Em mais um episódio do longo processo de intimação para obrigar o Infarmed a facultar o acesso a uma base de dados de “manifesto interesse público”, a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa decidiu ontem que Rui Santos Ivo vai ter mesmo de se sentar à sua frente para dar explicações orais. Se não vai como testemunha, vai então como parte. A audiência está agendada, provisoriamente, para o próximo dia 24 de Janeiro.
O presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, tem mesmo de depor em sessão especial do processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que decidirá se a base de dados dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir devem ser públicas ou se se podem manter no “segredo dos deuses”. A sessão deverá ocorrer ainda este mês. Será a primeira vez que o Infarmed terá de justificar, sem contorcionismos, os motivos para esconder informação relevante sobre Saúde Pública.
A decisão surgiu ontem num despacho da juíza Sara Ferreira Pinto, após mais uma tentativa do regulador nacional dos medicamentos de obstaculizar o acesso à informação.
Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed: há um ano a esconder dados do Portal RAM, não quer agora testemunhar perante o Tribunal Administrativo de Lisboa.
Recorde-se que o PÁGINA UM luta há mais de um ano para consultar em detalhe os dados anonimizados relacionados com os efeitos adversos resultantes destes dois fármacos (as vacinas das farmacêuticas Pfizer, Moderna, Astrazeneca e Janssen e o antiviral da Gilead). O acesso permitirá análises estatísticas mais finas sobre o tipo de afecções detectadas, o grau de gravidade e a incidência/ prevalência em função da idade.
O primeiro requerimento do PÁGINA Um foi dirigido ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo em 6 de Dezembro de 2021, mas nem após um parecer não vinculativo da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) – que considerou haver “manifesto interesse público” em conhecer a segurança das vacinas” –, o regulador vacilou, e continuou a esconder dados, revelando apenas relatórios trimestrais de rigor e fiabilidade muito questionáveis.
Após a interposição de uma intimação por parte do PÁGINA UM em Abril do ano passado, o Infarmed tem feito todas as manobras jurídicas para adiar uma decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa.
Apesar de uma intimação ser classificada como “processo urgente”, os argumentos no Tribunal Administrativo correm há já quase nove meses, não havendo o mínimo sinal de transparência por parte do Infarmed: a sua estratégia – através da sociedade BAS, que, aliás, representa outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde em processos semelhantes – tem sido sobretudo de pôr em causa a possibilidade legal de mesmo um jornalista poder aceder à base de dados.
Sede do Infarmed: onde se “sequestra” a verdade e onde se veda o acesso à transparência.
O argumento principal do Infarmed tem sido a (estafada) impossibilidade de anonimizar a informação. Ou seja, supostamente para proteger a identidade de pessoas, não se fornece nenhuma informação relevante. E tem dito também que a informação possível já se encontra na base de dados EudraVigilance, da Agência Europeia do Medicamento (EMA). Esses dados são apresentados em formato agregado, sem qualquer detalhe informativo, e sem sequer quantificar óbitos por idade nem explicitar em que consistem os casos graves. Além disso, a maior parte da informação nem sequer está desagregada por país.
Na verdade, o Infarmed tem-se esforçado em convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que, na terceira década do século XXI, ainda não se mostra tecnicamente possível numa base de dados informatizada excluir, de uma forma muito simples (por exemplo, através de uma simples instrução para seleccionar ou não determinado campo ou variável) os eventuais nomes das pessoas que aí constem, substituindo-os por códigos. Mas isto sempre através de requerimentos, nunca de viva voz.
Por isso, quando o PÁGINA UM sugeriu no mês passado – no meio de um processo onde a estratégia de defesa do Infarmed procura complexificar algo simples (uma base de dados é um documento administrativo passível de consulta se anonimizados os dados pessoais, através de uma simples operação informática) – a auscultação presencial de Rui Santos Ivo, a sociedade de advogados BAS, que representa o regulador, alegou que os estatutos o impediam de depor como testemunha, uma vez que era “parte interessada”.
Além disso, o requerimento daquela sociedade de advogados para excluir Rui Santos Ivo do rol de testemunhas pretendeu também retirar o cunho político da recusa do Infarmed em disponibilizar o Portal RAM ao PÁGINA UM. Ao pretender colocar o assunto como “eminentemente técnico”, a defesa de Rui Santos Ivo dizia que, em audiência provisoriamente marcada para o próximo dia 24 de Janeiro, basta[ria] ouvir Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos do Infarmed – que, aliás, será tão parte interessada no processo como o seu presidente. Note-se que Márcia Silva foi indicada pelo Infarmed, e não mereceu qualquer oposição do PÁGINA UM no âmbito deste processo, como deve suceder numa questão jurídica justa e civilizada.
Com o despacho de ontem, a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa até acabou por aceitar que, para se ouvir Rui Santos Ivo, não se use o estatuto de “testemunha”, mas isso não obste que não se tenha de deslocar à audiência. Assim, não indo como “testemunha”, irá como “parte”. Uma questão de semântica, portanto.
Ou seja, vai dar ao mesmo; mas assim se mostra como, de expediente em expediente, o Infarmed continua a esconder uma base de dados de manifesto interesse público. E o Ministério da Saúde a tudo isto assiste, calado e de forma serena. Até quando? O Tribunal Administrativo de Lisboa decidirá.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.
Eis um caso paradigmático de um medicamento retirado discretamente do mercado, mas com um polémico histórico de problemas éticos e de segurança. Em 2011, foi revelado que a pioglitazona, um antidiabético no mercado desde 1999, causava cancro da bexiga. Três anos mais tarde, duas farmacêuticas foram condenadas ao pagamento de uma indemnização avultada por um tribunal norte-americano, mas na Europa somente França e Alemanha decidiram retirar o fármaco de circulação. Em Portugal, o Infarmed aguardou 11 anos pela decisão da Agência Europeia do Medicamento de suspender o fármaco, usando argumentos pouco claros. E não responde quantos foram os casos de cancro da bexiga reportados no Portal RAM com ligação directa a este fármaco.
Passaram 11 longos anos até o Infarmed decidir retirar do mercado português um medicamento para tratamento de diabetes tipo II considerado cancerígeno, e já envolto num processo judicial nos Estados Unidos, que levou duas farmacêuticas (Takeda e Eli Lilly) a pagarem 9 mil milhões de dólares por esconderem dados clínicos sobre efeitos secundários graves.
A decisão do regulador português foi tomada na semana anterior ao Natal, no passado dia 21 de Dezembro, mas de uma forma absurdamente discreta, através de uma simples circular onde a retirada do fármaco em causa – a pioglitazona, comercializada (como genérico) em comprimidos sob a forma de genérico pela farmacêutica Mylan –, surge integrada numa lista de 13 medicamentos com suspensão de autorização de introdução de mercado (AIM), entre os quais um antibiótico, um anti-retroviral e outros para tratamento de sintomas da artrite, gripe e colesterol.
Na divulgação à imprensa, o Infarmed não fez qualquer menção às polémicas e casos judiciais envolvendo ao pioglitazona, referindo mesmo que “não há evidência de dano ou falta de eficácia em nenhum dos medicamentos incluídos neste procedimento”. O regulador, presidido por Rui Santos Ivo, justifica a suspensão de comercialização de todos aqueles fármacos por o Comité dos Medicamentos de Uso Humano (CHMP) da Agência Europeia do Medicamento (EMA) ter ficado com “dúvidas quanto à integridade dos dados em estudos realizados pela empresa Synchron Research Services localizada em Ahmedabad”, no estado indiano de Gujarate, que aparentemente apenas se referem a questões de bioquivalência.
Salienta-se aqui o termo “aparentemente”, porque os documentos da EMA e a troca de correspondência entre este organismo europeu e o Infarmed estão legalmente protegidos, por razões comerciais, e os tribunais administrativos portugueses já sentenciaram não haver possibilidade, mantendo-se os diplomas legais em vigor, de aceder a esse tipo de informação ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. O PÁGINA UM perdeu, aliás, um processo em tribunal em Outubro passado, ficando impedido de aceder a documentos sobre a pandemia.
Segundo apurou o PÁGINA UM junto de médicos, antes desta decisão do Infarmed de suspender a administração de pioglitazona, já poucos diabéticos usavam este fármaco. Em cerca de 1,3 milhões de diabéticos em Portugal, estima-se que pouco mais de quatro mil continuavam a usar a pioglitazona, até por existirem alternativas terapêuticas mais seguras.
Porém, (mais) este episódio demonstra como a preocupação do regulador português aparenta incidir mais na protecção dos interesses das farmacêuticas do que na protecção e informação dos consumidores.
De facto, a pioglitazona – patenteada pela japonesa Takeda em 1985, com uso clínico a partir de 1999 e comercializada na Europa desde Outubro de 2000 – começou a ter uma utilização bastante intensa a nível mundial na primeira década do presente século, quer de forma isolada (sob a marca comercial de Actos) quer em produtos combinados com outros fármacos. Em 2011 passou a ser comercializado também como genérico, e foi a partir daí que começaram a ser descobertos os efeitos secundários adversos.
Circular de 2011 do Infarmed sobre a pioglitazona.
Em Abril desse ano, a Food and Drug Administration (FDA) – o regulador norte-americano – passou a obrigar a inclusão de risco de cancro na bexiga na bula da pioglitazona. Essa decisão levaria a França, nesse mesmo ano, e a Alemanha, dois anos mais tarde, a retirarem este fármaco do mercado. No entanto, a EMA, bem como o Infarmed, para o mercado português, decidiram apenas exigir mais estudos, considerando que os benefícios suplantavam os riscos.
De acordo com uma circular do Infarmed de Junho de 2011 – ou seja, há mais de 11 anos –, a CHMP do regulador europeu solicitou “ao Titular de Autorização de Introdução no Mercado a realização de um estudo epidemiológico europeu que permita uma caracterização mais robusta do risco de cancro da bexiga, em particular, o risco associado ao tempo de exposição e o risco associado à idade, para que possam vir a ser tomadas medidas de minimização do risco mais específicas”. E estabeleceu ainda que “este estudo deve incidir sobre a análise do tipo, evolução e gravidade dos casos de cancro da bexiga que ocorreram nos doentes em tratamento com pioglitazonas em comparação com os diabéticos que não estão em tratamento com pioglitazonas.”
Porém, apesar disso, o Infarmed assegurava já então, nessa circular, e sem os tais estudos que a EMA pedira, que “os benefícios da pioglitazona continuam a superar os seus riscos em doentes que respondam adequadamente ao tratamento”, sugerindo somente precaução na prescrição em doente que tenham ou tivessem tido “cancro da bexiga ou que apresentem hematúria macroscópica de causa desconhecida” ou estivesse sujeitos a factores de risco, como idade, tabagismo e “exposição a certos químicos ou tratamentos”, não especificados.
Não houve nenhuma alteração nos procedimentos nos anos seguintes, mesmo quando a farmacêutica japonesa Takeda e o seu parceiro de marketing, a norte-americana Eli Lilly, foram condenadas em Abril de 2014 por sentença de um tribunal do Estado da Louisana ao pagamento de um verba de 9 mil milhões de dólares, por “danos punitivos”.
O tribunal norte-americano considerou que a Takeda escondera deliberadamente os efeitos da pioglitazona na promoção de cancro da bexiga em diabéticos, obrigando-a ao pagamento de dois terços do montante. A farmacêutica japonesa conseguira, antes da perda do monopólio da comercialização, receitas da ordem dos 4,5 mil milhões de euros apenas no ano de 2011, representando então 27% da sua facturação.
Takeda foi multada em 6 mil milhões de dólares por um tribunal norte-americano em 2014. A sua parceira Eli Lilly foi condenada ao pagamento de 3 mil milhões de dólares.
Apesar das limitações legais de aceder a documentos considerados “segredo comercial”, o PÁGINA UM contactou o Infarmed, para que esclarecesse “os verdadeiros motivos para a retirada deste fármaco”, e que fossem indicados “quantos pacientes usaram o fármaco no ano mais recente, quais as alternativas farmacológicas actualmente existentes, e quantos doentes portugueses tratados com pioglitazona foram, segundo dados do Portal RAM, diagnosticados com cancro da bexiga desde 2011.”
O Conselho Directivo do Infarmed, presidido por Rui Ivo Santos, somente repetiu os termos da sua circular de Dezembro passado, além de acrescentar que “a associação entre desenvolvimento ou agravamento de cancro da bexiga com a utilização de medicamentos contendo pioglitazonas é um risco já conhecido desde 2011 e já está incluído nos Resumo das Caraterísticas do Medicamento e Folheto Informativo de todos estes medicamentos, nomeadamente na secção 4.3, 4.4, 4.8 e 5.3, secções 2 e 4.”
Eis a hermética forma de comunicação do Infarmed em 2023 sobre um medicamento retirado do mercado em 2022, mas que já dava sinais de preocupantes problemas, também de ética, desde 2011.
A presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. Licínia Girão, cancelou a sua inscrição como estagiária na Ordem dos Advogados depois de se mostrar incapaz de concluir o estágio de advocacia iniciado em finais de 2020, e que duraria 18 meses. A este soma-se um “chumbo” nas provas de admissão para o curso de magistrados. Nada de anormal adviria daqui, se não fosse o caso de Licínia Girão, que como jornalista trabalhou sobretudo na imprensa regional, não tivesse sido cooptada para a liderança da CCPJ por, supostamente, ser uma “jurista de reconhecido mérito”.
A presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), Licínia Girão, continua a coleccionar “feitos” que contradizem esse estatuto de “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, condições legais que terão merecido a sua indigitação em Maio passado para liderar este órgão regulador e disciplinador.
Licenciada em Direito, a jurista de 57 anos – que completou os estudos numa fase já adiantada da sua vida profissional, tendo trabalhado sobretudo na imprensa regional – já tinha fracassado no Verão passado, logo na fase inicial de provas, o acesso ao curso para magistrados do Centro de Estudos Judiciários. Licínia Girão “chumbou” em dois dos três exames, todos de carácter exclusivo, com um total de 24,30 valores (em 60 possíveis), colocando-a no lugar 230 em 269 candidatos.
A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista funciona no Palácio Foz, em Lisboa.
Agora, apurou o PÁGINA UM, a presidente da CCPJ nem sequer conseguiu ultrapassar as provas para conclusão do estágio da Ordem dos Advogados, que começara em finais de 2020. A sua inscrição como advogada-estagiária foi mesmo “cancelada” desde 10 de Outubro do ano passado, conforme confirmou ao PÁGINA UM o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, que não adiantou qual a causa.
De acordo com os regulamentos, o cancelamento – que é diferente da suspensão (temporária) – pode advir de um pedido do próprio candidato, “que pretenda abandonar definitivamente o exercício da advocacia”, ou por falta de idoneidade determinada pela própria Ordem ou após pena disciplinar de expulsão.
Apesar de Licínia Girão ter estado a realizar parte do estágio-fantasma num escritório de Santo Tirso, a razão para o abandono do estágio não terá sido, em princípio, esta irregularidade com contornos também éticos. De acordo com a mensagem transmitida pelos serviços administrativos da CCPJ – em reacção a perguntas colocadas pelo PÁGINA UM directamente a Licínia Girão –, “o cancelamento da inscrição na Ordem dos Advogados foi solicitado pela então advogada estagiária Licínia Girão, por motivos profissionais”, adiantando ainda que “o Conselho Regional do Porto se limitou a deferir o pedido”.
O registo de Licínia Girão na Ordem dos Advogados como estagiária, foi feito em 22 de Fevereiro de 2021, mas foi iniciado em 10 de Dezembro de 2020. Indicava um endereço que corresponde ao da sociedade Rodrigues Braga & Associados, onde fez um estágio-fantasma. A sua inscrição como como estagiária foi cancelada em 10 de Outubro do ano passado. Nunca chegou a exercer como advogada.
Independentemente da veracidade desta declaração, não comprovada por qualquer documento, certo é que a opção pelo cancelamento – em vez de uma suspensão (que implicaria que, a qualquer momento, pudesse reatar a inscrição –, não esconde mais um insucesso de Licínia Girão no “mundo das leis”, sobretudo para quem chegou à liderança da CCPJ rotulada de “jurista de reconhecido mérito”.
Com efeito, o cancelamento da sua inscrição como advogada-estagiária ocorreu já depois do prazo normal necessário para os candidatos da sua turma concluírem o processo, incluindo exames e prova de agregação. Licínia Girão começara o estágio em 10 de Dezembro de 2020, numa turma integrando 52 candidatos a advogado, e deveria ter concluído esse estágio em 18 meses, ou seja, em Junho do ano passado, se tivesse sido posteriormente aprovada num exigente exame da Ordem seguido de provas escritas e orais de agregação. Mas tal não sucedeu.
Na verdade, consultando a lista dos 52 advogados-estagiários, onde estava integrada Licínia Girão, apenas 20 surgem já inscritos como advogados, de acordo com uma consulta minuciosa do PÁGINA UM. Na generalidade, estes antigos colegas de turma de Licínia Girão estão inscritos como advogados desde Setembro do ano passado. Além destas duas dezenas de novos advogados, encontram-se 14 outros que ainda têm o estágio em curso – ou seja, não terão conseguido, após o estágio num escritório, aprovação no exame ou nas provas de agregação. E, por fim, além de Licínia Girão, outros 13 não constam agora em qualquer uma das duas bases de dados da Ordem dos Advogados. Ou seja, terão suspendido ou cancelado a inscrição.
Ao invés do mundo da magistratura e advocacia, Licínia Girão, a actual presidente da CCPJ, tem tido mais “sucesso” nas artes. Por exemplo, em Junho de 2021, obteve a Menção Honrosa na categoria Ensaio/ Prosa no âmbito dos 13º Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana.
Os dois revezes de Licínia Girão – nos mundos da Magistratura e na Advocacia em apenas um ano – não a impedem de continuar a sua profissão de jurista (embora limitada em termos de actividade profissional), nem de ser considerada pelos seus pares (oito jornalistas) que a cooptaram para a CCPJ, como alguém de “mérito reconhecido”.
Em todo o caso, saliente-se que Licínia Girão continua afincadamente a tentar enriquecer o seu currículo de jurista: o PÁGINA UM confirma que é um dos 18 candidatos admitidos, em 16 de Dezembro do ano passado, para mediadores de conflitos no Julgado de Paz no concelho de Santo Tirso.
Esqueça as estatísticas simplistas da imprensa mainstream. Esqueça as explicações surreais e às cegas dos “peritos” sobre as causas do excesso de mortalidade. Esqueça as tentativas do ministro Manuel Pizarro de culpar as ondas de calor. Leia sim a análise exclusiva do PÁGINA UM que mostra como o excesso de mortalidade não foi homogéneo ao longo dos grupos etários, e que existem situações demasiado suspeitas para não se fazer uma investigação independente sobre o que se anda a passar desde 2020 em Portugal. Investigação essa que deveria incluir, obviamente, uma investigação judicial se a procuradora-geral da República, Lucília Gago, estivesse virada para estes assuntos mundanos e, enfim, demasiado comezinhos como são a morte e a Saúde Pública.
Já se sabia que o processo de envelhecimento populacional em Portugal – que está associado também a uma boa notícia: vive-se mais tempo, morre-se mais tarde – levaria a um aumento absoluto de óbitos no último triénio. De acordo com a tendência demográfica a partir de 2014, era muito expectável que se registasse uma subida média de cerca de 1.500 óbitos em cada ano.
Podia num ano ser mais, mas seria compensado com um valor inferior no ano a seguir. Em termos médios o incremento não deveria fugir muito daquele incremento.
Porém, a pandemia – e o pandemónio em que se transformou a gestão dos serviços de saúde portugueses – trocou as voltas às leis naturais da vida. Em 2020, com o surgimento do SARS-CoV-2, a mortalidade associada à covid-19 e a outras causas disparou: em vez dos esperados 113.705 óbitos – sensivelmente mais 1.350 mortes do que em 2019, que foi ano “ameno” –, contabilizaram-se 123.743 óbitos.
O ano seguinte (2021) foi ainda bem pior, sobretudo por causa dos meses de Janeiro e Fevereiro, com uma mortalidade sem precedentes associada a surtos de covid-19 e a uma vaga de frio que deixou o Serviço Nacional de Saúde num caos. Em resultado, 2021 acabou por atingir um recorde de 125.231 óbitos, isto é, um excesso de mortalidade de 10.128 mortes. Confrontando com o ano de 2021, este excesso foi até ligeiramente superior a 2020 (10.038 óbitos a mais), o que já mereceria uma especial preocupação.
Evolução da mortalidade total em Portugal desde 2014 até 2022, com cálculo da mortalidade expectável e do excesso de mortalidade líquida. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Mostra-se extremamente anormal dois anos sucessivos de excesso de mortalidade – mesmo no meio de uma pandemia, que, contudo, “substituiu” as pneumonias típicas (cuja incidência desceu abruptamente, também por via do desaparecimento dos surtos gripais desde 2020 até à data). Ainda mais quando em 2021 já uma parte substancial do ano decorreu com a população mais vulnerável sob protecção das supostamente eficazes vacinas contra a covid-19.
Certo é que, lamentavelmente, dois anos de excesso de mortalidade não bastaram: houve um terceiro. De facto, ao invés de se observar uma inversão dos padrões de mortalidade – ou seja, uma redução por via da morte de uma quantidade muito elevada de pessoas vulneráveis –, o ano de 2022 contabilizou novo excesso líquido de mortalidade: mais 8.338 óbitos. E de forma também anormalmente consistente, com nove meses sempre acima dos 10 mil óbitos. O recente mês de Dezembro foi mesmo o mais mortífero do ano passado, com 12.246 óbitos.
Exesso de mortalidade líquida em Portugal em cada grupo etário por ano no triénio 2020-2022. O valor total incluiu a mortalidade com idade desconhecida, pelo que não cotrresponde ao somatório dos valores dos grupos etário. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Deste modo, segundo os cálculos e estimativas do PÁGINA UM, mesmo considerando ser expectável um aumento da mortalidade absoluta – como se disse, fruto do envelhecimento da população –, o triénio da pandemia (2020-2022) acarretou um excesso líquido de óbitos da ordem dos 28.504.
Note-se mais uma vez que este é um “excesso líquido”, uma vez que seria sempre expectável tal incremento de cerca de 1.500 óbitos por ano. Ou seja, face ao triénio anterior, o triénio 2020-2022 teria, em situações normais, um acréscimo de cerca de nove mil óbitos mesmo com as habituais doenças.
Em termos absolutos, a faixa etária mais afectada foi a dos maiores de 85 anos, embora tenha sido notório que o último triénio não tenha sido nada favorável para o grupo das pessoas em idade de reforma. Na verdade, a proximidade do excesso relativo de mortalidade entre os grupos dos maiores de 85 anos (+9,5% no conjunto do triénio), dos 75 aos 84 anos (+8,8%) e dos 65 aos 74 anos (+7,7%) indicia que não foi apenas a covid-19 a responsável pela “sangria”, tendo em conta que a taxa de letalidade daquela doença é bastante distinta entre estes três grupos.
Análise para o grupo etário dos maiores 85 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Com efeito, é certo que os maiores de 85 anos foram, em termos absolutos, o grupo mais fustigado pela morte – como é, desde sempre, a “lei da vida”. Porém, deve considerar-se que este grupo etário tem estado em franco crescimento – pelo aumento da expectativa de vida. Por exemplo, no início dos anos 70 do século passado viviam pouco mais de 40 mil idosos com mais de 85 anos; início do presente século já eram mais de 150 mil; em 2019 tinha subido para os 215 mil; e em 2020, segundo as estimativas do Instituto Nacional de Estatística, eram já 328 mil.
Estes números são excelentes notícias: significou que um cada vez mais número de pessoas consegue atingir idades avançadas. Mas a inexorável “lei da morte” nos leva. E daí que não é de estranhar, digamos assim, que cada vez haja mais mortes a atingir os maiores de 85 anos.
Porém, não se exagere. Mesmo com um crescimento expectável na mortalidade absoluta neste grupo etário – que antes do triénio da pandemia se situaria na ordem dos 1.500 óbitos em cada ano –, em 2020 acabaram por falecer 5.201 pessoas a mais; em 2021 mais 4.506 e no ano passado mais 4.424. Significa assim que, no total, morreram precocemente – mesmo se acima da esperança média de vida – um total de 14.131 pessoas neste grupo etário.
Em todo o caso, saliente-se que mesmo com esta sangria, este grupo de pessoas deverá continuar a aumentar nos próximos anos – antes da pandemia crescia a um ritmo acima das 10 mil pessoas por ano –, continuando assim a exigir maiores investimentos em cuidados de saúde.
No caso do grupo imediatamente antecedente – o dos 75 aos 84 anos –, o último triénio foi também bastante trágico, sobretudo porque o excesso se manteve elevado e estável. Ao contrário do grupo dos maiores de 85 anos, nesta faixa etária estava a observar-se um ligeiro decréscimo da mortalidade (cerca de 300 óbitos em cada ano), que advinha, em grande medida, a melhoria dos cuidados médicos que permitia que um maior número de pessoas pudesse dar o “salto” em vida para o grupo etário seguinte.
Os três últimos anos vieram, contudo, inverter fortemente essa tendência. Em 2020 observou-se um excesso líquido de 2.959 óbitos; no ano seguinte de 3.110 mortes e em 2022 contabilizaram-se mais 2.492 óbitos do que o expectável. No total registou-se assim um acréscimo de 8.561 mortes acima do esperado.
Análise para o grupo etário dos 75 aos 84 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Também preocupante foi o excesso líquido de mortalidade entre os 65 e os 74 anos, que estará longe de ser explicado apenas pela covid-19. Neste caso, no primeiro ano da pandemia contabilizaram-se mais 1.246 óbitos, em 2021 mais 1.716 mortes e, no ano passado, mais 892 óbitos.
Neste caso deve considerar-se que este acréscimo líquido tem em conta que existia uma tendência de aumento da mortalidade absoluta da ordem dos 200 óbitos por ano, resultante do aumento deste grupo etário, formado por pessoas nascidas entre meados das décadas de 40 e início dos anos 50 do século passado.
Análise para o grupo etário dos 65 aos 74 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Mas mesmo nos grupos mais jovens – que foram apenas marginalmente afectados pela covid-19 –, observou-se excesso de mortalidade. Com excepção dos menores de 15 anos, em todas as idades contabilizou-se mais mortes do que seria de esperar nos últimos três anos.
Em termos relativos, o maior aumento – e mais surpreendente – verificou-se no grupo etário entre os 15 e os 24 anos (+12,8%), ainda mais com a particularidade de o pior ano (com mais excesso) ter sido o de 2022, como já foi abordado ontem pelo PÁGINA UM.
Análise para os grupos etários dos menores de 1 ano (A), dos 1 aos 4 anos (B), dos 5 aos 14 anos (C) e dos 15 aos 24 anos (D): mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM. Para visualizar com maior detalhe: menores de 1 ano, entre os 1 e os 4 anos; entre os 5 e os 14 anos; e entre os 15 e os 24 anos.
No entanto, a mesma situação observou-se no grupo etário dos 35 aos 44 anos. Neste caso, o excesso do triénio foi de 5,1%, mas a distribuição não foi homogénea em termos absolutos. O excesso em 2020 foi de 52 mortes, subiu em 2021 para os 57 e quase duplicou no ano passado (mais 106 óbitos).
Explicação para isto? Não existe, apesar da existência da base de dados discriminada do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) que poderia apurar quais foram as doenças responsáveis por estes desvios. Mas, como se sabe, o Ministério da Saúde recusa a divulgar essa e outras bases de dados, estando a decorrer ainda processos judiciais sobre esta matéria nos tribunais administrativos.
Análise para o grupo etário dos 35 aos 44 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Também nos dois grupos subsequentes, entre os 45 e os 64 anos) se conta excesso de mortalidade em qualquer um dos três últimos anos, embora mais moderado em 2020 face a 2021 e 2022.
No caso do grupo dos 55 aos 64 anos, o excesso líquido de mortalidade foi de 1.439 óbitos (+5,1%), sendo que o PÁGINA UM estimou que, com base nos valores efectivos e na tendência entre 2014 e 2019, um total de 450 mortes a mais se contabilizaram em 2020, mais 664 em 2021 e ainda mais 325 no ano que se concluiu no sábado passado.
Análise para o grupo etário dos 55 aos 64 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Em relação ao grupo dos 45 aos 54 anos, o excesso líquido de mortalidade foi de 3,1%, significando assim mais 399 óbitos no último triénio do que o esperado. Nesta faixa etária, observou-se excesso em todos os três anos, mas muito mais moderado em 2022.
Com efeito, de acordo com os cálculos do PÁGINA UM, em 2020 contabilizaram-se 166 mortes a mais, e em 2021 um acréscimo não esperado de 172, tendo no ano passado descido para 61 mortes a mais.
O grupo adulto menos afectado pelo excesso generalizado de mortalidade acabou por ser o dos 25 aos 34 anos, que “apenas” registou um acréscimo de 2,7% na mortalidade expectável para o triénio 2020-2022.
Análise para o grupo etário dos 45 aos 54 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Neste caso, porém, os valores absolutos são relativamente baixos: 45 óbitos a mais nos três anos, o que se pode considerar dentro da normalidade, sobretudo se se, em termos de tratamento estatístico, fossem aplicados intervalos de confiança nesta análise.
Esta análise do PÁGINA UM comprova sobretudo a necessidade premente de uma avaliação independente das causas de morte aos diversos grupos etários, não podendo continuar-se nesta “alimentada” ignorância, que alimenta a especulação de supostos peritos – e mais as suas “explicações” com base em impressões, “cherry picking” e enviesamentos a segurar teses durante a pandemia.
Análise para o grupo etário dos 25 aos 34 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Perante isto, seria muito fácil, demasiado fácil, conhecer a verdade: bastaria o Ministério da Saúde disponibilizar a base de dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – onde constam as causas discriminadas de morte desde 2014 – e dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos – que permite aferir quais as doenças que justificaram os internamentos e as mortes em meio hospitalar. Em pouco tempo, em demasiado pouco tempo, com os meios estatísticos já disponíveis, seria possível apurar o que sucedeu nos últimos três anos.
E arrepiar caminho, salvando-se o que se pode e deve salvar. Ontem já era tarde. Enquanto isso, só este ano, com o terceiro dia ainda em curso, já se finaram mais de mil portugueses….
A covid-19, como doença, não teve qualquer impacte relevante nos jovens, e as medidas não-farmacológicas até terão permitido que muitos lactentes e crianças em idade pré-escolar tivessem sobrevivido nos últimos três anos. Estimativas rigorosas do PÁGINA UM, com base na informação do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) e ponderada a evolução da mortalidade nos anos pré-pandémicos, mostram que até aos cinco anos o saldo foi francamente positivo: até aos cinco anos de idade terá havido 220 mortes a menos do que previsivelmente ocorreria se não houvesse pandemia. Porém, no grupo dos 15 aos 24 anos, sucedeu um “desastre”, e sobretudo no ano passado: um inacreditável aumento de 115 mortes acima do esperado entre 2020 e 2022, que não encontra, em termos relativos, comparação sequer com os valores contabilizados para os mais idosos. E se não foi por culpa da SARS-CoV-2, do que foi então? Não se sabe, porque o Ministério da Saúde não diz, não investiga e opõe-se nos tribunais administrativos para não se saber. E a sociedade, no seu todo, também parece mostrar-se indiferente.
O grupo etário mais afectado pelos três anos da pandemia foi, de forma surpreendente, os adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos. Uma análise estatística estratificada do PÁGINA UM, tendo em consideração a tendência da mortalidade no período anterior à pandemia (2014-2019) – que está dependente dos avanços médicos e das variações absolutas da população dentro de cada faixa etária – revelou um agravamento de 13% na mortalidade nos jovens entre os 15 e os 24 anos no conjunto dos anos de 2020, 2021 e 2022.
De acordo com os cálculos do PÁGINA UM, neste grupo etário – que se encontra em ligeiro decréscimo devido à redução da natalidade nas últimas décadas – seria expectável que, em função do que sucedera entre 2014 e 2019, tivessem morrido 303 pessoas em 2020, mas acabaram por se registar mais 28 óbitos. Ou seja, 331 mortes.
Sem pandemia, em 2021 estimava-se a morte de 300 jovens destas idades, mas acabaram por falecer mais 12. Já no ano de 2022, que agora terminou, ainda se agravou mais: seria de esperar uma mortalidade total ao longo dos meses de 296 óbitos, mas o valor suplantou em 25,5% essa fasquia: contaram-se 371 mortes, mais 75 do que seria de aguardar. Desde 2014, o máximo ocorrera em 2017, com 326 óbitos.
Esta situação ainda é mais surpreendente, porque 2022 foi o terceiro ano consecutivo em excesso, não havendo uma explicação com base na mortalidade por covid-19. De acordo com a base de dados da mortalidade e morbilidade hospitalar, constante na Plataforma da Transparência do SNS, registaram-se seis óbitos atribuídos ao SARS-CoV-2 entre os 15 e os 24 anos, sendo metade em 2021 e a outra metade em 2022.
Análise para o grupo etário dos 15 aos 24 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Neste grupo etário, em termos de mortalidade total – e salientando que os óbitos são, felizmente, raros nestas idades –, a covid-19 representou 0,6% das causas de entre os 1014 dos desfechos fatais ocorridos nos últimos três anos. Se se considerar a taxa de letalidade da covid-19 nos jovens entre os 15 e os 24 anos – e assumindo que cerca de metade deste grupo etário esteve em contacto com o vírus –, os valores em Portugal são irrelevantes: 0,001%. Muito mais baixos do que os relativos às pneumonias. Aliás, ao longo da pandemia da covid-19, a morbilidade e mortalidade associadas às doenças do aparelho respiratório nos mais jovens diminuíram consideravelmente.
Em contraste com a situação dramática dos jovens dos 15 aos 24 anos, o triénio da pandemia (2020-2022) foi anormalmente favorável nos lactantes e crianças com menos de 5 anos. De acordo com as estimativas do PÁGINA UM, os recém-nascidos tiveram, durante a pandemia muito maiores chances de sobrevivência, porventura devido a um menor contacto com factores externos.
Análise para o grupo etário dos menores de 1 ano: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e défice (valor inferior a zero) de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do “défice” de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável, daí dar um número negativo. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Nesta fase mais frágil da vida, em 2020 registaram-se menos 60 óbitos do que se esperaria; em 2021 menos 86 óbitos; e no ano passado menos 52. No total do triénio conta-se assim uma “poupança” de 198 vidas, ou seja, um decréscimo de quase 24%, o que é muito significativo.
No grupo etário das crianças em idade pré-escolar (1 aos 4 anos) também se registou um decréscimo acentuado, mas menor, embora também muito significativo. Neste grupo – que, por norma, é de baixíssima mortalidade – contabilizaram-se menos 10 óbitos em 2020, menos nove em 2021 e menos três no ano passado. Contas feitas, estas 22 vidas poupadas representam uma redução global no triénio, face aos valores expectáveis, de 11%.
Análise para o grupo etário dos 1 aos 4 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e défice (valor inferior a zero) de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do”défice” de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável, daí dar um número negativo. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No caso do grupo dos 5 aos 14 anos, o triénio da pandemia foi praticamente indiferente. No ano de 2020 houve uma poupança de 10 vidas, mas em 2021 surgiu um acréscimo de 10. No ano passado, o número de óbitos foi aquele que seria expectável.
Para Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, a “consistência dos números de excesso de mortalidade” na faixa dos 15 aos 24 anos deveria merecer uma “investigação aprofundada das autoridades de Saúde”. Para este pediatra, seria extremamente fácil analisar, até pelo número de casos, se os incrementos se deveram a acidentes, a problemas de toxicodependência, a suicídios, ou a outras causas. “Esses dados existem; basta que as autoridades queiram analisar”.
Análise para o grupo etário dos 5 aos 14 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e défice (valor inferior a zero) de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do “excesso” ou “défice” de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável, daí resultando um número positivo ou negativo. Fonte: SICO. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Quanto à eventualidade de um incremento nos próximos anos da mortalidade em crianças em idade pré-escolar – porque muitos lactentes mais frágeis sobreviveram, nos últimos três anos, devido a super-protecção a agentes externos devido às medidas não-farmacológicas durante a pandemia –, Amil Dias está optimista: “pode haver um rebound [agravamento por um aumento do contacto de agentes externos], mas os lactentes mais frágeis que acabaram por sobreviver, por estarem mais protegidos, podem ter ficado mais fortalecidos e, assim, terem maiores probabilidades de sobrevivência”.
N.D. Amanhã, o PÁGINA UM apresenta uma análise detalhada similar para os grupos etários com idades superiores aos 25 anos. Serão apresentados os gráficos, com os valores, de excesso de mortalidade total, bem como uma análise global do excesso de mortalidade total (que, para ser mais rigoroso, não deve ser feito comparando somente os diversos). Saliente-se que, ainda com mais rigor, se poderia realizar cálculos com intervalos de confiança, mas não modificaria muito as conclusões que se podem retirar desta análise exclusiva. Realizaram-se pequenas rectificações de valores das estimativas durante a tarde de 3 de Janeiro de 2023.
O Ministério da Saúde recusa divulgar os contratos das compra das vacinas contra a covid-19. Desde Março de 2021, não é colocado no Portal Base qualquer documento sobre compras às farmacêuticas. Até então teriam sido compradas menos de 11 milhões de lotes, menos de 25% do total eventualmente adquirido. Ignora-se também as condições acordadas, nomeadamente ao nível da responsabilização e de eventuais compras obrigatórias no futuro.
O PÁGINA UM entrou hoje, último dia do ano, com mais um processo de intimação para obrigar o Ministério da Saúde a revelar documentos administrativos, que continua a esconder. O processo tem já o número 3879/22.1BESLSB, devendo ser distribuído na segunda-feira. O Ministério da Saúde será notificado para responder obrigatoriamente durante a próxima semana.
Desta vez, já com Manuel Pizarro como ministro da Saúde, pretende-se a “consulta presencial e obtenção de cópia, em qualquer formato disponível, de todos os contratos integrais (incluindo anexos e cadernos de encargos) assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (ou outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde) e as farmacêuticas que comercializam vacinas contra a covid-19, desde 2020 até à data, incluindo documentos de entrega (guias de transporte), bem como toda a documentação (troca de correspondência) entre as entidades adjudicantes e adjudicatárias ao longo desde período.”
Apesar da obrigatoriedade legal de colocar todos os contratos públicos no Portal Base, o Governo, através da Direcção-Geral da Saúde – que terá sido a única entidade pública a efectuar as aquisições –, está intencionalmente a omitir a inclusão de qualquer contrato relacionado com as vacinas contra a covid-19 desde Março de 2021. Ignoram-se assim, de forma inequívoca, quantos lotes foram adquiridos a cada farmacêutica, os preços unitários e as condições de venda, incluindo as relacionadas com responsabilização.
Manuel Pizarro, ministro da Saúde.
Na plataforma da contratação pública, ainda hoje consultada pelo PÁGINA UM, apenas constam quatro contratos todos do primeiro trimestre de 2021: duas compras de vacinas à Pfizer Biofarmacêutica (no valor de 54.489.660 euros, em 19 de Fevereiro; e de 34.419.238 euros em 23 de Março) e mais duas à Moderna (27.247.155 euros e 18.780.000 euros, ambas em 23 de Março). No total constam assim apenas as compras de um pouco menos de 135 milhões de euros.
No caso destes contratos com a Pfizer foram então compradas 6.761.401 doses, ao preço unitário de 12 euros, mas ignora-se o custo unitário das vacinas da Moderna, porque são omitidos documentos fundamentais. Em todo o caso, se se considerar um preço unitário similar, nestes quatro contratos terão sido adquiridas cerca de 10,6 milhões de doses de vacinas contra a covid-19.
Essa é uma pequena percentagem da quantidade já administrada. Em Outubro passado, o Ministério da Saúde revelou ao PÁGINA UM que, desde Dezembro de 2020, Portugal já comprara quase 45 milhões de vacinas contra a covid-19 e que teria então um stock de cerca de 9,5 milhões de doses. O Ministério da Saúde acrescentava ainda que “até 17 de Outubro foram administradas cerca de 25 milhões de vacinas”. Esta semana, o gabinete de Manuel Pizarro disse que tinham sido administradas 26,5 milhões de doses nos dois últimos anos. Em causa estará um negócio global que terá já custado, pelo menos, 675 milhões de euros ao Estado português.
Para confirmar as condições das compras e da assumpção de responsabilidades, o PÁGINA UM solicitou formalmente, após diversos pedidos informais, que o Ministério da Saúde disponibilizasse todos os contratos e documentos complementares. O pedido foi formulado em 22 de Novembro passado, e no dia 6 de Dezembro a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde assumiu ao PÁGINA UM que “não possui a informação pretendida”, e que tinha enviado o pedido, conforme imposição legal, para a Direcção-Geral da Saúde (DGS) “para pronúncia e resposta”.
Como habitualmente, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas – que esta semana anunciou a reforma – nem sequer respondeu. Como a DGS não tem personalidade jurídica para responder em processos administrativos, será o Ministério da Saúde que foi intimado junto do Tribunal Administrativo.
Este processo de intimação será o terceiro instaurado pelo PÁGINA UM ao longo de 2022, sendo o primeiro no mandato de Manuel Pizarro, que assim mantém a filosofia de obscurantismo da sua antecessora, Marta Temido.
Os outros dois ainda estão em fase de decisão, em recurso. Além destes processos, o PÁGINA UM entrou com intimações por obscurantismo – ou seja, recusa de acesso a documentos administrativos – envolvendo outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, nomeadamente a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (que venceu), a Administração Central do Sistema de Saúde (que venceu em primeira instância, estando em recurso) e Infarmed.
Neste último caso, o PÁGINA UM perdeu um processo – por o Tribunal Administrativo considerar que os documentos sobre segurança dos medicamentos estão abrangidos por segredo comercial – e está em curso outro, desde Abril passado, relativo aos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.
Foi anunciado, com pompa e circunstância, por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, bastonários das Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, como um equipamento fundamental para proteger os intensivistas e anestesiologistas que entubavam doentes-covid. Foram adquiridas 500 unidades pelo fundo “Todos por Quem Cuida“, e aprovado um financiamento comunitário, que envolveu no total cerca de meio milhão de euros. Mas, em poucos meses, foi tudo para o lixo. A Food & Drugs Administration considerou, em meados de 2020, que aquelas estruturas nada protegiam e até poderiam ser perigosas para médicos e doentes. Uma história de despesismo que faz lembrar o célebre conto O rei vai nu, até porque até um leigo percebia que as caixas de protecção nada protegiam e até obstaculizavam os movimentos dos médicos. Quem mais beneficiou foi o vendedor das caixas, uma empresa de acrílicos e materiais plásticos para expositores e decoração. Este é o quinto artigo de uma investigação jornalística do PÁGINA UM, profusamente documentada, que merece ser um caso de polícia.
É um daqueles evidentes casos que faz lembrar o célebre conto novecentista O rei vai nu, do dinamarquês Hans Christian Andersen: em meados de 2020, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos gastaram 184.500 euros em meio milhar de estruturas de policarbonato para suposta protecção dos médicos no momento da entubação orotraqueal, que acabaram literalmente no lixo hospitalar por ineficientes e perigosas, tanto para anestesiologistas e médicos intensivistas como para os próprios doentes.
Apesar de saltar à vista, mesmo a um leigo, que as denominadas “Caixas Protector 2020” jamais conseguiriam uma separação estanque entre os profissionais de saúde – já em si com equipamento de protecção individual suficiente –, aparentemente não se terá reparado convenientemente que os simples buracos onde os médicos metiam os braços para manipular o tubo do ventilador lhes dificultaria os movimentos, podendo mesmo colocar em risco o doente.
Nos primeiros meses da pandemia, decidiu-se “inovar”, decidindo que não bastava usar equipamentos de protecção individual.
Embora tenha sido anunciado em artigos e peças televisivas como sendo um equipamento de protecção extraordinário, intensivistas e anestesiologistas contactados pelo PÁGINA UM garantem que foram pouco ou nada usados, tendo mesmo sido abandonados (e deitados fora). Essa decisão surgiu sobretudo a partir de meados de 2020 quando a Food & Drugs Administration (FDA) proibiu o seu uso.
A agência norte-americana concluiu “não [ser] razoável acreditar que o produto pode ser eficaz na diminuição da exposição do profissional de saúde a partículas transportadas pelo ar, e pode, em vez disso, contribuir para um aumento na exposição dos profissionais de saúde a aerossóis e partículas [infectadas]”. E acrescentava que “além disso, os artigos da literatura observam riscos potenciais da barreira protectora, como aumento do tempo de intubação, taxas de sucesso de intubação de primeira passagem mais baixas e danos pessoais pelas partículas escapando de caixas de intubação, através dos orifícios de acesso aos braços, atingindo a face do profissional de saúde que realiza a intubação endotraqueal”.
Caixas de (suposta) protecção apenas envolviam a cabeça do doente e o médico tinha de colocar os braços em buracos na estrutura de policarbonato sem qualquer estanquicidade. Acreditar, como se acreditou, que esta estrutura impedia saída de aerossóis lembra o conto O rei vai nu.
Mas aquilo que era uma evidência óbvia foi sempre ignorada e permitiu mesmo uma operação de marketing dos bastonários da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins – agora indicada para gerir o centro hospitalar que integra o Hospital de Santa Maria – aquando da primeira entrega destas perigosas caixas em hospitais públicos.
Pelo menos em duas acções, nos dias 27 de Abril e 12 de Maio de 2020, os dois bastonários desdobraram-se em elogios às ditas caixas de protecção, bem como à campanha “Todos por Quem Cuida”, a qual geriam pessoalmente. Numa das suas intervenções na comunicação social, Miguel Guimarães garantia também que as ditas caixas de protecção tinham sido desenvolvidas “pela indústria portuguesa e médicos, nomeadamente especialistas da área de anestesiologia”.
Ignora-se se o Colégio de Anestesiologia da Ordem dos Médicos – órgão estatutário independente do bastonário – teve uma intervenção directa neste processo, até porque Miguel Guimarães recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul de uma sentença que o obrigava a disponibilizar todos os pareceres técnicos aprovados desde 2020. Contudo, mostra-se abusivo considerar que as caixas de protecção foram desenvolvidas pela “indústria portuguesa”.
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, em campanha de marketing, quando o fundo “Todos por Quem Cuida” ofereceu 500 caixas de protecção que a FDA consideraria inúteis e perigosas.
Na verdade, o processo foi mais simples. Os três gestores da conta “Todos por Quem Cuida” – Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves – decidiram simplesmente contratar a Gravoplot – uma empresa de produção de sobretudo acrílicos e materiais plásticos, bem como de gravação a laser, para expositores e decoração – para fazer, em série, as 500 unidades de “caixas de protecção”, ao preço de 300 euros, cada. Acrescido o IVA, o preço final ficou em 184.500 euros, sendo que as facturas foram remetidas para a Ordem dos Médicos, mas pagas pela conta solidária.
Como já referido pelo PÁGINA UM, a não saída de verbas da Ordem dos Médicos por estas compras pagas pelo fundo solidário possibilitou condições para a criação de um “saco azul” ou mesmo um desvio de verbas daquela associação profissional.
Apesar do insucesso rotundo de um equipamento que, à vista, se mostrava evidente, a Gravoplot foi a entidade que mais beneficiou com este voluntarismo e sede de “exposição mediática” dos bastonários das duas Ordens. Com efeito, além dos 184.500 euros ganhos na venda de 500 inúteis e perigosas “caixas de protecção”, a empresa sediada em Sintra teve artes para obter um financiamento relâmpago do FEDER.
Gravoplot: empresa que produz produtos plásticos e gravação a laser em diversos materiais para fins de decoração e exposição, foi contratada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves para produzir 500 caixas de produção. Graças a um apoio comunitário, acabou a facturar cerca de meio milhão de euros. As caixas acabaram no lixo poucos meses depois.
No próprio dia em que Miguel Guimarães cantava loas às caixas de protecção oferecidas ao Hospital de Santo António, em 27 de Abril de 2020, a Gravoplot fazia entrar uma candidatura a fundos comunitários para “reforçar as capacidades de produção de bens e serviços destinados a combater a pandemia”, neste caso com viseiras e as tais caixas Protector 2020.
Pouco mais de uma semana depois, em 6 de Maio, o projecto foi aprovado com um apoio financeiro comunitário de 321.416,12 euros a fundo perdido, ou seja, 95% do investimento total. O projecto terminaria em 26 de Junho daquele ano. Após aquela data, a Gravoplot só vendeu mais 13 caixas ao fundo solidário “Todos por Quem Cuida”, o número que consta na última das cinco compras, com data de 12 de Agosto de 2020. As outras quatro têm data de Maio daquele ano, conforme o PÁGINA UM já revelou.
N.D. Este é o quinto artigo de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.
Ontem, a Direcção-Geral da Saúde veio, pela primeira vez, apelar aos profissionais de saúde para estarem atentos aos sinais e sintomas de miocardite e pericardite nos jovens que tenham tomado a vacinas, mas continua-se a desconhecer, por obscurantismo, os detalhes que constam no Portal RAM do Infarmed. O longo processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, que opõe o PÁGINA UM ao regulador nacional do medicamento desde Abril deste ano, parece um jogo do gato e do rato: após a juíza exigir que o presidente do regulador seja ouvido em audiência no próximo mês de Janeiro, hoje os seus advogados vieram requerer a anulação do despacho, alegando que estão em causa estão apenas questões técnicas, e que Rui Ivo Santos, com carreira burocrática neste sector desde 1993, é parte interessada no processo, e também por isso não deve testemunhar.
Os advogados do Infarmed apresentaram hoje um requerimento ao Tribunal Administrativo de Lisboa para que o presidente deste regulador, Rui Ivo Santos, não seja ouvido como testemunha no processo de intimação para acesso aos dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o antiviral remdesivir. A actual juíza do processo, Sara Ferreira Pinto, já aceitara a indicação do PÁGINA UM para ouvir aquele responsável que, desde 6 de Dezembro de 2021, tem vindo a recusar o acesso aos dados anonimizados detalhados do Portal RAM.
A intenção do PÁGINA UM em se ouvir o responsável máximo do regulador prende-se sobretudo com o argumento (estafado) de uma alegada impossibilidade de anonimização dos dados, uma operação habitualmente corriqueira em bases de dados, em especial quando se pretende retirar os campos com informação pessoal. Por outro lado, também se pretende averiguar os detalhes do contrato assinado entre o Infarmed e a empresa Altran Portugal em 12 de Novembro do ano passado para alteração do portal das reacções adversas (Portal RAM) no âmbito do reporte à Agência Europeia do Medicamento (EMA).
Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed: há um ano a esconder dados do Portal RAM, não quer agora testemunhar perante o Tribunal Administrativo de Lisboa.
No requerimento agora apresentado pela sociedade de advogados BAS – que desde 2020 “colecciona” 53 contratos de consultadoria jurídica por ajuste directo com entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde –, alega-se que “em função do cargo que ocupa, o Senhor o Senhor [sic] Professor Rui Santos Ivo é parte do presente processo, não podendo depois como testemunha”, solicitando-se assim que “seja revogado o despacho de 13.12.2022, na parte em que [a juíza] admitiu o chamamento do Presidente do Conselho Diretivo do Infarmed como testemunha”.
Além de alegar questões meramente formais, o requerimento daquela sociedade de advogados tenta retirar o cunho político e administrativo a este processo, para assim evitar o testemunho de Rui Santos Ivo. Ao pretender colocar o assunto como “eminentemente técnico”, a defesa de Rui Santos Ivo diz que, em audiência provisoriamente marcada para o próximo dia 24 de Janeiro, basta ouvir Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos do Infarmed – que, aliás, será tão parte interessada no processo como o seu presidente. Note-se que Márcia Silva foi indicada pelo Infarmed, e não mereceu qualquer oposição do PÁGINA UM no âmbito deste processo, como deve suceder numa questão jurídica justa e civilizada.
Em todo o caso, não deixa de ser curioso que o Infarmed, através do seu representante legal, sustente que Rui Santos Ivo não entenda de questões técnicas relacionadas com o Portal RAM, tendo em consideração vasta experiência deste responsável na regulação de medicamentos e na indústria farmacêutica.
De facto, a menos que o actual presidente do Infarmed tenha enganado meio-mundo nas últimas três décadas, não deverá haver muitas pessoas com a sua experiência técnica e administrativa no também burocrático sector da indústria farmacêutica.
Senão veja-se: Rui Santos Ivo licenciou-se em Ciências Farmacêuticas em 1987, tem pós-graduações em Direito da Saúde (Faculdade de Direito, em 1997), em Medicina Farmacêutica (Universidade de Basileia, em 1999), em Regulação (London School of Economics and Political Science, em 1999), em Gestão de Unidades de Saúde (Universidade Católica Portuguesa, em 2000), em Programa de Alta Direção de Instituições de Saúde (AESE Business School, em 2015). Possui uma vasta e invejável carreira no sector da regulação, depois de ter ingressado em 1993 no Infarmed, onde exerceu cargos de vogal e vice-presidente entre 1994 e 2000, e depois de presidente entre 2002 e 2005.
Durante este último período foi ainda administrador na direção da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) entre 2002 e 2005. Mais tarde, entre 2006 e 2008, foi administrador na Unidade de Produtos Farmacêuticos da Direção-Geral de Empresas e Indústria da Comissão Europeia (2006 -2008), a que se seguiu passagem como diretor executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma) até Novembro de 2011, quando então regressou à Administração Pública. Primeiro, ocupou o cargo de vice-presidente e depois de presidente do conselho directivo da Administração Central do Sistema de Saúde, antes de regressar de novo, em Janeiro de 2016, ao Infarmed, para ser vice-presidente. Em Junho de 2019 subiu novamente a presidente do regulador.
É este, portanto, o homem que, a despeito de se debater uma “questão técnica” – ou seja, a disponibilização de dados anonimizados detalhados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 – não quer justificar-se em tribunal, porque, enfim, não é um técnico, e não sabe como funciona o Portal RAM nem se pode ser facilmente anonimizado.
A decisão de manter ou não a presença de Rui Santos em sessão do Tribunal Administrativo de Lisboa deverá ser tomada pela juíza do processo nos próximos dias.
Sede do Infarmed: onde se “sequestra” a verdade e onde se veda o acesso à transparência.
Saliente-se que este processo de intimação corre desde 20 de Abril passado, e surgiu depois da recusa do Infarmed em disponibilizar o acesso à base de dados do Portal RAM, mesmo se a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) já em 16 de Março deste ano considerou, em parecer não vinculativo, que o Infarmed deveria facultar o seu acesso, salientando que “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”.
Ontem, recorde-se, a Direcção-Geral da Saúde veio, pela primeira vez, apelar aos profissionais de saúde que estejam atentos aos sinais e sintomas de miocardite e também pericardite, nos 14 dias após a toma da vacina contra a covid-19. As reacções adversas devem constar, de forma discriminada, no Portal RAM a que o PÁGINA UM quer aceder há mais de um ano.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.
Em Fevereiro de 2021, num polémico início da campanha de vacinação contra a covid-19, e apenas uma semana após tomar posse na task force, Gouveia e Melo, o agora Chefe do Estado-Maior da Armada, negociou com o bastonário Miguel Guimarães as condições para se vacinarem vários milhares de médicos que não estavam na lista de prioridade da Direcção-Geral da Saúde. Mais de 27 mil euros foram parar aos cofres do Hospital das Forças Armadas, sem que o acordo ad hoc tenha sido autorizado. Pior ainda foi a operação contabilística: a conta acabou paga pela campanha “Todos por Quem Cuida” (detida por três particulares), mas a factura foi endereçada para a Ordem dos Médicos. Entretanto, este ano, surgiram quatro farmacêuticas a “reivindicar” o apoio nesta operação à Ordem dos Médicos, atestando sob a forma de recibo. Este é o quarto artigo de uma investigação jornalística do PÁGINA UM, profusamente documentada, que merece ser um caso de polícia.
Há pelo menos mais de uma semana que Manuel Pizarro, ministro da Saúde, sabe, mas não comenta: em Fevereiro do ano passado, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e o então responsável pela task force, Gouveia e Melo, mercadejaram a administração de vacinas a quase quatro mil médicos a troco de um pagamento de mais de 27.000 euros, que foram encaminhados para o Hospital das Forças Armadas.
Este expediente, realizado à margem das orientações então emanadas pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) – que é a Autoridade de Saúde Nacional – começou a desenhar-se apenas uma semana após o então vice-almirante Henrique Gouveia e Melo tomar posse como coordenador da task force da vacinação contra a covid-19, substituindo Francisco Ramos. Este ex-secretário de Estado da Saúde demitira-se por irregularidades relacionadas com as prioridades de vacinação no Hospital da Cruz Vermelha. Nas primeiras fases da vacinação, devido à escassez de doses, surgiram muitos casos de administração indevida, levando mesmo à instauração de 216 processos judiciais, apesar de apenas um ter levado a condenação, conforme revelou ontem o jornal Público.
Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS.
Embora no dia de posse tivesse considerado “lamentável” a administração indevida de vacinas – que então estava na ordem do dia. incluindo no Parlamento– e prometido “apertar mais as regras” de controlo, uma semana mais tarde, em 10 de Fevereiro, Gouveia e Melo reuniu-se com o bastonário Miguel Guimarães para acertar uma forma de contornar a posição da DGS que não priorizara a vacinação dos médicos que trabalhavam fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apesar de não constar no processo consultado pelo PÁGINA UM eventuais respostas escritas de Gouveia e Melo, nessa reunião terá saído a garantia de colaboração não apenas da task force, mas também das próprias Forças Armadas.
No dia 19 de Fevereiro, o bastonário escrevia um e-mail ao “Distinto Senhor Coordenador da Task Force Mui Ilustre Vice-Almirante Henrique Gouveia e Melo”, enviando em anexo, “tal como combinado na reunião do passado dia 10”, uma lista de médicos a serem vacinados, à margem do programa oficial de vacinação, defendendo a justeza e relevância desta questão.
A troco de mais de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, Gouveia e Melo permitiu, à margem das prioridades, que Miguel Guimarães “brilhasse”.
Certo é que, independentemente da eventual justeza desta medida, muitos médicos sobretudo do sector privado e social, bem como os médicos aposentados do SNS que mantinham actividade clínica, não estavam na lista das prioridades em Fevereiro do ano passado. Gouveia e Melo tinha conhecimento disso, até por integrar a task force desde Novembro de 2020, e também saberia que negociar à margem do processo oficial era cometer os mesmos erros ou até ilegalidades que levaram à “queda” de Francisco Ramos.
As negociações foram rápidas. Em 25 de Fevereiro, após um contacto telefónico com Gouveia e Melo, Miguel Guimarães fecharia então um acordo ad hoc – dir-se-ia informal, porque não há qualquer protocolo ou acordo escrito – para vacinar um pouco mais de quatro mil profissionais, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas, Miguel Guimarães estava preocupado em saber se poderia chamar a comunicação social para acompanhar toda a operação, que acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial.
O uso das palavras “negociação” e “acordo ad hoc” não são abusivas nem despropositadas no contexto em que se realizou esta vacinação paralela.
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.
Com efeito, a vacinação daqueles médicos à margem das orientações da DGS não teve apenas como eventual desiderato “proteger os profissionais de saúde e dar confianças aos doentes”, como então garantia Miguel Guimarães ao jornal Nascer do Sol, mas envolveu também contrapartidas monetárias. Apesar das vacinas serem gratuitas, Gouveia e Melo somente as disponibilizou contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos.
A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos. Mas é aí que surge ainda mais um caso rocambolesco, envolvendo o fundo “Todos por Quem Cuida”.
A Ordem dos Médicos quis ficar com os louros mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril do ano passado, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação. Sendo expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser um das três pessoas que decidia se dava apoio –, como foi, o problema mais uma vez passou pelo expediente contabilístico pouco ortodoxo. Isto é, ilegal.
Factura pela vacinação paralela dos médicos foi enviada à Ordem mas paga pela campanha solidária.
Uma vez que a factura do Hospital das Forças Armadas estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros. Porém, não foi isso que sucedeu.
A factura manteve-se na Ordem dos Médicos, e em seu nome, mas o dinheiro recebido pelo Hospital das Forças Armadas proveio da conta do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado por Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.
Contudo, para aumentar a estranheza desta operação de financiamento, a Ordem dos Médicos passaria, já este ano, facturas/ recibos a quatro farmacêuticas assumindo que tinham sido estas a suportar os custos de vacinação.
De acordo com os documentos consultados na Ordem dos Médicos pelo PÁGINA UM – por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, no passado dia 4 de Março a Ordem dos Médicos passou este documento contabilístico com o valor de 3.725,2 euros à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.
Três dias mais tarde, a Ordem de Miguel Guimarães passaria mais três facturas/ recibo a outras três farmacêuticas [vd., as ligações]: Ipsen Portugal (no valor de 11.040 euros), Bial (2.590 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros), também expressando que se trata de “donativo sem contrapartida” para a “campanha de vacinação da Ordem dos Médicos”.
Para aumentar a estranheza destes comprovativos – que, em última análise, permitiriam que as farmacêuticas pudessem assumir o donativo como uma despesa para efeitos fiscais –, apenas no caso do alegado donativo da Ipsen surge a referência a “pronto de pagamento”. No caso da Gilead aparece, como condição de pagamento, “Factura 10 dias”, enquanto nas situações da Bial e Laboratórios Atral surge “Factura 30 dias”. Ou seja, numa situação normal, isto significaria que a Ordem dos Médicos teria, nestes casos, a promessa de entrada de dinheiro em caixa no prazo de 10 e 30 dias, respectivamente.
Mas, repita-se, o pagamento foi feito pela conta solidária já no ano anterior – ou seja, deveria ser esta (ou os seus titulares) a receber a factura/ recibo das farmacêuticas.
Factura/ recibo da Laboratórios Atral, uma das quatro em que se assume que o apoio financeiro para vacinar quase quatro mil médicos proveio de farmacêuticas. Contudo, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas foi realizado pela conta solidária titulada (em nome individual) por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.
Acresce também que, independentemente de serem ou não documentos forjados, ou de a Ordem dos Médicos ter recebido mesmo os donativos daquelas quatro farmacêuticas (apesar do pagamento ter sido feito pela conta solidária), os montantes daquelas facturas deveriam ter sido declarados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.
Não foram, e nem o Infarmed reagiu ainda, passado mais de uma semana, ao pedido de esclarecimento do PÁGINA UM.
Sobre estas matérias, o bastonário da Ordem dos Médicos, a ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e o médico Eurico Castro Alves – ou seja, os gestores da conta solidária “Todos por Quem Cuida” – optaram por não responder directamente à dezena de perguntas que o PÁGINA UM lhes colocou, decidindo fazer uma declaração conjunta através de uma representante legal.
A advogada Inês Folhadela diz que “o procedimento de quitação [no caso da operação das vacinas] foi o mesmo que foi adotado em relação aos restantes donativos”, e garante que para a sua administração “foi estabelecido [um acordo] com o Ministério da Saúde, através do coordenador da task force, vice-almirante Gouveia e Melo”, acrescentando que “o Hospital das Forças Armadas não prescindiu da remuneração dos serviços prestados, tendo a Comissão de Acompanhamento (sem intervenção da Ordem dos Médicos) deliberado que as despesas seriam suportadas pela ação solidária”. A advogada insiste que a task force, sendo uma “unidade criada pelo Governo para assegurar a estratégia, planificação e logística para a campanha de vacinação em massa contra a covid-19 (…), estava autorizada a concertar essa ação”.
Convém salientar que não há nenhum acordo escrito por Gouveia e Melo, até porque o Despacho 11737/2020 não lhe dava autonomia para contrariar as orientações da DGS sem sequer houve autorização superior. A definição da estratégia, do plano logístico e outras acções eram sempre feitas sob liderança da DGS, do Infarmed e de outros organismos tutelados pelo Ministério da Saúde, como taxativamente consta do despacho governamental assinado em 23 de Novembro de 2020 pelos ministros da Defesa Nacional, da Administração Interna e da Saúde.
O PÁGINA UM não encontrou no processo consultado qualquer documento de autorização nem qualquer protocolo que tenha formalizado o acordo de administração das vacinas entre Gouveia e Melo e o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.
N.D. Este é o quarto artigo de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.
Sem mais de uma dezena de processos de intimação, PÁGINA UM não consegue ver reconhecido direito de acesso a documentos. Legislação feita à medida para proteger indústria farmacêutica em caso de problemas graves de saúde pública provocada por fármaco, a par de falta de sensibilidade do Tribunal Administrativo para reconhecer o papel determinante da imprensa, ditam a primeira derrota. Mas há outros motivos para acreditar nesta campanha do PÁGINA UM: noutro processo envolvendo o Infarmed, um despacho da juíza que analisa o acesso aos dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do anti-viral remdesivir concordou com a audição do presidente do regulador. A audiência está marcada para o próximo mês de Janeiro.
O Infarmed e a Autoridade Europeia do Medicamento têm agora ‘carta branca’ para eventualmente esconderem informação ao público sobre problemas com fármacos, e os jornalistas portugueses jamais podem ter pretensões de realizar análises de rotina à troca de comunicações e de documentação na posse destas entidades. Esta é, em suma, a interpretação do Tribunal Central Administrativo Sul, que negou provimento ao recurso do director do PÁGINA UM, através de um acórdão de finais de Outubro.
Esta é a primeira derrota do PÁGINA UM, que acaba por conceder ao Infarmed o direito de manter secretos eventuais problemas com medicamentos, permitindo-lhe esconder informação relevante e/ou divulgar somente aquilo que os seus dirigentes acharem adequado, mesmo quando estejam em causa a saúde pública.
Em causa, neste processo, estava o pedido do PÁGINA UM PARA acesso “de todo e qualquer documento administrativo na posse do INFARMED que tenha sido transmitido por carta normal (em papel); por mensagem de correio electrónico, por outro qualquer sistema digital sonoro ou audiovisual pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) e outras entidades internacionais homólogas do INFARMED, desde 2020 até à presente data.”
Recorde-se que o PÁGINA UM decidira, em Maio deste ano, recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar o Infarmed a revelar os documentos da EMA que enviara para o regulador português sobre o “corpo estranho” num lote de vacinas da Moderna. O Infarmed negou identificar o “corpo estranho”, que seria restos de mosquito, considerando ser matéria “confidencial”. O PÁGINA UM solicitou acesso a toda a documentação trocada entre o Infarmed e a EMA a partir de 2020 por ser a única forma de garantir não haver sonegação de documentação.
Primeira página do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.
Contudo, já em finais de Junho passado, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa não dera, para este caso, razão ao PÁGINA UM, seguindo a tese do Infarmed.
Nessa sentença, o juiz João Cristóvão considerava que, apesar dos direitos consagrados na Constituição da República e da Lei da Imprensa, o “pedido de informação apresentado” pelo PÁGINA UM “foi configurado de tal forma ampla que o torna susceptível de aceder a um universo quantitativo e qualitativo de documentos impossível de prever, mas sobre os quais impende uma presunção legal de confidencialidade.”
O juiz referia também estar presumidamente em causa, nessa documentação, “segredo comercial, industrial ou profissional ou um segredo relativo a um direito de propriedade literária, artística ou científica”.
O acórdão relativo ao recurso intentado pelo PÁGINA UM veio agora confirmar que, sim, a informação trocada pelo regulador português com a EMA é confidencial, beneficiando de “um regime especial” para o qual não se aplica a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Ou seja, o diploma aprovado pelos políticos portugueses permite que Infarmed e EMA, em eventual articulação com as farmacêuticas, possam esconder do público casos graves que afectem a saúde pública.
Por outro lado, o acórdão diz também que houve “falta de um mínimo de determinabilidade, quando no pedido de acesso à informação se pretende[u] toda e qualquer correspondência, entre as entidades aí referidas, por qualquer meio até à presente data”, mesmo se foi definido claramente um período temporal, e sabendo-se que essa informação pode legalmente ser disponibilizada por fases.
Nessa medida, o acórdão, salienta que o pedido do Recorrente [director do PÁGINA UM] careceu “da devida identificação de modo a ser determinável e identificável, nem que seja para que o Recorrido/Infarmed possa fazer uso dos poderes descritos no art. 188º, nº 2 in fine [Decreto-Lei nº 176/2006], assim como para o Tribunal aferir da sua necessidade/pertinência”.
Documento para pagamento das custas judiciais exigidas, como habitualmente, pela outra parte; neste caso, pelo Infarmed.
Sobre o facto de o PÁGINA UM ter identificado em concreto o interesse em consultar toda a documentação que identificasse o “corpo estranho” presente num lote de vacinas contra a covid-19 da Moderna, o acórdão do Tribunal dá uma interpretação simultaneamente curiosa e preocupante: “(…) atento o princípio da proporcionalidade sempre haveria que na ponderação de interesses [divulgar ou esconder] salvaguardar informação científica e farmacêutica da qual inexiste a devida certeza de molde a evitar especulações ou receios infundados na população”.
Em suma, para evitar especulação ou receio – infundados ou não – na população, o acórdão assinado por três desembargadores – Ana Cristina Lameira (relatora), Ricardo Ferreira Leite e Catarina Jarmela – acaba por considerar ser mais vantajoso esconder e, assim, nada se saber. No limite, morrer na ignorância. Os desembargadores também nada ponderaram sobre o direito constitucional dos jornalistas de acederem à informação, que, assim, neste caso, ficará no “segredo dos deuses”.
Pela perda deste processo, o PÁGINA UM foi condenado a pagar as custas processuais, pelo que, além das taxas de justiça que teve de arcar (712 euros), teve o seu director que transferir mais 841,50 euros para os cofres do Infarmed.
Saliente-se que este processo, agora perdido pelo PÁGINA UM, é independente da intimação que corre desde Maio passado no Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Infarmed que recusa o acesso ao Portal RAM que contém as notificações das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o anti-viral remdesivir. Neste caso, não há legislação que proíba o acesso, estando apenas em discussão se os dados são passíveis de serem anonimizados.
Ainda hoje, a juíza responsável pelo processo fez um despacho a marcar uma audiência final na quarta semana de Janeiro do próximo ano para ouvir presencialmente testemunhas – o que não é situação comum –, entre as quais, com carácter de obrigatoriedade, o presidente do Infarmed, Rui Ivo Santos, por indicação do PÁGINA UM.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.