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  • Alterações climáticas, Torre de Belém e os 3I do mau jornalismo: incompetência, ignorância e imbecilidade

    Alterações climáticas, Torre de Belém e os 3I do mau jornalismo: incompetência, ignorância e imbecilidade


    Tenho um lema como jornalista: devo escrever para que o meu leitor mais burro me entenda e que o meu mais entendido leitor não me chame burro.

    Isto a pretexto de uma notícia da edição de ontem do semanário Expresso, da autoria da jornalista Carla Tomás, que escreve sobre Ambiente há já umas boas duas décadas – e, portanto, tem mais do que obrigação (nem que seja para si própria) de não transmitir disparates, nem que estes saiam da boca de outros. Excepto se agora os jornalistas forem apenas pés de microfone ou transmissores de narrativas da moda, forçando tudo a ir até às alterações climáticas, como as dissertações do professor Aquiles Arquelau, especialista em Mitologia, que sempre descambavam na Bruna Lombardi.

    gray concrete castle during sunset

    A dita notícia do Expresso, sob o antetítulo de “Crise Climática”, lança a parangona: “Torre de Belém ameaçada por nível do mar e ondas de calor”. E relata o seguinte: “A acelerada subida do nível médio do mar e as cada vez mais intensas e frequentes ondas de calor estão a pôr em risco um dos ícones da cidade de Lisboa, classificado como Património Mundial. Construído no século XVI, o monumento é frequentemente batido pela ondulação em dias de temporal conjugado com a maré alta e corre o risco de ficar inundado no futuro com consequências para a estrutura que sustenta este monumento, isto quando se projeta uma subida de um metro no nível médio do mar antes do final do século”.

    E acrescenta que “o alerta é feito pela arquiteta americana Barbara Judy, que está em Lisboa a coordenar uma equipa que estuda o impacto das alterações climáticas no Mosteiro dos Jerónimos e na Torre de Belém e que, até novembro, irá apresentar um relatório com sugestões de como minimizar os impactos e adaptar este património cultural a eventos extremos futuros”, informando ainda que “os trabalhos resultam de uma parceria da direção do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém com a embaixada dos EUA, no âmbito do Programa Embassy Science Fellow”.

    Pintura de 1811 da Torre de Belém, por John Thomas Serres (1759-1825).

    O artigo da Carla Tomás também apresenta duas fotos do Torre de Belém, em preia-mar e baixa-mar, sendo que na primeira o monumento está rodeado de água e na segunda se vê uma ‘língua de areia’, o que não é surpreendente atendendo que está em plena boca do estuário do Tejo, onde as variações do nível da água do mar (“culpa” da Lua) rondam os três metros.

    Como não me canso de dizer, existem evidências de alterações climáticas, com um aumento significativo do ponto de vista da frequência de fenómenos extremos – e isto independentemente das suas causas, sendo que se estas forem mesmo derivadas do dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa, bem que podemos meter a “viola no saco”, porque a China está a fazer com que qualquer sacrifício de redução seja em vão.

    Mas uma coisa é a necessidade de assumir a existência de um problema – as alterações climáticas, com as suas cambiantes e especificidades, encontrando medidas de minimização, mitigação e adaptação, de forma racional –; outra é a necessidade de não permitir que se tornem um monotema ambiental – e com isso permitir um pornográfico greenwashing, onde se pavoneiam empresas com passado e presente poluidor travestidas agora de “amigas do ambiente” –; e outra ainda, e muito importante, a necessidade de rigor informativo arredando o sensacionalismo manipulatório.

    Torre de Belém, à esquerda, integrado em mapa de Lisboa do século XVIII, onde também se observa o Mosteiro dos Jerónimos ainda quase banhado pelas águas do Tejo. Sucessivos assoreamentos e aterros aumentaram a área terrestre, ligando o ilhéu à cidade.

    Bem sei que a imprensa vive de soundbites, e sei também que, sobretudo depois da pandemia da covid-19, existe uma enorme tentação nas editorias menos escrupulosas de fazer suceder à emergência sanitária uma emergência climática, onde qualquer tempestade se transforma numa evidência das alterações climáticas, quando na verdade os processos são mais lentos, embora inexoráveis, e até mais afastados da Europa. E nem os impactes serão trágicos como uma crise sanitária se houver planeamento preventivo.

    Por exemplo, se não expandíssemos áreas urbanas para leitos de cheia ou não impermeabilizássemos zonas de drenagem, provavelmente não teríamos tantos estragos em tempestades. Ou se fizéssemos uma prevenção mais activa, em simultâneo com mudanças na estrutura silvícola, porventura os incêndios num mundo rural (cada vez mais desertificado de pessoas) não seriam tão dramáticos.

    Mas não quero falar agora mais sobre isso. Foquemo-nos na notícia do Expresso sobre a Torre de Belém – e nos seus disparates.

    Pintura de Filipe Lobo, patente no Museu de Arte Antiga, retratando o Mosteiro dos Jerónimos no século XVII. Ao fundo, à esquerda, a Torre de Belém, bem dentro do estuário.

    Como disse no início, convém a um jornalista que não lhe chamem burro.

    E, assim sendo, que se pode dizer então de uma notícia que, titulando estar a subida das águas do mar e as ondas de calor a AMEAÇAR a Torre de Belém, se “esquece” de referir que, enfim, este agora monumento estava, quando construído no século XVI, num pequeno ilhéu a cerca de 250 metros da margem?

    Carla Tomás, e o Expresso, além das fotos a mostrarem simples variações de marés, deveriam sim ter também apresentado mapas, pinturas ou gravuras antigas onde a Torre de Belém (ou Torre de São Vicente) se mostrava bem dentro do Tejo, tal como a chamada Torre Velha (ou Forte de São Sebastião da Caparica), portanto muito mais “afectada” por ondas e salinidade – muito menos “protegida” do que agora.

    Na verdade, foi a evolução costeira, a dinâmica estuarina, com assoreamentos progressivos, e em outras partes com desassoreamentos para tornar navegável o estuário, a par de aterros – que, por exemplo, “afastaram” o Mosteiro dos Jerónimos das águas do rio Tejo –, que “colocaram” a Torre de Belém onde está. Quer dizer, está no mesmo sítio, mas tudo mudou em seu redor. E essa mudança não foi derivada das alterações climáticas nem é absolutamente nada expectável que o aquecimento global coloque qualquer pressão relevante. Não é por aí que o gato vai às filhoses…

    Torre de Belém, em gravura do século XVII de Dirk Stoop.

    Ao longo dos séculos, e não por causa de quaisquer alterações climáticas, a Torre de Belém – que bem antes da Revolução Industrial (“berço” das emissões de dióxido de carbono) estava rodeada de águas do estuário – foi beneficiando de constantes e sucessivas remodelações e reabilitações, porque o tempo, esse “grande (mau) escultor”, desgasta sem parança. Que haja agora necessidade de uma nova intervenção, parece evidente. Basta conferir o Sistema de Informação para o Património Arquitectónico, onde se constata que foram executadas 27 obras de reabilitação em diversos graus na Torre de Belém ao longo do século XX, mas não havendo registos de alguma acção relevante nas últimas duas décadas. Por isso, sejamos honestos: “pedras partidas, molhes erodidos e juntas sem argamassa”, relatadas pela especialista citada pelo Expresso, não se devem às alterações climáticas. Apenas ao tempo, à lenta acção dos agentes físicos e químicos – e, vá lá, à incúria do Estado em relação a um rico património histórico. Nada mais.

    Torna-se, também, risível a referência no título do Expresso às ondas de calor ameaçarem a Torre de Belém, como se um aumento de temperatura por via de um aquecimento global – nem que fosse de 10 graus ou mais – pudesse causar qualquer dano de monta a pedras sujeitas a contínua salinidade, ondulação e variação das marés. É tão absurdo que nem merece mais comentários…

    Enfim, por tudo isto, só por incompreensível ignorância, ou por sensacionalismo bacoco ou por uma intencional manipulação da realidade – coisas que pouco incomodam os reguladores (ERC e CCPJ) e a classe jornalística (e o Conselho Deontológico do Sindicato de Jornalistas, mais afoito a fretes para difamar o jornalismo incómodo e independente) –, se faz uma notícia onde declarações de uma pouco conhecida arquitecta norte-americana que trabalhou no National Park Services – equivalente ao nosso Instituto de Conservação da Natureza e Florestas com a componente do património – se transformam em “provas irrefutáveis” das alterações climáticas sobre a Torre de Belém, que já “assistiu” a muitas façanhas e também muitos disparates em cinco séculos.

    Foto da Torre de Belém, publicada pela revista política norte-americana Harper’s Weekly, em 13 de Maio de 1865, acompanhando o relato de um incidente em Março daquele ano quando a fortificação portuguesa disparou contra o navio Niagara.

    Mas o pior é a notícia do Expresso não ser um exemplo isolado de mau jornalismo, a forçar uma “missão”; antes é um novo paradigma. Se assim não fosse, outros jornais não correriam a propalar o disparate do Expresso, como sucedeu com o Correio da Manhã e o Observador, o que mostra o nível de conhecimentos (até históricos) da malta que anda pelas redacções a copiar mutuamente disparates.

    Enfim, se isto é jornalismo de referência… vou ali e já venho. Ou melhor, sigo sozinho.

  • O Estado: a mais perversa criação do Homem

    O Estado: a mais perversa criação do Homem


    Desde que a Humanidade existe, a esmagadora maioria dos homens pertence ao grupo dos produtivos, que quer fazer coisas, enquanto uma minoria, infelizmente, apenas deseja agredir, roubar ou violar o próximo. Da coexistência destes dois grupos derivam, obviamente, conflitos, não só entre os dois grupos, vítimas e agressores, mas também entre o grupo produtivo. Infelizmente, o paraíso de Adão e Eva não existe: terra, recursos (metais preciosos, água, minérios…) e tempo são, por desgraça, escassos.

    Para uma civilização prosperar é essencial a protecção dos direitos de propriedade, bem como a existência de mecanismos de arbitragem de conflitos. Um agricultor não vai semear se existir a forte possibilidade de ser assaltado a qualquer momento ou de aparecer alguém a ocupar-lhe as terras. Ninguém investe sem estar seguro da existência de penalidades e indemnizações, caso os contratos sejam incumpridos de forma impune.

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    Por fim, a especialização e as trocas comerciais são essenciais para o aumento exponencial do bem-estar. Em sociedades complexas, todos dependemos de todos, em que cada um se especializa naquilo que sabe fazer melhor. Em resumo, segurança, previsibilidade, especialização e mercados são essenciais para o florescimento e prosperidade de qualquer civilização.

    As primeiras cidades surgiram em zonas de fácil defesa, aproveitando obstáculos naturais como montanhas, rios ou lagos. Para além de um local seguro, as primeiras comunidades viram-se forçadas a eleger juízes para arbitrar conflitos, elegendo, regra geral, o mais bravo, inteligente e com maior sucesso, fossem estes nobres, homens de negócios ou anciões com autoridade.

    O Estado moderno foi-nos vendido como indispensável para arbitrar estes conflitos, algo inevitável, no entanto, até ao aparecimento das monarquias absolutas, este simplesmente não existia. Trata-se de uma organização que exerce um monopólio territorial, de violência e jurisdicional, de arbitragem final em casos de conflito; um juiz em causa própria. Sem o consentimento das partes, estas são obrigadas a recorrer ao Estado, impondo-se-lhes, sem discussão, um preço pelo respectivo serviço. Mas não são os únicos privilégios, nem os principais, pois o maior é o monopólio de confisco da população, vulgarmente conhecido por tributação.

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    Com a queda do Império Romano do Ocidente, a sociedade europeia organizou-se num sistema a que chamamos feudalismo. Foi um processo natural. Sem a defesa do exército romano, as pessoas associaram-se a um senhor da guerra, por forma a obterem segurança. Eis a especialização a funcionar: o senhor oferecia segurança ao servo por troca de horas de trabalho e ajuda militar em caso de conflito.

    Nos seus domínios, o senhor feudal estabelecia as regras e administrava a justiça. O Rei era o senhor feudal de maior importância, que provinha, regra geral, de famílias com prestígio e que possuía mais terras e um exército privado de maior dimensão face aos outros senhores feudais.

    Importa ter em conta que o Rei não tributava a população nem tinha o monopólio da justiça, tinha de viver dos rendimentos dos seus domínios; no entanto, em muitos casos, prestava serviços como um tribunal de segunda instância, a quem a população se socorria caso não estivesse satisfeita com as decisões do respectivo senhor feudal. Muitas vezes, o servo podia fugir e associar-se a outro senhor feudal ou ir mesmo ajudar a fundar cidades “livres”, sem laços de vassalagem.

    Como foi posto fim a este equilíbrio? Através de uma “crise”, com o intuito do poder real obter essencialmente duas vantagens: o monopólio da arbitragem de conflitos e lançar a tributação sobre a população. Todos eram obrigados a utilizar os seus tribunais. Os custos da guerra, que antes impactavam o seu “bolso”, podiam agora ser “distribuídos” pela população através dos impostos. Eis o início do Estado.

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    E como se desencadeia uma “crise”. Como sempre: estimulando a inveja e espalhando o medo. Por parte dos servos, a tentação de não pagar a renda ao senhor feudal ou de não aceitar as suas regras era enorme, bastando prometer-se liberdade para que aparecessem revoltas “espontâneas”. Como sempre, a “carneirada” necessita sempre de uma mão superior a conduzi-la!

    Depois do problema, a reacção: os senhores feudais apelavam aos monarcas o fim do caos. Martinho Lutero, o iniciador da “revolução” protestante, para além do confisco da Igreja Católica, propôs a seguinte solução para o conflito: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados, apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães raivosos.

    Depois de satisfeitos os senhores feudais com o fim do caos, e apesar dos privilégios que acabavam de perder, como a administração da justiça nos seus domínios, oferecia-se-lhes sinecuras na burocracia real, tornando-os membros da máquina de propaganda e de prestígio da corte, e extinguiam-se os seus exércitos privados, integrando-os no exército real e pondo fim a qualquer oposição.

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    Em lugar do senhor, passava-se a lutar em nome do Estado. Para se garantir soldados obedientes e com sentido de nação, a revolução protestante fundou a escola pública, por forma a doutrinar as crianças bem cedo. Tudo passou a ser centralizado, até a cunhagem de moeda, deixando esta de estar em mãos privadas para passar a ser um privilégio real – roubava-se também a população de forma silenciosa, caso fosse necessário.

    Agora que a conta da guerra podia ser paga pela plebe, através de impostos e inflação, a dimensão dos exércitos cresceu substancialmente. Foi precisamente o que aconteceu na Guerra dos Trinta Anos, talvez o primeiro conflito mundial.

    E assim foi parido o Estado: da “crise” e da guerra. Uma organização com tantos poderes e privilégios que inevitavelmente passou a atrair parasitas, necessariamente uma minoria, pois um parasita pode viver de vários hospedeiros e não o contrário. Para se obter o consentimento dos hospedeiros, não basta a força, também é necessário o seu consentimento: como? Através do medo.

    E que medo foi instigado e que até hoje perdura? O medo do caos. Na percepção da população, sem o Estado, os conflitos entre as pessoas são intermináveis, não têm fim, é necessário um monopolista da força e da arbitragem final.

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    Todos sabemos que um pequeno grupo ou uma pequena comunidade não necessita do Estado para nada na arbitragem de conflitos; no entanto, quanto maior a dimensão do Estado menos existe essa percepção. É precisamente isso quando se utiliza o seguinte argumento: e quem faria as estradas senão o Estado? Como se numa pequena comunidade não se conseguisse colocar de acordo na construção de uma estrada e respectivo financiamento!

    Importa ter em conta a diferença entre parasitas e pessoas produtivas? Os segundos aumentam o bem-estar de pelo menos uma pessoa, sem reduzir o bem-estar dos outros indivíduos; os primeiros aumentam o bem-estar de alguns à custa de outros, seja por apropriação indevida de terras, seja por roubo do que os demais produziram, como é o caso dos impostos.

    O butim tornou-se tão luzidio que começaram a surgir ideias igualitárias, como a democracia e o socialismo. Por que motivo só o Rei pode ter o monopólio da justiça e do confisco dos demais cidadãos: “eu também quero”. Em lugar de um privilégio pessoal, havia que transformá-lo num privilégio funcional: qualquer um podia aceder ao tacho, não era necessário um Rei para liderar um Estado.

    O fim da instituição real surgiu, uma vez mais, com uma “crise”, conhecida pela Tomada da Bastilha, onde a “carneirada” se insurgiu contra as “injustiças” deste mundo. Consequências? Os parasitas de Luís XVI foram decapitados e substituídos por um gangue de assassinos e fanáticos, posteriormente liderado por um “génio” da guerra total.

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    Surgiu assim o Estado moderno, passando a existir propriedade pública e privada, lei pública e lei privada. Quem está no público pode permitir-se coisas que seriam crime na esfera privada, como escravizar jovens do sexo masculino, como foi o caso do aparecimento da conscrição obrigatória na Revolução Francesa. Por essa razão, a dimensão dos exércitos subiu desta vez de forma exponencial, passando a envolver forças superiores a um milhão de soldados.

    Na monarquia absolutista, o Rei tinha a preocupação de não tributar excessivamente, pois diminuía a produtividade dos seus súbditos, dado que diminuiria as suas receitas no longo prazo; nem tão pouco endividar-se excessivamente, pois poderia onerar os seus herdeiros ou até afectar a sua reputação. Nem tão pouco a inflação era um método que se pudesse abusar, pois passados uns anos, o Rei estaria a receber impostos em moeda inflacionada. Tudo mudou com o advento do Estado moderno.  

    Quando existe propriedade privada, o seu dono pode comprar, vender, ceder o seu uso e obter um rendimento, dar-lhe fins distintos, fazer obras, etc.; no caso da propriedade pública, os que se encontram no poder, apenas podem saquear o respectivo rendimento enquanto lá estão, nada mais.

    Se o Rei arrendasse uma propriedade, iria certamente ter em conta o número de inquilinos e de como tratariam o imóvel; no caso do “cuidador público”, apenas lhe importa o rendimento. Colocar lá um número excessivo de inquilinos, apesar de destruir a propriedade em poucos anos, é uma opção seguida, dado que permite roubar no mais curto espaço de tempo. O risco de perder a posição a tal obriga.  

    gold and blue crown

    Em conclusão, os incentivos passaram a ser totalmente diferentes com o aparecimento da propriedade pública, naquilo a que hoje chamam o “dinheiro de todos nós”! Com o advento da “democracia”, passou a haver enorme concorrência para os lugares de parasitismo. Chamo a atenção de que a concorrência é benéfica para as actividades produtivas, pois incrementa a qualidade e baixa o custo do serviço ou produto, não significando necessariamente a eliminação de um ou mais concorrentes.

    Tal não se passa com uma actividade parasitária, onde se “luta” para obter o pior entre os piores: o mais mentiroso, o mais demagógico, o mais conspiracionista, o mais ladrão. Para além de se garantir tal gangue ao poder, as sinecuras são temporárias, pelo que o roubo terá de se processar com a máxima intensidade e no mais curto espaço de tempo.

    Não é obra do acaso que tenham sido democracias – Hitler foi eleito – a espoletar grandes guerras, com milhões de vítimas; nem tão pouco que pela sua iniciativa sejam desencadeadas guerras em nome da “democracia” ou “combate ao terror”. Não é obra do acaso, que as democracias tenham criado milhões de dependentes do Estado, comprados com o roubo a uma minoria produtiva da população.

    white sheep near the brown board

    A guerra e o Estado Social são a forma mais rápida e eficiente de enriquecer a casta parasitária, dado que exigem colossais emissões de dívida de pública, que produz suculentas comissões e butins através da inflação, como vimos na recente putativa pandemia e conflitos militares.

    E como mantém o consentimento da população? Pelo medo e doutrinação; não se esqueçam: sem o Estado estaríamos todos aos tiros uns aos outros.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ISS: Impostos sobre sucata

    ISS: Impostos sobre sucata


    A imaginação do Ministro das Finanças não tem limites.

    Descobriu (também não era difícil) que os portugueses, há muito, tinham deixado de poder comprar veículos novos, muito pela sobrecarga dos impostos que têm de pagar, e encontrou uma solução para aumentar as receitas: cobrar impostos mais elevados aos carros com data de matrícula anterior a 2007.

    Segundo as contas de Fernando Medina, o Imposto Único de Circulação aumentará, para todos, à taxa de inflação, mas será mais penalizador para os mais antigos.

    Vintage rusty broken car on gravel

    Contas feitas por especialistas garantem, no entanto, que há a possibilidade de veículos, a gasóleo, anteriores a 2007, terem um agravamento do IUC de 1.746%.

    Vou escrever por extenso para se perceber bem: mil setecentos e quarenta e seis por cento!

    Esperemos que a inflação não chegue a esses números…

    O jornal ECO fez contas e concluiu que o IUC dos automóveis a gasolina aumentará, em média, 347% e os carros a gasóleo contarão com um aumento médio do imposto de 591% durante os próximos anos”.

    A “desculpa” dada para este aumento prende-se com a diferença actualmente existente no imposto pago entre alguns carros, a gasóleo, com matrículas anteriores a 2007 e os mais recentes.

    Garante o Governo que, por uma questão de justiça, se deveria diminuir essa diferença que chega a ser de sete vezes menos para os mais antigos.

    “Esquecem”, todavia, que os carros com matrícula anterior a julho de 2007 pagam hoje menos IUC (tal como nos últimos 16 anos) porque pagaram mais impostos no momento da sua aquisição.

    selective focus photography of assorted-color vehicles

    A realidade é que os carros velhos, de modo geral, são usados pelos portugueses de meia idade e idosos, muitos deles sobrevivendo, unicamente, com reduzidas pensões.

    Ou por trabalhadores com salários baixos, que precisam do seu automóvel para a labuta diária, mas sem dinheiro para o mudar por um mais novo.

    Tudo gente que raramente recebe uma boa notícia e que, quando tal acontece, sabe convictamente que a sua alegria não vai demorar muito.

    Aumento na pensão?

    Em breve chegará um aviso das Finanças com um novo imposto de valor superior a tal aumento.

    Fim das taxas moderadoras?

    Aumento substancial nos medicamentos.

    Muitíssimos trabalhadores portugueses, bem como praticamente todos os pequenos empresários, repito, têm o seu automóvel como uma “ferramenta” absolutamente essencial para o desempenho da sua profissão.

    wrecked single cab pickup truck on field

    Custa-lhes caro.

    Os combustíveis não param de aumentar, as reparações são absurdamente caras, tal como os seguros.

    Com este aumento num dos impostos a situação vai piorar ao nível do incomportável.

    Pode optar por mandar a viatura para abate, a troco de cem euros, e passar a andar de transportes públicos.

    Se e quando os houver.

    Se, porque em muitas localidades são uma miragem.

    Quando, porque são imensos os dias em que estes não cumprem os horários, seja pelo número de greves, seja por avarias ou, simplesmente, pela incompetência de gestores e preguiça dos motoristas.

    Tentei deixar de lado estas notícias, para não deteriorar, ainda mais, a minha saúde e começar a pensar em coisas mais agradáveis.

    green car

    Decidi preparar um petisco e sentar-me a ler um bom livro.

    Chegado à cozinha, olhando em volta, fiquei em pânico.

    Quando é que o Medina vai pensar em criar impostos sobre os electrodomésticos antigos?

    Se não pelo ambiente (desculpa que tem servido para tudo), por razões estéticas, por exemplo.

    É que o meu frigorífico já não vai para novo, o fogão tem o forno a trabalhar a cinquenta por cento e o micro-ondas faz birras.

    Sabendo que a diferença entre um cidadão vulgar e um membro do Governo é que enquanto aqueles se deparam com problemas estes arregalam os olhos perante oportunidades de fazer dinheiro, a constatação do estado destes aparelhos é um péssimo presságio.

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    Este país não é o mais indicado para a “peste grisalha”, avisou-nos um deputado, que muitos apelidaram de imbecil, mas que, com toda a certeza, não corre o risco de ver aumentar o imposto dos seus automóveis.

    É menino para ter vários, mas todos comprados nos últimos anos.

    Tivesse eu força e coragem e seguiria o conselho de outro político, não menos imbecil, e emigraria.

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Nunca acordes o gato que dorme

    Nunca acordes o gato que dorme

    A democracia é o pior dos regimes políticos

    À excepção de todos os outros.

    Winston Churchill


    O outro grande estrago que Donald Trump legou ao seu país foi o apadrinhamento silencioso da invasão do Capitólio por fundamentalistas da supremacia branca, todos eles demasiadamente armados e todos eles igualmente parvos. Ao encorajar confrontos físicos e perigosos dentro do berço da democracia americana, o presidente recém-deposto deu a todo o seu vasto eleitorado da DUCK DINASTY uma lição inesquecível de mau perder.


    Então, e antes de mais nada, o que vem a ser a tal de DUCK DINASTY? Tenho a impressão de que todos vocês dormiriam mais descansados se não soubessem nada disto, mas aqui vai.

    A DUCK DINASTY é um reality show que já dura há uns bons vinte anos, e que aparece com frequência na capa das revistas que se interessam por reality shows, o que quer dizer que é um reality show extremamente popular, muito embora esteja restrito aos canais da televisão por cabo. Mostra-nos a história de uma família enorme, que vive em meia dúzia de trailers num pântano do Louisiana a que chamaram seu sem pedir autorização a ninguém. Claro que o governo do Louisiana já deu pela sua ocupação selvagem, mas, e sobretudo enquanto eles são os heróis de um reality show de grande audiência que apareceu em massa nas revistas a dizer que ia votar no Trump – quem é que lhes vai à cara? Quem é que dá início à Guerra Civil que tanta gente teme?

    Não, nós não.

    Deixem-nos ser um emblema tresmalhado do Louisiana e filmem bem a beleza dos nossos pântanos[1].

    E quem são, exactamente, estas pessoas tão perigosas?

    Há uns avós de cabelo muito comprido e T-shirts psicadélicas, verdadeiros DEAD HEADS[2], que dão aos mais novos uns conselhos que nos dão vontade de estraçalharmos logo ali a televisão para não termos que ouvir mais.

    Os homens têm barbas de ZZTOP[3], uma bandana à volta da testa, camuflados, armas bem à vista, e botas da tropa. Passam o dia a caçar patos[4], daí o nome da série.

    As mulheres são loiras, gordas, andam de fato de treino e botas da tropa, e passam o dia a cortar cupons de desconto no supermercado, depois do que vão ao supermercado gozar-se dos descontos a que têm direito – “viste bem aquela puta da caixa?” – “então era uma latina, como é que querias que entendesse o que é um cupon?”.

    E também há crianças que andam sem nexo por ali, e são dezenas delas, tantas que nem se percebe de quem é que são filhas, muito magrinhas, muito mal vestidas, todas de botas da tropa, as meninas com o cabelo loiro comprido demais, os miúdos com o cabelo loiro cortado com pente três; e estas crianças estão sempre a ter problemas na escola pelo que as mães têm que ir lá falar com os DTs, e a única coisa que podemos fazer é louvar a paciência de santos dos professores que as recebem.

    OK, esclareça-se o mistério e sejamos honestos: as botas da tropa devem-se ao facto de eles viverem num pântano. Mas é inegável que gostam. Existem botas melhores para lidar com a terra movediça dos pântanos.

    Quase toda esta gente vivia da Segurança Social, embora neste momento viva dos rendimentos da DUCK DINASTY.

    Pode ser por efeito de hipérbole, mas a verdade é que é toda esta gente que representa o eleitorado de Donald Trump.

    E portanto, quando Trump incitou os seus seguidores a terem o pior perder do mundo, e, em consequência, eles aprenderam a lição num instante e desembarcaram em DC prontos a fazer a democracia em estilhaços.

    Não sei se estão bem a ver, mas, para a DUCK DINASTY, aprender a ter mau perder é muito fácil.

    É uma lição muito apetecível with God on our side[5], e ainda por cima é agradável.

    O drama começa a seguir.

    Uma vez aprendida, já que não custa nada a aprender, esta lição transformou-se nas vassouras do APRENDIZ DE FEITICEIRO que se multiplicam sem intervenção humana, pelo que pode agora carregar no seu próprio replay de cada vez que se sentir ameaçada. Isto é o que faz os políticos americanos normais, tanto democratas como republicanos, serem tão cautelosos com a aprovação dos orçamentos: a curto prazo, aprova-se desde já todo o bom que seja inimigo do óptimo, porque ninguém quer acordar o gato que dorme.

    E vá lá, que enquanto for só um gato estamos nós muito bem.

    O que nenhum americano com dois dedos de testa quer, acima de tudo, é que o gato volte a transformar-se silenciosamente num tigre de dentes de sabre enquanto não está ninguém a controlá-lo.

    Toda a gente com responsabilidades políticas, incluindo os presidentes, pensava que sabia tudo sobre a longa vida das ervas daninhas, e sobre as duas cabeças da hidra que crescem onde quer que se corte apenas uma. Mas isso foi só até Trump chegar à Casa Branca, eleito por toda a massa iletrada dos supremacistas  brancos, que de formação só tinham o treino em carreiras de tiro e a frequência de uns quantos campos de sobrevivalismo, mas que nunca tinham votado antes. Feito isto, basta a presença do seu fantasma, arrastado num grande carnaval de conivências de um julgamento criminal para outro onde está sempre um microfone aberto e incondicional à sua espera, para levar quase instantaneamente a grandes crises sem precedentes da História americana, como a demissão, na passada semana, do Alto Representante da Câmara dos Representantes, onde os republicanos detêm a maioria.

    Este homem, como a maioria dos outros políticos, era um republicano bastante normal. Enquanto tal, deixou de conseguir continuar a segurar a barra[6] perante a gritaria dos republicanos minoritários, alinhados por trás do espantalho de Donald Trump exactamente como os portugueses saturados da disfuncionalidade partidária se alinham por trás do André Ventura. O homem não propõe solução nenhuma, mas ao menos está todos os dias no Parlamento a dizer que tudo isto tem de mudar e isso basta-nos. E certamente alguma razão há de ele ter, para conseguir aparecer nas notícias todos os dias, como acontece desde que o vimos aparecer pela primeira vez.

    Senhoras e senhores, façam barulho para o fundamentalismo populista que está na moda neste grande final do primeiro quarto do terceiro milénio.

    Continua.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu vi muitas vezes esses pântanos. Além de serem enormes, são de uma beleza que corta a respiração. Considerados área protegida, proíbem, obviamente, a instalação de trailers. Mas estes gajos representam o que América tem de pior. Ai é proibido? As proibições são para as ditaduras. Embora instalar os trailers, pessoal.

    [2] OS DEAD HEADS eram, inicialmente, os admiradores incondicionais dos GRATEFUL DEAD por causa de Jerry Garcia, a quem chamavam Captain Trips por causa dos seus solos incríveis de guitarra. Agora que Jerry morreu, continuam a seguir os GRATEFUL DEAD pelo prazer puro e simples de apupar furiosamente quem quer que seja que se atreva a pegar na guitarra por ele. Andam todos de cabelo comprido e de T-shirts psicadélicas. Não se lavam. Numa sala cheia de gente, reconhece-se bem o Dead Head que lá foi parar sabe Deus como.

    [3] Lembram-se, ao menos, desta banda? Capturou de tal forma o imaginário americano que até aparece nos filmes pornográficos. São três músicos de barba até ao umbigo e uma preferência estranha pelos instrumentos de sopro. Ainda mexem.

    [4] Como é evidente, não quer dizer que cacem todos os patos que tentam caçar. O falhanço no tiro proporciona-nos é minutos de palavrões e insultos como raramente se usam na vida normal. You cocksucker bastard!

    [5]Com Deus do nosso lado”: toda aquela gente diz isto quanto planeia os seus piores golpes. Depois não os executa, mas só o excitex…

    [6] Muito provavelmente, também ele estava implicado em qualquer coisa que permitia uma chantagem terrível por parte de Donald Trump, ou mesmo pelo seu chefe directo, o senhor Vladimir Putin.

  • Carlos Daniel ou a louvaminha de um jornalista hipócrita

    Carlos Daniel ou a louvaminha de um jornalista hipócrita


    Durante a pandemia, a generalidade dos jornalistas da RTP, na linha da imprensa mainstream, teve uma atitude deplorável de seguidismo, em violação dos princípios deontológicos, em apoio a uma narrativa oficial, contribuindo para menosprezar, ostracizar e perseguir todos aqueles que, mesmo de uma forma científica, pretendiam introduzir racionalidade a uma crise sanitária. Já muito escrevi sobre esta matéria – e desconfio que venha a escrever mais.

    Mas ontem lembrei-me de um lastimável “debate” da RTP, em 2 de Fevereiro de 2021, num programa intitulado “É ou não é?”,

    E lembrei-me porque foi moderado pelo jornalista Carlos Daniel – e que ontem esteve presente na apresentação do mais recente livro de Gustavo Carona intitulado Olhem para o Mundo com o coração. Jornalismo oblige: respirei fundo e fui ouvir a louvaminha de Carlos Daniel à obra. Temi tudo, mas esperando pelo menos coerência. Mas não: descobri hipocrisia.

    Mas enquadremos a coisa. Recuemos a 2 de Fevereiro de 2021 e ao suposto debate que deveria confrontar as diferentes visões da comunicação e da desinformação em pandemia. Quem esperasse um verdadeiro debate, perdeu logo a esperança pelo naipe de “escolhidos”: o antigo ministro socialista Correia de Campos, o consultor de comunicação Rui Calafate, o assessor de imprensa Rui Neves Moreira, os médicos Ricardo Mexia, Gustavo Carona e João Júlio Cerqueira, a psicóloga Marta Moreira Marques e o jornalista Paulo Pena, que está para a desinformação como o Milhazes para a Rússia.

    Nesse programa, que deveria estar exposto nos anais do Jornalismo, no sentido de ser o paradigma daquilo que se deve evitar, não houve um – um único – entre os oito convidados que destoasse uma vírgula da narrativa, que mostrasse uma visão diferente, que clamasse por uma maior transparência na informação oficial (já repararam que o PÁGINA UM foi o único jornal que, por exemplo, quis saber dos registos da mortalidade nos lares, estando o caso em Tribunal Administrativo?), que defendesse a necessidade de se esclarecerem os conflitos de interesse dos intervenientes, que enquadrasse a pandemia num contexto de crise sanitária onde coexistiam outras variáveis valências (incluindo de saúde pública a curto, médio e longo prazo).

    Nada disso. Ali, sob a batuta de Carlos Daniel, naquilo que falsamente se chamou debate, não apenas chutaram para fora quaisquer visões diferentes, como se meteu tudo e todos no mesmo saco. Tudo foi, se fugisse da linha oficial, e sem direito a opinar, catalogado como desinformação e teoria da conspiração.

    Ao minuto 58:03, Carlos Daniel resumiu que tudo aquilo que não seguisse a estratégia oficial – que, por exemplo, em Portugal resultou em quatro anos consecutivos de excesso de mortalidade, sobre a qual já nem o desplante oficial culpa a covid-19 – era “ignorância colectiva que se alimenta com estas notícias” [leia-se, redes sociais], e mostrava então o seu receio de que o “negacionismo” pudesse “fazer caminho”.

    As intervenções dos médicos Gustavo Carona e José Júlio Cerqueira são, se ouvidas hoje, autênticos compêndios de mentiras, intolerância e absurdos embandeirando abusivamente a Ciência. E tudo sem qualquer contraditório. E com um jornalista como responsável por este “banquete”. Quem quiser pode ainda assistir a este falso debate promovido, enfim, por um jornalista.

    Gustavo Carona, Carlos Daniel e Pedro Abrunhosa, ontem no Porto.

    Dois anos e meio depois, não me surpreenderia assim que o jornalista Carlos Daniel, se fosse coerente, corresse a louvar um indivíduo como Gustavo Carona, e acabar até por, hélas, lhe elogiar a escrita literária. Mas já foi longe demais ao tecer estas considerações finais (a partir do minuto 12:20):

    Em boa parte, a intolerância radica na ignorância. E a ignorância é arrogante, como nós sabemos. E a ignorância não respeita o especialista, duvida da Ciência, transforma hoje… o influenciador é mais importante que o comunicador, não é? Esta coisa… Eu acho que é muito importante, e se calhar tento terminar com esta ideia, que os jornalistas que cuidam dessa coisa da objectividade e acreditam numa verdade; pelo menos numa verdade provisória, numa verdade quotidiana, não na verdade filosófica… Mas também nos artistas, que têm que ser capazes, como o Pedro [Abrunhosa, que estava ao seu lado] faz tantas vezes, de marcar e dizer o que pensam e dizer como é que acreditam que isto podia ser melhor; mas as pessoas que se expõem com opiniões, com sentimentos, como o Gustavo [Carona] faz tantas vezes; se calhar nós somos três exemplos de pessoas que não têm que ter medo do UNLIKE, não é? Não devemos procurar o LIKE. Nós temos que acreditar que a nossa missão também é, de vez em quando, desagradar a alguns, para que eles entendam que o Mundo não é apenas – como agora parece às vezes ser – daqueles que pensam como nós e nos põem os LIKES. Convém que haja alguém que discorde de nós, porque da discordância nasce o debate – e só do debate pode nascer o tal compromisso que eu falava há pouco. E isto é o mais essencial à Democracia, e, se quisermos, também nesta altura, à paz. E eu acho que, dito isto, apetece-me sublinhar que talvez, mais do que nunca, precisemos mesmo de olhar o mundo com o coração.

    A mim, depois de ouvir as palavras do jornalista Carlos Daniel ditas ontem no lançamento do novo livro de Gustavo Carona – um dos médicos mais alarmistas e intolerantes ao debate durante a pandemia –, e conhecendo a sua postura profissional nos últimos anos, só me apetece sublinhar uma palavra que nem está neste seu discurso, mas que está no seu âmago: HIPOCRISIA.

  • Para os lados

    Para os lados

    Entrelaçamento quântico – é o que aparenta atravessar as eras naqueles tapetes de areia da Mesopotâmia, uma impossibilidade particular de diluir os poderes, equilibrar águas, que borbulham ou se separam, simplesmente porque aquilo que em cima está logo faz algo ficar em baixo, e não importa quantas vezes façamos a medição do evento.

    Dir-se-ia que todos aguardamos novo sacrifício de um carpinteiro em sandálias. Alguém que diga algo tão ultrajante como: amai-vos uns aos outros – e, em seguida, dê o corpo a esse manifesto.

    green and yellow spiral illustration

    Mas hoje, com tantos manifestos e tantos corpos a manifestarem-se, tantos homens que se fingem outra coisa, repararíamos?

    Dir-se-ia que aguardamos que as deusas marquem a linha no tapete de areia – e se não se portarem bem, tiramos os brinquedos aos meninos; paus e pedras têm um raio de acção limitado.

    Entretanto, sempre segue um apocalipse sazonal, daqueles sem graça nenhuma, que nada tem a ver com as promessas reveladas há milénios (a programação habitual segue dentro de momentos).

    Menos.

    Menos bom senso, e mais areia na boca, que nos sobra a sede, e as sandálias já não nos protegem, nem de nós. Por cá, a chuva cai já pesada – e quem gritou lobo berra-nos aos ouvidos que o mundo é perigoso.

    Joana bateu com o bastão no chão, a Catarina (furtada a mais conhecimento sobre o tema) proclamou a sua aliança com os homens que têm inveja do útero.

    Silhouette of Person Standing Near Calm Sea

    O mundo está reduzido a estes bastões, a estes grãos de areia, a tempestades pouco férteis que enevoam a vista e na verdade, creio que estamos todos a pagar a factura das clausuras “voluntárias”.

    Sugiro que se alinhem todos em formação num descampado, com uniformes mais ou menos equivalentes, talvez um capacete (paus e pedras), a quem mais caiba um elmo talvez, e corram de frente uns contra os outros. Berrem! Berrem muito desde dentro da alma, berrem com força por aquilo em que acreditem e choquem de frente, de peito aberto (paus e pedras).

    Depois contem os mortos – e quem tiver mais vivos ganha. Serão vivos cansados que vão dormir mal o resto das vidas e, cansados, não mais guerrearão.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os genes e as crenças

    Os genes e as crenças


    A Estrutura Genómica Humana foi realizada pela primeira vez por James Watson Francis Crick. Não obstante, a contribuição de Rosalind Franklin para a descoberta da dupla hélice do DNA fora essencial, mas faleceu sem obter o merecido reconhecimento. Há mais de 20 anos pensávamos que tínhamos nas mãos os segredos da vida e as suas doenças. Elas poderiam ser enunciadas pelos genes que encontraríamos desde o embrião, e havia a esperança de que, por manipulação genética, as poderíamos resolver.

    O entusiasmo dos biólogos sobrepunha-se às preocupações éticas que aí advinham. Ao longo do tempo fomos percebendo que este raciocínio não se adequava à realidade. E hoje, estamos a perceber que as crenças são mais importantes que os genes. Mais do que o código genético, é o código postal que importa, como escreveu Van Der Kolk num livro publicado em 2014.

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    Desde então, tem-se acumulado evidências de que a saúde e a esperança de vida dependem mais da cultura e das crenças que nos foram transmitidas em criança do que a mensagem codificada nos genes. Na ordem do dia, já não está a Genética, mas a Epigenética. O que nos diz a Epigenética? Diz-nos que os genes condensados na cromatina presentes nos cromossomas, só se activam ao receber informação do ambiente.

    A Primazia do Ambiente revela-nos que a informação que controla a biologia começa com os sinais do meio envolvente, que por sua vez, controlam a produção das proteínas reguladoras do ADN sendo essas proteínas que determinam a actividade dos genes. A heresia de Howard Temin, quando descreveu a transcriptase reversa, mecanismo molecular através do qual o ARN poderia ser convertido em DNA, o que implicou o seu descrédito na época, ao desafiar a comunidade científica e os seus dogmas. Posteriormente, Howard Temin é agraciado com o Prémio Nobel pela sua descoberta, a transcriptase reversa.

    Afinal, não são os genes que nos fazem como somos? Os genes servem apenas para a reprodução das células. Por exemplo, as células enucleadas (núcleo retirado para extração do DNA) conseguem sobreviver e realizar todas as suas funções durante aproximadamente 2 meses, mas não têm capacidade para se reproduzir. E, se agora, descobríssemos que o sistema reprodutor da célula é o núcleo e o seu cérebro a membrana? As membranas das células eucarióticas são constituídas por diversos tipos de límpidos que regulam e coordenam a entrada e saída das substâncias da célula. Ou seja, o Sinal Ambiental é transmitido à membrana, que aciona as proteínas reguladoras do DNA no núcleo, sendo este traduzido em RNA e novamente em proteína. 

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    Nós pensávamos que os genes determinavam a vida humana condenando-nos  à prisão da hereditariedade, mas hoje sabemos que, os estímulos do meio ambiente que nos rodeia tem mais influência sobre nós do que os genes. O ecossistema é determinante na vida dos seres vivos e nos seus processos comunicativos de desenvolvimento.  No caso das células, os estímulos agem sobre os receptores localizados na membrana citoplasmática, de modo a que esta controle a actividade das proteínas e, assim, possa alterar a ordem estabelecida no núcleo.

    No caso do organismo, o meio ambiente também influencia os receptores que são extremamente complexos: o tacto, os receptores da dor e os pequenos fusos que assinalam a tensão muscular, os receptores que se alojam no nariz e na boca. As ondas sonoras e visuais que chegam ao cérebro depois de descodificadas por pequenos órgãos que se encontram na periferia do corpo, como os ouvidos e os olhos. No fim, é o cérebro que organiza todas estas informações, antes de as enviar coordenadamente, como se fosse um comando, a todo o organismo.

    Paremos agora para pensar: o comando do cérebro para o organismo destina-se a uma acção coordenada com vista a um objectivo, tal como: fugir, lutar, deslocar-se, procurar algo. Pode ser uma simples reacção imediata ou alguma coisa que foi analisada e pensada anteriormente. Palavras, hábitos aprendidos e memórias bem estabelecidas contribuem para essa acção coordenada. Imaginemos, se, descobríssemos que o que pensávamos ser o cérebro humano, fosse apenas o intérprete e coordenador do processo semiótico (sinais) do coração?

    woman doing research while holding equipment

    Na Universidade de Nova Iorque, Thomas Jefferson demonstrou pela primeira vez, através da tecnologia computadorizada de imagem, que o coração é revestido por uma camada fina de neurónios e mantido pelo cérebro através de uma intrincada rede de nervos. Além disso, o órgão cardíaco tem o seu próprio sistema nervoso intracardíaco (ICN) para monitorar e corrigir quaisquer distúrbios locais na comunicação entre os sistemas do corpo.

    Será que eu penso com o coração? Poderá o coração ligar-me ao universo de possibilidades infinitas cujas limitações advém das nossas próprias crenças? Já Protágoras, sofista, na Grécia Antiga, referia que o Homem era a medida de todas as coisas. 

    J. L. Pio de Abreu é psiquiatra

    Maria João Carvalho é filósofa com pós-graduações em Biologia, Ciências Cognitivas e Economia Social


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje, sem tintins, o jornalismo é pipi

    Hoje, sem tintins, o jornalismo é pipi


    Desde Setembro, de uma forma mais incisiva e sistemática, o PÁGINA UM tem dedicado, mesmo com parcos meios, uma especial atenção aos contratos públicos, incluindo as autarquias e sobretudo a Administração Pública, com uma secção própria: Res Publica. De uma forma simplista, olhamos para as despesas – e a forma como (não) se cumprem as regras da transparência, da contratação pública e da boa gestão da res publica – que ficaram consignadas, algures, num Orçamento de Estado, quer tenha sido ou não classificado como pipi.

    Os Orçamentos de Estado são, como se deveria saber, e de uma forma também simplista, complexas folhas de cálculo, onde se coloca, de um lado, a despesa previsível – e que se deseja ser possível fazer –, e do outro lado, a receita que um Governo sente ser possível sacar dos contribuintes. Mas aprovado com maior ou menor dificuldade o Orçamento do Estado, o bom jornalismo sabe de antemão o enxame de interesses que por ali pululam. E é aí que o bom jornalismo, como defensor do interesse público e como um dos pilares da democracia, se deve mostrar. Sem tibiezas. Com ousadia. Sem medos. Com coragem. Sem ser pipi. Com tintins. É isso que o PÁGINA UM se esforça por fazer.

    Embora a má gestão dos dinheiros públicos não seja propriamente uma surpresa – o PÁGINA UM não descobriu, com a nova secção que criou, práticas sobre as quais nada se sabia ou nada se desconfiava –, pessoalmente tem-me causado estupefação a dimensão das irregularidades, dos despesismos e dos expedientes onde tresandam combinações e campeia a corrupção moral, a mãe da corrupção financeira. Quer em contratos de milhões de euros quer em contratos de poucos milhares de euros, encontram-se esquemas, quase sempre onde os ajustes directos – aqueles que se combinam por telefone, por e-mail ou à mesa de um restaurante. E isso é o que facilmente se pressente na documentação presente no Portal Base, e onde estão ausentes, em muitos casos, cadernos de encargos e outros elementos procedimentais numa clara tentativa de obscurantismo.

    Acredito que haja gestores impolutos e instituições impolutas, mas começo a pensar que, daqui a nada, tenho de me investir de um qualquer Lancelot ou Percival para encontrar o Santo Graal. Isto porque, hélas, até naquela implacável máquina do Estado que, imune a sentimentalismos, nos sequestra o dízimo de contribuintes, mais as moras por demoras ou as multas por esquecimentos (mais ou menos negligentes), acabamos por encontrar os males de Frei Tomás: prega rigor, pratica vícios. Os contratos por ajuste directo, 17 feitos desde 2017, por um subdirector-geral dos Impostos (chamemos assim por simplificação), em benefício de uma mesma empresa, com claros e evidentes sinais de combinações à margem da lei, mostram assim o pântano em que vivemos. Sobretudo porque o Ministério das Finanças nem sequer se julga no dever de comentar ou agir.

    O silêncio do Ministério das Finanças e do ministro Fernando Medina – patente o caso dos 17 ajustes directos irregulares para limpezas por um subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, e que já se fez sentir nas notícias do PÁGINA UM sobre as dívidas ao Estado da Trust in News e da Global Media, e ao despesismo no Forum da OCDE sobre transparência fiscal –, não se deve ao facto de ter andado a preparar um Orçamento do Estado (pipi ou não-pipi.)

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    A causa deste silêncio, e de tantos outros silêncios, advém da assumpção (justa, diga-se) de que hoje a imprensa mainstream é formada sobretudo – e exceptuando casos cada vez mais raros e, por minoritários, sem força nas redacções – por jornalistas pipis, ademais comandados por directores (e directoras) sem tintis, no sentido metonímico do termo (aviso já os wokistas) de ausência de coragem e de falta de ousadia. Se a imprensa de massas não fala, não existe. E os políticos e as empresas agora sabem como, com certas massas e manhas, “silenciar” a imprensa mainstream.

    Não tenho dúvida alguma que, até há décadas, e falo pela minha experiência jornalística, mais de metade dos casos denunciados pelo PÁGINA UM seriam manchete ou primeira página na generalidade da imprensa mainstream, ou teriam eco em follow up (seguimento). Em alguns casos, teriam consequências para os visados. Mas o jornalismo de hoje não é um verdadeiro jornalismo. É um sucedâneo adulterado, que confiscou a denominação. No jornalismo de hoje já não estão jornalistas nas cúpulas, nas chefias: estão sobretudo marketeers e directores comerciais travestidos de jornalistas encarteirados mas preocupados com as suas vidinhas, as suas casas de férias, as propinas dos filhos no colégio privado e as remodelações da cozinha (se fosse da biblioteca, seria menos mau; seria sinal de alguma erudição).

    Hoje, o jornalismo de investigação e de denúncia – que é a essência pura da imprensa – está varrido das redacções, e dá-me uma dor de alma perceber como as parcerias comerciais com autarquias, Estado e empresas privadas estão a matar o jornalismo – e de uma forma pornográfica, sendo os directores e directoras de alguns órgãos de comunicação social os protagonistas, de perna aberta. Hoje, há temas e escândalos que jamais serão notícia. Hoje, o homem que mordeu o cão só será notícia se o homem que mordeu o cão não tiver uma parceria comercial com órgãos de comunicação social. Hoje, perdidos os tintis, quase só nos resta um jornalismo pipi.

    Hoje, a promiscuidade entre a política – nas várias acepções do termo – e o jornalismo (e certos jornalistas) está ao nível do pântano – pântano não, que é ecossistema rico; corrigido assim: cloaca. Nos anos 90 e na passagem do século, quando colaborei, entre outros, no Expresso e na Grande Reportagem, sempre senti as pressões, que são habituais, em assuntos delicados sobre os quais escrevi, mas havia então alguma decência: as chefias não vergavam ou se o faziam não era evidente. Em 2006 senti, pela primeira vez, que já vergavam e não tinham pejo, aquando de um lamentável episódio no Diário de Notícias protagonizado por um subdirector, que não passava de um agente socialista, tanto assim que poucos meses depois era vê-lo já como assessor de um ministro socrático, e nunca mais o vi a sair da esfera de influência do Partido Socialista. Esse caso contribuiu, aliás, para o meu afastamento do jornalismo durante cerca de uma década.

    Mas, olhando agora para esse episódio de 2006, acho que piorámos incomensuravelmente. E não foi apenas com a pandemia. Hoje, há notícias que simplesmente são engavetadas ou nunca recebem luz verde. Ou então são despidas de qualquer polémica, usando-se estilos inócuos e fofinhos. Os próprios jornalistas têm medo, ou são formatados para não se arriscarem no confronto com os poderes instalados, a menos que aqueles estejam em desgraça ou em aparente queda.

    Os supostos reguladores (ERC, CCPJ e até, enfim, o Sindicato dos Jornalistas mais um seu apêndice chamado Conselho Deontológico) são hoje instrumentos sobretudo de condicionamento do jornalismo independente, para, através de pareceres e recomendações que não passam de bitates, dar uma capa de impunidade aos infractores, e com a inacção darem uma ideia de que não existem vergonhas na classe. Quanto mais denúncias o PÁGINA UM faz da promiscuidade que se vive na imprensa mainstream, mais ataques recebe dos supostos reguladores.

    Veja-se a título de exemplo, duas deliberações da ERC contra o PÁGINA UM (e virão mais) por notícias que até resultaram em processos contra os queixosos na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    Veja-se ainda o processo disciplinar instaurado pela CCPJ – e por empenhos da sua presidente, Lucília Gago, despeitada por notícias do PÁGINA UM – por mor de uma queixa do almirante Gouveia e Melo por outra notícia que denunciava evidentes (repito, evidentes, e até documentadas) irregularidades no processo de vacinação de médicos não-prioritários contra a covid-19, e que também resultou numa inspecção ainda não concluída (a aberta em Janeiro passado) pela IGAS. A fase de instrução anda a marinar há cinco meses, talvez porque o relator anda a pensar se também deve processar disciplinarmente alguns dos seus colegas da CMTV.

    E veja-se também o papel do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas que, em vez de se preocupar com a promiscuidade de “jornalistas comerciais” (onde até se inclui um vogal da direcção do próprio sindicato), anda agora entretido a fazer pareceres, ora para fazer fretes à presidente da CCPJ, ora para criticar o estilo de escrita usado em rigorosas e documentadas denúncias sobre contratos públicos do Hospital de Braga.

    Aliás, este último caso é exemplificativo sobre o desplante que agora impera: é tão grande o à-vontade das falcatruas e das irregularidades e ilegalidades que os seus autores sentem que até conseguem, com bons empenhos, censurar e difamar um jornal que, por independente, ainda grita que ‘o rei vai nu’. E o facto é que conseguem, mesmo não necessitando sequer de provar que o jornalista mentiu.

    Bem sei que a vida nunca esteve fácil para o jornalismo independente, e que melhor parece estar para os jornalistas pipi sem tintins. E quando criei o PÁGINA UM sabia que um jornalismo independente, fracturante, sem parcerias comerciais e ideológicas nem agendas obscuras, e ainda mais denunciando as promiscuidades da imprensa mainstream, estaria sujeito, mesmo entre os seus pares (ou sobretudo usando estes), a actos de boicote, de censura e de difamação – por exemplo, anda por aí um professor universitário de Coimbra na área da Comunicação Social, com excelentes ligações aos mentideros, a esgadanhar-se para encontrar “provas” da ligação do PÁGINA UM à extrema-direita. E prevejo que se não as encontrar, cansando-se, as tratará de inventar… ou de fazer mais uns pareceres “mui isentos” sobre as minhas “tropelias deontológicas” ali para os lados do Chiado.

    Hoje, bem sei que algumas das minhas notícias, mesmo com o genuíno espírito daquilo que deveria ser a imprensa, podem cair em saco roto. Podem politicamente ser ignoradas, porque apenas lidas por pouco mais de 20 mil pessoas, como esta, sobre os 17 ajustes directos para limpezas do subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira. Podem jornalisticamente ser ignoradas pela imprensa mainstream.

    person holding yellow plastic spray bottle

    Mas prefiro continuar neste nicho do que, por exemplo, fazer o jornalismo ao estilo do making of do Orçamento do Estado publicado no Público na sexta-feira passada por uma directora-adjunta e por uma redactora-principal (não foram jornalistas de uma qualquer secção de social ou de vida mundana), onde se teceram pérolas deste lustre (negritos meus):  

    Mas há sempre coisas de última hora. A equipa das Finanças dorme muito pouco nos dias que antecedem a entrega do Orçamento na Assembleia. Na véspera da entrega, o ministro dormiu seis horas – os assessores obrigam-no, não o querem com olheiras no dia da apresentação solene ao país, o momento alto do ano nas Finanças, um gran finale a que grande parte dos funcionários da casa assistem. Mas se dormiu seis horas na noite antes da conferência de imprensa, na antevéspera Medina dormiu tão pouco que ainda acabou por fazer uma sesta no ministério.

    Os dias que antecedem a entrega “têm 25 horas”, segundo um dos “homens (e uma mulher) do Orçamento”. Há uma equipa permanente que, tal como o ministro, dorme muito pouco. Foi com essa equipa que o ministro se reuniu no princípio de Setembro para fazerem um brainstorming fora do ministério a um sábado de manhã, 8 de Setembro, no Bairro Alto.

    Foi uma reunião fora do horário de trabalho, mas o objectivo era pôr os homens do Orçamento a pensar “fora da caixa”.

    (…)

    Antes do gran finale que é a apresentação ao país, o ministro vai ao Parlamento entregar a proposta.

    Mas este momento não é exactamente o fim. O Orçamento foi entregue no Parlamento, onde pode sofrer alterações. Fernando Medina rompeu com uma tradição de anos e anos em que o Orçamento chegava a altas horas da noite ao Parlamento e inaugurou os “orçamentos diurnos”. Desde o ano passado que passou a ser entregue aos deputados à hora do almoço, o que permite fazer a conferência de imprensa em que o explica ao início da tarde. É uma questão de “organização do trabalho”, defende. Foi o que “combinei com o primeiro-ministro e com a ministra da presidência”. “Queria fazer mesmo isto.”

    Quem escreve isto, nunca, jamais, escreverá, ou quererá que se escreva, em simultâneo, sobre estranhos contratos na Autoridade Tributária e Aduaneira em negócios de milhões com uma empresa de limpeza. Ou não quer que se escreva sobre as dívidas ao Estado de empresas de media, como as da Trust in News e da Global Media. Ou não quer que se escreva sobre… enfim, sobre muita coisa. E mesmo que batam muito no peito sobre o jornalismo e a independência do seu jornalismo, nada mais fazem do que jornalismo pipi sem tintins. E isto é a morte do jornalismo.

    Por isso, caros leitores (onde se incluem, obviamente, as leitoras, mesmo se caras), apenas peço uma coisa: no dia em que me virem a escrever assim, sobre o poder, avisem-me, porque o PÁGINA UM terá de ser encerrado por ter perdido os tintins e só já conseguir fazer um jornalismo pipi.

    E agora, se não se importam, o resto da tarde será dedicado exclusivamente a tratar de questões processuais do PÁGINA UM relacionadas com pedidos de informação ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos e de alguns casos em curso no Tribunal Administrativo de Lisboa, incluindo um em que a CCPJ é réu. A notícia sobre a “fantochada” (será mesmo esse o termo que usarei no título, avanço já) do arquivamento do processo disciplinar ao Doutor Filipe Froes terá de ficar para amanhã… Já agora, embora fosse desnecessário: baseia-se em documentos.

  • Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números

    Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números


    Por estes dias, vou enchendo a paciência para lá do limite do saudável com histórias da carochinha e narrativas de virgens inocentes que já não consigo mesmo suportar. Sabemos já que uma das grandes vantagens de Israel nesta ocupação da Palestina, para lá do suporte financeiro e bélico dos Estados Unidos, é deter um departamento de marketing, infinitamente superior ao dos adversários, que serve para plantar histórias um pouco por todo o globo.

    Por exemplo, a CNN portuguesa entrevistou o embaixador de Israel e, pela mesma altura, um político representante da Palestina. Os discursos não poderiam ser mais diferentes. O primeiro, com um inglês impecável, dirigia-se ao pivot com um: “João, você vive em Portugal, é muito afortunado por isso, está em segurança. Agora imagine que ia ao NOS Alive, e, de repente, entrava por lá um grupo armado que começava a matar toda a gente!”

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    O João (Marinheiro) lá foi digerindo a coisa, e entretanto mete a pergunta fatal: “mas agora o que significa o direito de defesa de Israel?”. Nesta altura, já as mortes palestinianas tinham ultrapassado as baixas israelitas. O embaixador foi rodeando, rodeando, e dizia que não podia revelar os planos, mas que, depois disto, nem o Médio Oriente voltaria a ser o mesmo, nem o Hamas teria nova oportunidade de fazer algo semelhante. Quando o “João” lhe perguntou como é que iriam evitar as mortes civis, ele disse que iam fazer o melhor possível para salvar inocentes, porque, como se sabe, eles já estão lá para escudos humanos de qualquer forma.

    Portanto, com um jargão fantástico e a tranquilidade de quem nos tenta vender uma Bimby, o embaixador israelita foi apresentando o plano para terraplanar Gaza. E muito de vós foram ouvindo aquilo e pensando que, enfim, é natural, afinal, o Hamas matou mulheres e crianças inocentes e jovens num festival. Se agora dois milhões de pessoas, que estão presas desde que nasceram, tiverem de pagar mais um bocadinho, tudo bem, compreende-se. É a clássica lei de talião: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, mas transformada na versão ’olho por vários olhos” et cetera.

    Já o representante da Palestina, munido de um inglês mais rudimentar, dizia algo de puro e simples senso comum: se Israel viesse com uma proposta para os dois Estados e aceitasse negociar, o problema desaparecia. O conflito, o Hamas, o radicalismo, as mortes. E acrescentou, olhando para João Marinheiro: “acha que nós não gostamos de paz? O conflito começou quando eu era criança, e agora, quase a chegar à reforma, ainda não tive um dia de paz.”

    blue and white flag on pole

    O primeiro problema é que não há negociação, não é? Nem agora, nem em momento algum deste século. Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelita com mais tempo no cargo (já vai na sexta vez), teve todas as oportunidades de trabalhar na opção que facilitaria a paz, mas o que fez foi incentivar colonatos e aumentar a repressão. Há entrevistas de Netanyahu nos Estados Unidos, no final da década de 70, onde dizia que o senado norte-americano não podia permitir a opção dos dois Estados porque seria injusto para o povo judeu. Nunca este homem quis outra coisa que não fosse expulsar os árabes das suas casas.

    Quando se fala do Hamas como a origem de todos os males, damos um passo maior no índice de estupidez do que aquele já tínhamos dado com a “origem do conflito na Ucrânia em 2022”: a Faixa de Gaza, que era controlada pelos egípcios, começou a ser povoada pelos palestinianos expulsos das suas casas depois da primeira guerra israelo-árabe, em 1948.

    Não sei se estão a perceber o que vem a seguir. Já os palestinianos viviam em campos de refugiados ou em zonas militarmente controladas há quatro décadas quando o Hamas foi fundado, no final da década de 80. Portanto, não é a coisa mais estranha do Mundo ver o surgimento de um movimento radical quando prendemos pessoas durante 40 anos. Bem sei que, pelos relatos do Antigo Testamento, não são tantos como os 400 anos dos judeus sob o jugo dos egípcios, e que só terminou de forma nada pacífica lembremo-nos, com o Êxodo de Moisés – mas sempre são 40 anos, não é?

    E já agora, apesar de não ser estranho, convém lembrar sempre que Israel achou uma óptima ideia o aparecimento do Hamas e até ajudou, porque lhes dava jeito que fizessem uma perninha na luta com a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Bem sei que já falei disto, mas parece-me algo inacreditável que se repitam horas e horas a fio em horário nobre, sem explicar por um minuto que seja que esta gente não nasceu nas árvores, e que os sentimentos de ódio a Israel também não apareceram durante aquele concerto. Sem enquadrar as acções no contexto, estamos só a ter uma discussão de surdos sem qualquer interesse e puramente assente em ideologias.

    Entre 2008 e 2020, nos diferentes conflitos entre Israel e palestinianos, estimam-se 5.600 mortes e 115.000 feridos para o lado árabe, e do outro lado, 250 mortes e 5.600 feridos.

    Entendam-me, não quero com isto dizer que 250 vidas valem menos do que 5.600. Digo é que, quando se mata 22 vezes mais, é normal que, aqui e ali, vão aparecendo movimentos radicais assentes em ódio. Se pelo menos percebermos esta parte, já conseguimos discutir o conflito para lá dos inocentes num festival que foram atacados por bárbaros. É verdade, mas não é toda a verdade.

    Só nesta guerra, a tal onde Israel teve mais mortos do que nos 20 anos anteriores, ao fim de nove dias de bombardeamentos em Gaza já morreram quase 3.000 palestinianos e há 10.000 feridos e quase um milhão de deslocados do norte de Gaza.

    PALESTINE

    Segundo as Nações Unidas, estima-se que mais de 1.000 pessoas ainda estejam presas (mortas provavelmente) nos escombros. A resposta, o tal direito de defesa que os Estados Unidos apregoam no seu périplo pelos países vizinhos, é assim, há 40 ou 50 anos, ir ao pátio da prisão onde permitem que os palestinianos sobrevivam, e despejar bombas em cima de pessoas que não têm para onde fugir. Como não odiar quem faz isto?

    Que poderá acontecer quando a invasão terrestre começar? Espera-se que os vizinhos fiquem a assistir? A Europa pede que a força não seja excessiva (o tal matar mas com cuidado), os Estados Unidos voltam para a sua guerra preferida (a Ucrânia tem de esperar um bocadinho), e nós, que andamos a apoiar o enfraquecimento de uma super-potência, voltamos a viver o problema de um Mundo controlado por apenas um país sem qualquer contra-poder.

    Depois da covid-19, da Ucrânia e dos juros da Lagarde, o que precisávamos mesmo era de mais um massacre em Gaza e eleições norte-americanas. E pensava eu que 2020 tinha sido um ano de merda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Saúde: uma autópsia – parte II

    Saúde: uma autópsia – parte II


    Temos pois um Portugal com gente com má saúde. A saúde oral é um estado calamitoso. A saúde mental é uma amargura. A nutrição é a rainha de uma epidemia multipatológica, que envolve os excessos de hidratos de carbono, a falta de verdura, a má confecção de alimentos, e claro, a obesidade como fonte da diabetes, da hipertensão, da obstipação, da dor nos joelhos, das doenças psiquiátricas, das doenças inflamatórias intestinais.

    A falta de exercício, a ausência de incentivo ao desporto, quer escolar quer nas instituições, carrega consigo inúmeros problemas como ausência de incentivo à elegância postural, ausência de formação para carregar pesos, ausência de conhecimento mínimo sobre as consequências de uma má cadeira, de um computador mal colocado, um esforço mal doseado ou medido, uma tarefa em posição viciosa. As baixas por dores são inúmeras, as de inadaptação psíquica estão a aumentar, os males da alma, e as teimosias dos trabalhadores também não ajudam.

    Retrato do Midjourney imaginando um hospital caótico em Portugal.

    Tudo isto, que é do domínio da prevenção, da educação e da formação pré-hospitalar; aquilo em que o Partido Socialista menos tem investido, e que mais lucros traria ao país e à população, foi até agora deixado ao Deus dará – Diz que Deus diz que dá, mas para já… demagogia.

    Com toda esta patologia, os doentes procuram diagnóstico e tratamento e poderiam recorrer a vários lugares – consultórios médicos (como em França e no Luxemburgo, onde o dinheiro segue o doente), clínicas, centros de saúde, medicina de proximidade.

    Esta podia ter a possibilidade de activar meios complementares de diagnóstico céleres e também próximos. Podia ainda ter facilidade de encaminhar para resolução em clínicas aquilo que não é grave, mas é urgente pois condiciona dor, grande desconforto, apesar de não colocar a vida em risco.

    Esta opção de não usar recursos privados ou das misericórdias, ter construído um cem número de dificuldades à pratica livre da Medicina e Enfermagem, foi a estratégia socialista contra os pequenos. Um tema que não vem ao caso, mas que importa recordar: matar a farmácia, a loja, a mercearia, o consultório é uma ideologia em favor dos negócios, dos grandes donos do mundo actual, que tem certificações, taxas, exigências ao nível do absurdo, entidades e administrações a comprometer a via aérea dos pequeninos. Claro que não respiram.

    Esta realidade veio com a estratégia de reduzir camas, destruir a assistência pública de proximidade – os tribunais nos Concelhos, os hospitais das comarcas, os postos de atendimento permanente e as escolas das aldeias. Em favor de uma escala maior, que tem obviamente vantagens e desvantagens. Em Saúde as desvantagens estão a descoberto – não tendo onde ir vai-se à urgência. A urgência de hoje é como ir “ao Inter” ou ao Pingo Doce.

    Os próprios doentes, desprovidos de qualquer limite, utilizam indevidamente um recurso que agora começa a queimar–lhes o futuro. Fechando urgências grandes, vai morrer primeiro “gente pequena”. A “gente grande” tem recursos para outros voos, numa fase inicial. É por isto que o Estado deve ter estratégias, perceber os sistemas reguladores, as lideranças que identificam os problemas e os tentam equilibrar.

    red vehicle in timelapse photography

    Os primeiros passos para reduzir este afluxo desmesurado está na coabitação público-privada, na colocação de taxas de utilização, na construção de melhores fluxogramas de atendimento e protocolos de orientação. Formação de médicos para urgência é importante também.

    O fim das parcerias público-privadas (PPP) foi uma catástrofe para Loures, Vila Franca de Xira e Braga. Os centros hospitalares reduziram camas, aumentaram listas de espera, afastaram dos cuidados milhares de doentes. A aposta nos cuidados continuados é uma das grandes falácias que empurra os doentes para unidades onde não há qualquer tratamento de situações agudas, retirando o cuidar das famílias, transferindo para “lares caros” internamentos eternos e nas mãos de negócios, esgotando recursos válidos do lugar onde deviam estar.

    Diogo Cabrita é médico


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