Os factos foram praticados em data anterior a 19 de junho de 2023;
    • Os factos imputados não integram a prática de qualquer ilícito penal;
    • As sanções aplicáveis não são superiores a suspensão ou prisão disciplinar.

    (Artigo 6º – amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares)

    Entende-se estarem reunidos todos os requisitos para que o presente processo disciplinar seja abrangido pela amnistia concedida pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, publicada no D.R. n.º 149/2023, 1.º suplemento, série I, de 2/8/2023, págs. 2 a 7 (por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude).

    Face ao exposto, e para que o procedimento disciplinar possa ser considerado extinto, vem a Secção Disciplinar perguntar a V. Exa. se não se opõe ao encerramento do processo por aplicação da referida Lei.

    A minha resposta só poderia ser a seguinte:

    Tendo sido informado de que, estando a decorrer a instrução do processo disciplinar nº 1/2023, no decurso de uma queixa do Chefe de Estado-Maior da Armada, Almirante Gouveia e Melo (que os membros do Secretariado da CCPJ, lestos, consideraram ser merecedor de infracção disciplinar, mesmo estando os factos por mim relatados a serem alvo de uma inspecção da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde), sou agora informado de um despacho emitido pela Secção Disciplinar propondo a extinção do processo ao abrigo da amnistia concedida pela Lei nº 38-A/2023.

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    Como não necessito de amnistias para defender, como jornalista, o meu trabalho que, ainda mais neste caso em concreto, reputo de rigoroso e pertinente, não poderia jamais aceitar que a CCPJ pudesse deixar no ar qualquer dúvida sobre essa matéria, pelo que aguardava com interesse a finalização da instrução do processo disciplinar.

    Donde, nem sequer agradecendo a V. “oferta”, como presente envenenado, serve a presente missiva para esclarecer que, OBVIAMENTE, oponho-me à extinção do processo disciplinar, reiterando, contudo, que a instrução não se prolongue ad aeternum. A única decisão que me satisfará é o arquivamento por ausência de quaisquer indícios de violação das normas previstas no Regulamento Disciplinar. Não preciso de outros ‘empenhos’.

    Na verdade, poderia ter sido mais sintético, e respondido com o título deste editorial: “Metam a amnistia onde o sol não brilha”.

  • Sai mais uma ciclogénese explosiva, um rio atmosférico e um comboio de tempestades para a mesa do canto…

    Sai mais uma ciclogénese explosiva, um rio atmosférico e um comboio de tempestades para a mesa do canto…


    Sou um jornalista que adora mistérios – que, na verdade, revelam tão-só uma coisa: ignorância. E adoro mistérios porque detesto a ignorância. A minha própria, para começar.

    E, por isso mesmo, por pura ignorância minha continua a ser um mistério para mim os recorrentes temas abordados pela directora-adjunta do jornal/rádio Observador, Filomena Martins.

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    Por Zeus!

    Por Hermes!

    Por Tyche!

    Por Néfeles!

    Por Zéfiro!

    Por Éolo!

    Por Bóreas!

    Por Notus!

    Por todos os Anemois!

    Por Tutatis!

    Filomena Martins diz, na sua biografia, que “depois da paixão pela história e da prática obsessiva na área da arqueologia”, acabou licenciada em Comunicação Social, tendo passado pelo Record, Correio da Manhã, Sábado e Diário de Notícias, antes de ingressar em Março de 2015 no Observador. E conclui: “O resto é história”.

    Não é só história; é meteorologia também, mas da dura, ao melhor estilo do jargão meteorológico, onde não há apenas chuva, sol, humidade relativa, pressão atmosférica e, vá lá, um ‘anticiclonezito’ dos Açores.

    Não. A directora-adjunta do Observador – que em 44 textos escritos este ano, 34 vezes dedica-os à meteorologia – não é assim tão simplista. Por exemplo, hoje anuncia que a tempestade Domingos “não será tão devastadora como a sua ‘irmã’ Ciarán, porque a ciclogénese explosiva se produzirá no mar”.

    Na pena de Filomena Martins, aquilo que em tempos não muito longínquos seria, enfim, um temporal outonal – cujos estragos causados se devem mais ao péssimo planeamento biofísico do território (o saudoso arquitecto Ribeiro Teles explicava isso muito bem) e à ainda pior gestão de equipamentos urbanos (a começar pelas sarjetas) – transforma-se numa “das mais violentas tempestades a atingir o Reino Unido nesta altura do ano”, sendo a “depressão mais grave e profunda da temporada”; é, enfim, “trocando por miúdos”, para citar textualmente a directora-adjunta do Observador, é “um ciclone bomba”.

    E porquê? Porque, explica ela, “a forma como evoluiu o tornou raro, mesmo muito raro. Falamos de uma tempestade em que a pressão atmosférica deve cair 29 hPA num só dia, quando o limite de uma ciclogénese já explosiva na nossa latitude costuma ser de 20/24 hPa em 24 horas. Ou seja, a intensificação vai acontecer de uma forma extremamente rápida, daí tornar-se tão violenta”.

    Eis o melhor estilo do atirar um número ao calhas e com uma unidade sobre a qual o vulgo nada sabe e a jornalista nada explica. Só para impressionar e assustar. Ah!, já agora hPa são hectoPascais, que são 100 Pascais, coisa que a jornalista Filomena Martins acha que não precisa de dar nem de contextualizar. Antigamente, usava-se mais os bares, mas agora não deve ser tão vendável… As voltas que o circunspecto Anthimio de Azevedo deve estar a dar…

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    Tudo nos textos meteorológicos de Filomena Martins – que seguem uma escola, mas em que ela se transforma em sacerdotisa – remetem para o trágico, fatal, sinistro, aterrorizante, cruel, diabólico – e patético, acrescento eu.

    Nunca na minha vida (como técnico e como jornalista), em que me debrucei e li muito sobre eventos meteorológicos extremos, alguns com tendência crescente de frequência, tinha assistido, como no último ano, a títulos da imprensa como – e vou citar títulos da Filomena Martins – “rio atmosférico atravessa centro do país”, ou ainda “Portugal atingido por um comboio de tempestades”, ou ainda “Furacão Franklin+DANA espanhola = nova tempestade”, ou ainda “Oscar: vem aí uma tempestade rara para esta altura do ano. E pode trazer um “rio atmosférico” na quarta-feira”, ou ainda “Esta quarta foram batidos seis recordes de temperaturas de abril. Mas o pior chega amanhã”, ou ainda “Vêm aí dois dias com umas gotas de chuva. E depois uma semana de forno, em que se pode chegar aos 35ºC”, nestes casos sempre com mapas de amarelo para cima e nunca muito abaixo de vermelho, que melhor sempre se mostra meter encarnado em cima de vermelho.

    A loucura que se passou na pandemia – com a comunicação social a desejar e a promover o “quanto pior, melhor” – está agora a tentar seguir o seu caminho com as alterações climáticas, onde se confunde e exagera cada evento meteorológico diário, como se fosse, cada pingo de chuva ou cada subida de nível do mercúrio, uma prova irrefutável do aquecimento global.

    Como tenho defendido, e continuarei a defender, existem evidências de uma intensificação de fenómenos climáticos em determinadas regiões do Mundo que devem merecer acção – e mais de adaptação já do que de inversão de emissões –, mas não pactuo com falácias, nem hipocrisia e não assino linhas de comunicação que assentam no susto, no pavor, na manipulação. Ainda há duas semanas abordei essa questão num absurdo artigo do Expresso sobre a Torre de Belém.

    Pior ainda, sou visceralmente contra a banalização comunicacional de eventos meteorológicos, através da emissão de constantes alertas amarelos, laranjas e vermelhos pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). E sou contra o uso de jargão técnico que, no contexto do quotidiano, são percepcionados de uma forma distinta. Não cuidar da comunicação, exagerando e exacerbando, faz-me sempre lembrar a história do lobo e do Pedro: com tanto alerta, certo dia ninguém acreditará nas Filomenas Martins – como eu já não acredito.

    E isso não é necessariamente bom, nem sequer para as causas que supostamente certos jornalistas, por moda, defendem sem saberem da poda. E sou sobretudo contra este nível de comunicação porque serve para desculpar tudo e um par de botas, como se tem visto com o (contínuo) excesso de mortalidade em Portugal.

  • Eu quero estar no ranking dos jornalistas mais odiados pelas agências de comunicação

    Eu quero estar no ranking dos jornalistas mais odiados pelas agências de comunicação


    Quando se pensa que já se chegou ao fundo do poço, há sempre alguém que puxa por uma picareta e continua a cavar. Se estiver muito duro, vai mesmo com martelo pneumático. É neste estado que se encontra o jornalismo português: ainda longe de atingir um fundo por mais baixo que esteja.

    O caso da eleição pelos funcionários das agências de comunicação – que trabalham para empresas privadas e instituições públicas – dos “jornalistas mais admirados”, ou amados, e também do top 15 das equipas de jornalistas, mais parece uma ‘rábula’ do PÁGINA UM que, ao longo dos últimos dois anos, tem denunciado, com casos e nomes concretos, a promiscuidades de alguns jornalistas e directores editoriais que somente têm contribuído para o pântano da imprensa. Imaginei fazer um trabalho dessa natureza, mas daria demasiado trabalho e aumentaria ainda mais o lote de ‘inimigos’ entre a classe.

    Não precisei disso. Houve mesmo uma consultora, a Scopen, que se predispôs, recorrendo a votos das agências de comunicação, a uma eleição dos ‘jornalistas mais fofinhos’ – daqueles que o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas aprecia, que a Comissão da Carteira Profissional do Jornalista ama e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social glorifica. E assim se destacou os seguintes jornalistas, por ordem de preferência: Joana Petiz (Novo), Ana Marcela (Eco), Maria João Vieira Pinto (Marketeer), Maria João Lima (Marketeer), Ana Maia (Público), Carla Borges Ferreira (Eco), Miguel Prado (Expresso), Cátia Rocha (Observador), Fátima de Sousa (Briefing), Margarida Vaqueiro Lopes (Exame), Isabel Vicente (Expresso), Mariana Bandeira (Jornal Económico), Karla Pequenino (Público), Ricardo Costa (SIC), Mariana Dias (Dinheiro Vivo), Rosália Amorim (TSF), Vítor Andrade (Expresso), Fernando Paulo (Imagens de Marca), Maria Teixeira Alves (Jornal Económico), Nuno Vinha (Jornal Económico), Carla Jorge (Lusa), Susana Oliveira (Lusa), Pedro Duriães (M&P), Bruno Roseiro (Observador), Tiago Neto (Sábado), Bento Rodrigues (SIC) e Cláudia Silva Carvalho (Time Out).

    A informação oficial indica, não os mencionando, que houve mais 105 jornalistas referenciados pelos funcionários das agências de comunicação como “best journalist to work with”.

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    Que as agências de comunicação tenham perdido o pudor, não surpreende. Tudo se faz já às claras com directores de jornais a darem boas-vindas a parceiros comerciais das empresas gestoras de órgãos de comunicação social e jornalistas a fazerem simultaneamente trabalho de marketing e escrita de notícias (ou publicidade encapotada em notícias). Mas, pelos Céus, listarem publicamente os best journalists to work with? Assumirem que trabalham com jornalistas e assumem que gostam mais de um do que de outros?

    Mas para que esta patetice se transformasse em drama teria de se colocar a cereja no topo do bolo. Por exemplo, a revista Forbes – um dos títulos da Media N9ve, que integra o semanário Novo, agora dirigida por Joana Petiz, titulou ontem: “Jornalista da Media9 é a mais admirada pelas agências de relações públicas”.

    O jornal ECO também se congratulou com o facto de ser “um dos meios de comunicação social com menções por parte dos profissionais de agências de comunicação quando questionados sobre os ‘jornalistas que mais admiram’”, destacando mesmo as posições das suas duas jornalistas, Ana Marcela e Carla Borges Ferreira.

    O incómodo que este ranking causou na classe – obrigando mesmo o Sindicato dos Jornalistas a fazer um comunicado de imprensa relâmpago – só demonstra que se está perante a lei da barata: quando há agências de comunicação que ‘amam’ jornalistas, e listam duas dezenas, então é porque há 200 que, escondidos, chafurdam na promiscuidade.

    Por isso mesmo, só aceitarei um dia estar num ranking se for sobre os mais odiados pelas agências de comunicação – seria um fidedigno indicador de estar a fazer um trabalho rigoroso, sem vergar a interesses económicos ou políticos, em prol do verdadeiro jornalismo.

  • ERC: das cem páginas sobre o Notícias Viriato até à sem vergonha sobre a Global Media

    ERC: das cem páginas sobre o Notícias Viriato até à sem vergonha sobre a Global Media


    Na verdade, não quero ser acusado de desinformação. São mais de cem páginas. São 135 páginas. Atentem bem: 135 páginas. Os mestrados, por norma em diversas universidades, não podem ultrapassar as 80, por vezes bastam duas ou três dezenas. Mas a Entidade Reguladora para a Comunicação Social decidiu disponibilizar meios e tempo para uma investigação exaustivíssima ao sítio electrónico Notícias Viriato, que andou activo durante o período pandémico, mas que deixou de dar sinais de vida desde 1 de Fevereiro de 2022. Já lá vão quase 21 meses.

    Aliás, ninguém sabe do seu responsável, António Abreu, que, apesar do voluntarismo, não se poderia dizer jamais que fizesse jornalismo, apesar de estar inscrito na Entidade Reguladora para a Comunicação Social que, como se sabe, integra tudo e um par de botas.

    ERC: regulador que regula quem deve ser regulado.

    Enfim, mas certo é que alguém da ERC decidiu que, dando entrada uma denúncia sobre o Notícias Viriato por ser “um site de desinformação”, em 12 de Janeiro de 2020 – portanto, há mais de três anos e nove meses – se deveria fazer um tratado sobre a coisa. E, portanto, três anos e nove meses depois, lá temos a Deliberação ERC/2023/341 (OUT-NET), que, para efeitos de regulação (do ponto de vista académico, concedo que terá algum), serviria para pouco mais do que limpar o anel posterior se não fosse sair apenas em formato digital. Até porque não eram necessários três anos e nove meses nem 135 páginas para concluir, sobre um site que nem sequer está activo há mais de uma vintena de meses, o óbvio: “não sendo um órgão noticioso, mas apresentando-se como tal, o Notícias Viriato engana o público”.

    Mas, enquanto a ERC gasta tempo e meios para dissecar inutilmente o Notícias Viriato, já sobre a dívida colossal e escandalosa ao Estado por parte da Global Media moita-carrasco. Instado várias vezes pelo PÁGINA UM a explicar as razões pela qual não investiga as contas da Global Media – que tem participação na Agência Lusa – para saber o motivo de não estar identificada a entidade pública a quem esse grupo de media tem um calote de 10 milhões de euros, a ERC tergiversa.

    Atente-se às justificações hoje transmitidas por correio electrónico a um pedido de esclarecimento do PÁGINA UM.

    Embora diga que “não obstante, pontualmente e por razões proporcionais e necessárias, poder recorrer ao cruzamento com outras fontes disponíveis para verificar o cumprimento” das exigências de informação verdadeira no Portal da Transparência dos Media, a ERC diz depois que, como “o universo de regulados é vasto”, procura promover “o tratamento equitativo de todos eles”. Portanto, o pasquim da Vila da Pocariça deve ser regulado da mesma forma que a Global Media…

    [Bom, a atender pela actual tiragem do Diário de Notícias talvez até faça, assim numa primeira análise, algum sentido.]

    E depois confessa, em seguida, que “não dispõe de fundamento legal e meios para aplicar sistematicamente o grau de escrutínio” que o PÁGINA UM sugeriu: a simples análise dos Relatório e Contas, que qualquer licenciado em Economia, Gestão ou Contabilidade sabe fazer em cinco minutos.

    E, por fim, depois de umas considerações sobre a ausência de menção na lista de devedores à Autoridade Tributária e Aduaneira – e é esse mesmo um dos problemas da Global Media: uma tão grande dívida, que supostamente não será fiscal ou então está a ser escondida por razões políticas –, a ERC ainda diz que o objectivo da Lei da Transparência dos Media tem “implícito um horizonte temporal de médio/ longo prazo por forma a ser possível, correta e fidedignamente, ‘a promoção da liberdade e do pluralismo de expressão e a salvaguarda da sua independência editorial perante os poderes político e económico’”, concluindo que, “neste enquadramento, recomendamos que a informação da Plataforma da Transparência seja lida na sua globalidade e não num horizonte temporal de curto prazo”.

    Marco Galinha

    Basicamente, a ERC quer que o PÁGINA UM esqueça o assunto, porque a ERC não quer incomodar os negócios da Global Media, nem quer que se saiba quem autorizou, sem mexer uma palha, um acréscimo de calote público em sete milhões de euros em apenas um ano, nem quer investigar se houve ‘condições’ políticas e financeiras para que Marco Galinha e seus sócios continuassem docemente a agir como se nada se passasse.

    Para a ERC, andar por aí um órgão de comunicação social a dever 10 milhões de euros ao Estado, a acumular prejuízos de 42 milhões de euros desde 2017 e com estranhas movimentações da sua estrutura accionista, não é problema nenhum.

    Grave, grave será um site de uma só pessoa, inactivo desde Fevereiro de 2022, não é? Isso sim merece investigação detalhada de mais de dois anos com 135 páginas.

  • A morte do jornalismo: a notícia mais lida do Observador foi um patrocínio da EDP

    A morte do jornalismo: a notícia mais lida do Observador foi um patrocínio da EDP


    Este editorial não precisa de ser grande. Pela madrugada, abri o Observador e passei os olhos pelo destaque das notícias “Mais Populares” nos últimos dois dias. No topo surgiu, antes mesmo da notícia sobre uma grávida com o bebé morto mandada para casa pelo crónico Hospital Beatriz Ângelo, e de uma louvaminha ao novo bispo de Setúbal (transformado pelos media em nova coqueluche eclesiástica), um artigo com o típico piscar de olhos para o clique (com o ponto de interrogação final): “2024 é o ano para comprar um carro eléctrico?

    Antes mesmo de ser seduzido para a leitura desta notícia-pergunta, respondi ironicamente: claro que sim, sobretudo se tiver um carro anterior a 2007 e dinheiro para comprar um carro eléctrico – o que me parecem duas condições economicamente incompatíveis entre si.

    Notícia mais popular do Observador nos dias 26 e 27 de Outubro foi escrita por um ‘ghost writer’ do Observador Lab, criado para parcerias comerciais.

    Mas lá vou, para dentro da notícia. Ou melhor ‘notícia’: ainda consigo ler o lead – onde, num estilo pessoal e intimista, surge a informação de que “se a ideia de comprar um carro elétrico não lhe sai da cabeça, fique a saber que não é o único: em Portugal, as vendas de viaturas 100% elétricas cresceram 149%, entre 2020 e 2022”.

    Aprestava-me para continuar a leitura, fazendo scroll sobre fotografia de um carro eléctrico a carregar (usei um computador), quando o meu olhar se desviou para a esquerda e leio o nome do ‘jornalista’: Observador Lab, com a indicação de “conteúdo patrocinado por EDP”. Com o logótipo da dita empresa.

    Não sei se a direcção editorial do Observador tem a noção da gravidade desta situação – e se são como David Pontes, no Público, ou João Vieira Pereira, no Expresso – só para citar aqueles que mais “comércio de notícias têm feito –, que clamam por independência enquanto “amaciam” patrocinadores.

    E também duvido que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e o seu Conselho Deontológico (que no meio do pântano nacional, decidiu agora ‘marrar’ contra um jornal regional por noticiar fait divers e life style) tenham a noção da caixa de Pandora que aqui se abre.

    Printscreen retirado hoje às 04:00 horas

    Na verdade, por este caso – e que terá tendência a repetir-se –, há três coisas que me causam urticária como jornalista.

    Primeira: é extraordinário que a própria direcção editorial do Observador – e não me digam que é um bug – permita que, num ranking de notícias, não se separe aquilo que são textos jornalísticos (feitos por jornalistas com, carteira profissional e código deontológico) e aquilo que são textos comerciais (feitos por ghost writers, que às tantas são jornalistas a fazer uns biscates). Talvez a direcção editorial do Observador já não os consiga distinguir.

    Certamente, se não foi intencional esta mistura, de fazer passar conteúdos comerciais por notícias – até porque no Google News o texto da EDP surge como notícia –, a EDP ficará bastante satisfeita pela prestação de serviços. Repetirá a dose, no futuro, porque misturando-se isto tudo pode ter maior projecção. Talvez passe a pagar em função dos cliques.

    Aviso que não quero ser sequer ‘mauzinho’, especulando que o dito texto patrocinado pela EDP foi, de início, artificialmente ‘inflacionado’ para surgir no ranking, suscitando assim que, por curiosidade (como a minha), os leitores o visitem… Há gente para tudo, mas eu não quero aqui insinuar nada, embora me apetecesse…

    Segunda: com este modelo de textos patrocinados por empresas – e daqui a nada por Governos, e, porque não, por partidos políticos –, e se for economicamente bem sucedido, está a alimentar-se uma casta de “jornalismo prostituto”, onde directores editoriais se transformam em directores comerciais, que passam a buscar clientes para textos de promoção em vez de buscarem notícias para os leitores.

    Terceira: com o sucesso deste tipo de textos patrocinados por empresas (ou Governos ou partidos políticos, um dia…), deixa de haver espaço para o jornalismo de investigação, de denúncia, de pressão, de consciência cívica, daquele jornalismo que incomoda e que, lamentavelmente para os ‘directores comerciais’ travestidos de jornalistas, podem afugentar potenciais patrocinadores de textos que seguirão para o topo dos “Mais Populares”.

    Miguel Pinheiro, director executivo do Observador.

    Como isto anda, tenho a convicção de que haverá, em breve, consumando-se este processo de prostituição do jornalismo (notem que não meti aspas), haverá mais do que um “imoral despedimento colectivo”, como o da Bola, criticado (obviamente) pelo Sindicato dos Jornalistas.

    Mas quando esses eventos se massificarem, expectáveis pela crescente degradação da ética nesta profissão (afinal, para que servirá, se basta no futuro saber escrever para agradar a clientes?), o Sindicato e todos os outros que se calam agora, assobiando para o ar (enquanto garantem o salário por ‘bom comportamento’), só terão então uma coisa a fazer: culparem-se pela omissão. E nem será culpa por negligência. Será por dolo: os jornalistas, em tempos alcandorados como a consciência cívica das sociedades, serão os culpados por se tornarem vítimas, porque aceitaram esse papel.

    Ah, e já agora, e de que se tratava afinal a notícia mais popular do Observador nos últimos dias? Ora!, poupem-me…

  • O jornalismo mata-se com hipocrisia: o caso David Pontes, director do Público

    O jornalismo mata-se com hipocrisia: o caso David Pontes, director do Público


    Ontem, o PÁGINA UM foi obrigado, pela segunda vez no espaço de uma semana, por deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a publicar um direito de resposta do director do Público, David Pontes. Em causa estiveram duas notícias factuais do PÁGINA UM que revelavam as promiscuidades comerciais entre este órgão de comunicação social e, no primeiro caso, entidades públicas (Biopolis e Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte) com vista à prestação de serviços de ‘feitura’ de notícias de ambiente; e, no segundo caso, uma farmacêutica (Sanofi), com vista à ‘promoção’ de uma doença (infecções pelo vírus sincicial respiratório) para a posterior ‘promoção’ e venda de um fármaco.

    David Pontes justificou, em ambos os casos, que as notícias – factuais e evidentes – do PÁGINA UM afectavam o “bom nome” daquele jornal. Sou de opinião de que o “bom nome” de alguém, ou de um jornal, é afectado sobretudo pelas suas próprias acções, e mal seria se um mensageiro ou um denunciante, dizendo a verdade, fosse agora culpado pela perda desse suposto “bom nome”. O jornalismo é, sobretudo, não assumir que o “bom nome” é algo perene, que não pode ser colocado em causa.

    Bem sei que o instituto do direito de resposta é sagrado – e o PÁGINA UM só não o aceita de imediato, como sucedeu aos pedidos de David Pontes, quando, através dessa resposta, se transmitem falsidades sobre o meu trabalho e sobretudo se notar ali posturas de hipocrisia. Nesses casos, somente publicarei direitos de resposta sempre sob protesto, em consequência de deliberações da ERC.

    Sobre esta matéria, e porque é vedada a possibilidade de contra-argumentar no próprio dia da publicação do direito de resposta, atente-se agora na parte final do texto de ontem de David Pontes: “No PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais. A redacção não faz escolhas editoriais tendo em conta o que sai ou não sai no Estúdio P ou noutro espaço comercial.

    Nem de propósito, enquanto escrevia este texto, decorre no auditório do Museu do Oriente uma conferência subordinada ao hidrogénio verde, a ser transmitida online, “promovida pelo jornal Público em parceria com as Galp, a Hyveritas, a PRF, a SmartEnergy, com o apoio institucional da Associação Portuguesa de Energias Renováveis e da Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio e ainda tendo a Deloitte como parceira de conhecimento”. Assim é apresentada. E consta na secção Estúdio P, com a devida referência a “Conteúdo comercial”.

    E é “Conteúdo Comercial” porque, na verdade, mesmo que se ouça ou leia “parceria”, há sim um pagamento pelos ditos “parceiros”, que, na verdade, recebem uma factura pela prestação de serviços, neste caso, a conferência com direito ao uso da chancela Público, como jornal.

    Mas é aqui que a ‘porca torce o rabo’. e é aqui que muitos directores editoriais permitem a promiscuidade que somente uma torpe hipocrisia pode sustentar.

    Pode defender-se que um jornal, ainda mais nestes tempos de multimédia, se comporte como uma estação de televisão ou uma rádio, fazendo conviver programas de entretenimento ou de formação – onde é mais do que aceitável e bastante justificável o patrocínio ou publicidade, devidamente identificados – com programas de informação. Porém, nos programas de informação ou com conteúdos informativos jamais é aceitável que surja directa ou indirectamente qualquer relação comercial externa com a actividade jornalística, mesmo se implicitamente mencionada sob a forma de “parceria”, porque isto é um eufemismo comercial para prestação de serviços a troco de dinheiro.

    E, no meio disto, os jornalistas só podem fazer como o diabo fez à cruz: fugir dali a sete pés. O mundo dos jornalistas é fazer notícias; não é ser um funcionário comercial.

    Ora, no jornalismo, tem de se ser como a ‘mulher de César’. E por isso quem diz: “No PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais“, tem de ter noção do valor das palavras.

    Assim sendo, quem acham que foi o mestre-de-cerimónias da dita conferência comercial sobre hidrogénio verde paga por um leque de empresas e associações?

    Nem mais: David Pontes, director do Público – esse mesmo que, vamos lá repetir, escreveu que “no PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais”, e que garante que “a redacção não faz escolhas editoriais tendo em conta o que sai ou não sai no Estúdio P ou noutro espaço comercial.”

    Como manter a equidistância quando jornalistas noticiam sobre empresas que, por sua vez, são parceiras comerciais em eventos pagos onde esses jornalistas participam activamente?

    Talvez não faça escolhas editoriais em função destes pagamentos – e talvez o facto de o Público ter publicado, ao longo dos últimos tempos, dezenas de artigos noticiosos sobre hidrogénio verde seja apenas por interesse editorial, e que, por exemplo, empresas como a Galp surjam agora sempre como paladinos do ambiente seja porque, enfim, são mesmo paladinos do ambiente.

    Mas se David Pontes quer manter a aparência de jornalista impoluto – batendo no peito a sua independência e mostrando-se ofendido por acusarem o seu jornal de promiscuidades –, não convém então que vista a pele de lobo, querendo com isso parecer cordeiro.

    Não convém nada que, por exemplo, apareça assim numa sessão de boas-vindas de um evento comercial – um dos tais que ele diz não sabe nada nem ter de saber –, a declarar logo no início: “Queria agradecer a todos os presentes e a todos os que fizeram esta conferência possível; obviamente aos nossos parceiros: a Galp, a Hyveritas, a PRF, a SmartEnergy, a Deloitte, como nossa parceira de conhecimento, e ainda obviamente a Associação Portuguesa de Energias Renováveis e a Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio”.

    people protesting inside building

    Isto foi o que ficou gravado. E imagine-se aquilo que não ficou, entre salamaleques, enquanto a Público Comunicação Social S.A. facturava aos “parceiros” a credibilidade de um jornal com a presença do seu próprio director como mestre-de-cerimónias. Não é essa a função de um jornalista, muito menos de um director que quer ser credível, e que acha que o jornalismo se credibiliza com essa promiscuidades.

    Enfim, o problema disto tudo não é só a hipocrisia; é estar a matar-se, assim, o jornalismo. E achar-se que o ‘mau da fita’ é o mensageiro e não o hipócrita que só torna a degradação ainda mais lastimável.

  • Público: mercadejar o jornalismo (até à prostituição), assistido por um regulador ‘fora de prazo’

    Público: mercadejar o jornalismo (até à prostituição), assistido por um regulador ‘fora de prazo’


    O PÁGINA UM publicou ontem, por imposição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), um direito de resposta do director do Público, David Pontes, sobre um tema que, aliás, o próprio regulador, desde Junho, não quer comentar: a celebração de contratos entre empresas detentoras de órgãos de comunicação social e entidades públicas, onde se mercadeja o serviço de jornalistas. A resposta do director do Público surgiu em reacção a um artigo que abordava, em concreto, contratos comerciais a executar por jornalistas na secção Azul, dedicada ao Ambiente.

    Não há outro termo nem aspas a usar: são mesmo contratos de prestação de serviços a serem executados por jornalistas, a maioria das vezes, por responsáveis editoriais que são os primeiros a aprestar-se a essa tarefa e a ludibriar os leitores, porquanto, na generalidade dos casos, nem sequer se identifica claramente que há um pagamento de uma entidade externa pela actividade desenvolvida por jornalistas. São tantos que o PÁGINA UM criou uma secção autónoma.

    man in red and black outfit air diving

    Convém referir que a publicação de um direito de resposta – ainda mais neste caso (e haverá ainda outro, que teremos de publicar ainda hoje ou o mais tardar amanhã) – não significa, antes pelo contrário, que o órgão de comunicação social tenha errado na sua notícia, que tenha escrito uma mentira ou que não tenha cumprido regras deontológicas e de rigor.

    Nesse aspecto, a ERC tem tido uma leitura muito abrangente, concedendo o direito de resposta se o visado simplesmente invocar que prejudica a sua fama (mesmo que seja má pelos actos que pratica), uma vez que defende que “o instituto do direito de resposta não é animado do propósito de busca da verdade material – cujo controlo não cabe aos órgãos de comunicação social, nem, tão-pouco, em princípio, ao próprio regulador, por não ser essa a sua vocação”.

    No entanto, convém referir que na sua análise que implicou a obrigatoriedade de publicação do direito de resposta do director do Público (com um dia de destaque), em consequência de um artigo da minha autoria em 5 de Junho passado, os três membros ainda restantes de um Conselho Regulador já fora do prazo de validade – se é que alguma vez teve –, tecem algumas considerações que merecem comentário.

    De forma mais ou menos explícita, embora prometendo analisar o caso em concreto (já lá vão quase cinco meses), a ERC tende a manifestar já que os dois contratos de prestação de serviços do Público – um com a Biopolis (uma associação de direito público que integra universidades) e outro da Comissão de Coordenação da Região Norte (CCDR-N), com uma forte componente política – são banais, aceitáveis e, quiçá, passíveis de serem multiplicados no futuro. Chegam mesmo, os ditos três membros do Conselho Regulador da ERC, a sustentar que a interpretação do PÁGINA UM sobre as cláusulas dos contratos em causa – e em particular do da Biopolis – “é manifestamente desprovida de sustentação e, inclusive, abusiva”.

    Portanto, a ERC – que recentemente já tinha sido pífia na não-responsabilização de directores editoriais pela existência de ‘jornalistas comerciais’ – obriga-me a retomar o assunto. E com assertividade, até porque há actualizações. E daquelas que ainda pioram mais a postura do Público.

    Não será surpresa nenhuma – porque tenho vincado isso, aqui, por diversas vezes – que eu diga que o estado pantanoso, mais ao estilo de uma cloaca do que de um ecossistema lacustre, da imprensa portuguesa se deve, primeiro, a directores editoriais que se transformaram em directores comerciais, mercadejando notícias; e, segundo, a uma regulação frouxa, comprometida e interessada em não beliscar um negócio (media) em profunda crise financeira, grave por ser uma crise sustentada em falta de credibilidade. O caso da Global Media é disso um exemplo. Como já não consegue vender notícias ao leitores; já vende jornalistas para vender promoção de clientes. Morrerá no dia em que os clientes que lhe pagam a promoção verificarem que essa promoção é vista pelo boneco.

    Mas regressemos ao foco. Independentemente das interpretações – que basicamente constituem a aplicação literal das cláusulas contratuais dos acordos comerciais entre a empresa do Público e a CCDR-N e a Biopolis para financiar uma secção jornalística denominada Azul – há um facto incontornável, indesmentível, indelével: há um elefante na sala. E esse elefante chama-se contrato de prestação de serviços para a execução de tarefas jornalísticas por jornalistas.

    Só a simples previsão, teórica, de contratos de prestação de serviços de jornalismo (que deveria ser sinónimo de isenção e independência) envolvendo entidades públicas (e privadas) deveria causar engulho, vergonha, generalizada desaprovação – e opróbrio para quem, sendo jornalista, se permite assinar e executar este tipo de tarefas. Venha a direcção do Público, ou outra qualquer, justificar-se com muitos murros no peito ufando a palavra independência. Venham os reguladores fora do prazo que vierem, digam eles o que quiserem, mesmo que sentenciem ser “abusivo” alguém interpretar que contratos de prestação de serviços envolvendo jornalistas é mercadejar o jornalismo. E até se pode dizer mais, e que se diz porque estamos perante uma opinião: é prostituir o jornalismo.

    Se isto serve em teoria, recordemos em concreto os contratos do Público, e as suas cláusulas. No caso da Biopolis, a troco de 90.000 euros, o Público comprometeu-se publicar “26 (vinte e seis) artigos editoriais, nos termos e condições definidos no Anexo I ao Caderno de Encargos [que não está no Portal Base nem a ERC quis saber dele], que resultem de uma escolha independente e sem qualquer condicionalismo ou ingerência por parte da Biopolis, entre os projectos científicos disponibilizados por esta, a fim de lhes ser dado o tratamento e enquadramento jornalístico necessário para contratos em causa. A publicação dos artigos daqui decorrentes far-se-á acompanhar da referência ‘Promovido por Biopolis”. E acrescenta-se depois que “o Público obriga-se ainda [é extraordinário um jornal obrigar-se a cláusulas a quem lhe dá dinheiros para escrever 26 artigos editoriais] ao cumprimento das seguintes obrigações:

    1. Sujeitar-se à verificação da Biopolis, no que diz respeito, em exclusivo, ao cumprimento dos prazos definidos;
    2. Prestar as informações e esclarecimentos solicitados pela Biopolis sempre que assim o requeira;
    3. Garantir os recursos humanos e materiais por forma a prestar o serviço contratado;
    4. Executar um serviço de qualidade;
    5. Executar o serviço, que lhe for adjudicado, com absoluta subordinação aos princípios da ética profissional, isenção, independência, zelo e competência;
    6. Garantir sigilo quanto aos dados pessoais de que tomem conhecimento com a prestação de serviço

    Quem – a não ser, claro, a administração, a direcção comercial e a direcção editoral do Público, e também os três membros do Conselho Regulador fora do prazo – pode achar normal este tipo de cláusulas ao melhor estilo de ‘vendilhão de templo’?

    Alguém defender que quem assume um contrato desta natureza pode fazer jornalismo isento e independente, não está só a mercadejar o jornalismo; está a prostituir o jornalismo, porque isto é pornográfico. E, sobretudo, está a gozar com a cara de quem é jornalista e que não quer ver a credibilidade da classe assim conspurcada. Para manter empregos não vale tudo, sobretudo se se quer ser jornalista.

    yellow smiley emoji on gray textile

    Aliás, perante contratos desta natureza, nem eu já sei, por exemplo, no caso concreto da secção Azul do Público, se os dois artigos da jornalista Patrícia Carvalho sobre projectos da Biopolis envolvendo o sisão – publicados em 29 de Junho e em 15 de Julho deste ano – se enquadram no contrato de prestação de serviços ou se foi uma ‘borla’, até porque nunca surgiu até agora, em qualquer artigo, a tal prometida referência a “Promovido por Biopolis”. O mesmo se aplica a uma notícia a promover um dos responsáveis pela Biopolis, o biólogo Nuno Ferrand de Almeida, escrita em 30 de Junho deste ano pela jornalista Teresa Firmino.

    Aliás, o problema deste tipo de contratos no jornalismo é esse mesmo: havendo um contrato de prestação de serviços com uma entidade, a partir desse momento, como proceder? Se for feita uma notícia no âmbito do contrato sobre essa entidade passa a escrever-se “Promovido por Fulano de Tal”, e se for publicada de forma autónoma passa a aditar-se “Não promovido por Fulano de Tal”? Já viram a caixa de Pandora que se abre?

    Quanto ao contrato entre o Público e a CCDR-N – uma entidade, repita-se, fortemente politizada –, a situação ainda se reveste de maior gravidade: a troco de 31.000 euros pagos no prazo de 60 dias, o Público obriga-se, de acordo com o caderno de encargos, a “produzir uma série de conteúdos editoriais [leia-se, conteúdos jornalísticos e feitos por jornalistas] relativos à temática do crescimento azul do Programa Espaço Atlântico”, de os publicar “nos websites Azul e Publico.pt e no podcast Azul”, mas com uma condição especial: o Público tem de proceder à entrega prévia dos conteúdos para a “respectiva validação” pela CCDR-N.

    woman wearing brown coat playing violin

    Aliás, na cláusula 5ª do caderno de encargos, a CCDR-N trata o Público como se fosse um mero departamento burocrático de comunicação, uma vez que exige, como “forma de prestação do serviço”, que “para o acompanhamento da execução do contrato, o Prestador de Serviços [o Público] fica obrigado a manter, sempre que solicitado, reuniões de coordenação com os representantes da Entidade Adjudicante [CCDR-N], das quais deve ser lavrada acta a assinar por todos os intervenientes da reunião”.

    No seu direito de resposta, hoje publicado no PÁGINA UM, e que foi escrito originalmente em 29 de Junho passado, o actual director do Público, David Pontes, teve a desfaçatez de escrever que aquele contrato de prestação de serviços “corresponde ao início de um processo e não ao seu resultado”, acrescentando que “na proposta apresentada pelo PÚBLICO e aceite pela CCDR-N, é salvaguardada a total independência do Azul e, ao contrário do que foi escrito, não há lugar a qualquer análise prévia dos conteúdos que os jornalistas irão fazer sobre os trabalhos de cooperação e investigação científica do espaço Atlântico”.

    Dizer que um contrato público, depois de assinado, é para cumprir de outra forma, revestir-se-ia de enorme gravidade num país decente, mas a indecência prevalece sob o silêncio do próprio presidente da CCDR-N, que nunca respondeu às questões do PÁGINA UM. Sabe-se agora que o presidente da CCDR-N, António Cunha, assina contratos em que o ajdudicatário diz que o contrato não é para ser levado escrupulosamente a sério. Ou seja, o contrato é fake.

    Mas, afinal, como evoluiu afinal este contrato de prestação de serviços entre o Público e a CCDR-N?

    Pois bem, evoluiu para a mentira – ou, vá lá, para a omissão, que é a ‘siamesa’ da mentira. Além disso, foi um ‘brinde’.

    Fresh Snapper on a Weighing Scale

    Com efeito, entretanto, habemos podcast. No âmbito deste contrato, a secção Azul do Público criou um projecto denominado “Mudar o Atlântico em quatro vagas”, apresentado como sendo “uma série editorial sobre as potencialidades das regiões atlânticas europeias e os desafios que enfrentam a nível ecológico e de crescimento económico, social e territorial”. E acrescenta-se que “esta série editorial tem o apoio do Programa Espaço Atlântico 2014-2020”, surgindo depois o logotipo Interreg Atlantic Area.

    E onde aparece a referência à CCDR-N?

    Não aparece. Omite-se. Mente-se.

    Se o objectivo não fosse mesmo esconder (com a conivência da própria CCDR-N) o contrato de 31.000 euros, dir-se-ia que o Público era ingrato, porque os podcasts não foram nada mal pagos, pois serão apenas quatro. O primeiro episódio, intitulado “Conhecer o oceano”, saiu no passado dia 5 de Outubro e basicamente foi uma conversa com dois oceanógrafos de 15:20 minutos. O segundo episódio, no dia 19, teve também duração de 15:20 minutos, e foi um quase monólogo de Pedro Sepúlveda, director de serviços de Acção Climática e Sustentabilidade da Direcção Regional do Ambiente e Alterações Climáticas da Madeira, sobre lixo marinho.

    Presume-se que os dois episódios seguintes tenham também 15 minutos, o que significa que o contrato com a CCDR-N rendeu ao Público 31.000 euros por hora de emissão, sendo a existência de uma relação comercial com uma entidade da Administração Pública omitida aos ouvintes. Para o ‘frete’, o Público não encontrou nenhum jornalista da casa; e está a usar sim uma recém-jornalista freelancer, Inês Loureiro Pinto (CP 8264), que está assim a ser uma tarefeira para cumprir um contrato de prestação de serviços escindido dos ouvintes.

    Earth with clouds above the African continent

    E, pronto, é nisto que se tem tornado o jornalismo nacional.

    E sabem quais serão as consequências?

    Com esta ERC, nenhumas. Com esta ética no interior da classe jornalística, nenhumas.

    A única coisa que se pode aguardar, na verdade, depois deste meu texto, será um novo pedido de direito de resposta de David Pontes… se for mesmo um cara de pau sem vergonha.

    P.S. No seu texto de direito de resposta, escrito em 29 de Junho, David Pontes escreve: “O Azul e o PÚBLICO pautam-se pela total transparência na relação com os seus parceiros, não tendo qualquer problema em revelar os contratos que firmam com eles, o que irão fazer muito em breve em local próprio“. Quase quatro meses depois, estou, estamos, a aguardar a revelação de tais contratos.

  • Alterações climáticas, Torre de Belém e os 3I do mau jornalismo: incompetência, ignorância e imbecilidade

    Alterações climáticas, Torre de Belém e os 3I do mau jornalismo: incompetência, ignorância e imbecilidade


    Tenho um lema como jornalista: devo escrever para que o meu leitor mais burro me entenda e que o meu mais entendido leitor não me chame burro.

    Isto a pretexto de uma notícia da edição de ontem do semanário Expresso, da autoria da jornalista Carla Tomás, que escreve sobre Ambiente há já umas boas duas décadas – e, portanto, tem mais do que obrigação (nem que seja para si própria) de não transmitir disparates, nem que estes saiam da boca de outros. Excepto se agora os jornalistas forem apenas pés de microfone ou transmissores de narrativas da moda, forçando tudo a ir até às alterações climáticas, como as dissertações do professor Aquiles Arquelau, especialista em Mitologia, que sempre descambavam na Bruna Lombardi.

    gray concrete castle during sunset

    A dita notícia do Expresso, sob o antetítulo de “Crise Climática”, lança a parangona: “Torre de Belém ameaçada por nível do mar e ondas de calor”. E relata o seguinte: “A acelerada subida do nível médio do mar e as cada vez mais intensas e frequentes ondas de calor estão a pôr em risco um dos ícones da cidade de Lisboa, classificado como Património Mundial. Construído no século XVI, o monumento é frequentemente batido pela ondulação em dias de temporal conjugado com a maré alta e corre o risco de ficar inundado no futuro com consequências para a estrutura que sustenta este monumento, isto quando se projeta uma subida de um metro no nível médio do mar antes do final do século”.

    E acrescenta que “o alerta é feito pela arquiteta americana Barbara Judy, que está em Lisboa a coordenar uma equipa que estuda o impacto das alterações climáticas no Mosteiro dos Jerónimos e na Torre de Belém e que, até novembro, irá apresentar um relatório com sugestões de como minimizar os impactos e adaptar este património cultural a eventos extremos futuros”, informando ainda que “os trabalhos resultam de uma parceria da direção do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém com a embaixada dos EUA, no âmbito do Programa Embassy Science Fellow”.

    Pintura de 1811 da Torre de Belém, por John Thomas Serres (1759-1825).

    O artigo da Carla Tomás também apresenta duas fotos do Torre de Belém, em preia-mar e baixa-mar, sendo que na primeira o monumento está rodeado de água e na segunda se vê uma ‘língua de areia’, o que não é surpreendente atendendo que está em plena boca do estuário do Tejo, onde as variações do nível da água do mar (“culpa” da Lua) rondam os três metros.

    Como não me canso de dizer, existem evidências de alterações climáticas, com um aumento significativo do ponto de vista da frequência de fenómenos extremos – e isto independentemente das suas causas, sendo que se estas forem mesmo derivadas do dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa, bem que podemos meter a “viola no saco”, porque a China está a fazer com que qualquer sacrifício de redução seja em vão.

    Mas uma coisa é a necessidade de assumir a existência de um problema – as alterações climáticas, com as suas cambiantes e especificidades, encontrando medidas de minimização, mitigação e adaptação, de forma racional –; outra é a necessidade de não permitir que se tornem um monotema ambiental – e com isso permitir um pornográfico greenwashing, onde se pavoneiam empresas com passado e presente poluidor travestidas agora de “amigas do ambiente” –; e outra ainda, e muito importante, a necessidade de rigor informativo arredando o sensacionalismo manipulatório.

    Torre de Belém, à esquerda, integrado em mapa de Lisboa do século XVIII, onde também se observa o Mosteiro dos Jerónimos ainda quase banhado pelas águas do Tejo. Sucessivos assoreamentos e aterros aumentaram a área terrestre, ligando o ilhéu à cidade.

    Bem sei que a imprensa vive de soundbites, e sei também que, sobretudo depois da pandemia da covid-19, existe uma enorme tentação nas editorias menos escrupulosas de fazer suceder à emergência sanitária uma emergência climática, onde qualquer tempestade se transforma numa evidência das alterações climáticas, quando na verdade os processos são mais lentos, embora inexoráveis, e até mais afastados da Europa. E nem os impactes serão trágicos como uma crise sanitária se houver planeamento preventivo.

    Por exemplo, se não expandíssemos áreas urbanas para leitos de cheia ou não impermeabilizássemos zonas de drenagem, provavelmente não teríamos tantos estragos em tempestades. Ou se fizéssemos uma prevenção mais activa, em simultâneo com mudanças na estrutura silvícola, porventura os incêndios num mundo rural (cada vez mais desertificado de pessoas) não seriam tão dramáticos.

    Mas não quero falar agora mais sobre isso. Foquemo-nos na notícia do Expresso sobre a Torre de Belém – e nos seus disparates.

    Pintura de Filipe Lobo, patente no Museu de Arte Antiga, retratando o Mosteiro dos Jerónimos no século XVII. Ao fundo, à esquerda, a Torre de Belém, bem dentro do estuário.

    Como disse no início, convém a um jornalista que não lhe chamem burro.

    E, assim sendo, que se pode dizer então de uma notícia que, titulando estar a subida das águas do mar e as ondas de calor a AMEAÇAR a Torre de Belém, se “esquece” de referir que, enfim, este agora monumento estava, quando construído no século XVI, num pequeno ilhéu a cerca de 250 metros da margem?

    Carla Tomás, e o Expresso, além das fotos a mostrarem simples variações de marés, deveriam sim ter também apresentado mapas, pinturas ou gravuras antigas onde a Torre de Belém (ou Torre de São Vicente) se mostrava bem dentro do Tejo, tal como a chamada Torre Velha (ou Forte de São Sebastião da Caparica), portanto muito mais “afectada” por ondas e salinidade – muito menos “protegida” do que agora.

    Na verdade, foi a evolução costeira, a dinâmica estuarina, com assoreamentos progressivos, e em outras partes com desassoreamentos para tornar navegável o estuário, a par de aterros – que, por exemplo, “afastaram” o Mosteiro dos Jerónimos das águas do rio Tejo –, que “colocaram” a Torre de Belém onde está. Quer dizer, está no mesmo sítio, mas tudo mudou em seu redor. E essa mudança não foi derivada das alterações climáticas nem é absolutamente nada expectável que o aquecimento global coloque qualquer pressão relevante. Não é por aí que o gato vai às filhoses…

    Torre de Belém, em gravura do século XVII de Dirk Stoop.

    Ao longo dos séculos, e não por causa de quaisquer alterações climáticas, a Torre de Belém – que bem antes da Revolução Industrial (“berço” das emissões de dióxido de carbono) estava rodeada de águas do estuário – foi beneficiando de constantes e sucessivas remodelações e reabilitações, porque o tempo, esse “grande (mau) escultor”, desgasta sem parança. Que haja agora necessidade de uma nova intervenção, parece evidente. Basta conferir o Sistema de Informação para o Património Arquitectónico, onde se constata que foram executadas 27 obras de reabilitação em diversos graus na Torre de Belém ao longo do século XX, mas não havendo registos de alguma acção relevante nas últimas duas décadas. Por isso, sejamos honestos: “pedras partidas, molhes erodidos e juntas sem argamassa”, relatadas pela especialista citada pelo Expresso, não se devem às alterações climáticas. Apenas ao tempo, à lenta acção dos agentes físicos e químicos – e, vá lá, à incúria do Estado em relação a um rico património histórico. Nada mais.

    Torna-se, também, risível a referência no título do Expresso às ondas de calor ameaçarem a Torre de Belém, como se um aumento de temperatura por via de um aquecimento global – nem que fosse de 10 graus ou mais – pudesse causar qualquer dano de monta a pedras sujeitas a contínua salinidade, ondulação e variação das marés. É tão absurdo que nem merece mais comentários…

    Enfim, por tudo isto, só por incompreensível ignorância, ou por sensacionalismo bacoco ou por uma intencional manipulação da realidade – coisas que pouco incomodam os reguladores (ERC e CCPJ) e a classe jornalística (e o Conselho Deontológico do Sindicato de Jornalistas, mais afoito a fretes para difamar o jornalismo incómodo e independente) –, se faz uma notícia onde declarações de uma pouco conhecida arquitecta norte-americana que trabalhou no National Park Services – equivalente ao nosso Instituto de Conservação da Natureza e Florestas com a componente do património – se transformam em “provas irrefutáveis” das alterações climáticas sobre a Torre de Belém, que já “assistiu” a muitas façanhas e também muitos disparates em cinco séculos.

    Foto da Torre de Belém, publicada pela revista política norte-americana Harper’s Weekly, em 13 de Maio de 1865, acompanhando o relato de um incidente em Março daquele ano quando a fortificação portuguesa disparou contra o navio Niagara.

    Mas o pior é a notícia do Expresso não ser um exemplo isolado de mau jornalismo, a forçar uma “missão”; antes é um novo paradigma. Se assim não fosse, outros jornais não correriam a propalar o disparate do Expresso, como sucedeu com o Correio da Manhã e o Observador, o que mostra o nível de conhecimentos (até históricos) da malta que anda pelas redacções a copiar mutuamente disparates.

    Enfim, se isto é jornalismo de referência… vou ali e já venho. Ou melhor, sigo sozinho.