A imaginação do Ministro das Finanças não tem limites.
Descobriu (também não era difícil) que os portugueses, há muito, tinham deixado de poder comprar veículos novos, muito pela sobrecarga dos impostos que têm de pagar, e encontrou uma solução para aumentar as receitas: cobrar impostos mais elevados aos carros com data de matrícula anterior a 2007.
Segundo as contas de Fernando Medina, o Imposto Único de Circulação aumentará, para todos, à taxa de inflação, mas será mais penalizador para os mais antigos.
Contas feitas por especialistas garantem, no entanto, que há a possibilidade de veículos, a gasóleo, anteriores a 2007, terem um agravamento do IUC de 1.746%.
Vou escrever por extenso para se perceber bem: mil setecentos e quarenta e seis por cento!
Esperemos que a inflação não chegue a esses números…
O jornal ECO fez contas e concluiu que o IUC dos automóveis a gasolina aumentará, em média, 347% e os carros a gasóleo contarão com um aumento médio do imposto de 591% durante os próximos anos”.
A “desculpa” dada para este aumento prende-se com a diferença actualmente existente no imposto pago entre alguns carros, a gasóleo, com matrículas anteriores a 2007 e os mais recentes.
Garante o Governo que, por uma questão de justiça, se deveria diminuir essa diferença que chega a ser de sete vezes menos para os mais antigos.
“Esquecem”, todavia, que os carros com matrícula anterior a julho de 2007 pagam hoje menos IUC (tal como nos últimos 16 anos) porque pagaram mais impostos no momento da sua aquisição.
A realidade é que os carros velhos, de modo geral, são usados pelos portugueses de meia idade e idosos, muitos deles sobrevivendo, unicamente, com reduzidas pensões.
Ou por trabalhadores com salários baixos, que precisam do seu automóvel para a labuta diária, mas sem dinheiro para o mudar por um mais novo.
Tudo gente que raramente recebe uma boa notícia e que, quando tal acontece, sabe convictamente que a sua alegria não vai demorar muito.
Aumento na pensão?
Em breve chegará um aviso das Finanças com um novo imposto de valor superior a tal aumento.
Fim das taxas moderadoras?
Aumento substancial nos medicamentos.
Muitíssimos trabalhadores portugueses, bem como praticamente todos os pequenos empresários, repito, têm o seu automóvel como uma “ferramenta” absolutamente essencial para o desempenho da sua profissão.
Custa-lhes caro.
Os combustíveis não param de aumentar, as reparações são absurdamente caras, tal como os seguros.
Com este aumento num dos impostos a situação vai piorar ao nível do incomportável.
Pode optar por mandar a viatura para abate, a troco de cem euros, e passar a andar de transportes públicos.
Se e quando os houver.
Se, porque em muitas localidades são uma miragem.
Quando, porque são imensos os dias em que estes não cumprem os horários, seja pelo número de greves, seja por avarias ou, simplesmente, pela incompetência de gestores e preguiça dos motoristas.
Tentei deixar de lado estas notícias, para não deteriorar, ainda mais, a minha saúde e começar a pensar em coisas mais agradáveis.
Decidi preparar um petisco e sentar-me a ler um bom livro.
Chegado à cozinha, olhando em volta, fiquei em pânico.
Quando é que o Medina vai pensar em criar impostos sobre os electrodomésticos antigos?
Se não pelo ambiente (desculpa que tem servido para tudo), por razões estéticas, por exemplo.
É que o meu frigorífico já não vai para novo, o fogão tem o forno a trabalhar a cinquenta por cento e o micro-ondas faz birras.
Sabendo que a diferença entre um cidadão vulgar e um membro do Governo é que enquanto aqueles se deparam com problemas estes arregalam os olhos perante oportunidades de fazer dinheiro, a constatação do estado destes aparelhos é um péssimo presságio.
Este país não é o mais indicado para a “peste grisalha”, avisou-nos um deputado, que muitos apelidaram de imbecil, mas que, com toda a certeza, não corre o risco de ver aumentar o imposto dos seus automóveis.
É menino para ter vários, mas todos comprados nos últimos anos.
Tivesse eu força e coragem e seguiria o conselho de outro político, não menos imbecil, e emigraria.
Vítor Ilharco é assessor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O outro grande estrago que Donald Trump legou ao seu país foi o apadrinhamento silencioso da invasão do Capitólio por fundamentalistas da supremacia branca, todos eles demasiadamente armados e todos eles igualmente parvos. Ao encorajar confrontos físicos e perigosos dentro do berço da democracia americana, o presidente recém-deposto deu a todo o seu vasto eleitorado da DUCK DINASTY uma lição inesquecível de mau perder.
Então, e antes de mais nada, o que vem a ser a tal de DUCK DINASTY? Tenho a impressão de que todos vocês dormiriam mais descansados se não soubessem nada disto, mas aqui vai.
A DUCK DINASTY é um reality show que já dura há uns bons vinte anos, e que aparece com frequência na capa das revistas que se interessam por reality shows, o que quer dizer que é um reality show extremamente popular, muito embora esteja restrito aos canais da televisão por cabo. Mostra-nos a história de uma família enorme, que vive em meia dúzia de trailers num pântano do Louisiana a que chamaram seu sem pedir autorização a ninguém. Claro que o governo do Louisiana já deu pela sua ocupação selvagem, mas, e sobretudo enquanto eles são os heróis de um reality show de grande audiência que apareceu em massa nas revistas a dizer que ia votar no Trump – quem é que lhes vai à cara? Quem é que dá início à Guerra Civil que tanta gente teme?
Não, nós não.
Deixem-nos ser um emblema tresmalhado do Louisiana e filmem bem a beleza dos nossos pântanos[1].
E quem são, exactamente, estas pessoas tão perigosas?
Há uns avós de cabelo muito comprido e T-shirts psicadélicas, verdadeiros DEAD HEADS[2], que dão aos mais novos uns conselhos que nos dão vontade de estraçalharmos logo ali a televisão para não termos que ouvir mais.
Os homens têm barbas de ZZTOP[3], uma bandana à volta da testa, camuflados, armas bem à vista, e botas da tropa. Passam o dia a caçar patos[4], daí o nome da série.
As mulheres são loiras, gordas, andam de fato de treino e botas da tropa, e passam o dia a cortar cupons de desconto no supermercado, depois do que vão ao supermercado gozar-se dos descontos a que têm direito – “viste bem aquela puta da caixa?” – “então era uma latina, como é que querias que entendesse o que é um cupon?”.
E também há crianças que andam sem nexo por ali, e são dezenas delas, tantas que nem se percebe de quem é que são filhas, muito magrinhas, muito mal vestidas, todas de botas da tropa, as meninas com o cabelo loiro comprido demais, os miúdos com o cabelo loiro cortado com pente três; e estas crianças estão sempre a ter problemas na escola pelo que as mães têm que ir lá falar com os DTs, e a única coisa que podemos fazer é louvar a paciência de santos dos professores que as recebem.
OK, esclareça-se o mistério e sejamos honestos: as botas da tropa devem-se ao facto de eles viverem num pântano. Mas é inegável que gostam. Existem botas melhores para lidar com a terra movediça dos pântanos.
Quase toda esta gente vivia da Segurança Social, embora neste momento viva dos rendimentos da DUCK DINASTY.
Pode ser por efeito de hipérbole, mas a verdade é que é toda esta gente que representa o eleitorado de Donald Trump.
E portanto, quando Trump incitou os seus seguidores a terem o pior perder do mundo, e, em consequência, eles aprenderam a lição num instante e desembarcaram em DC prontos a fazer a democracia em estilhaços.
Não sei se estão bem a ver, mas, para a DUCK DINASTY, aprender a ter mau perder é muito fácil.
É uma lição muito apetecível with God on our side[5], e ainda por cima é agradável.
O drama começa a seguir.
Uma vez aprendida, já que não custa nada a aprender, esta lição transformou-se nas vassouras do APRENDIZ DE FEITICEIRO que se multiplicam sem intervenção humana, pelo que pode agora carregar no seu próprio replay de cada vez que se sentir ameaçada. Isto é o que faz os políticos americanos normais, tanto democratas como republicanos, serem tão cautelosos com a aprovação dos orçamentos: a curto prazo, aprova-se desde já todo o bom que seja inimigo do óptimo, porque ninguém quer acordar o gato que dorme.
E vá lá, que enquanto for só um gato estamos nós muito bem.
O que nenhum americano com dois dedos de testa quer, acima de tudo, é que o gato volte a transformar-se silenciosamente num tigre de dentes de sabre enquanto não está ninguém a controlá-lo.
Toda a gente com responsabilidades políticas, incluindo os presidentes, pensava que sabia tudo sobre a longa vida das ervas daninhas, e sobre as duas cabeças da hidra que crescem onde quer que se corte apenas uma. Mas isso foi só até Trump chegar à Casa Branca, eleito por toda a massa iletrada dos supremacistas brancos, que de formação só tinham o treino em carreiras de tiro e a frequência de uns quantos campos de sobrevivalismo, mas que nunca tinham votado antes. Feito isto, basta a presença do seu fantasma, arrastado num grande carnaval de conivências de um julgamento criminal para outro onde está sempre um microfone aberto e incondicional à sua espera, para levar quase instantaneamente a grandes crises sem precedentes da História americana, como a demissão, na passada semana, do Alto Representante da Câmara dos Representantes, onde os republicanos detêm a maioria.
Este homem, como a maioria dos outros políticos, era um republicano bastante normal. Enquanto tal, deixou de conseguir continuar a segurar a barra[6] perante a gritaria dos republicanos minoritários, alinhados por trás do espantalho de Donald Trump exactamente como os portugueses saturados da disfuncionalidade partidária se alinham por trás do André Ventura. O homem não propõe solução nenhuma, mas ao menos está todos os dias no Parlamento a dizer que tudo isto tem de mudar e isso basta-nos. E certamente alguma razão há de ele ter, para conseguir aparecer nas notícias todos os dias, como acontece desde que o vimos aparecer pela primeira vez.
Senhoras e senhores, façam barulho para o fundamentalismo populista que está na moda neste grande final do primeiro quarto do terceiro milénio.
Continua.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Eu vi muitas vezes esses pântanos. Além de serem enormes, são de uma beleza que corta a respiração. Considerados área protegida, proíbem, obviamente, a instalação de trailers. Mas estes gajos representam o que América tem de pior. Ai é proibido? As proibições são para as ditaduras. Embora instalar os trailers, pessoal.
[2] OS DEAD HEADS eram, inicialmente, os admiradores incondicionais dos GRATEFUL DEAD por causa de Jerry Garcia, a quem chamavam Captain Trips por causa dos seus solos incríveis de guitarra. Agora que Jerry morreu, continuam a seguir os GRATEFUL DEAD pelo prazer puro e simples de apupar furiosamente quem quer que seja que se atreva a pegar na guitarra por ele. Andam todos de cabelo comprido e de T-shirts psicadélicas. Não se lavam. Numa sala cheia de gente, reconhece-se bem o Dead Head que lá foi parar sabe Deus como.
[3] Lembram-se, ao menos, desta banda? Capturou de tal forma o imaginário americano que até aparece nos filmes pornográficos. São três músicos de barba até ao umbigo e uma preferência estranha pelos instrumentos de sopro. Ainda mexem.
[4] Como é evidente, não quer dizer que cacem todos os patos que tentam caçar. O falhanço no tiro proporciona-nos é minutos de palavrões e insultos como raramente se usam na vida normal. You cocksucker bastard!
[5] “Com Deus do nosso lado”: toda aquela gente diz isto quanto planeia os seus piores golpes. Depois não os executa, mas só o excitex…
[6] Muito provavelmente, também ele estava implicado em qualquer coisa que permitia uma chantagem terrível por parte de Donald Trump, ou mesmo pelo seu chefe directo, o senhor Vladimir Putin.
Durante a pandemia, a generalidade dos jornalistas da RTP, na linha da imprensa mainstream, teve uma atitude deplorável de seguidismo, em violação dos princípios deontológicos, em apoio a uma narrativa oficial, contribuindo para menosprezar, ostracizar e perseguir todos aqueles que, mesmo de uma forma científica, pretendiam introduzir racionalidade a uma crise sanitária. Já muito escrevi sobre esta matéria – e desconfio que venha a escrever mais.
Mas ontem lembrei-me de um lastimável “debate” da RTP, em 2 de Fevereiro de 2021, num programa intitulado “É ou não é?”,
E lembrei-me porque foi moderado pelo jornalista Carlos Daniel – e que ontem esteve presente na apresentação do mais recente livro de Gustavo Carona intitulado Olhem para o Mundo com o coração. Jornalismo oblige: respirei fundo e fui ouvir a louvaminha de Carlos Daniel à obra. Temi tudo, mas esperando pelo menos coerência. Mas não: descobri hipocrisia.
Mas enquadremos a coisa. Recuemos a 2 de Fevereiro de 2021 e ao suposto debate que deveria confrontar as diferentes visões da comunicação e da desinformação em pandemia. Quem esperasse um verdadeiro debate, perdeu logo a esperança pelo naipe de “escolhidos”: o antigo ministro socialista Correia de Campos, o consultor de comunicação Rui Calafate, o assessor de imprensa Rui Neves Moreira, os médicos Ricardo Mexia, Gustavo Carona e João Júlio Cerqueira, a psicóloga Marta Moreira Marques e o jornalista Paulo Pena, que está para a desinformação como o Milhazes para a Rússia.
Nesse programa, que deveria estar exposto nos anais do Jornalismo, no sentido de ser o paradigma daquilo que se deve evitar, não houve um – um único – entre os oito convidados que destoasse uma vírgula da narrativa, que mostrasse uma visão diferente, que clamasse por uma maior transparência na informação oficial (já repararam que o PÁGINA UM foi o único jornal que, por exemplo, quis saber dos registos da mortalidade nos lares, estando o caso em Tribunal Administrativo?), que defendesse a necessidade de se esclarecerem os conflitos de interesse dos intervenientes, que enquadrasse a pandemia num contexto de crise sanitária onde coexistiam outras variáveis valências (incluindo de saúde pública a curto, médio e longo prazo).
Nada disso. Ali, sob a batuta de Carlos Daniel, naquilo que falsamente se chamou debate, não apenas chutaram para fora quaisquer visões diferentes, como se meteu tudo e todos no mesmo saco. Tudo foi, se fugisse da linha oficial, e sem direito a opinar, catalogado como desinformação e teoria da conspiração.
Ao minuto 58:03, Carlos Daniel resumiu que tudo aquilo que não seguisse a estratégia oficial – que, por exemplo, em Portugal resultou em quatro anos consecutivos de excesso de mortalidade, sobre a qual já nem o desplante oficial culpa a covid-19 – era “ignorância colectiva que se alimenta com estas notícias” [leia-se, redes sociais], e mostrava então o seu receio de que o “negacionismo” pudesse “fazer caminho”.
As intervenções dos médicos Gustavo Carona e José Júlio Cerqueira são, se ouvidas hoje, autênticos compêndios de mentiras, intolerância e absurdos embandeirando abusivamente a Ciência. E tudo sem qualquer contraditório. E com um jornalista como responsável por este “banquete”. Quem quiser pode ainda assistir a este falso debate promovido, enfim, por um jornalista.
Gustavo Carona, Carlos Daniel e Pedro Abrunhosa, ontem no Porto.
Dois anos e meio depois, não me surpreenderia assim que o jornalista Carlos Daniel, se fosse coerente, corresse a louvar um indivíduo como Gustavo Carona, e acabar até por, hélas, lhe elogiar a escrita literária. Mas já foi longe demais ao tecer estas considerações finais (a partir do minuto 12:20):
“Em boa parte, a intolerância radica na ignorância. E a ignorância é arrogante, como nós sabemos. E a ignorância não respeita o especialista, duvida da Ciência, transforma hoje… o influenciador é mais importante que o comunicador, não é? Esta coisa… Eu acho que é muito importante, e se calhar tento terminar com esta ideia, que os jornalistas que cuidam dessa coisa da objectividade e acreditam numa verdade; pelo menos numa verdade provisória, numa verdade quotidiana, não na verdade filosófica… Mas também nos artistas, que têm que ser capazes, como o Pedro[Abrunhosa, que estava ao seu lado]faz tantas vezes, de marcar e dizer o que pensam e dizer como é que acreditam que isto podia ser melhor; mas as pessoas que se expõem com opiniões, com sentimentos, como o Gustavo [Carona] faz tantas vezes; se calhar nós somos três exemplos de pessoas que não têm que ter medo do UNLIKE, não é? Não devemos procurar o LIKE. Nós temos que acreditar que a nossa missão também é, de vez em quando, desagradar a alguns, para que eles entendam que o Mundo não é apenas – como agora parece às vezes ser – daqueles que pensam como nós e nos põem os LIKES. Convém que haja alguém que discorde de nós, porque da discordância nasce o debate – e só do debate pode nascer o tal compromisso que eu falava há pouco. E isto é o mais essencial à Democracia, e, se quisermos, também nesta altura, à paz. E eu acho que, dito isto, apetece-me sublinhar que talvez, mais do que nunca, precisemos mesmo de olhar o mundo com o coração.”
A mim, depois de ouvir as palavras do jornalista Carlos Daniel ditas ontem no lançamento do novo livro de Gustavo Carona – um dos médicos mais alarmistas e intolerantes ao debate durante a pandemia –, e conhecendo a sua postura profissional nos últimos anos, só me apetece sublinhar uma palavra que nem está neste seu discurso, mas que está no seu âmago: HIPOCRISIA.
Entrelaçamento quântico – é o que aparenta atravessar as eras naqueles tapetes de areia da Mesopotâmia, uma impossibilidade particular de diluir os poderes, equilibrar águas, que borbulham ou se separam, simplesmente porque aquilo que em cima está logo faz algo ficar em baixo, e não importa quantas vezes façamos a medição do evento.
Dir-se-ia que todos aguardamos novo sacrifício de um carpinteiro em sandálias. Alguém que diga algo tão ultrajante como: amai-vos uns aos outros – e, em seguida, dê o corpo a esse manifesto.
Mas hoje, com tantos manifestos e tantos corpos a manifestarem-se, tantos homens que se fingem outra coisa, repararíamos?
Dir-se-ia que aguardamos que as deusas marquem a linha no tapete de areia – e se não se portarem bem, tiramos os brinquedos aos meninos; paus e pedras têm um raio de acção limitado.
Entretanto, sempre segue um apocalipse sazonal, daqueles sem graça nenhuma, que nada tem a ver com as promessas reveladas há milénios (a programação habitual segue dentro de momentos).
Menos.
Menos bom senso, e mais areia na boca, que nos sobra a sede, e as sandálias já não nos protegem, nem de nós. Por cá, a chuva cai já pesada – e quem gritou lobo berra-nos aos ouvidos que o mundo é perigoso.
A Joana bateu com o bastão no chão, a Catarina (furtada a mais conhecimento sobre o tema) proclamou a sua aliança com os homens que têm inveja do útero.
O mundo está reduzido a estes bastões, a estes grãos de areia, a tempestades pouco férteis que enevoam a vista e na verdade, creio que estamos todos a pagar a factura das clausuras “voluntárias”.
Sugiro que se alinhem todos em formação num descampado, com uniformes mais ou menos equivalentes, talvez um capacete (paus e pedras), a quem mais caiba um elmo talvez, e corram de frente uns contra os outros. Berrem! Berrem muito desde dentro da alma, berrem com força por aquilo em que acreditem e choquem de frente, de peito aberto (paus e pedras).
Depois contem os mortos – e quem tiver mais vivos ganha. Serão vivos cansados que vão dormir mal o resto das vidas e, cansados, não mais guerrearão.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A Estrutura Genómica Humana foi realizada pela primeira vez por James Watson Francis Crick. Não obstante, a contribuição de Rosalind Franklin para a descoberta da dupla hélice do DNA fora essencial, mas faleceu sem obter o merecido reconhecimento. Há mais de 20 anos pensávamos que tínhamos nas mãos os segredos da vida e as suas doenças. Elas poderiam ser enunciadas pelos genes que encontraríamos desde o embrião, e havia a esperança de que, por manipulação genética, as poderíamos resolver.
O entusiasmo dos biólogos sobrepunha-se às preocupações éticas que aí advinham. Ao longo do tempo fomos percebendo que este raciocínio não se adequava à realidade. E hoje, estamos a perceber que as crenças são mais importantes que os genes. Mais do que o código genético, é o código postal que importa, como escreveu Van Der Kolk num livro publicado em 2014.
Desde então, tem-se acumulado evidências de que a saúde e a esperança de vida dependem mais da cultura e das crenças que nos foram transmitidas em criança do que a mensagem codificada nos genes. Na ordem do dia, já não está a Genética, mas a Epigenética. O que nos diz a Epigenética? Diz-nos que os genes condensados na cromatina presentes nos cromossomas, só se activam ao receber informação do ambiente.
A Primazia do Ambiente revela-nos que a informação que controla a biologia começa com os sinais do meio envolvente, que por sua vez, controlam a produção das proteínas reguladoras do ADN sendo essas proteínas que determinam a actividade dos genes. A heresia de Howard Temin, quando descreveu a transcriptase reversa, mecanismo molecular através do qual o ARN poderia ser convertido em DNA, o que implicou o seu descrédito na época, ao desafiar a comunidade científica e os seus dogmas. Posteriormente, Howard Temin é agraciado com o Prémio Nobel pela sua descoberta, a transcriptase reversa.
Afinal, não são os genes que nos fazem como somos? Os genes servem apenas para a reprodução das células. Por exemplo, as células enucleadas (núcleo retirado para extração do DNA) conseguem sobreviver e realizar todas as suas funções durante aproximadamente 2 meses, mas não têm capacidade para se reproduzir. E, se agora, descobríssemos que o sistema reprodutor da célula é o núcleo e o seu cérebro a membrana? As membranas das células eucarióticas são constituídas por diversos tipos de límpidos que regulam e coordenam a entrada e saída das substâncias da célula. Ou seja, o Sinal Ambiental é transmitido à membrana, que aciona as proteínas reguladoras do DNA no núcleo, sendo este traduzido em RNA e novamente em proteína.
Nós pensávamos que os genes determinavam a vida humana condenando-nos à prisão da hereditariedade, mas hoje sabemos que, os estímulos do meio ambiente que nos rodeia tem mais influência sobre nós do que os genes. O ecossistema é determinante na vida dos seres vivos e nos seus processos comunicativos de desenvolvimento. No caso das células, os estímulos agem sobre os receptores localizados na membrana citoplasmática, de modo a que esta controle a actividade das proteínas e, assim, possa alterar a ordem estabelecida no núcleo.
No caso do organismo, o meio ambiente também influencia os receptores que são extremamente complexos: o tacto, os receptores da dor e os pequenos fusos que assinalam a tensão muscular, os receptores que se alojam no nariz e na boca. As ondas sonoras e visuais que chegam ao cérebro depois de descodificadas por pequenos órgãos que se encontram na periferia do corpo, como os ouvidos e os olhos. No fim, é o cérebro que organiza todas estas informações, antes de as enviar coordenadamente, como se fosse um comando, a todo o organismo.
Paremos agora para pensar: o comando do cérebro para o organismo destina-se a uma acção coordenada com vista a um objectivo, tal como: fugir, lutar, deslocar-se, procurar algo. Pode ser uma simples reacção imediata ou alguma coisa que foi analisada e pensada anteriormente. Palavras, hábitos aprendidos e memórias bem estabelecidas contribuem para essa acção coordenada. Imaginemos, se, descobríssemos que o que pensávamos ser o cérebro humano, fosse apenas o intérprete e coordenador do processo semiótico (sinais) do coração?
Na Universidade de Nova Iorque, Thomas Jefferson demonstrou pela primeira vez, através da tecnologia computadorizada de imagem, que o coração é revestido por uma camada fina de neurónios e mantido pelo cérebro através de uma intrincada rede de nervos. Além disso, o órgão cardíaco tem o seu próprio sistema nervoso intracardíaco (ICN) para monitorar e corrigir quaisquer distúrbios locais na comunicação entre os sistemas do corpo.
Será que eu penso com o coração? Poderá o coração ligar-me ao universo de possibilidades infinitas cujas limitações advém das nossas próprias crenças? Já Protágoras, sofista, na Grécia Antiga, referia que o Homem era a medida de todas as coisas.
J. L. Pio de Abreu é psiquiatra
Maria João Carvalho é filósofa com pós-graduações em Biologia, Ciências Cognitivas e Economia Social
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Desde Setembro, de uma forma mais incisiva e sistemática, o PÁGINA UM tem dedicado, mesmo com parcos meios, uma especial atenção aos contratos públicos, incluindo as autarquias e sobretudo a Administração Pública, com uma secção própria: Res Publica. De uma forma simplista, olhamos para as despesas – e a forma como (não) se cumprem as regras da transparência, da contratação pública e da boa gestão da res publica – que ficaram consignadas, algures, num Orçamento de Estado, quer tenha sido ou não classificado como pipi.
Os Orçamentos de Estado são, como se deveria saber, e de uma forma também simplista, complexas folhas de cálculo, onde se coloca, de um lado, a despesa previsível – e que se deseja ser possível fazer –, e do outro lado, a receita que um Governo sente ser possível sacar dos contribuintes. Mas aprovado com maior ou menor dificuldade o Orçamento do Estado, o bom jornalismo sabe de antemão o enxame de interesses que por ali pululam. E é aí que o bom jornalismo, como defensor do interesse público e como um dos pilares da democracia, se deve mostrar. Sem tibiezas. Com ousadia. Sem medos. Com coragem. Sem ser pipi. Com tintins. É isso que o PÁGINA UM se esforça por fazer.
Embora a má gestão dos dinheiros públicos não seja propriamente uma surpresa – o PÁGINA UM não descobriu, com a nova secção que criou, práticas sobre as quais nada se sabia ou nada se desconfiava –, pessoalmente tem-me causado estupefação a dimensão das irregularidades, dos despesismos e dos expedientes onde tresandam combinações e campeia a corrupção moral, a mãe da corrupção financeira. Quer em contratos de milhões de euros quer em contratos de poucos milhares de euros, encontram-se esquemas, quase sempre onde os ajustes directos – aqueles que se combinam por telefone, por e-mail ou à mesa de um restaurante. E isso é o que facilmente se pressente na documentação presente no Portal Base, e onde estão ausentes, em muitos casos, cadernos de encargos e outros elementos procedimentais numa clara tentativa de obscurantismo.
Acredito que haja gestores impolutos e instituições impolutas, mas começo a pensar que, daqui a nada, tenho de me investir de um qualquer Lancelot ou Percival para encontrar o Santo Graal. Isto porque, hélas, até naquela implacável máquina do Estado que, imune a sentimentalismos, nos sequestra o dízimo de contribuintes, mais as moras por demoras ou as multas por esquecimentos (mais ou menos negligentes), acabamos por encontrar os males de Frei Tomás: prega rigor, pratica vícios. Os contratos por ajuste directo, 17 feitos desde 2017, por um subdirector-geral dos Impostos (chamemos assim por simplificação), em benefício de uma mesma empresa, com claros e evidentes sinais de combinações à margem da lei, mostram assim o pântano em que vivemos. Sobretudo porque o Ministério das Finanças nem sequer se julga no dever de comentar ou agir.
A causa deste silêncio, e de tantos outros silêncios, advém da assumpção (justa, diga-se) de que hoje a imprensa mainstream é formada sobretudo – e exceptuando casos cada vez mais raros e, por minoritários, sem força nas redacções – por jornalistas pipis, ademais comandados por directores (e directoras) sem tintis, no sentido metonímico do termo (aviso já os wokistas) de ausência de coragem e de falta de ousadia. Se a imprensa de massas não fala, não existe. E os políticos e as empresas agora sabem como, com certas massas e manhas, “silenciar” a imprensa mainstream.
Não tenho dúvida alguma que, até há décadas, e falo pela minha experiência jornalística, mais de metade dos casos denunciados pelo PÁGINA UM seriam manchete ou primeira página na generalidade da imprensa mainstream, ou teriam eco em follow up (seguimento). Em alguns casos, teriam consequências para os visados. Mas o jornalismo de hoje não é um verdadeiro jornalismo. É um sucedâneo adulterado, que confiscou a denominação. No jornalismo de hoje já não estão jornalistas nas cúpulas, nas chefias: estão sobretudo marketeers e directores comerciais travestidos de jornalistas encarteirados mas preocupados com as suas vidinhas, as suas casas de férias, as propinas dos filhos no colégio privado e as remodelações da cozinha (se fosse da biblioteca, seria menos mau; seria sinal de alguma erudição).
Hoje, o jornalismo de investigação e de denúncia – que é a essência pura da imprensa – está varrido das redacções, e dá-me uma dor de alma perceber como as parcerias comerciais com autarquias, Estado e empresas privadas estão a matar o jornalismo – e de uma forma pornográfica, sendo os directores e directoras de alguns órgãos de comunicação social os protagonistas, de perna aberta. Hoje, há temas e escândalos que jamais serão notícia. Hoje, o homem que mordeu o cão só será notícia se o homem que mordeu o cão não tiver uma parceria comercial com órgãos de comunicação social. Hoje, perdidos os tintis, quase só nos resta um jornalismo pipi.
Hoje, a promiscuidade entre a política – nas várias acepções do termo – e o jornalismo (e certos jornalistas) está ao nível do pântano – pântano não, que é ecossistema rico; corrigido assim: cloaca. Nos anos 90 e na passagem do século, quando colaborei, entre outros, no Expresso e na Grande Reportagem, sempre senti as pressões, que são habituais, em assuntos delicados sobre os quais escrevi, mas havia então alguma decência: as chefias não vergavam ou se o faziam não era evidente. Em 2006 senti, pela primeira vez, que já vergavam e não tinham pejo, aquando de um lamentável episódio no Diário de Notícias protagonizado por um subdirector, que não passava de um agente socialista, tanto assim que poucos meses depois era vê-lo já como assessor de um ministro socrático, e nunca mais o vi a sair da esfera de influência do Partido Socialista. Esse caso contribuiu, aliás, para o meu afastamento do jornalismo durante cerca de uma década.
Mas, olhando agora para esse episódio de 2006, acho que piorámos incomensuravelmente. E não foi apenas com a pandemia. Hoje, há notícias que simplesmente são engavetadas ou nunca recebem luz verde. Ou então são despidas de qualquer polémica, usando-se estilos inócuos e fofinhos. Os próprios jornalistas têm medo, ou são formatados para não se arriscarem no confronto com os poderes instalados, a menos que aqueles estejam em desgraça ou em aparente queda.
Os supostos reguladores (ERC, CCPJ e até, enfim, o Sindicato dos Jornalistas mais um seu apêndice chamado Conselho Deontológico) são hoje instrumentos sobretudo de condicionamento do jornalismo independente, para, através de pareceres e recomendações que não passam de bitates, dar uma capa de impunidade aos infractores, e com a inacção darem uma ideia de que não existem vergonhas na classe. Quanto mais denúncias o PÁGINA UM faz da promiscuidade que se vive na imprensa mainstream, mais ataques recebe dos supostos reguladores.
Veja-se a título de exemplo, duas deliberações da ERC contra o PÁGINA UM (e virão mais) por notícias que até resultaram em processos contra os queixosos na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).
Veja-se ainda o processo disciplinar instaurado pela CCPJ – e por empenhos da sua presidente, Lucília Gago, despeitada por notícias do PÁGINA UM – por mor de uma queixa do almirante Gouveia e Melo por outra notícia que denunciava evidentes (repito, evidentes, e até documentadas) irregularidades no processo de vacinação de médicos não-prioritários contra a covid-19, e que também resultou numa inspecção ainda não concluída (a aberta em Janeiro passado) pela IGAS. A fase de instrução anda a marinar há cinco meses, talvez porque o relator anda a pensar se também deve processar disciplinarmente alguns dos seus colegas da CMTV.
E veja-se também o papel do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas que, em vez de se preocupar com a promiscuidade de “jornalistas comerciais” (onde até se inclui um vogal da direcção do próprio sindicato), anda agora entretido a fazer pareceres, ora para fazer fretes à presidente da CCPJ, ora para criticar o estilo de escrita usado em rigorosas e documentadas denúncias sobre contratos públicos do Hospital de Braga.
Aliás, este último caso é exemplificativo sobre o desplante que agora impera: é tão grande o à-vontade das falcatruas e das irregularidades e ilegalidades que os seus autores sentem que até conseguem, com bons empenhos, censurar e difamar um jornal que, por independente, ainda grita que ‘o rei vai nu’. E o facto é que conseguem, mesmo não necessitando sequer de provar que o jornalista mentiu.
Bem sei que a vida nunca esteve fácil para o jornalismo independente, e que melhor parece estar para os jornalistas pipi sem tintins. E quando criei o PÁGINA UM sabia que um jornalismo independente, fracturante, sem parcerias comerciais e ideológicas nem agendas obscuras, e ainda mais denunciando as promiscuidades da imprensa mainstream, estaria sujeito, mesmo entre os seus pares (ou sobretudo usando estes), a actos de boicote, de censura e de difamação – por exemplo, anda por aí um professor universitário de Coimbra na área da Comunicação Social, com excelentes ligações aos mentideros, a esgadanhar-se para encontrar “provas” da ligação do PÁGINA UM à extrema-direita. E prevejo que se não as encontrar, cansando-se, as tratará de inventar… ou de fazer mais uns pareceres “mui isentos” sobre as minhas “tropelias deontológicas” ali para os lados do Chiado.
Hoje, bem sei que algumas das minhas notícias, mesmo com o genuíno espírito daquilo que deveria ser a imprensa, podem cair em saco roto. Podem politicamente ser ignoradas, porque apenas lidas por pouco mais de 20 mil pessoas, como esta, sobre os 17 ajustes directos para limpezas do subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira. Podem jornalisticamente ser ignoradas pela imprensa mainstream.
Mas prefiro continuar neste nicho do que, por exemplo, fazer o jornalismo ao estilo do making of do Orçamento do Estado publicado no Público na sexta-feira passada por uma directora-adjunta e por uma redactora-principal (não foram jornalistas de uma qualquer secção de social ou de vida mundana), onde se teceram pérolas deste lustre (negritos meus):
Mas há sempre coisas de última hora. A equipa das Finanças dorme muito pouco nos dias que antecedem a entrega do Orçamento na Assembleia. Na véspera da entrega, o ministro dormiu seis horas – os assessores obrigam-no, não o querem com olheiras no dia da apresentação solene ao país, o momento alto do ano nas Finanças, um gran finale a que grande parte dos funcionários da casa assistem. Mas se dormiu seis horas na noite antes da conferência de imprensa, na antevéspera Medina dormiu tão pouco que ainda acabou por fazer uma sesta no ministério.
Os dias que antecedem a entrega “têm 25 horas”, segundo um dos “homens (e uma mulher) do Orçamento”. Há uma equipa permanente que, tal como o ministro, dorme muito pouco. Foi com essa equipa que o ministro se reuniu no princípio de Setembro para fazerem um brainstorming fora do ministério a um sábado de manhã, 8 de Setembro, no Bairro Alto.
Foi uma reunião fora do horário de trabalho, mas o objectivo era pôr os homens do Orçamento a pensar “fora da caixa”.
(…)
Antes do gran finale que é a apresentação ao país, o ministro vai ao Parlamento entregar a proposta.
Mas este momento não é exactamente o fim. O Orçamento foi entregue no Parlamento, onde pode sofrer alterações. Fernando Medina rompeu com uma tradição de anos e anos em que o Orçamento chegava a altas horas da noite ao Parlamento e inaugurou os “orçamentos diurnos”. Desde o ano passado que passou a ser entregue aos deputados à hora do almoço, o que permite fazer a conferência de imprensa em que o explica ao início da tarde. É uma questão de “organização do trabalho”, defende. Foi o que “combinei com o primeiro-ministro e com a ministra da presidência”. “Queria fazer mesmo isto.”
Quem escreve isto, nunca, jamais, escreverá, ou quererá que se escreva, em simultâneo, sobre estranhos contratos na Autoridade Tributária e Aduaneira em negócios de milhões com uma empresa de limpeza. Ou não quer que se escreva sobre as dívidas ao Estado de empresas de media, como as da Trust in News e da Global Media. Ou não quer que se escreva sobre… enfim, sobre muita coisa. E mesmo que batam muito no peito sobre o jornalismo e a independência do seu jornalismo, nada mais fazem do que jornalismo pipi sem tintins. E isto é a morte do jornalismo.
Por isso, caros leitores (onde se incluem, obviamente, as leitoras, mesmo se caras), apenas peço uma coisa: no dia em que me virem a escrever assim, sobre o poder, avisem-me, porque o PÁGINA UM terá de ser encerrado por ter perdido os tintins e só já conseguir fazer um jornalismo pipi.
E agora, se não se importam, o resto da tarde será dedicado exclusivamente a tratar de questões processuais do PÁGINA UM relacionadas com pedidos de informação ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos e de alguns casos em curso no Tribunal Administrativo de Lisboa, incluindo um em que a CCPJ é réu. A notícia sobre a “fantochada” (será mesmo esse o termo que usarei no título, avanço já) do arquivamento do processo disciplinar ao Doutor Filipe Froes terá de ficar para amanhã… Já agora, embora fosse desnecessário: baseia-se em documentos.
Por estes dias, vou enchendo a paciência para lá do limite do saudável com histórias da carochinha e narrativas de virgens inocentes que já não consigo mesmo suportar. Sabemos já que uma das grandes vantagens de Israel nesta ocupação da Palestina, para lá do suporte financeiro e bélico dos Estados Unidos, é deter um departamento de marketing, infinitamente superior ao dos adversários, que serve para plantar histórias um pouco por todo o globo.
Por exemplo, a CNN portuguesa entrevistou o embaixador de Israel e, pela mesma altura, um político representante da Palestina. Os discursos não poderiam ser mais diferentes. O primeiro, com um inglês impecável, dirigia-se ao pivot com um: “João, você vive em Portugal, é muito afortunado por isso, está em segurança. Agora imagine que ia ao NOS Alive, e, de repente, entrava por lá um grupo armado que começava a matar toda a gente!”
O João (Marinheiro) lá foi digerindo a coisa, e entretanto mete a pergunta fatal: “mas agora o que significa o direito de defesa de Israel?”. Nesta altura, já as mortes palestinianas tinham ultrapassado as baixas israelitas. O embaixador foi rodeando, rodeando, e dizia que não podia revelar os planos, mas que, depois disto, nem o Médio Oriente voltaria a ser o mesmo, nem o Hamas teria nova oportunidade de fazer algo semelhante. Quando o “João” lhe perguntou como é que iriam evitar as mortes civis, ele disse que iam fazer o melhor possível para salvar inocentes, porque, como se sabe, eles já estão lá para escudos humanos de qualquer forma.
Portanto, com um jargão fantástico e a tranquilidade de quem nos tenta vender uma Bimby, o embaixador israelita foi apresentando o plano para terraplanar Gaza. E muito de vós foram ouvindo aquilo e pensando que, enfim, é natural, afinal, o Hamas matou mulheres e crianças inocentes e jovens num festival. Se agora dois milhões de pessoas, que estão presas desde que nasceram, tiverem de pagar mais um bocadinho, tudo bem, compreende-se. É a clássica lei de talião: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, mas transformada na versão ’olho por vários olhos” et cetera.
Já o representante da Palestina, munido de um inglês mais rudimentar, dizia algo de puro e simples senso comum: se Israel viesse com uma proposta para os dois Estados e aceitasse negociar, o problema desaparecia. O conflito, o Hamas, o radicalismo, as mortes. E acrescentou, olhando para João Marinheiro: “acha que nós não gostamos de paz? O conflito começou quando eu era criança, e agora, quase a chegar à reforma, ainda não tive um dia de paz.”
O primeiro problema é que não há negociação, não é? Nem agora, nem em momento algum deste século. Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelita com mais tempo no cargo (já vai na sexta vez), teve todas as oportunidades de trabalhar na opção que facilitaria a paz, mas o que fez foi incentivar colonatos e aumentar a repressão. Há entrevistas de Netanyahu nos Estados Unidos, no final da década de 70, onde dizia que o senado norte-americano não podia permitir a opção dos dois Estados porque seria injusto para o povo judeu. Nunca este homem quis outra coisa que não fosse expulsar os árabes das suas casas.
Quando se fala do Hamas como a origem de todos os males, damos um passo maior no índice de estupidez do que aquele já tínhamos dado com a “origem do conflito na Ucrânia em 2022”: a Faixa de Gaza, que era controlada pelos egípcios, começou a ser povoada pelos palestinianos expulsos das suas casas depois da primeira guerra israelo-árabe, em 1948.
Não sei se estão a perceber o que vem a seguir. Já os palestinianos viviam em campos de refugiados ou em zonas militarmente controladas há quatro décadas quando o Hamas foi fundado, no final da década de 80. Portanto, não é a coisa mais estranha do Mundo ver o surgimento de um movimento radical quando prendemos pessoas durante 40 anos. Bem sei que, pelos relatos do Antigo Testamento, não são tantos como os 400 anos dos judeus sob o jugo dos egípcios, e que só terminou de forma nada pacífica lembremo-nos, com o Êxodo de Moisés – mas sempre são 40 anos, não é?
E já agora, apesar de não ser estranho, convém lembrar sempre que Israel achou uma óptima ideia o aparecimento do Hamas e até ajudou, porque lhes dava jeito que fizessem uma perninha na luta com a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.
Bem sei que já falei disto, mas parece-me algo inacreditável que se repitam horas e horas a fio em horário nobre, sem explicar por um minuto que seja que esta gente não nasceu nas árvores, e que os sentimentos de ódio a Israel também não apareceram durante aquele concerto. Sem enquadrar as acções no contexto, estamos só a ter uma discussão de surdos sem qualquer interesse e puramente assente em ideologias.
Entre 2008 e 2020, nos diferentes conflitos entre Israel e palestinianos, estimam-se 5.600 mortes e 115.000 feridos para o lado árabe, e do outro lado, 250 mortes e 5.600 feridos.
Entendam-me, não quero com isto dizer que 250 vidas valem menos do que 5.600. Digo é que, quando se mata 22 vezes mais, é normal que, aqui e ali, vão aparecendo movimentos radicais assentes em ódio. Se pelo menos percebermos esta parte, já conseguimos discutir o conflito para lá dos inocentes num festival que foram atacados por bárbaros. É verdade, mas não é toda a verdade.
Só nesta guerra, a tal onde Israel teve mais mortos do que nos 20 anos anteriores, ao fim de nove dias de bombardeamentos em Gaza já morreram quase 3.000 palestinianos e há 10.000 feridos e quase um milhão de deslocados do norte de Gaza.
Segundo as Nações Unidas, estima-se que mais de 1.000 pessoas ainda estejam presas (mortas provavelmente) nos escombros. A resposta, o tal direito de defesa que os Estados Unidos apregoam no seu périplo pelos países vizinhos, é assim, há 40 ou 50 anos, ir ao pátio da prisão onde permitem que os palestinianos sobrevivam, e despejar bombas em cima de pessoas que não têm para onde fugir. Como não odiar quem faz isto?
Que poderá acontecer quando a invasão terrestre começar? Espera-se que os vizinhos fiquem a assistir? A Europa pede que a força não seja excessiva (o tal matar mas com cuidado), os Estados Unidos voltam para a sua guerra preferida (a Ucrânia tem de esperar um bocadinho), e nós, que andamos a apoiar o enfraquecimento de uma super-potência, voltamos a viver o problema de um Mundo controlado por apenas um país sem qualquer contra-poder.
Depois da covid-19, da Ucrânia e dos juros da Lagarde, o que precisávamos mesmo era de mais um massacre em Gaza e eleições norte-americanas. E pensava eu que 2020 tinha sido um ano de merda.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Temos pois um Portugal com gente com má saúde. A saúde oral é um estado calamitoso. A saúde mental é uma amargura. A nutrição é a rainha de uma epidemia multipatológica, que envolve os excessos de hidratos de carbono, a falta de verdura, a má confecção de alimentos, e claro, a obesidade como fonte da diabetes, da hipertensão, da obstipação, da dor nos joelhos, das doenças psiquiátricas, das doenças inflamatórias intestinais.
A falta de exercício, a ausência de incentivo ao desporto, quer escolar quer nas instituições, carrega consigo inúmeros problemas como ausência de incentivo à elegância postural, ausência de formação para carregar pesos, ausência de conhecimento mínimo sobre as consequências de uma má cadeira, de um computador mal colocado, um esforço mal doseado ou medido, uma tarefa em posição viciosa. As baixas por dores são inúmeras, as de inadaptação psíquica estão a aumentar, os males da alma, e as teimosias dos trabalhadores também não ajudam.
Retrato do Midjourney imaginando um hospital caótico em Portugal.
Tudo isto, que é do domínio da prevenção, da educação e da formação pré-hospitalar; aquilo em que o Partido Socialista menos tem investido, e que mais lucros traria ao país e à população, foi até agora deixado ao Deus dará – Diz que Deus diz que dá, mas para já… demagogia.
Com toda esta patologia, os doentes procuram diagnóstico e tratamento e poderiam recorrer a vários lugares – consultórios médicos (como em França e no Luxemburgo, onde o dinheiro segue o doente), clínicas, centros de saúde, medicina de proximidade.
Esta podia ter a possibilidade de activar meios complementares de diagnóstico céleres e também próximos. Podia ainda ter facilidade de encaminhar para resolução em clínicas aquilo que não é grave, mas é urgente pois condiciona dor, grande desconforto, apesar de não colocar a vida em risco.
Esta opção de não usar recursos privados ou das misericórdias, ter construído um cem número de dificuldades à pratica livre da Medicina e Enfermagem, foi a estratégia socialista contra os pequenos. Um tema que não vem ao caso, mas que importa recordar: matar a farmácia, a loja, a mercearia, o consultório é uma ideologia em favor dos negócios, dos grandes donos do mundo actual, que tem certificações, taxas, exigências ao nível do absurdo, entidades e administrações a comprometer a via aérea dos pequeninos. Claro que não respiram.
Esta realidade veio com a estratégia de reduzir camas, destruir a assistência pública de proximidade – os tribunais nos Concelhos, os hospitais das comarcas, os postos de atendimento permanente e as escolas das aldeias. Em favor de uma escala maior, que tem obviamente vantagens e desvantagens. Em Saúde as desvantagens estão a descoberto – não tendo onde ir vai-se à urgência. A urgência de hoje é como ir “ao Inter” ou ao Pingo Doce.
Os próprios doentes, desprovidos de qualquer limite, utilizam indevidamente um recurso que agora começa a queimar–lhes o futuro. Fechando urgências grandes, vai morrer primeiro “gente pequena”. A “gente grande” tem recursos para outros voos, numa fase inicial. É por isto que o Estado deve ter estratégias, perceber os sistemas reguladores, as lideranças que identificam os problemas e os tentam equilibrar.
Os primeiros passos para reduzir este afluxo desmesurado está na coabitação público-privada, na colocação de taxas de utilização, na construção de melhores fluxogramas de atendimento e protocolos de orientação. Formação de médicos para urgência é importante também.
O fim das parcerias público-privadas (PPP) foi uma catástrofe para Loures, Vila Franca de Xira e Braga. Os centros hospitalares reduziram camas, aumentaram listas de espera, afastaram dos cuidados milhares de doentes. A aposta nos cuidados continuados é uma das grandes falácias que empurra os doentes para unidades onde não há qualquer tratamento de situações agudas, retirando o cuidar das famílias, transferindo para “lares caros” internamentos eternos e nas mãos de negócios, esgotando recursos válidos do lugar onde deviam estar.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O Orçamento de Estado é, indiscutivelmente, um dos principais documentos políticos, elaborado pelo Governo, para posterior análise e aprovação da Assembleia da República.
Nele são definidas as grandes prioridades do Executivo e é a sua leitura que permite saber, com exactidão, quais as reais prioridades de quem nos governa pois ali são discriminadas todas as verbas destinadas a cada um dos sectores da nossa vida em comum.
A leitura atenta e a análise profunda, são uma obrigação óbvia dos políticos de todas as tendências, mas também dos empresários, sindicalistas, economistas, jornalistas e, de um modo geral, de todos quantos se preocupam com o dia-a-dia do País.
A verificação, até ao mais ínfimo pormenor, que pode até ser considerada científica, é uma obrigação para quem tenha como intuito uma carreira política.
Até porque, é sabido, o Orçamento de Estado é analisado, com toda a minúcia, também na Comunidade Internacional, em geral, e na Europeia em particular.
A Oposição espera, com ansiedade, a divulgação do documento.
De um modo geral para poder demonstrar as divergências que tem com o Executivo na escolha dos principais objectivos e nas verbas a atribuir a cada área.
A população, nomeadamente a mais esclarecida, fica a aguardar as explicações do Governo, que tentará provar o rigor e a correção das suas opções, mas também, as críticas da Oposição indicando eventuais más escolhas nas preferências do Executivo.
A apresentação do Orçamento para 2024 não fugiu à regra.
Logo após a entrega na Assembleia da República, e distribuído pelos Grupos Parlamentares, o Orçamento começou a receber todo o género de críticas.
A primeira surpresa veio da velocidade com que os deputados conseguiram ler um documento extenso e que, como ensinam na Faculdade, “contém três documentos essenciais: a Lei do Orçamento do Estado, o Relatório Descritivo e os Mapas de Previsões”, sendo que “cada um destes documentos desempenha uma missão fundamental para a rigorosa e organizada gestão das finanças nacionais, sendo alvo do escrutínio e análise das diferentes instituições democráticas. O conjunto de todos os documentos, com diferentes graus de detalhe, reúne não só informação analítica relacionada com o Orçamento, mas também várias definições estratégicas e políticas que estão na sua base.”
Nada que deputados, e líderes políticos, não tenham conseguido apreender em poucos minutos.
Ouvi, atentamente, os representantes de todos os partidos na Oposição.
De um modo geral foram muito críticos aos autores do documento e prometendo, desde logo, um inócuo voto contra a aprovação do mesmo.
Inócuo porque, tendo o Partido do Executivo uma maioria absoluta no Parlamento, o Orçamento será, evidentemente, aprovado.
Ainda assim, ouvi com interesse e toda a atenção, as críticas sendo que, com muitas delas, estava de acordo.
Aguardei, com pouca expectativa, reconheço, a análise do líder da Oposição que, por enquanto, ainda é o Presidente do PSD.
Por absoluta deficiência da qualidade da imagem do meu televisor, apareceu um catraio, vestido com um fato de treino, com um palito ao canto da boca, que definiu , deste modo, o documento:
“É assim uma espécie, mais uma vez, de um orçamento pipi, de um orçamento que aparece bem vestidinho, muito apresentadinho, mas que é só aparência, é assim muito betinho.”
Os responsáveis de Escolas e Universidades, Hospitais e Centros de Saúde, Polícias e Forças Armadas, Investigação, Cultura, Desporto, Prevenção e Combate aos Incêndios, Transportes Públicos e Justiça ficaram esclarecidos sobre a alternativa ao Governo actual.
Este candidato a Primeiro-Ministro de Portugal já tinha aparecido, há dias, nas televisões, para dar a sua opinião sobre as diferenças políticas entre o Partido Socialista e o Chega.
Dizia o rapaz de fato de treino e palito ao canto da boca, que António Costa e André Ventura eram “um casal de namorados que andavam aos beijinhos um ao outro” só para fazerem ciúmes ao seu Partido.
Como ninguém tem coragem para o impedir de se chegar a um microfone só espero, para bem de todos, que este Governo tenha, no momento do debate sobre o Orçamento para 2025, um outro líder de Oposição e que esse não se veja forçado a descer de um andaime de obras para falar em nome do seu Partido.
Vítor Ilharco é assessor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Ora muito bem, eu conto-vos só esta e depois baixo os braços. Se por esta altura os “comentadores” e “analistas” de Portugal ainda disserem que a América está em crise por causa da guerra na Ucrânia, o que é que eu posso dizer mais? Posso sugerir-vos que não acreditem nas pessoas que supostamente estão ali para vos explicarem todos os movimentos de rotação da Terra em torno do seu eixo, e sei que é uma sugestão muito chata. O pior é que é verdadeira. A nuvem negra que paira hoje sobre a América não é uma invenção de Zelenski. Como se até o movimento de translacção da América em torno do Sol estivesse em risco, o que paira verdadeiramente sobre the home of the free and the land of the brave[1] é o fantasma eterno de Donald Trump. O seu, e o de todos os seus imitadores.
Lembram-se do Jair Bolsonaro?
Jair Bolsonaro, evangélico, indiferente ao COVID, e ex-presidente brasileiro, nem sequer fala inglês. Por isso, não sabemos se alguma vez alguém o acordou das suas fantasias de criança, e lhe revelou a triste realidade. Acontece que, excluindo os analistas políticos especializados em América do Sul, não existe nenhum americano, mesmo entre aqueles que sabem quem é o Neymar[2], que entenda seriamente quem foi o Jair Bolsonaro. E Donald Trump, que é um imbecil autocentrado, também não sabe. Durante quatro anos teve um wanna-be[3] na presidência do maior e mais populoso país da América do Sul, e nunca soube.
Se calhar os seus homens de mão fizeram de propósito para que ele não soubesse, e o facto de Bolsonaro nunca invocar o seu nome em público contribuiu para este jogo de sombras. Imaginem o que Trump poderia fazer se soubesse que tinha um aliado em Brasília. Um homem que, tal como ele, se estava bem a cagar para o ambiente porque o longo prazo não podia ser-lhe mais indiferente.
Como já vos disse, importante mesmo, para Bolsonaro, era o dinheiro vivo[4]. “Querem que eu proteja a Amazónia, porque é o pulmão de todo o planeta? Então porreiro, paguem-me para que eu a proteja!”
Agora imaginem que Donald Trump sabia disto.
Imaginem a aliança entre os dois ditadores, provavelmente negociada em grande secretismo porque o povo continuava estupidamente convencido de que o seu regime ainda era uma democracia.
Vamos lá, Jair, há prioridades.
Importante, mesmo, é envenenar já o tal de rio que corre pelo meio da Amazónia, e a que vocês chamam Amazonas porque não têm qualquer espécie de imaginação. Toda a gente me diz que aquela porcaria está cheia de piranhas. Há vídeos no YouTube em que aparecem uns porcos muito grandes da selva[5] que não passam de uma margem para a outra porque as piranhas os devoram pelo meio. Já vi uns filmes de uma série chamada PIRANHA! São piores do que os tubarões. Assim ninguém ia querer fixar-se ali.
Provavelmente, e com a benção de Bolsonaro, depois de afogadas todas piranhas[6] Trump teria mandado uns quantos batalhões de Forças Armadas para a Amazónia, com instruções para pilharem todas as riquezas da floresta e assassinarem todos os seus índios. A seguir, prontos para a jogada mais difícil de todas, juntavam-se aos colonos e boieiros brasileiros na tarefa árdua de deitarem fogo a todas aquelas malditas árvores com sete andares. “They’ll be met with fire and fury, the likes of which the world has never seen,” lembram-se[7]? Donald Trump adora dizer estas coisas. Agora poderia transformá-las numa realidade fantástica. Tanto fogo. Tanto fumo. Fogo e fúria nunca antes vistos, subitamente acesos como um sinal de alarme por uma floresta equatorial inteira que começou, por fim, a arder.
Os habitantes do mundo inteiro haviam de passar meses a ver auroras boreais nunca antes vistas, o Sol a e Lua a nascerem verdes ou azuis contra um céu completamente branco, seguido de riscas vermelhas, laranja, e amarelas, como aconteceu depois dos dois dias da erupção na Indonésia do vulcão Krakatoa em 1883, com um estrondo que se ouviu até à distância impensável de Alice Springs, mesmo no centro do outback australiano, e com uma violência que ainda perdura enquanto das maiores desde que existem registos. O abalo que esta erupção causou no mundo, todas aquelas cores impensáveis no céu, acabou por chegar à Noruega e levar Edvard Munch a pintar o famoso quadro O GRITO. Todas aquelas cores por trás do homem que grita, misturadas de lampejos de azul que por vezes tentavam repor a normalidade, eram as verdadeiras cores do céu sobre os fiordes.
“Foi como se uma espada de fogo em chamas arrombasse as portas do Céu,” recordou o pintor; “a atmosfera transformou-se em sangue – com línguas de fogo brilhantes – as montanhas ficaram de um azul profundo – entre as cores amarelas e vermelhas – as caras dos meus companheiros tornaram-se amarelas e brancas – senti qualquer coisa que era como um grito enorme – e ouvi, verdadeiramente, um grande grito.”
Pessoal, o Krakatoa era só um vulcão, e a sua erupção foi só de grau seis. Agora imaginem todas as árvores da Amazónia a arder, todas ao mesmo tempo: o Sol e a Lua estariam verdes e azuis durante meses e meses sem fim. O céu havia de tingir-se de laranja, vermelho, amarelo, e algumas brechas de azul, que chegariam até à Islândia, como chegaram as auroras boreais do vulcão. Num deserto qualquer, no alto de qualquer rocha, havia de reaparecer a imagem da Tina Turner rodeada de crianças. E haviam todos de cantar o WE DON’T NEED ANOTHER HERO, porque o planeta inteiro era agora a casa do Mad Max, Deus sabia, e encarregou-a de nos deixar um aviso sem margem para dúvidas.
Todos nós saberíamos que estávamos condenados à morte.
Entretanto, tranches enormes daquela terra incrivelmente fértil haviam de transformar-se em monoculturas intensivas, porque seriam distribuídas por agricultores e criadores de gado americanos. Talvez até fossem duplamente beneficiados nos impostos, em troca de ferramentas e de know-how com os seus pares brasileiros. Não estou a inventar grande coisa. A Amazónia só entrou no rol das enormidades proferidas pelo evangélico no seu último ano de mandato. Bastaria que tanto ele como o Trump tivessem sido reeleitos. Depois disso… bom, entre regimes ditatoriais é assim que se processam as trocas de favores. E, à época, nos dois países, a ditadura era para lá de um projecto. Era uma medida urgente a implementar desde logo, ou então ninguém se entendia. A democracia é o convite ao caos, como toda a gente sabe.
Os americanos podem não saber grande coisa sobre o Bolsonaro, mas foram treinados desde pequeninos para serem optimistas. Esse gajo, os brasileiros já correram com ele, não foi? Nós também corremos com o Trump. Então pronto. O caminho é para a frente, não é para trás.
E agora digam-me, com toda a franqueza: os americanos são umas bestas porque não sabem quem foi o Jair Bolsonaro?
Se calhar são. Mas, mas durante o segundo mandato de Barak Obama, quando eu estava a trabalhar na UMass, cantava gospel na Igreja Africana e fui com eles a todas as manifestações do BLACK LIVES MATTER a que consegui ir. Depois ligava o Messenger, ou chegava fisicamente a Lisboa, falava do BLACK LIVES MATTER e ficava toda a gente a olhar para mim.
BLACK LIVES MATTER?
O que é isso?
Acontece que “isso” foi muito mais importante para os desígnios do mundo do que a sanfona que acompanhou os discursos do Bolsonaro no auge da pandemia. Aliás, foi o início de uma crispação tão profunda que permitiu a eleição de Trump, porque, desta vez, os negros não foram votar. Para quê? Terem um presidente negro estava a virar-se contra eles. Houve um linchamento no Mississipi. Três dias depois, houve outro no Alabama. Embora alinhar na festa, pessoal?
Os polícias brancos, profundamente ressabiados por terem um preto na presidência do seu Grande País, não aguentaram a segunda eleição e divertiram-se a matar a tiro os putos negros que lhes aparecessem ao caminho. Em Cleveland, chegaram a matar a tiro um menino negro de doze anos que andava num parque público a brincar com uma bisnaga. Mataram, mataram, e mataram. Sempre polícias brancos. Sempre vítimas negras muito jovens.
Em última análise, este sangradouro acabou por inspirar um rapaz branco que, aos dezoito anos, recebeu como prenda do pai uma Beretta clássica, toda recuperada, toda a cintilar. Disse aos amigos que ia iniciar uma guerra civil, vestiu um blusão do antigo uniforme da Rodésia, entrou pela Igreja Africana adentro porque sabia que, àquela hora, naquele sítio, o pessoal estava reunido com o pastor a estudar a Bíblia – e, quando abriu fogo, matou dezoito pessoas, incluindo o pastor e a mulher.
Acontece que, desta vez, o pastor e a mulher eram mesmo amigos lá de casa da Michelle e do Obama.
Quando o Obama chegou e se ajoelhou ao lado do caixão do seu amigo assassinado, começou por dizer, “meu amigo, meu querido amigo, a quantos funerais ainda terei que ir, para dizer que o direito a porte de arma não pode ser tão indiscriminado, para que os americanos parem de se matar uns aos outros. E que queres tu que eu diga agora aos americanos?”
E logo a seguir, para grande surpresa de toda a gente, começou a cantar o AMAZING GRACE com a sua voz bem timbrada de quem já cantou muito gospel na vida.
Eu estava a ver aquilo com duas amigas da Igreja Africana, a mesma Igreja onde o puto tinha acabado dezoito pessoas que podíamos ser nós. E, como não podíamos fazer mais nada, cantámos também. Soprano, contralto, e tenor.
Foi por causa do BLACK LIVES MATTER que os fundamentalistas elegeram o Trump. Já andam para aí pretos a mais que querem mandar em nós, topam?
Ficámos a saber que a América rebenta pelas costuras de fundamentalistas, e é por isso que agora todos os políticos têm medo da ordem de acção que o Trump pode dar a seguir.
Falei de alguma coisa que tivesse a ver com a Ucrânia?
Separem as águas, pelo amor de Deus.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] “Casa dos livres, terra dos bravos”: último verso do hino nacional americano.
[2] E o Cristiano Ronaldo, e o Lionel Messi, claro. Mas esses não são brasileiros, por isso não constam para esta triste estatística.
[3] O termo “wanna-be” usa-se para uma pessoa que quer ser igual a outra, portanto usa o mesmo corte de cabelo, a mesma roupa, o mesmo verniz para as unhas, e por aí fora. A desgraçada da Jackie Kennedy teve milhares de wanna-bes. Depois do assassínio do marido em Dallas, andavam todas com o mesmo chapéu e o mesmo tailleur cor-de-rosa que ela tinha vestidos na altura do tiro. Isto é tão comum que até a Michelle Pfeiffer fez de wanna-be da Jackie no dia fatídico de Dallas – e o resto do enredo não tinha absolutamente nada a ver com isso.
[4] Claro que não sabemos quanto desse dinheiro ele meteria directamente ao bolso. Mas não devia ser pouco.
[5] Trump está a referir-se às capivaras. As capivaras não são porcos.
[6] Ah-ah-ah! Como se fosse possível extinguir as piranhas no rio com o maior volume de água do mundo. Pura e simplesmente, mudavam de sítio e ficavam à espera. O que há mais na Amazónia é capivaras.
[7] Na altura era um aviso à Coreia do Norte, mas poderia ter sido a qualquer outro que não fosse a Rússia: “Vão encontrar fogo e fúria como o mundo nunca viu antes!”