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  • “Favorzinho” de Miguel Guimarães transforma donativo em esquema lucrativo da farmacêutica Merck

    “Favorzinho” de Miguel Guimarães transforma donativo em esquema lucrativo da farmacêutica Merck

    Custam agora, cada uma, menos de 8 cêntimos. Já chegaram a ultrapassar mais de 1 euro no auge especulativo da pandemia, ao longo de 2020. Mas em Março de 2021, as máscaras FFP2 custavam, no mercado grossista, menos de 30 cêntimos. Contudo, para garantir um donativo para a campanha “Todos por Quem Cuida”, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, consentiu em valorizar um donativo em género da farmacêutica Merck em mais de seis vezes o seu valor real. O esquema fez com que a empresa alemã tivesse artes de transformar um donativo (que é, por princípio, uma despesa para o doador) numa operação financeiramente lucrativa. Com estes esquemas até admira não haver mais beneméritos.


    No dia 17 de Março do ano passado, a autarquia de Vila Nova de Gaia comprou à empresa Elastron 500.000 máscaras descartáveis FFP2, no âmbito da política municipal de combate à pandemia, pelo valor de 138.300 euros. Com prazo de entrega de dois meses, o preço deste equipamento de protecção individual, que se usara aos milhões, já então não atingia os preços astronómicos de 2020, quando qualquer empresa literalmente de vão-de-escada vendia máscaras como se fosse ouro. Contas feitas, mesmo assim a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia pagou quase 0,276 euros por cada máscara FFP2.

    Se se comparar com os preços actualmente praticados, convenhamos que estavam ainda bem “carotas”. Praticamente um ano depois, consegue-se encontrar no Portal Base valores muito mais baixos: por um exemplo, num contrato assinado de 18 de Março deste ano pelo hospital de Ponta Delgada – já com a pandemia “normalizada” (e com a descontinuidade no uso generalizado de máscaras no quotidiano) –, o preço de cada FFP2 foi de apenas 0,077 euros.

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    A unidade de saúde pagou assim por 700.000 máscaras apenas 53.900 euros. Se fosse ao preço unitário (0,276 euros) pago pela autarquia de Vila Nova de Gaia há um ano, o hospital açoriano desembolsaria 193.200 euros. Um absurdo?!

    Não tanto. Porque, na verdade, em tempos de pandemia, valeu tudo. Até um “favorzinho” da Ordem dos Médicos para que um donativo da farmacêutica Merck se transformasse afinal num esquema fiscal lucrativo para aquela empresa alemã.

    Com efeito, no mesmíssimo dia em que, a Norte, em Vila Nova de Gaia, o município comprava máscaras FFP2 a 0,276 euros – pagando assim 138.300 euros por 500.000 máscaras –, a Sul, na lisboeta Avenida Gago Coutinho, o bastonário Miguel Guimarães apunha a sua assinatura num contrato para selar um donativo da farmacêutica alemã, de modo a receber de “borla” 190.000 unidades do mesmo equipamento para a campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Carta de Miguel Guimarães à Merck, que acompanhou o contrato assinado em Março de 2021 entre a Ordem dos Médicos e a Merck. Nunca antes a Ordem dos Médicos aceitara acordo similar.

    Dir-se-ia, um excelente negócio para a Ordem dos Médicos, um bater de palmas pela capacidade negocial e diplomática de Miguel Guimarães, que assim conseguiu, a expensas das lucrativas farmacêuticas, poupar (aos preços então de mercado) qualquer coisa como 52.440 euros…

    Só que não foi bem assim…

    Na verdade, apesar de aparentar uma transparência imaculada – com a assinatura de um contrato bilingue e o registo do portal do Infarmed –, o acordo entre Miguel Guimarães e a farmacêutica alemã não foi mais do que um esquema fiscal que, em última linha, trouxe um lucro líquido à Merck, e um prejuízo ao fisco português ou alemão.

    Isto porque, de acordo com o contrato, a Ordem dos Médicos aceitou que a Merck, pelo donativo em géneros, atribuísse as máscaras FFP2 um valor unitário hiperinflacionado à época: em vez de um valor a rondar os 30 cêntimos, o acordo entre Miguel Guimarães e dois executivos da farmacêutica alemã (Frank Gotthardt e Petra Wicklandt) estabeleceu um valor unitário de 2 euros, ou seja, quase sete vezes superior ao valor de mercado.

    Deste modo, a farmacêutica alemã – que se tivesse nesse mesmo dia comprado as 190.000 máscaras FFP2, para depois as doar à Ordem dos Médicos, pagaria menos de 55 mil euros, pode assim apresentar uma despesa de 380.000 euros, o valor validado que surge no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.

    A valorização desse custo (hiperinflacionado) das máscaras, aceite e validado por Miguel Guimarães, permitiu assim transformar, do ponto de vista fiscal, uma despesa em lucro líquido. Isto porque, mesmo assumindo a inexistência de qualquer benefício fiscal extra, a farmacêutica alemã pôde sempre, no exercício económico do ano passado, apresentar o donativo supostamente de 380.000 euros como despesa, reduzindo assim os lucros.

    Com efeito, como esse valor de 380.000 euros reduziu os lucros – ou seja, sem esse suposto donativo, o montante em causa seria lucro de 380.000 euros –, a Merck deixou assim de pagar IRC sobre esse montante. Ou seja, assumindo um IRC de 28%, a farmacêutica alemã pagou menos 106.400 euros de impostos apenas por causa deste donativo. Ora, como o valor real do donativo (a preços de Março de 2021) foi de menos de 55 mil euros, conclui-se assim que, graças ao “favor” de Miguel Guimarães, a farmacêutica alemã teve artes de transformar um donativo em negócio lucrativo.

    A Merck declarou um donativo de 380.000 euros à Ordem dos Médicos por máscaras FFP2 que valiam cerca de 55.000 euros. Ganhos fiscais permitiram transformar um donativo numa operação lucrativa para o doador.

    Contactada a Merck Portugal, apenas foi adiantado que “a doação foi realizada pela Merck KGaA à Ordem dos Médicos em Portugal a qual se responsabilizou pela sua distribuição pelas entidades beneficiárias pelo que remetemos para a Ordem dos Médicos a resposta à questão levantada sobre a listagem das entidades beneficiadas”, acrescentando ainda que “relativamente à valorização unitária das máscaras objeto da doação, o valor mencionado no contrato foi aquele que a entidade doadora forneceu.”

    O PÁGINA UM insistiu com a Merck Portugal no sentido de ser remetida factura da compra das máscaras que viriam a ser doadas – para aferir a valorização –, mas já não obteve resposta. Também não se conseguiu confirmar se a operação fiscal foi aplicada na Alemanha ou em Portugal, ou seja, se o prejuízo fiscal se registou no Estado alemão ou português.

    Na consulta do PÁGINA UM aos documentos contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida”, observa-se também a falta de inúmeros comprovativos da efectiva entrega (nota de quitação) daquelas máscaras FFP2, havendo dezenas de situações em que não existe assinatura a comprovar a recepção.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.

    A representante legal da Ordem dos Médicos garante que as 190.000 máscaras da Merck foram entregues “nas instalações da empresa Torrestir que, a título gratuito, colaborou na ação solidária promovendo o transporte de todos os bens para as instalações das entidades beneficiárias”, adiantando ainda que “aquelas máscaras foram distribuídas por diversas entidades havendo evidência dessas entregas nas notas de quitação e nas guias de transporte.”

    O PÁGINA UM possui documentos fotografados que mostram o contrário, à data da consulta, após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.


    N.D. Esta é a segunda parte de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

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    Fundo solidário de farmacêuticas deu condições para criar “saco azul” de mais de 968 mil euros na Ordem dos Médicos… e há muito mais

    Contabilidade paralela, ausência de declarações de transparência, fuga ao fisco, declarações falsas, abuso de benefícios fiscais, facturas falsas e uma promiscuidade institucional sem limites – eis o tenebroso resultado de uma análise do PÁGINA UM aos documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”. Publicamente promovida pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticos, com o apoio da indústria farmacêutica, através da Apifarma, esta campanha tinha como objectivo ajudar instituições a lutar contra a pandemia, tendo recolhido mais de 1,4 milhões de euros sobretudo destinados à compra de equipamentos de protecção individual. Após meses de luta no Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a estes documentos, o PÁGINA UM revela, neste primeiro artigo de um (extenso) dossier, como uma boa causa pode estar enxameada de maus procedimentos. Mais do que um caso de jornalismo de investigação, aqui se revela um “caso de polícia”.


    Que se pode dizer – citando os argumentos transmitidos ao PÁGINA UM pela representante legal de Miguel Guimarães (bastonário da Ordem dos Médicos), de Ana Paula Martins (antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e recém indigitada para presidente da administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte) e de Eurico Castro Alves (ex-secretário de Estado da Saúde e actual candidato à secção Norte da Ordem dos Médicos) de “uma iniciativa, que surgiu num contexto muito particular e excepcional, logo após a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República, em Março de 2020, [que] disponibilizou, através de donativos da sociedade civil, diverso material médico e material de proteção individual essencial para que as instituições de saúde portuguesas pudessem, diariamente, prestar os cuidados de saúde necessários aos doentes com covid-19”?

    Que se pode dizer de uma iniciativa que financiou “instalações em alguns hospitais que permitiram aumentar o número de camas de cuidados intensivos e melhorar as condições de funcionamento dos cuidados de infecciologia”?

    Ana Paula Martins, ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e indigitada para a presidência do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, e Miguel Guimarães, actual bastonário da Ordem dos Médicos.

    Que se pode dizer de uma iniciativa em que “as recolhas de donativos foram autorizadas pelas autoridades competentes nos termos do Decreto-Lei 87/99, tendo sido sempre identificada a conta bancária para onde os donativos podiam e foram realizados, conta essa exclusivamente afeta a esta campanha”?

    Podem-se usar todos os elogios, rasgados até, mas convém acrescentar um famoso adágio popular nacional: de boas intenções está o inferno cheio.

    Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, mas numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.

    Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estados dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”. A gestão ficou a cargo de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, continuando a ser coadjuvados por uma comissão de acompanhamento de sete pessoas, entre representantes das duas Ordens (três, cada) e da Apifarma, com obrigação de actas de reunião.

    Eurico Castro Alves (o único sem máscara, em recente acção de campanha eleitoral da Ordem dos Médicos, no interior de um hospital) é médico cirurgião do Centro Hospitalar Universitário do Porto, foi secretário de Estado da Saúde no (curto) segundo mandato de Passos Coelho, e ainda ocupou a presidência do Infarmed (2012-2015).

    A campanha solidária pública teve, de imediato, uma grande adesão de figuras públicas que prestaram depoimentos, como os músicos Rui Veloso, Mariza, Pedro Abrunhosa, João Gil, Luís Represas, Camané e Ana Moura; o escritor Rui Zink; os jornalistas Carlos Daniel e Júlio Magalhães; os apresentadores Fernando Mendes e Manuel Luís Goucha; os futebolistas João Moutinho, João Félix e Luís Figo; e ainda o antigo presidente da República Ramalho Eanes e o actual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

    Apesar de ter sido sempre apresentada publicamente como uma campanha da sociedade civil que, em menos de dois meses angariara mais de um milhão de euros que teriam sido doadas pelos portugueses [as contas finais apontam para 1.422.962 euros], na verdade o grosso do financiamento proveio das farmacêuticas. De acordo com os extractos consultados pelo PÁGINA UM – por autorização obtida através de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, apenas pouco mais de 38 mil euros vieram de donativos particulares, ou seja, 2,7% do total. As empresas farmacêuticas, incluindo a Apifarma, canalizaram 1.313.251 euros, ou seja, 92,3% do total.

    No entanto, não foi por aqui que esta campanha por uma boa causa mostrou os seus maus procedimentos.

    António Guterres, actual secretário-geral das Nações Unidas, foi uma das figuras públicas a dar a cara pela campanha para incentivar donativos particulares. Mas dos cerca de 1,4 milhões de euros angariados, um pouco mais de 1,3 milhões de euros vierem das farmacêuticas. Donativos particulares só acumularam 38 mil euros.

    A génese de um vasto conjunto de irregularidades e ilegalidades envolvendo esta campanha, algumas com eventual consequência penal, começa no simples e evidente facto de a conta solidária da campanha “Todos por Quem Cuida” não pertencer nem à Ordem dos Médicos (que foi quem garantiu a logística da operação) nem à Ordem dos Farmacêuticos, apesar de serem estas entidades que pediram a autorização necessária para angariações deste género de campanhas junto do Ministério da Administração Interna.

    Na verdade, a conta foi criada, a título individual, por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Os documentos do balcão da Portela de Sacavém da Caixa Geral de Depósitos não deixam, a esse propósito, quaisquer dúvidas sobre essa titularidade da conta solidária, sendo que nos cheques surge o nome de Miguel Guimarães, apresentando-o como “cliente há mais de 31 anos”.

    Mesmo já tendo abandonado funções como bastonária na Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro deste ano, Ana Paula Martins – que foi vice-presidente do PSD em final de mandato de Rui Rio, e esteve como administradora da Gilead nos últimos meses, até ser indigitada para administrar o centro hospitalar da região norte de Lisboa, onde se integra o Hospital de Santa Maria – mantém-se como co-titular desta conta.

    Conta bancária da campanha, para onde seguiram os donativos das farmacêuticas, de outras empresas e de particulares, foi aberta no dia 2 de Abril de 2020, em nome de Miguel Guimarães (como titular principal), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Todos os pagamentos da campanha foram efectuados através desta conta.

    O actual bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Helder Mota Filipe, não quis explicar ao PÁGINA UM as razões para prescindir de assumir a co-titularidade da conta, em substituição de Ana Paula Martins. Mota Filipe apenas salientou ao PÁGINA UM a sua convicção de que “esta iniciativa foi essencial para proporcionar os melhores cuidados de saúde aos pacientes infectados com SARS-CoV-2 e proteger os profissionais de saúde que os trataram”.

    Não sendo essa a questão – o mérito, em teoria, de uma campanha de solidariedade –, acrescente-se também que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos, através de representante legal, ainda não esclareceu formalmente o PÁGINA UM sobre os motivos para não ter sido aberta uma conta institucional para recolher os donativos quer das farmacêuticas quer de outras empresas, em geral, e de particulares.

    Porém, sendo evidente que a conta solidária é de três particulares, surgem aqui vários problemas graves, uma vez que, desde 6 de Março de 2020 – dia do primeiro depósito na conta titulada por Guimarães, Martins e Castro Alves – se contabilizam 41 donativos superiores a 500 euros, totalizando 1.394.017 euros.

    Sendo legais esses donativos a particulares [na sua génese, o PÁGINA UM, antes de passar a ter gestão empresarial, funcionou com base em donativos de leitores endereçados ao seu director], para esses casos não se aplica a Lei do Mecenato, pelo que deveriam ser declarados à Autoridade Tributária os montantes desses 41 donativos, sendo exigível o pagamento de imposto de selo de 10% do montante total. Ou seja, Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves deveriam ter pagado solidariamente à Autoridade Tributária cerca de 139 mil euros.

    Nos documentos consultados pelo PÁGINA UM não consta qualquer menção a esse pagamento, sempre exigível a particulares independentemente do bom propósito da campanha. E também nos extractos bancários consultados e fotografados pelo PÁGINA UM, não há qualquer transferência para a Autoridade Tributária. Nenhum dos três visados prestou esclarecimentos ao PÁGINA UM sobre esta matéria. Note-se que os restantes 48.945 euros amealhados pela conta solidária não têm aquela obrigação, porque se referem a transferências de valor igual ou inferior a 500 euros. Nestes casos, são considerados “donativos conforme os usos sociais”.

    Mas houve outro tipo de declarações também em falta – aqui com repercussões mais de índole ética. Como Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves são médicos e Ana Paula Martins é farmacêutica, as empresas farmacêuticas beneméritas tinham a obrigação de declarar os montantes doados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, identificando os beneficiários, que os deveriam validar. Esta obrigação manter-se-ia mesmo se tivessem sido as Ordens a receber os donativos.

    Conta solidária (para a campanha “Todos por Quem Cuida”) e cheques têm como primeiro titular Miguel Guimarães. Os donativos nunca entraram na conta da Ordem dos Médicos, mas as facturas das compras aos fornecedores (para os bens a doar a instituições) entraram, apesar dos pagamentos serem feitas através da conta solidária, que tem como co-titulares Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Ora, consultando o Portal do Infarmed não consta qualquer referência aos 20 donativos da Apifarma entre 14 de Abril de 2020 e 6 de Abril de 2021 – num total de 1.251.251 euros – nem aos donativos da Apormed (5.000 euros), Bene Farmacêutica (20.000 euros), Bial Portela (20.000 euros), Ipsen Portugal (12.000 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros). A representante legal dos três titulares da conta solidária – saliente-se que o PÁGINA UM remeteu questões específicas a cada um deles, que optaram por não responder individualmente – diz que “não compete às entidades que promoveram a ação solidária declarar os donativos no Portal da Transparência e Publicidade, mas às entidades que (…) fizeram os donativos”, acrescentando que “a Ordem dos Médicos validou todos os donativos que foram declarados no Portal da Transparência e em que foi identificada.”

    O PÁGINA UM pediu esclarecimentos sobre estas matérias ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo – com função de fiscalização no âmbito do regime jurídico dos medicamentos –, apresentando comprovativos de que a conta solidária era titulada por Miguel Guimarães. Ainda não obteve qualquer reacção, mas fica patente, neste caso, que o Portal da Transparência e Publicidade apresenta falhas graves, não sendo os seus dados de confiança por evidente falta de fiscalização por parte do Infarmed.

    Se estes casos já revelam graves irregularidades e até fuga ao fisco – pelo não pagamento do imposto de selo no valor de cerca de 139 mil euros –, pior ainda se mostrou, do ponto de vista da legalidade, a gestão contabilística e operacional da campanha, que esteve sempre sob supervisão directa de Miguel Guimarães, por ter sido feita pelos serviços da Ordem dos Médicos.

    Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

    Ora, numa situação normal – e uma vez que a conta receptora dos donativos não era de qualquer das Ordens, mas sim formalmente de três pessoas em concreto (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) –, as compras de equipamentos e outros géneros – a serem doados a diversas entidades, incluindo instituições particulares de solidariedade social (IPSS), associações e mesmo organismos estatais e empresas privadas – deveriam ser, por princípio, facturadas a quem as contratava. Ou seja, aos titulares da conta solidária. Mas não foi assim que sucedeu.

    Apesar de a generalidade dos pagamentos (feitos sempre a pronto) provirem da conta solidária – titulada por Guimarães, Martins e Castro Alves –, os fornecedores receberam instruções para as facturas serem em nome da Ordem dos Médicos. Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram assim na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Ou seja, sem saída de dinheiro de qualquer conta pertencente à Ordem dos Médicos.

    As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.

    Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Guimarães, Martins e Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, não foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.

    Dossiers da campanha “Todos por Quem Cuida”, contendo documentos administrativos e operacionais, que o PÁGINA UM consultou após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Esse “crédito informal” criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um “saco azul” ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.

    Mas mesmo na hipótese académica que não tenha sido criado nem usado qualquer “saco azul” – matéria que é do foro judicial, e não jornalístico –, qualquer revisor oficial de contas já teria detectado facilmente uma desconformidade nas demonstrações financeiras, por haver documentos atestando avultadas saídas de dinheiro (facturas a pronto de pagamento), mas sem qualquer fluxo de caixa correspondente. E estamos a falar em 978.167,15 euros ao longo dos exercícios de 2020, 2021 e 2022.

    Pagamentos das compras da campanha “Todos por Quem Cuida” não foram feitos por contas bancárias da Ordem dos Médicos, mas as facturas entraram como despesas “passíveis de saque” à margem da lei, e sem deixar rasto.

    Em todo o caso, mesmo que as autoridades venham a concluir, após investigação, que não houve “desfalques” na Ordem dos Médicos, a correcção desta “anomalia” contabilística – através, por exemplo, de declarações formais de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, de terem feito os pagamentos e, assim, terem “transferido” os donativos angariados – mostra-se problemática. E agravaria ainda mais uma outra ilegalidade fiscal da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Com efeito, apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos. Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.

    Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.

    Assim, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.

    A realidade foi simultaneamente mais simples e complexa: a Gilead – neste caso, que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas – terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, seriam essas três pessoas – e não as entidades beneficiadas com os géneros doados – que deveriam passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.

    Donativos para a conta solidária com montantes superiores a 500 euros, que deveriam ter pago imposto de selo (10%).

    Ora, a emissão de centenas de declarações falsas pelas entidades beneficiadas – que assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que estas não conseguirão comprovar através de facturas porque não foram elas que compraram os géneros – configura uma gigantesca fraude fiscal envolvendo centenas de entidades. De facto, considerando que, com este estratagema, os donativos à campanha “Todos por Quem Cuida” passaram a ser enquadráveis no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado –, as farmacêuticas puderam levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue.

    Assim, sabendo que, globalmente, as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, acabaram por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, algo que não seria possível se assumissem, como efectivamente sucedeu, que os donativos seguiram para uma conta solidária de três pessoas. Este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros.

    Este montante engloba também os casos em que os donativos foram aceites por diversos hospitais como sendo das farmacêuticas, mesmo quando as verbas foram também provenientes da conta solidária, e até previstas as transferências por protocolos entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e três centros hospitalares: Lisboa Central, Universitário do Porto e São João (Porto). No primeiro caso para apoiar a criação de uma farmácia ambulatória no Hospital Curry Cabral, e nos dois hospitais portuenses para financiar parte de novas unidades de internamento.

    Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos assinaram protocolos com três hospitais, mas os pagamentos foram afinal feitos pela conta solidária titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, embora as farmacêuticas (como a AstraZeneca, vd. foto) tenham recebido declarações para efeitos de benefícios fiscais. Serviços Partilhados do Ministério da Saúde aceitaram este esquema.

    Nestes casos específicos, os centros hospitalares receberam o dinheiro da conta solidária, mas não entregaram quaisquer facturas em nome da Ordem dos Médicos, optando por apresentar declarações de recebimento de donativos a diversas farmacêuticas por indicação expressa de Miguel Guimarães. Nenhuma das administrações destes três centros hospitalares responderam aos pedidos de comentários do PÁGINA UM. Estas declarações foram aprovadas pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), tutelada pelo ministro da Saúde.  

    No caso de outros bens recebidos por diversas unidades do Serviço Nacional de Saúde – sobretudo ventiladores da Sysadvance e câmaras de entubamento da Gravoplot [e que merecerão artigo específico do PÁGINA UM] –, a “solução” encontrada foi similar à já referida para os equipamentos de protecção individual: assumiu-se, recorrendo a declarações falsas, que quem doou os géneros foram as farmacêuticas, não sendo sequer referido que houve participação da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Confrontado o presidente do SPMS, Luís Pinheiro Goes, sobre estas comprovadas falsas declarações, a resposta foi lacónica: “As declarações emitidas pela SPMS foram elaboradas nos exatos termos solicitados pelas entidades beneficiárias das doações”, isto é, pelos hospitais.

    O PÁGINA UM ainda insistiu junto de Luís Pinheiro Goes, perguntando se nunca houve verificação documental pela SPSM para confirmar quem eram os efectivos doadores, e se seria feita alguma diligência suplementar, mas não teve resposta. Por sua vez, a representante legal de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves diz que o despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais “autorizou ainda a interposição de entidades mediadoras entre o mecenas e o beneficiário”, pelo que, “deste modo, a SPMS emitiu os documentos que se encontrava autorizada a emitir.”

    Este expediente é, sem dúvida, de legalidade duvidosa, e nem sequer foi usado noutra circunstância no decurso de um apoio extraordinário feito pela farmacêutica alemã Merck em Março de 2021, mas que envolveu apenas géneros. Neste caso, de acordo com a lei, a farmacêutica decidiu assinar um contrato com a Ordem dos Médicos, doando-lhe 190 mil máscaras FFP2, e declarando esse donativo (com um valor monetário específico) no Portal da Transparência e Publicidade. O beneficiário que ali consta é, obviamente, a Ordem dos Médicos, e não nenhuma das muitas entidades que terão recebido as máscaras FFP2 doadas. Em todo o caso, o PÁGINA UM também detectou irregularidades neste donativo, de âmbito fiscal, que abordará em outra notícia.  

    Ora, mas acabando todos os envolvidos por assumirem na generalidade dos casos – e mesmo se através de um esquema fiscalmente nada ortodoxo e com documentos falsos – que os donativos foram entregues em géneros pelas farmacêuticas, a Ordem dos Médicos terá deixado então de poder justificar a existência de facturas a pronto pagamento em seu nome sem qualquer fluxo de saída de dinheiro.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    De facto, como as farmacêuticas têm agora, com as declarações (mesmo se falsas) das entidades beneficiadas, uma justificação contabilística para os seus donativos (globalmente, no valor de 1.329.751 euros), já não poderão, em princípio, passar segunda declaração de entrega desse montante nem aos titulares da conta solidária (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) nem à Ordem dos Médicos.

    Portanto, com tudo isto, está criado, no mínimo, um intrincado imbróglio fiscal com implicações penais. E isto sem incluir a conferência entre as facturas na posse da Ordem dos Médicos no valor de mais de 968 mil euros – para a aquisição de géneros da campanha “Todos por Quem Cuida”, que não foram por si pagos – e os seus fluxos de caixa, para assim se aferir se se criou ou não um “saco azul”.

    O PÁGINA UM colocou várias questões ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro, que não respondeu.


    N.D. Esta é a primeira parte de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

  • Processo disciplinar: Manuel Pizarro segura Filipe Froes

    Processo disciplinar: Manuel Pizarro segura Filipe Froes

    Apesar de estar sob suspeita desde Setembro do ano passado, por causa das suas promíscuas ligações à indústria farmacêutica, Filipe Froes mantém, para já, a confiança do ministro da Saúde, mesmo com um processo disciplinar da Inspecção-Geral das Actividades de Saúde que se arrasta, de forma secreta, há 10 meses. Este ano, o pneumologista mantém os valores “habituais”: recebeu já cerca de 4.000 euros por mês do sector farmacêutico, com destaque para a norte-americana Merck Sharp & Dohme.


    Apesar de estar com um processo disciplinar, instaurado há 10 meses pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, devido a alegadas ligações promíscuas com a indústria farmacêutica, Filipe Froes pode manter-se confiante nas suas funções de consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS). O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, não lhe vai tirar o tapete, pelo menos até à conclusão de um longo processo disciplinar, sem fim à vista.

    Esta posição governamental permitirá assim ao pneumologista manter uma perna nos corredores da autoridade de saúde nacional (DGS), onde se decidem terapêuticas, enquanto mantém a outra perna, bem aberta, para satisfazer solicitações da indústria farmacêutica entre consultadorias, palestras e lobby.

    De acordo com nota do Ministério da Saúde enviada ao PÁGINA UM, Manuel Pizarro aguardará a conclusão do processo disciplinar “para se pronunciar”. Ou seja, uma carta branca para Froes manter a sua posição de consultor da DGS e as suas relações comerciais com as farmacêuticas. O pneumologista destacou-se também, durante a pandemia, por ser o líder do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, um órgão não-estatutário que inclusive serviu para perseguir médicos com opiniões distintas do bastonário Miguel Guimarães, como sucedeu com Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

    Conforme noticiou o PÁGINA UM há uma semana, Filipe Froes está a ser alvo de um processo disciplinar, em consequência de um processo de averiguação aberto em Setembro de 2021, mas como está em fase de instrução, as razões da acusação estão inacessíveis pela “natureza secreta do inquérito”.

    A IGAS não adianta quais os motivos de tantos meses para a instrução deste processo disciplinar, mas informa que este deriva das averiguações iniciadas em Setembro do ano passado a que foi sujeito este conhecido consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), presença assídua na imprensa como alegado perito independente durante os anos da pandemia.

    Em 4 de Janeiro passado, o PÁGINA UM tinha já escalpelizado as declarações de Filipe Froes no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e cruzado com os relatórios e contas dos últimos anos da sua empresa – a Terras & Froes –, detectando sinais de alguma “contabilidade criativa” para que não fosse ultrapassada a média anual (no último quinquénio) de 50 mil euros de recebimentos da indústria farmacêutica. Esta é a fasquia monetária a partir da qual Froes ficaria impedido de ser consultor da DGS.

    A Merck Sharpe & Dohme “perdeu” a corrida das vacinas, optando pelo desenvolvimento de anticorpos monoclonais. Froes elogiou o seu uso e integrou a sua introdução nas terapêuticas anti-covid.

    Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.

    De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado ultrapassa os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. Este ano, em 11 meses, vai com uma média mensal de 4.327 euros.

    Este ano, Filipe Froes tem dado especial atenção às solicitações da farmacêutica norte-americana Merck Sharp & Dohme (MSD) , contando já com oito colaborações que lhe renderam 21.083 euros. Mas teve relações com mais nove, entre as quais a AstraZeneca, Gilead e Sanofi. Estas relações não o coíbem, contudo, de integrar, por exemplo, a equipa de consultores da DGS que define as terapêuticas anti-covid, onde passaram a constar este ano os anticorpos monoclonais da MSD, o molnupiravir, comercializado sob a marca Lagevrio.

    Em diversas ocasiões, Froes tem promovido, de forma entusiástica, o uso dos anticorpos monoclonais (produzidos pela Pfizer e pela MSD) e a integração da vacina da covid e da gripe numa só dose (comercializada pela Sanofi).

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    Saliente-se, contudo, que estes rendimentos podem pecar por defeito, uma vez que cada vez se torna mais patente que o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed apresenta falhas enormes, porque as farmacêuticas se “esquecem” de registar donativos e patrocínios a médicos e outras entidades, entre as quais os media mainstream, incumprindo o Estatuto do Medicamento.

    Recorde-se que, em Novembro passado, Filipe Froes lançou um pequeno livro com as crónicas que foi publicando no Diário de Notícias, em co-autoria com Patrícia Akester, e o patrocínio da Bial. A farmacêutica portuguesa – que tem como chairman António Horta Osório, que é simultaneamente administrador da Impresa (dona do Expresso e SIC) ainda não colocou o valor do apoio no portal do Infarmed nem sequer respondeu a questões colocadas pelo PÁGINA UM.

  • Ricardo Araújo Pereira pode boicotar políticos no seu programa, mas SIC tem de encontrar formas de compensação

    Ricardo Araújo Pereira pode boicotar políticos no seu programa, mas SIC tem de encontrar formas de compensação

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social aceita que um humorista pode, em plena campanha eleitoral, convidar quem achar por bem, mas que o canal televisivo tem de compensar eventuais desequilíbrios em matéria de igualdade de oportunidades e de tratamento de candidaturas. A deliberação do regulador foi espoletado por duas queixas junto do regulador, uma das quais por causa da ausência de André Ventura no programa de Ricardo Araújo Pereira (RAP) em que entrevistou nove dirigentes políticos. RAP tem assumido que nunca convidará o líder do Chega para o seu programa por razões ideológicas. Mas o regulador também mostra que o tempo dedicado por RAP a cada dirigente foi muito distinto: António Costa foi aquele que teve mais “tempo de antena” em “Isto é gozar com quem trabalha”.


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) aceita que um humorista pode, em plena campanha eleitoral, convidar quem achar por bem, mas que o canal televisivo tem de compensar eventuais desequilíbrios em matéria de igualdade de oportunidades e de tratamento de candidaturas. O caso foi espoletado por duas queixas junto do regulador, uma das quais por causa da ausência de André Ventura no programa de Ricardo Araújo Pereira (RAP) em que entrevistou nove dirigentes políticos. RAP tem assumido que nunca convidará o líder do Chega para o seu programa por razões ideológicas.

    Ricardo Araújo Pereira (RAP) pode ser um excelente comediante, mas a ERC não achou piada ao facto de o humorista ter beneficiado alguns partidos políticos no seu programa na SIC “Isto é gozar com quem trabalha” em plena campanha eleitoral das últimas legislativas.

    Por razões ideológicas, Ricardo Araújo Pereira recusa sentar André Ventura è mesa do seu programa.

    Entre 17 e 28 de Janeiro deste ano, o humorista decidiu, de forma explícita, excluir o líder do partido Chega, André Ventura, quando fez uma série de entrevistas diárias a dirigentes de partidos então com assento parlamentar (Bloco de Esquerda, PCP, PSD, Iniciativa Liberal, PAN, CDS e Partido Socialista) no seu programa especial dedicado às eleições legislativas.

    RAP apenas convidou dirigentes de dois outros partidos então sem assento parlamentar Rui Tavares, do Livre (que deixara de ter deputados com a “desfiliação” de Joacine Katar Moreira) e Vitorino Silva, do RIR). Já em 2020, RAP boicotara André Ventura nas Presidenciais de 2020, brincando com o facto de que o líder do Chega “não aguentaria a experiência”.

    Em deliberação divulgada na sexta-feira passada, a ERC até achou que RAP tem, como “célebre comediante” e “protagonista central” de um “programa de autor”, o direito a “uma maior discricionariedade na forma como é abordado o período eleitoral”, mas que não vale tudo em plena época eleitoral. E que, por isso, a SIC deverá, em futuras ocasiões, “compensar, na restante programação, os desequilíbrios gerados num determinado programa em matéria de igualdade de oportunidades e de tratamento de candidaturas”.

    António Costa foi o dirigente político com mais “tempo de antena” no programa humorístico de RAP em plena campanha eleitoral.

    Saliente-se, aliás, que de acordo com a contabilização da ERC, António Costa foi, nas entrevistas de RAP, o político com mais “tempo de antena” com 19 minutos e 16 segundos, enquanto Catarina Martins teve direito a apenas a 10 minutos e 52 segundos e Inês Sousa Real a 11 minutos e 12 segundos. Rui Rio teve menos 6 minutos e 4 segundos do que o líder do PS. Os restantes entrevistados (Vitorino Silva, Rui Tavares, João Oliveira, João Cotrim Figueiredo, Inês Sousa Real e Francisco Rodrigues dos Santos) estiveram sentados defronte a RAP entre 13 e 16 minutos.

    Na sua análise, a ERC considerou que “num programa em que a política se cruza com o entretenimento e em que os candidatos convidados para o programa beneficiam de grande visibilidade para apresentar os seus programas eleitorais, convicções e personalidade, a escolha de determinados entrevistados, com a exclusão de outros, deve ser objeto de especial ponderação, de modo a respeitar os princípios que enformam a atividade dos órgãos de comunicação social durante o período eleitoral”.

    O regulador não acolheu assim quaisquer dos argumentos da SIC que defendeu que o programa de RAP era “entretenimento de cariz humorístico” e que o autor tem “total independência”, pelo que, não se tratando de “um programa informativo, não está adstrito ao cumprimento das normas da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido e das leis eleitorais dirigidas a programas de atualidade informativa e serviços noticiosos”. O canal do Grupo Impresa advogou que “o critério de escolha dos convidados [era] também, por isso, do humorista, o qual tem total liberdade de conformação em relação a quem deseja [e a quem não deseja] receber no seu programa”.

    Catarina Martins teve pouco mais de metade do “tempo de antena” de António Costa.

    Admitindo que o boicote a Ventura e ao Chega foi intencional, a SIC defendeu RAP, dizendo que “o humorista tem total liberdade para não querer dar espaço, num programa de humor da sua autoria, à defesa de ideias que, do seu ponto de vista, atentem contra a dignidade da pessoa humana, igualdade e direitos, liberdades e garantias”.

    Esta defesa acabou mesmo por ser duramente criticada pela ERC: “O argumento aduzido pela SIC parece não ter cabimento, uma vez que, no que respeita aos vários partidos sem representação parlamentar, o programa apenas privilegiou o Partido RIR, não parecendo crível” que todos os partidos excluídos – num total de 12, uma vez que participaram 21 partidos nas legislativas deste ano – “atentam contra a dignidade da pessoa humana, igualdade e direitos, liberdades e garantias”.

    Quanto ao argumento de que o programa de RAP não é informativo, pelo que não tem de cumprir os mesmos preceitos legais dos programas informativos no que toca às campanhas eleitorais, a ERC também destrói a defesa da SIC, lembrando que a lei não circunscreve “o princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas à cobertura jornalística da campanha ou a programas de atualidade informativa e a serviços noticiosos”.

    ERC defende que canais de televisão devem compensar desequilíbrios, mesmo se causados por programas de entretenimento.

    Assim, o regulador defende que “num programa em que a política se cruza com o entretenimento, em que os candidatos convidados para o programa beneficiam de uma visibilidade para apresentar os seus programas, convicções e personalidade, o operador não pode deixar de fazer uma reflexão sobre a escolha de determinados entrevistados, com a exclusão de outros, nos seus diversos programas”.

    Mais. A ERC frisa que “um programa de entretenimento, apesar de beneficiar de uma maior margem de discricionariedade na forma como aborda o período eleitoral, não pode – atento o seu potencial para conferir visibilidade aos candidatos e influenciar o sentido de voto –, deixar de ser objeto de avaliação de acordo com os princípios que enformam a atividade dos órgãos de comunicação social durante o período eleitoral”.

    O regulador recorda “que a SIC, enquanto serviço de programas televisivos, está obrigada a assegurar o princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas e a garantir o pluralismo político-partidário”.

    Por isso, conclui que “o facto de se optar por não convidar determinadas candidaturas para o programa ‘Isto É Gozar Com Quem Trabalha’ imporia à SIC um especial cuidado em compensar desequilíbrios surgidos em virtude de opções editoriais no âmbito dos seus programas de entretenimento”.

  • Melhor município para viver? Pague primeiro, ganhe (de certeza) depois

    Melhor município para viver? Pague primeiro, ganhe (de certeza) depois

    O PÁGINA UM descobriu um prémio para distinguir autarquias, que garantiu, a quem pagou 12.500 euros, que, na pior das hipóteses, levava uma menção honrosa, e, na melhor, uma mão-cheia de “taças” para currículo político. O promotor foi a INTEC, que apesar de se apresentar como Instituto de Tecnologia Comportamental, é apenas uma associação criada em 2007 por um casal de professores do ISCSP. Para a organização de uma gala, no passado dia 3 de Novembro, para distribuição dos galardões, que teve como media partner o Jornal de Notícias e a Universidade de Coimbra como parceira, o INTEC conseguiu convencer 11 autarquias “mecenas” a desembolsarem 12.500 euros, cada, com a garantia de não saírem de mãos a abanar. O estudo, que terá supostamente redundado nos rankings, não foi ainda divulgado. No INTEC, que se apresenta como um centro tecnológico, ninguém atendeu telefone fixo nem telemóvel nem respondeu ao e-mail do PÁGINA UM. Talvez venha a reagir por pombo-correio.


    Na aparência, foi um prémio para dignificar as melhores políticas públicas desenvolvidas pelos autarcas portugueses. Organizado pelo INTEC – Instituto de Tecnologia Comportamental, intitula-se, muito apropriadamente, “Prémios – Melhores Municípios para Viver”, e há exactamente um mês, no dia 3 de Novembro, teve a merecida gala de luxo na Universidade de Coimbra para destacar, pois então, apenas os melhores entre os melhores, sendo abrilhantada com a presença de muitos sorridentes autarcas. A iniciativa contou também com a participação activa da Faculdade de Direito de Coimbra e, como já se torna habitual em eventos deste género, um media partner: neste caso, o Jornal de Notícias.

    Houve prémios para todos os gostos, por serem 10 as categorias avaliadas, com os três primeiros classificados a merecem distinção, e ainda um ranking global elencando os cinco melhores municípios (não houve últimos), ponderados os vários indicadores. Contudo, tendo em conta que Portugal tem 308 municípios, esperar-se-iam muitos premiados, uma vez que, contas feitas, contabilizaram-se 38 galardões, incluindo três menções honrosas excepcionalmente atribuídas pelo INTEC.

    silhouette of person jumping during dawn

    Mas não assim. Na verdade, somente 14 municípios, de entre um universo potencial de 308, foram distinguidos (três dos quais com menções honrosas), porque houve imensas repetições na subida ao palco.

    O primeiro classificado no ranking global – Lagoa – foi também o primeiro nas categorias do Bem Estar, do Turismo e da Segurança, Diversidade e Tolerância. O segundo do ranking global – Caminha – ficou em primeiro na categoria do Ensino e Formação, em segundo no Bem Estar, no Urbanismo e Habitação e na Segurança, Diversidade e Tolerância, e ainda em terceiro no Ambiente. E Bragança, o terceiro classificado no ranking global, também amealhou o primeiro lugar no Ensino e Formação, o segundo lugar na Mobilidade e Segurança Rodoviária, e ainda o terceiro lugar no Bem Estar, no Urbanismo e Habitação e na Segurança, Diversidade e Tolerância.

    Em suma, o município de Lagoa sacou quatro galardões, o de Caminha seis, e o de Bragança outros tantos. Além destes, Boticas recebeu três primeiros lugares em diversas categorias; Lisboa dois primeiros e um segundo; Porto, um segundo e dois terceiros; Maia um segundo e um terceiro; e Vila Nova de Famalicão dois terceiros. Parecia os jogos olímpicos. Os municípios de Olhão, Coimbra, Santarém e Montalegre subiram uma vez ao palco, tal como Cascais e Pombal – estes para receberem o quarto e quinto lugar do ranking global. Também Santa Maria da Feira, Vila Nova de Gaia e Paredes tiveram direito a prémio, mas de consolação: menções honrosas.

    Lagoa amealhou o primeiro lugar global e mais três primeiros lugares em várias categorias (Bem Estar; Turismo; e Segurança, Diversidade e Tolerância). O município não perdeu tempo a mostrar o “feito” nas redes sociais e imprensa regional.

    Porém, esta concentração de prémios acaba por ser bastante suspeita, porque grande parte dos premiados foi, talvez por coincidência, “mecenas” dos próprios galardões que recebeu.

    Numa consulta detalhada no Portal Base, o INTEC celebrou, entre Maio e Novembro deste ano, pelo menos 11 contratos com municípios para a elaboração de estudos e para a candidatura dos prémios “Melhores Municípios para Viver”.

    Embora até possam ser mais – uma vez que, por vezes, existe um desfasamento de vários meses entre a assinatura e a publicitação no Portal Base –, o PÁGINA UM detectou a celebração de contratos com os municípios de Lagoa, Caminha, Bragança e Pombal – que ocuparam o top 5, sendo que, neste lote, apenas Cascais não regista contrato –, Boticas, Coimbra, Vila Nova de Famalicão, Montalegre, Santa Maria da Feira, Vila Nova de Gaia e Paredes. No total, o INTEC encaixou 137.500 euros, a que acresceu IVA. Nesta lista de 11 municípios, todos receberam galardões. Isto é, ninguém que pagou à INTEC ficou a “chuchar no dedo”.

    No caso do município de Caminha – que, repita-se, ficou em segundo no ranking global e foi distinguida em cinco categorias –, o contrato entre o presidente da autarquia, Rui Lages – que substituiu o ex-secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves – e a presidente do INTEC, Patrícia Palma, foi assinado no próprio dia da gala, 3 de Novembro. E o contrato especifica que se destina à candidatura ao prémio. No contrato do município de Lagoa, por sua vez, não surge a garantia de que ganhará prémios, mas nas fases do contrato ficou expresso que os resultados seriam divulgados num órgão de comunicação social nacional de grande tiragem, que acabou por ser o Jornal de Notícias.

    Em todo o caso, em comum em todos os contratos entre INTEC e municípios no Portal Base, está a ausência dos cadernos de encargos, ignorando-se assim as contrapartidas fixadas pelos pagamentos.

    Independentemente da estranheza que causa um prémio nacional bastante enviesado nos critérios de selecção – porquanto beneficiou, de forma evidente, quem pagou –, ignora-se também quaisquer detalhes das classificações, uma vez que, de acordo com o site do INTEC, os relatórios apenas serão conhecidos posteriormente. Porém, se forem como as edições anteriores – que remontam aos anos de 2007 a 2009, neste caso com o apoio do jornal Sol –, bem se pode procurar, porque nada se encontra. Sabem-se as primeiras posições; jamais se sabe quem foram os últimos, até porque, efectivamente, se ignora quantos municípios estiveram em jogo.

    Rui Lages (à direita), presidente da Câmara de Caminha, a receber em Coimbra, no dia 3 de Novembro, um dos galardões, em frente de Patrícia Jardim da Palma, presidente do INTEC. Os dois assinaram, nesse mesmo dia, um contrato no valor de 12.500 euros para pagar a candidatura ao prémio. Foto: página do FB do INTEC.

    Mas ainda mais estranho é a própria confiança dos municípios numa entidade organizadora que, embora possua a denominação pomposa de INTEC – Instituto de Tecnologia Comportamental, não se encontra associada a qualquer entidade de ensino ou de investigação, mesmo se celebrou, em Setembro passado, um protocolo com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra “com o objetivo de desenvolvimento de projetos conjuntos de interesse comum nos domínios da investigação e das saídas profissionais”.

    Na verdade, o INTEC é uma associação privada criada em 2007 por Patrícia Jardim da Palma – que preside desde a fundação – e pelo seu marido, Miguel Pereira Lopes, que ocupa o cargo de presidente da Assembleia Geral. Ambos são professores no ISCSP, que nunca teve qualquer parceria com o INTEC. O terceiro membro fundador da associação é José Luís Soares Ferreira, gestor de negócios da empresa Central Business, com sede no Pólo Tecnológico de Lisboa. O próprio INTEC teve também sede nesse espaço, mas foi saltitando por outros hubs tecnológicos, estando agora localizado na Azambuja.

    Antes desta edição lucrativa dos prémios comprados pelos municípios em 2022, a INTEC esteve longos anos quase sem actividade, sobretudo a partir de 2015, pois entre esse ano e 2021 apenas se encontra um serviço prestado ao município de Vila do Bispo com vista à obtenção de uma certificação de desenvolvimento sustentável (ISO 37120). Mas entre o ano da fundação e 2014, o INTEC conseguiu convencer outros municípios a financiarem similares prémios durante três anos, mas não foi actividade tão lucrativa.

    Patrícia Jardim da Palma e Miguel Pereira Lopes, ambos professores do ISCP, sacaram 137.500 euros a autarquias, através de contratos com o INTEC (que fundaram em 2007), para conceder prémios e fazer um estudo (ainda não divulgado).

    Entre 2009 e 2014, consta no Portal Base um total de 10 contratos da INTEC com municípios no valor global de 173.250 euros – ou seja, uma média anual de 28.875 euros, valor substancialmente inferior ao alcançado no presente ano (137.500 euros). Nas edições anteriores, pelos escassos elementos encontrados, a metodologia usada consistia na mera recolha de dados de diversos indicadores no Instituto Nacional de Estatísticas e da realização de inquéritos telefónicos em concelhos específicos, mas não em todos os 308 existentes em território nacional.

    Saliente-se também que os resultados da edição revelada na gala de 2022, que ocorreu há um mês, nem sequer se encontram ainda no site do INTEC. A única fonte de informação acaba assim por ser o Jornal de Notícias. No seu site encontra-se, porém, um documento onde se refere que o passo seguinte à publicação dos vencedores pelo jornal da Global Media seria o “envio de relatório final pormenorizado a cada um dos dez municípios vencedores, com análise específica de cada indicador, com a proposta de planos de melhoria”: Contudo, isso deveria acontecer com a “realização de gala para entrega de prémio”, algo que já ocorreu.

    O PÁGINA UM contactou o INTEC – que se apresenta como um centro de desenvolvimento tecnológico – através dos contactos que surgem no seu site: telefone fixo, telemóvel e e-mail para pedir esclarecimentos sobre estas matérias – e sobretudo se era mesmo obrigatório o pagamento de uma taxa para “entrar em jogo”, e também para aceder aos relatórios finais. Contudo, até à hora de fecho desta notícia, ainda não obteve qualquer resposta.

  • Relatório Rápido 52: Original do “esboço embrionário” do Instituto Superior Técnico só há em versão digital

    Relatório Rápido 52: Original do “esboço embrionário” do Instituto Superior Técnico só há em versão digital

    Mais um episódio no processo de intimação do Instituto Superior Técnico (IST) que luta para não ceder o relatório supostamente científico que causou alarme no Verão passado: afinal, não há uma versão em papel do Relatório Rápido 52, mas apenas uma versão “digital”. Fica-se na dúvida se a ausência de versão original em papel se deve à falta de recursos (papel, impressora e/ou toner) no IST ou à falta de conhecimentos técnicos dos investigadores do IST para ordenar a impressão em papel timbrado de um ficheiro informático.


    Novos desenvolvimentos sobre o último relatório do Instituto Superior Técnico (IST), o número 52, considerado por esta instituição universitária como “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, uma denominação esdrúxula para evitar que o Tribunal Administrativo de Lisboa autorize, por sentença, o seu acesso pelo PÁGINA UM.

    De acordo com os autos do processo de intimação, o IST já terá entregado anteontem, em mão, a versão digital daquele que será o “original” exigido pela juíza Telma Nogueira. Recorde-se que a magistrada responsável pelo processo exigiu ter acesso ao documento original sem quaisquer “anotações manuscritas a lápis” em que o IST estimou, de forma surpreendentemente alarmista, o impacte das festividades populares de Junho passado na incidência e mortalidade da covid-19.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, enviou cópia manipulada ao Tribunal Administrativo. Foi agora obrigado a enviar original sem qualquer anotação, mas resolveu dizer que só há original em versão digital..

    Tendo em consideração as dúvidas científicas que se colocam em função da evolução epidemiológica naquele mês, o PÁGINA UM pretende conhecer em detalhe se houve rigor ou uma fraude científica por parte dos investigadores, coordenados pelo próprio presidente do IST, o catedrático Rogério Colaço. Como o PÁGINA UM já destacou, naquele período observou uma tendência de redução significativa de casos positivos, pelo que surgiam assim dúvidas sobre o rigor científico daquele relatório feito por uma das mais prestigiadas faculdades públicas portuguesas em articulação com a Ordem dos Médicos.

    Em finais de Julho, a Lusa divulgou as conclusões daquilo que disse ser um “estudo” do IST, ao qual garantiu ao PÁGINA UM existir mermo, tanto mais que coloca sete citações, e que viria a “viralizar” na imprensa mainstream.

    A entrega desta versão digital do original – que, na verdade, se transformará numa versão original em papel se houver uma ordem de computador ligado a uma impressora com toner para imprimir – será, em princípio, o último passo para a decisão de um inaudito processo de intimação que decorre naquele tribunal, por iniciativa do PÁGINA UM.

    Ofício do IST que acompanhou a versão original do “esboço do documento”.

    A decisão de levar este casos para tribunal surgiu após a recusa do presidente do IST, Rogério Colaço, em disponibilizar os dados estatísticos e o relatório escrito que serviram para a Lusa divulgar, em 28 de Julho passado, a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Em todo o caso, existindo agora, e de forma assumida pelo IST, uma versão original, a juíza sempre poderá tomar diligências suplementares, do ponto de vista informático, para apurar se houve, e quando houve, alterações no ficheiro informático, e se estas foram posteriores à data da divulgação da notícia da Lusa.

    Saliente-se também que ao longo dos últimos quatro meses o IST tem mantido uma inquietante postura obscurantista, nada habitual em instituições universitárias públicas, recusando divulgar os dados em bruto e um relatório com impacte relevante. Além disso, mesmo se se estivesse em finais de Julho em face de um alegado “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, quatro meses já deveria ter sido tempo suficiente para o transformar um “relatório”, ou então assumir o erro, algo que é aceitável (e recomendável) em Ciência.

    Independentemente da análise do Tribunal Administrativo de Lisboa sobre o enquadramento semântico do Relatório Rápido nº 52 (se é um relatório ou um esboço), saliente-se que o PÁGINA UM requereu ao IST, estando também para decisão do Tribunal Administrativo, os relatórios anteriores, elaborados em colaboração com a Ordem dos Médicos desde Junho de 2021.

    Como o IST não alegou, para nenhum dos outros 51, que se estava perante situações de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, tudo indica que pelo menos 51 relatórios serão disponibilizados, através de sentença, para uma avaliação independente da qualidade e rigor científico do IST durante a pandemia.   


    Citações (entre aspas) do Relatório Rápido nº 52 do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

    1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

    2 – “não teriam impacto económico

    3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

    4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

    5 – “uma possível correlação com vagas de calor

    6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

    7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Filipe Froes está mesmo com um processo disciplinar à perna… mas a “marinar” desde Fevereiro

    Filipe Froes está mesmo com um processo disciplinar à perna… mas a “marinar” desde Fevereiro

    Estrela mediática durante a pandemia, Filipe Froes manteve-se como consultor da Direcção-Geral da Saúde, enquanto acumulava funções de consultor e palestrante de farmacêuticas com fortes interesses no negócio da covid-19. Assumia-se sempre como um perito independente sem conflitos de interesses, apesar de mais de uma vintena de farmacêuticas que, desde 2013, se mostraram interessadas nos seus préstimos. A Inspecção-Geral das Actividades de Saúde, depois de um processo de averiguações, abriu-lhe mesmo um processo disciplinar… que marca passo há mais de nove meses. Já nasceram as crianças que foram concebidas no mesmo dia em que o inspector-geral determinou a instauração deste processo.


    A Inspecção-Geral das Actvidades em Saúde confirmou hoje ao PÁGINA UM que o pneumologista Filipe Froes está mesmo a ser alvo de um processo disciplinar devido às suas ligações à indústria farmacêutica, mas o seu processo arrasta-se desde Fevereiro deste ano. A IGAS acrescenta que o processo disciplinar se encontra ainda em fase de instrução e, nessa medida, inacessível pela “natureza secreta do inquérito”.

    A IGAS não adianta quais os motivos de tantos meses para a instrução deste processo disciplinar, mas informa que este deriva das averiguações iniciadas em Setembro do ano passado a que foi sujeito este conhecido consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), presença assídua na imprensa como alegado perito independente durante os anos da pandemia.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

    De acordo com a entidade fiscalizadora, o processo disciplinar a Filipe Froes vem no seguimento da “informação de avaliação n.º 149/2022”, que mereceu um despacho em 19 de Fevereiro passado do inspector-geral das Actividades em Saúde, Carlos Carapeto, que deu instruções para ser iniciado um processo disciplinar, ignorando-se o “castigo” eventualmente a aplicar.

    A decisão de instauração de um processo disciplinar a Filipe Froes após um processo formal de averiguações – revelado em Novembro do ano passado pelos semanários O Novo e Expresso – mostra já, em todo o caso, a existência de fortes indícios de irregularidades e/ ou ilegalidades. De facto, o processo de averiguações só avançaria para uma fase posterior se se tivesse apurado matéria suficiente para uma “condenação” em processo disciplinar, o que não surpreenderá, tendo em conta o que se foi tornando público.

    Em 4 de Janeiro passado, o PÁGINA UM tinha já escalpelizado as declarações de Filipe Froes no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e cruzado com os relatórios e contas dos últimos anos da sua empresa – a Terra & Froes –, detectando sinais de alguma “contabilidade criativa” para que não fosse ultrapassada a média anual (no último quinquénio) de 50 mil euros de recebimentos da indústria farmacêutica. Esta é a fasquia monetária a partir da qual Froes ficaria impedido de ser consultor da DGS.

    Antologia de crónicas de Filipe Froes no Diário de Notícias teve o patrocínio (ainda não declarado) da farmacêutica Bial.

    Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.

    De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado ultrapassa os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. Este ano, em 11 meses, vai com uma média mensal de 4.327 euros.

    O processo da IGAS pode assim vir a colocar em causa a manutenção de Froes como consultor da DGS e também manchar a sua credibilidade numa fase crucial das eleições para a Ordem dos Médicos. Com efeito, Filipe Froes é mandatário da candidatura de Carlos Cortes a bastonário.

    Filipe Froes (ao centro), entregou como mandatário, no dia 21 de Novembro, a candidatura de Carlos Cortes (quarto à esquerda) a bastonário da Ordem dos Médicos.

    Por outro lado, uma eventual “condenação” confirmaria ainda mais o seu papel de lobista, acusação que o tem constantemente perseguido. Por exemplo, Froes tem sido um defensor do uso do polémico remdesivir, dentro da equipa de consultores que define as terapêuticas anti-covid, e é, em simultâneo, consultor da farmacêutica (Gilead) especificamente para aquele medicamento. Froes também é um acérrimo defensor da vacinação contra a covid-19 em crianças e adolescentes – cujas vacinas são exclusivamente da Pfizer, farmacêutica para a qual este pneumologista tem passado muitas facturas para cobrar colaborações.

    Já este ano, em diversas ocasiões, Froes tem promovido, de forma entusiástica, o uso dos anticorpos monoclonais (produzidos pela Pfizer e pela Merck Sharpe & Dohme) e a integração da vacina da covid e da gripe numa só dose (comercializada pela Sanofi). Saliente-se que só este ano a Merck Sharpe & Dohme e a Sanofi já entregaram oficialmente a Froes um total de 22.261 e 13.583 euros, respectivamente. No total, o pneumologista terá já amealhado 47.602 euros ao longo de 2022.

    Saliente-se, contudo, que estes rendimentos podem pecar por defeito, uma vez que cada vez se torna mais patente que o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed apresenta falhas enormes, porque as farmacêuticas se “esquecem” de registar donativos e patrocínios a médicos e outras entidades, entre as quais os media mainstream, incumprindo o Estatuto do Medicamento.

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    Por exemplo, ainda este mês, Filipe Froes lançou um pequeno livro com as crónicas que foi publicando no Diário de Notícias, em co-autoria com Patrícia Akester, e o patrocínio da Bial. A farmacêutica portuguesa – que tem como chairman António Horta Osório, que é simultaneamente administrador da Impresa (dona do Expressso e SIC) ainda não colocou o valor do apoio no portal do Infarmed nem sequer respondeu a questões colocadas pelo PÁGINA UM.

    Recorde-se que o PÁGINA UM teve acesso, este mês, no decurso de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, a cerca de três dezenas de processos levantados pela IGAS, incluindo ao presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais, também por incompatibilidades relacionadas com farmacêuticas.

    Por estranhar que não se encontrava no lote o processo de Filipe Froes, o PÁGINA UM insistiu para que este fosse disponibilizado, o que não se mostra legalmente possível por se encontrar em fase de instrução. Contudo, se o processo disciplinar, agora em curso, não estiver concluído até 19 de Fevereiro do próximo ano, a IGAS terá, contudo, de disponibilizar pelo menos o processo de averiguação a Filipe Froes.

  • Nova sentença histórica: Governo esconde, mas Tribunal “desbloqueia” base de dados hospitalar com todos os doentes internados

    Nova sentença histórica: Governo esconde, mas Tribunal “desbloqueia” base de dados hospitalar com todos os doentes internados

    A base de dados dos grupos de diagnósticos homogéneos (BD-GDH) é, porventura, o mais importante sistema de informação sobre saúde em Portugal, com um potencial que permitirá avaliar o impacte real da pandemia a partir de 2020 e, sobretudo, detectar quais as causas do excesso de mortalidade em Portugal nos últimos meses. A análise dessa informação, de forma independente, tem capacidade para reescrever o que se passou nos últimos três anos. Não por acaso, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) andou nos últimos quatro meses a lutar no Tribunal Administrativo de Lisboa para evitar ceder o acesso dessa base de dados ao PÁGINA UM. Valeu tudo; até mentiras sobre a impossibilidade de anonimização de dados nominativos. Perdeu…


    É a maior vitória em prol da transparência por parte do PÁGINA UM desde o seu nascimento. Uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, da passada sexta-feira, determinou que a Administração Central de Sistema de Saúde (ACSS) – um dos organismos centrais da gestão dos serviços hospitalares – tem de “facultar (…) o acesso ou cópia digital da base de dados do GDH [Grupos de Diagnósticos Homogéneos], expurgada dos dados pessoais que nela constem”.

    Esta base de dados (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença. Contém também dados de identificação (nome, idade e sexo), mas como em qualquer base de dados modernas, o expurgo de dados nominativos, neste caso o nome do doente, é uma opção prevista na concepção dos perfis de acesso, tornando assim os dados anonimizados e susceptíveis de todo o tipo de tratamento estatístico.

    Marta Temido (ex-ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. A antiga governante e o dirigente da ACSS foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    Além de esclarecer, de forma clara, o efectivo impacte da pandemia e da covid-19 desde 2020, a BD-GDH possibilitará, à falta de outras bases de dados que o Ministério da Saúde continua a recusar disponibilizar – e que ainda se encontram em análise em outros processos no Tribunal Administrativo –, obter indicadores sobre as principais afecções e doenças que poderão estar a contribuir para o contínuo excesso de mortalidade, numa fase em que a covid-19 se encontra já em fase endémica.

    Esta vitória histórica do PÁGINA UM – que se sucede a outras sentenças favoráveis – surge no decurso de um longo processo de obstaculização por parte do presidente da ACSS, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido –, que começou, em meados de Maio passado, por expurgar do Portal da Transparência do SNS uma base de dados pública sobre morbilidade e mortalidade hospitalar, uma versão manipulada e mais simplista da BD-GDH.

    A decisão de Victor Herdeiro – justificada pela necessidade nunca provada de “análise interna” – foi uma reacção política ao conjunto de artigos de investigação do PÁGINA UM sobre o desempenho hospitalar desde 2020, e não apenas relacionado com a covid-19.

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    Mesmo sendo uma simplificação da BD-GDH, essa base de dados que estava no Portal da Transparência permitira, através de análise estatística feita pelo PÁGINA UM, revelar que, até Janeiro deste ano, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Após várias tentativas para “convencer” o Ministério da Saúde – que nunca quis rectificar a conduta de Victor Herdeiro –, o PÁGINA UM apresentou em 19 de Agosto passado uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra a ACSS, mas já não apenas para a reposição da versão original da base de dados da mortalidade e morbilidade – que fora entretanto reposta mas completamente “mutilada”. Com efeito, foi também solicitado o acesso à BD-GDH, por se ter considerado ser uma base de dados mais completa e muito mais “imune” a intervenções políticas.

    No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa. A BD-GDH tem um potencial informativo muito superior.

    Desde logo, a ACSS – através do escritório de advogados BAS, que tem vencido uma quantidade significativa de contratos por ajuste directo de entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde – mostrou que não estava interessada em abrir mão à “secreta” BD-GDH. Alegando que já repusera a base de dados original da morbilidade e mortalidade hospitalar – o que, de facto, terá sucedido em meados de Agosto –, a ACSS começou por tentar iludir a juíza do processo, Ilda Maria Côco, fazendo crer ter já satisfeito o pedido integral do PÁGINA UM, e solicitou assim que a intimação fosse “totalmente julgada improcedente e indeferida, tudo com legais consequências”.

    Somente após um requerimento do advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, provando que estava sobretudo em causa a continuada recusa do acesso à BD-GDH, a ACSS veio pronunciar-se sobre este assunto – ou seja, foi obrigada a justificar a recusa. Mas recorrendo à mentira.

    Com efeito, através da mesma sociedade de advogados, a ACSS defendeu que a BD-GDH continha “dados pessoais” e que “as funcionalidades dos sistemas de informação nos quais se encontram localizadas não permitem tecnicamente a respetiva consulta sem acesso aos dados pessoais em causa”, acrescentando que “reprodução (digital) da informação da base de dados com expurgo dos dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado que ultrapassa a simples manipulação”. E concluiu que, “associado à extensão dos dados em causa e à própria arquitetura dos sistemas de informação em que se suportam as bases de dados”, obrigar a anonimização “acarretaria para ACSS uma atuação administrativa, com gestão dos recursos disponíveis para a prossecução das respetivas atribuições legais em desvio dos princípios aplicáveis e pelos quais se deve reger a atividade administrativa, nomeadamente, os princípios do interesse público, da boa administração, da proporcionalidade e da razoabilidade”.

    Este arrazoado tinha, porém, apenas um fito: continuar a esconder a BD-GDH do escrutínio público, tentando convencer a juíza do processo de que a anonimização de uma base de dados deste género não é um processo corriqueiro, nem que basta seleccionar as variáveis que se pretenda e, nessa linha, excluir aquelas que não se pretendem. Destaque-se que o PÁGINA UM jamais teve a pretensão de revelar dados pessoais de doentes, sobretudo por não ser ético, mas também por ser de interesse nulo para quaisquer diagnósticos em saúde pública.

    Mas tinha também este arrazoado jurídico uma perna curta. De facto, a anonimização da BD-GDH é um procedimento tão corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, conforme a Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto do ano passado.

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    Perante esta evidência, acabou por ser com naturalidade que a juíza Ilda Côco deu razão ao PÁGINA UM. De acordo com a magistrada, como a ACSS apenas se limitou a “alegar, de forma conclusiva, que o expurgo de dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado (…), mas sem que alegue quaisquer factos concretos que permitam concluir no sentido por si pretendido”, terá assim 10 dias para facultar o acesso à base de dados… carregando no teclado e/ ou no rato do computador para expurgar os dados nominativos.

    A ACSS poderá ainda recorrer desta sentença, o que a observar-se constituirá mais um sinal de obscurantismo no sentido de evitar uma avaliação independente das políticas de saúde nos últimos anos. O PÁGINA UM enviou a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa ao Ministério da Saúde para saber se o ministro Manuel Pizarro tomará alguma diligência junto da ACSS para libertar a BD-GDH ou para que recorra para o Tribunal Central Administrativo Sul. Sem resposta até agora, o que era uma situação habitual nos tempos de Marta Temido, e que não se modificou com a entrada em funções governamentais do médico Manuel Pizarro.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Relatório Rápido 52: Instituto Superior Técnico manipulou documentos enviados ao Tribunal Administrativo

    Relatório Rápido 52: Instituto Superior Técnico manipulou documentos enviados ao Tribunal Administrativo

    Mais um episódio caricato no processo de intimação do Instituto Superior Técnico que luta para não ceder relatório supostamente científico que causou alarme no Verão: a juíza fez hoje despacho para que seja enviado o original e não uma cópia com anotações a lápis. A manipulação do IST visaria convencer o tribunal de que se está perante um esboço, e não um relatório científico, mesmo se de duvidosa qualidade. Uma novidade deste despacho é que, finalmente, se sabe quantos relatórios o IST terá feito em articulação com a Ordem dos Médicos: 52. Se a sentença for inteiramente favorável ao PÁGINA UM, todos serão tornados públicos.


    A juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa, Telma Nogueira, ordenou hoje que o Instituto Superior Técnico lhe enviasse o relatório original sobre o impacte das festividades populares de Junho passado na incidência e mortalidade da covid-19 – cujas conclusões foram divulgadas pela Lusa e “viralizaram” na imprensa mainstream –, e não uma cópia manipulada com “anotações manuscritas a lápis”. 

    Este é o mais recente episódio de um inaudito processo de intimação que decorre naquele tribunal, por iniciativa do PÁGINA UM, após a recusa do presidente do IST, Rogério Colaço, em disponibilizar os dados estatísticos e o relatório escrito que serviram para a Lusa divulgar, em 28 de Julho passado, a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, enviou cópia manipulada ao Tribunal Administrativo. Foi hoje obrigado a enviar original sem qualquer anotação.

    Na verdade, como o PÁGINA UM destacou, naquele período observou uma tendência de redução significativa de casos positivos, pelo que surgiam assim dúvidas sobre o rigor científico daquele relatório feito por uma das mais prestigiadas faculdades públicas portuguesas em articulação com a Ordem dos Médicos.

    Em sede de processo em Tribunal Administrativo, o IST começou por afirmar que não divulgara qualquer relatório, e que apenas concebera um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”. Com este expediente, Rogério Colaço e os outros investigadores daquela instituição universitária tentaram que juíza Telma Nogueira não concedesse direito de acesso ao PÁGINA UM, dado que a lei determina que um “esboço” não é considerado um documento administrativo.

    Além disso, o IST argumentava ainda que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Neste envelope, lacrado, o Instituto Superior Técnico enviou ao Tribunal Administrativo uma cópia do Relatório Rápido nº 52, mas com anotações a lápis, para dar a ideia que não estava concluído e que era um esboço. Juíza do processo exige agora envio do original.

    Porém, a juíza do processo de intimação decidiu analisar, pessoalmente, o conteúdo dos documentos em causa, o que foi feito esta semana pelo envelope lacrado com a classificação de confidencial.

    Através da leitura do despacho da juíza Telma Nogueira, denota-se que o IST tentou influenciar a decisão fazendo acrescentos à mão no documento enviado ao Tribunal Administrativo, para dar a ideia de que a versão impressa não era a final, e que se estaria perante um esboço.

    Com efeito, no seu despacho de hoje, a juíza ordena que se “notifique a Entidade demandada [IST] para, em cinco dias, juntar aos autos o original do Relatório Rápido nº 52 sem anotações manuscritas a lápis, em envelope lacrado, a entregar em mão no Tribunal dentro de outro envelope fechado ou a enviar via correio postal dentro de outro envelope fechado e a título confidencial”.

    Além dos sinais evidentes, independente do rigor científico, de se estar perante um verdadeiro relatório – daí a denominação Relatório Rápido n.º 52, pela primeira vez assumido pelo IST –, o despacho da juíza não deixa de ser revelador de uma certa incredulidade em redor deste processo, onde estão sobretudo em causa questões de semântica, nomeadamente sobre o que é um estudo, o que é um esboço e, agora, o que é o “Relatório Rápido nº 52”. Até porque a existência do relatório do IST foi confirmada pela direcção da agência noticiosa Lusa, e a notícia o cita, entre aspas, por sete vezes.

    Em todo o caso, mostra-se cada vez mais inquietante a postura do IST, como instituição universitária pública, por se manter firme numa postura obscurantista, recusando divulgar os dados em bruto e um relatório com impacte relevante – e que no Verão foi usado pela imprensa mainstream para criar alarme injustificado e eventualmente falso –, e tentando levar a crer que, em Julho passado, aquele não estava concluído, e que era apenas um esboço.

    Mas, mesmo que assim fosse, passaram entretanto quatro meses, entre Julho e Novembro. Quatro meses que seriam tempo mais do que suficiente para transformar esse alegado “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” num verdadeiro e conclusivo relatório. Quatro meses que, contudo, aparentemente, foram insuficientes para a equipa de cinco investigadores do IST, supervisionado pelo seu presidente, o catedrático Rogério Colaço.

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como mais tarde esclareceu.

    Independentemente da análise do Tribunal Administrativo de Lisboa sobre o enquadramento semântico do Relatório Rápido nº 52 (se é um relatório ou um esboço), saliente-se que o PÁGINA UM requereu ao IST, estando também para decisão do Tribunal Administrativo, os relatórios anteriores, elaborados em colaboração com a Ordem dos Médicos desde Junho de 2021.

    Como o IST não alegou, para nenhum dos outros 51, que se estava perante situações de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, tudo indica que pelo menos 51 relatórios serão disponibilizados, através de sentença, para uma avaliação independente da qualidade e rigor científico do IST durante a pandemia.   


    Citações (entre aspas) do Relatório Rápido nº 52 do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

    1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

    2 – “não teriam impacto económico

    3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

    4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

    5 – “uma possível correlação com vagas de calor

    6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

    7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Por 31 mil euros, Expresso e SIC usam jornalistas para divulgação de congresso luxuoso da Ordem dos Contabilistas

    Por 31 mil euros, Expresso e SIC usam jornalistas para divulgação de congresso luxuoso da Ordem dos Contabilistas

    É proibido, mas os reguladores dos media e dos jornalistas continuam a fechar os olhos aos lucrativos e enganadores contratos comerciais para a divulgação de “notícias”. Em mais um exemplo da mercantilização de notícias, o PÁGINA UM revela os detalhes da “parceria comercial” para a cobertura do luxuoso 7º Congresso da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) pelo Grupo Impresa, que teve a colaboração directa de jornalistas da SIC Notícias e do Expresso. Alguns detalhes deste acordo comercial de 31 mil euros são desconhecidos, porque no Portal Base a OCC “esqueceu-se” de incluir o caderno de encargos. Mas sabe-se que a Impresa garantiu contratualmente sigilo por tempo indeterminado. Nas notícias que foram apresentadas aos telespectadores e leitores nunca surge a referência a estar-se perante um contrato comercial; quando muito, o Expresso escreveu que “se associou” ao congresso da OCC. Na SIC Notícias, além de peças sobre o evento, a bastonária Paula Franco surgiu em antena, numa entrevista de mais de oito minutos, no próprio dia em que o contrato foi assinado.


    E se pudesse pagar a jornais e televisões, como o Expresso e a SIC, para fazerem notícias sobre temas específicos? É uma possibilidade – ilegal, é certo –, mas que, nos últimos tempos, se tornou normal, mesmo uma “norma”, nos diversos grupos de media mainstream. Para empresas, Governo, autarquias e organizações de índole pública tem-se mostrado uma excelente forma de fazer “sair” notícias, controladas e sem laivos de crítica, que, de outro modo, ou não chegariam ao público ou chegariam, mas, possivelmente, com contraditório ou pouco favoráveis.

    Com um congresso à porta, e muitos euros para abrilhantar o evento, contratar a imprensa foi uma solução de marketing ideal para a Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC). A decisão de avançar com o contrato os órgãos de comunicação social do Grupo Imprensa, através de ajuste directo, foi aprovada pelo Conselho Directivo desta Ordem – que, por deter funções públicas é obrigada a cumprir as regras de contratação das entidades públicas – no passado 15 de Setembro, em vésperas do seu 7º Congresso Nacional.

    Congresso da Ordem dos Contabilistas Certificados contou com a presença do Presidente da República, três ministros e um secretário de Estado.

    No dia seguinte, a bastonária Paula Franco assinaria o contrato com o Grupo Impresa para a cobertura noticiosa do evento em troca da módica quantia de 31 mil euros, a que acresceu o IVA, sem espinhas. Da parte da Impresa Publishing e da SIC, assinaram o contrato, os administradores Nuno Conde e Paulo dos Reis. E uma grande coincidência: no mesmo dia, 16 de Setembro, a bastonária Paula Franco surge na SIC Notícias, durante mais de oito minutos, a ser entrevistada por uma jornalista sobre várias medidas de apoio às empresas.

    O contrato, que pode ser consultado no Portal Base, visava expressamente a “aquisição de serviços para a Divulgação do 7º Congresso da OCC, nos Media do Grupo Impresa”, que decorreu entre 21 e 23 de Setembro deste ano, no Altice Arena, na zona da Expo, em Lisboa. No programa constavam, como oradores, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, três ministros e um secretário de Estado, entre outras individualidades.

    Num evento de luxo, a fatia paga pela OCC ao Grupo Impresa acabou até por ser pequena, comparando com outros gastos sumptuosos.

    No mesmo dia em que a Ordem dos Contabilistas Certificados assinou contrato de 31.000 euros com a Impresa, a bastonária Paula Franco é entrevistada na SIC Notícias.

    Na verdade, a Ordem dos Contabilistas não foi nada “poupadinha” e “abriu os cordões à bolsa” sem andar de lápis atrás da orelha para saber onde poderia cortar custos: 281.405 euros foram gastos no aluguer do Altice Arena; 360.00 euros em serviços de catering; 470.000 euros em serviços audiovisuais; 62.200 euros na criação de um espetáculo; 6.100 euros em serviços de pirotecnia; 8.500 euros em serviços de apresentação e representação artística; 15.000 euros na aquisição de jogos à Science4you; e 55.200 euros na compra de caixas de acrílico para medalhas, entre outras despesas.

    Na “ementa”, os oradores podem ter contado muito, mas a parte social teve muito mais brilho. Por exemplo, os jantares à luz de velas foram abrilhantados com concertos exclusivos de Pedro Abrunhosa e Mariza. No total, o evento de três dias teve uma contabilidade fácil de fazer, sempre a somar: uma despesa total de cerca de 1,25 milhões de euros. Na parte da receita, cada contabilista pagou 50 euros de inscrição.

    O congresso propriamente dito contou com dois “mestres de cerimónia” especiais e inusitados: jornalistas. Marta Atalaya (CP 2502) e Rodrigo Pratas (CP 3979), ambos pivots da SIC Notícias, predispuseram-se a contribuir para a execução do contrato comercial entre a sua entidade patronal e a OCC, apresentando e moderando o evento. No programa impresso tiveram até direito exclusivo a fotografia. Não se sabe se a sua participação foi uma exigência do Caderno de Encargos, embora o PÁGINA UM saiba, por outros eventos, que a Impresa costuma indicar jornalistas disponíveis para essas tarefas.

    Programa do 7º Congresso da Ordem dos Contabilistas Certificados.

    Saliente-se já que o Estatuto do Jornalista considera incompatíveis as “funções de angariação, concepção ou apresentação, através de texto, voz ou imagem, de mensagens publicitárias” e também as “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.

    Na parte do contrato disponível, sabe-se que à Impresa coube “fornecer os serviços à entidade adjudicante, OCC, conforme as características técnicas e requisitos constantes do presente Caderno de Encargos e da proposta adjudicada”, que não consta no Portal Base. O grupo liderado por Francisco Pedro Balsemão ficou também obrigado a “recorrer a todos os meios humanos e materiais” que fossem “necessários e adequados à execução do contrato”.

    Como geralmente sucede em contratos já revelados pelo PÁGINA UM relativos a “parcerias comerciais” entre grupos de media e entidades públicas e privadas, a Impresa ficou, neste caso, ainda obrigada a “manter sigilo e garantir a confidencialidade, durante a vigência do presente contrato e após a sua cessação, respeitantes à entidade adjudicante ou a quaisquer outras pessoas, singulares ou coletivas, que com estas se relacionem, nomeadamente, bastonária e demais membros dos órgãos sociais, trabalhadores, fornecedores, parceiros e contabilistas certificados inscritos na Ordem”.

    O jornalista Rodrigo Pratas foi um dos “mestres-de-cerimónia” para cumprimento do contrato comercial da Impresa. A sua colega Marta Atalaya é já uma habitué na função..

    Assim, segundo o contrato, os meios de comunicação social da Impresa ficaram obrigados a não “divulgar quaisquer informações que obtenham no âmbito da formação e da execução do contrato, nem utilizar as mesmas para fins alheios àquela execução, designadamente, extrair cópias, divulgá-las ou comunicá-las a terceiros, abrangendo esta obrigação todos os seus agentes, funcionários, colaboradores ou terceiros que nelas se encontrem envolvidos”.

    Mais: ainda de acordo com o contrato, “o dever de sigilo (…) mantém-se em vigor indefinidamente, até autorização expressa em contrário da Ordem”, acrescentando-se que, em “caso de violação de qualquer um dos deveres (…), obriga-se o adjudicatário [Impresa] a comunicar a situação à Comissão Nacional de Proteção de Dados no prazo máximo de 72 horas, assim como a informar a entidade adjudicante [OCC] dos factos, em igual período”.

    O PÁGINA UM detectou, no decurso da vigência deste contrato, pelo menos seis notícias no Expresso. A primeira surgiu no dia 20 de Setembro, onde se anunciava a realização do 7º Congresso da OCC, mas num estilo noticioso, focando sobretudo o impacto da sustentabilidade na contabilidade das empresas.

    Pormenor do Congresso dos Contabilistas na sua componente mais social

    Esta notícia, não assinada, tem no cabeçalho a indicação “Projetos Expresso”, que constitui uma ambígua secção do jornal Expresso usada em especial para parcerias comerciais de âmbito empresarial, embora escritas por jornalistas. Neste caso, a notícia serviu sobretudo para detalhar quem seriam os oradores e indicar que o congresso poderia ser acompanhado na página do Expresso no Facebook. Na notícia, destacava-se que o Expresso “se associou” ao evento, sem mencionar a verba de 31.000 euros paga pela OCC ao grupo Impresa para a “divulgação”.  

    A segunda notícia foi publicada pelo Expresso, no dia seguinte, abordando a necessidade de rejuvenescimento da profissão de contabilista certificado. Publicada também no site do semanário fundado por Francisco Pinto Balsemão, a notícia tem no cabeçalho a referência a Exclusivo da secção de Economia do jornal e está assinada pela jornalista Rita Robalo Rosa (CP 7992). A notícia está disponível apenas para os assinantes do jornal ou para os leitores que tenham comprado a edição impressa do jornal.

    Outra notícia foi publicada no site do jornal no dia 22 de setembro, assinada pela jornalista Ana Baptista (CP 4430), com o título a citar António Costa Silva, ministro da Economia, que foi orador no congresso: “Temos um modelo económico e social que é predador dos recursos do planeta”.

    Artigos noticiosos, escritos por jornalistas mas pagos pela entidade abordada na notícia, começa a ser uma norma no Expresso, que diz sempre que “se associou” a eventos.

    No dia seguinte, mais uma notícia no Expresso, assinada pela mesma jornalista e com fotos de João Girão (CP 3072), foi publicada na edição online e em papel, com o título: Empresas sob “pressão” para serem mais sustentáveis. A notícia apresenta no cabeçalho da página a indicação “Projectos Expresso” e ainda “Contabilidade”.

    Mas, apesar desta indicação, no final da notícia publicada na edição em papel, o endereço de e-mail indicado é o da secção de Economia do jornal, em vez de um e-mail da área comercial do grupo ou da área de “Projectos Expresso”.

    Com a mesma data, saiu uma notícia assinada pela mesma jornalista, no site do jornal, com a referência a “Projectos Expresso” e com o título: Se as empresas não forem verdes, o financiamento pode desaparecer ou diminuir.

    Depois, no dia 28 de setembro, o Expresso publicou no seu site uma nova notícia, sob o título: A sustentabilidade das empresas para garantir o futuro da economia e da sociedade. Esta notícia vem com a indicação no cabeçalho de ser da área de “Projectos Expresso”. Na entrada, pode ler-se: As declarações dos protagonistas do 7º Congresso da Ordem dos Contadores Certificados, uma iniciativa que o Expresso se associou.

    Ora, aqui a notícia contém uma informação que pode induzir o leitor em erro, visto que o Expresso recebeu dinheiro, através da Impresa, para fazer a divulgação do Congresso da OCC. Não “se associou”, já que o que fez foi sim uma prestação de serviços contratualizada com a OCC.

    Além da já referida entrevista à bastonária na SIC Notícias, o PÁGINA UM apurou que a SIC cobriu o encerramento do Congresso da OCC dando-lhe honras de destaque no Jornal da Noite, a pretexto da presença de Marcelo Rebelo de Sousa. O pivot Bento Rodrigues (CP 1270) apresentou a peça, da autoria dos jornalistas Débora Henriques (CP 5674) e Afonso Guedes (CP 7857), com a duração de três minutos, onde se mostrou a exuberância de um espectáculo cénico no decurso do evento..

    Entre notícias e entrevista, pelo menos oito trabalhos jornalísticos no Expresso e na SIC para cumprimento de um contrato comercial sem aviso aos leitores e telespectadores, e de legalidade mais do que duvidosa.

    Contudo, apesar de ser proibido aos jornalistas fazerem marketing ou publicarem conteúdos patrocinados, os reguladores do sector continuam a fechar os olhos às chamadas “parcerias comerciais”. Estas “parcerias” são, na realidade, contratos de prestação do serviço de publicação de “notícias” pagas e organização de eventos, com a participação de jornalistas, sem que os cadernos de encargos sejam públicos.

    A SIC deu destaque ao 7º Congresso da OCC no Jornal da Noite. A peça, com duração de três minutos, abordou o discurso de encerramento do Presidente da República, e mostrou partes do evento, incluindo o espectáculo de pirotecnia.

    Os meios de comunicação social que celebram estes contratos, envolvem, muitas vezes, alguns dos seus jornalistas sem sequer os informarem que estão a cumprir uma “parceria comercial”. Mas o PÁGINA UM sabe que alguns jornalistas se disponibilizam e beneficiam de um pagamento extra por parte da sua entidade patronal.

    Certo é que estes contratos contribuem para o aumento da promiscuidade não só porque podem obstruir investigações jornalísticas como afectam a independência e credibilidade dos órgãos de comunicação social envolvidos. E não apenas das empresas que aceitam as “parcerias comerciais”, porque se enraíza a percepção social de que o rigor e isenção do sector dos media e da classe jornalística podem ser sempre “contornadas” através de pagamento de notícias favoráveis ou por ausência de notícias desfavoráveis.

    Porém, nem a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) nem a Comissão da Carteira Profissional do Jornalista (CCPJ) demonstraram, até agora, grande preocupação com estes contratos envolvendo notícias pagas e ligações promíscuas entre órgãos de comunicação social e entidades públicas e privadas. Ainda anteontem, o PÁGINA UM insistiu junto da ERC no sentido de saber se foi aberto algum processo aos grupos de media que assinaram mais de meia centena de contratos com entidades públicas, no decurso de uma investigação revelada em Maio passado.

    A bastonária Paula Franco e a ministra Ana Mendes Godinho durante o jantar de gala no Meo Arena. Pelo serviço de catering durante o congresso, a Ordem dos Contabilistas Certificados pagou 350 mil euros. Ignora-se quanto custaram as velas…

    A apatia e permissividade dos reguladores torna-se ainda mais preocupante no caso de contratos durante a pandemia que envolveram farmacêuticas, Governo, autoridades de saúde e organizações “amigas” da indústria do medicamento.

    Foi, aliás, a partir de 2020, que a generalidade dos principais grupos de media em Portugal promoveu opiniões próximas às da indústria farmacêutica e do Governo, evitando divulgar opiniões diferentes. Os media mainstream, em geral, apoiaram e promoveram o clima de censura e até de perseguição que se instalou contra cientistas, médicos, académicos e todos os que apresentavam outras visões e soluções sobre a gestão da pandemia, com muitas a comprovarem ser acertadas.

    Por outro lado, os media, em geral, promoveram estudos e opiniões em linha com a chamada “narrativa oficial”, incluindo relatórios alegadamente científicos, mas de qualidade muito duvidosa, e opiniões de personalidades que são pagas por farmacêuticas ou que têm esse ou outro tipo de incompatibilidades, as quais têm sido expostas pelo PÁGINA UM.

    ERC não revela se já concluiu qualquer análise sobre a legalidade de contratos de prestação de serviços travestidos de notícias em parcerias de duvidosa legalidade. A CCPJ não intervém sobre a promiscuidade que afecta a credibilidade e idoneidade de toda a classe.

    Em contrapartida, por estes serviços, os media mainstream somaram contratos comerciais para a divulgação de eventos do sector farmacêutico, executados por jornalistas na maioria dos casos. Ainda na edição em papel da passada sexta-feira, o Expresso apresentou duas “notícias pagas”, e assinadas por jornalistas, pelas farmacêuticas Pfizer e Sanofi.