A APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso e a OVAR – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos denunciaram, durante anos seguidos, a presença de centenas de reclusos inimputáveis espalhados pelas 49 cadeias portuguesas.
Uma vergonha num país europeu que se quer moderno e democrático.
Sobre este gravíssimo problema Mafalda Pissara escreveu, a 10 de Maio de 2017, no Jornal Universitário do Porto (JUP) um texto com o título “A Inimputabilidade no Direito Penal Português” onde esclarecia:
“Para que se compreenda a inimputabilidade, importa primeiro falar na culpa. Para haver um crime, a ação que lhe corresponde tem de ser, entre outros, culposa, isto é: há um juízo de censura que se dirige ao concreto agente que cometeu o crime. Portanto, atendendo aos seus conhecimentos e às circunstâncias concretas do crime, pode ser censurável ou não.
Ora, o inimputável é aquele que é incapaz de culpa; ele pratica condutas que não são admitidas pelo Direito – são ilícitas -, mas sem culpa. O regime da inimputabilidade está previsto nos artigos 19.º e 20.º do Código Penal (CP).
No artigo 19.º estabelece-se a inimputabilidade em razão da idade – “os menores de 16 anos são inimputáveis”.
O artigo 20.º do CP, por sua vez, consagra a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica: essa anomalia tem de impedir o agente de distinguir aquilo que é permitido do que não é permitido (o lícito do ilícito); ou, conseguindo distinguir, é-lhe impossível controlar-se e agir de acordo com o que é permitido.”
O que acontece, todavia, é que um inimputável é julgado em Tribunal, muitas vezes condenado a uma pena de prisão, e não internado num hospital ou clínica psiquiátrica.
Pior, quando acabava de cumprir os anos a que fora condenado era analisado por médicos que determinavam se continuava a ser perigoso para a Sociedade sendo que, nesse caso, era determinado que continuasse preso por períodos de mais dois anos após o que se seguia nova perícia e novo prolongamento da pena.
Maneira encapotada de condenar um cidadão (para mais doente) a prisão perpétua que, como se sabe, foi abolida no nosso país onde ninguém pode ser condenado a mais de 25 anos de cárcere.
A recente denúncia – por parte das duas Associações acima indicadas – do caso de um recluso, considerado inimputável, que estava preso há 37 anos, talvez porque tenha tido acompanhamento na comunicação social, fez tocar as campainhas de alarme e aconteceu o habitual: foi publicada, rapidamente, uma Lei a tentar corrigir a situação.
Só que, analisada friamente, acabou por agravá-la.
Determina essa Lei que nenhum recluso pode continuar preso após ter cumprido a sua pena, na íntegra.
O que parecia ser uma descoberta digna de La Palisse resultou, neste caso concreto, no agravar de uma situação já de si dificílima.
O recluso inimputável é colocado em liberdade. E depois?
Quem protege a Sociedade de um cidadão perigoso?
E quem o protege da Sociedade que se sente no direito de se defender?
E quem protege a Família com um problema destes em casa?
A APAR defendeu, sempre, que quando um cidadão chega a tribunal, para ser julgado, caso haja suspeitas sobre a sua saúde mental, os juízes devem requerer uma perícia médica.
Se as suspeitas se confirmarem, e o cidadão for considerado inimputável, independentemente do crime que tenha cometido, deve sair da alçada da Justiça e passar para os cuidados do Ministério da Saúde.
Pelo simples facto de ser um doente e não um criminoso na verdadeira acepção da palavra.
Deve ser internado num quarto de hospital psiquiátrico, tratado e guardado por enfermeiros e médicos e não numa cela de uma qualquer prisão ao cuidado de guardas prisionais, sem capacidade para com ele lidar e para segurança de todos.
Para além do mais, se a sua doença não for curável, o que infelizmente acontece com frequência, poderá e deverá ficar internado até ao fim da sua vida e sem se infringir qualquer lei.
É doloroso reconhecer isto, mas é a realidade.
Para além do mais há a situação dos juízes que, certamente, não ficarão confortáveis ao condenar à prisão alguém que ali está por ser doente.
Todos sabemos que a única razão para esta prática é que a falta de hospitais psiquiátricos, e a necessidade de isolar estes doentes, obriga ao recurso desumano de os “internar” numa cadeia.
Poucos saberão, todavia, que ali são duplamente punidos porque a comunidade reclusa deles se defende, muitas vezes com violência, quando são fisicamente perigosos, ou deles abusa quando são apáticos, desligados do mundo, inofensivos.
Esta lei é uma tentativa de lavar as mãos de décadas de inércia e incompetência de vários Governos.
Como muitas outras, agravou o problema, repete-se.
Não sei como o resolver, confesso, a não ser com a criação de mais clínicas e hospitais psiquiátricos.
Vivendo em Portugal sei que isso é extremamente difícil.
As prioridades, no nosso País, são estranhas.
Aqui governa-se com prazos de quatro anos, no máximo, porque o que conta são os resultados das eleições e os inimputáveis não votam.
Embora, por vezes, e atendendo aos resultados, eu fique com muitas dúvidas.
Vítor Ilharco é secetário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Já ninguém sabe onde foi que a borboleta bateu as asas e onde é que foi que esse movimento desencadeou o terramoto, mas esta nova versão do Caos que já tem crises na Ucrânia, na América, na Europa, no Médio Oriente… será que sabemos que as crises eram mesmo essas? Não vamos antes acordar amanhã e descobrir o quê, que de repente a República Centro-Africana tem todas as armas e todos os homens de que precisava para massacrar toda a gente de todos os países à sua volta porque andou secretamente a ser muitíssimo bem paga para dar guarida e espaço ao partido de extrema-direita que toda a gente achava que ia ganhar as eleições na Argentina[1]? Faz lembrar um certopermanentemente ébrio Edgar Albert Ponting que vem ajudar Lawrence Durrell como segundo-secretário para a Secção de Imprensa de Belgrado nas cenas da vida de diplomática coligidas em 1957 em STIFF UPPER LIP, e depois não dura mais do que um mês no posto por indecente e má figura. “Há anos li que ele tinha sido transferido para o Ministério das Colónias, e a partir desse dia, acreditem ou não, mal abria um jornal descobria que tinha rebentado uma crise na colónia onde Ponting se encontrava colocado nesse momento. É possível que se deva à influência de Ponting a rapidez com que o império britânico se desintegrou. Nada me surpreenderia.”
Não olhem para mim. Não estou a brincar. Sempre disse a quem aguentou ouvir-me que a globalização era uma péssima ideia, mas estar hoje a assistir à demonstração exacta disso mesmo não me faz especialmente feliz.
Num mundo horrível em que tudo é possível, a única coisa que esta nova demonstração de que o diabo existe sugere, aqui à superfície e em termos académicos, é um estudo mais aprofundado da forma como a situação americana controla o movimento de rotação da Terra em torno do seu eixo. Claro que é uma sugestão muito chata[2]. O pior é que é verdadeira, portanto temos que aprender depressa a viver com ela. A nuvem negra que paira hoje sobre a qualidade e a decência do mundo não precisou sequer da invenção dos verdadeiros Anjos Caídos. É triste, é como se até o movimento de translação da Terra em torno do Sol estivesse em risco[3], mas a verdadeira sombra que paira sobre todos nós, independentemente de quem dê a cara por ela[4], vem mesmo da Terra das Oportunidades e não vai sair de cena tão cedo. Essa sombra, de costa a costa, é projectada pelo espantalho de Donald Trump e pelas leituras que o mundo faz desse espantalho. Do seu, e do número crescente dos seus imitadores[5].
Laurence Durrell (1912-1990)
Em 2017 eu fiquei calada e composta no meu lugar enquanto, mesmo na minha cara, um comentador político por quem tenho o maior respeito dizia em directo para os americanos, e em diferido para uma parte impressionante do mundo, que a melhor forma de evitar a crise do petróleo e a escalada do aquecimento global era o investimento maciço no nuclear. Respeitei o meu papel[6], fechei os olhos, respirei fundo, e retrocedi no tempo por forma a ter outra vez 27 anos e estar a ouvir o Prof. Veiga Simão a dizer-me na cara que não tinha conseguido implementar o seu programa das centrais nucleares portuguesas por causa da série de seis reportagens que eu e o Henrique Monteiro publicámos em parceria no semanário O JORNAL[7].
Ah, isso sim.
Isso foi muito bom.
Mas qualquer um de nós, se vive em democracia e tenciona dizer o que pensa, antes de mais nada respeita o que dizem os seus parceiros e aceita o lugar que lhe é atribuído – ou, se não respeita nem aceita, avisa antecipadamente que não poderá comparecer.
Já agora, quem os tiver no sítio que esclareça que não pode comparecer por uma questão de princípios.
Eu uma vez pedi desculpa ao produtor, fiz questão de acrescentar que a recusa não tinha nada a ver com ele, e a seguir disse isso mesmo: não posso ir ao seu debate por uma questão de princípios. Recuso-me a contribuir para dar qualquer espécie de visibilidade acrescida a pessoas por quem não tenho respeito moral ou intelectual ou ambos, e nem vou dizer nomes.
Mais tarde apareceu-me no correio uma multa da BT fundamentada numa flagra de radar. Ia a guiar a a falar ao telemóvel ao mesmo tempo. E de maneira que lá passei mais uma noite a ouvir o Dick xingar-me a paciência com a questão de nós, portugueses, sermos todos uns condutores suicidas, coisa que eu, agora que era Mãe, deveria levar muitíssimo mais a sério.
“Nem sequer te orgulhas das minhas questões de princípios?”
“Não me orgulho nada do dia em que ninguém, no teu país, te contratar seja para o que for – e depois como é que vais pagar todas estas despesas?”
“Pois foi, por uma fracção de segundo até me esqueci que todos os Founding Fathers tinham escravos para o seu próprio bem e nenhum deles queria pagar impostos para o bem comum.”
O Dick também tem princípios. Também recusa embarcar em imensas minudências por uma questão de princípios. Tínhamos os dois tantos princípios, baseados em tanta cultura, que às vezes, à noite, com os putos adormecidos que nem uns anjinhos, ele me abraçava e dizia,
“Ai Clarinha por favor, vamos parar com isto, parecemos dois boxers muito velhos e muito bons que já partiram a cara toda um ao outro mas nunca mais saem do ringue,”
e adormecíamos logo que nem uns anjinhos, nós também.
Como nos casámos em Las Vegas, ainda considerámos ir divorciar-nos a Reno. Eu ainda andei para ali a cantar aquele clássico imorredoiro do Johnny Cash, I SHOT A MAN IN RENO JUST TO WATCH HIM DIE. Mas não dá. Um casamento é uma aventura e um divórcio é a treva, e não há nada a fazer a esse respeito.
A seguir fomos tomar café e eu disse,
“Dickinho, se conseguirmos ter menos princípios talvez daqui a uns anos…”
“Não,” disse ele, muito baixo, muito firme, muito gajo. “Clarinha, tu já viste bem a grande porcaria em que o mundo inteiro tem vindo a transformar-se? Se não forem as pessoas como nós a ter princípios, quem é que vai tê-los? Desculpa, a Hillary Clinton, com todas as suas ligações a Wall Street e à Alta Finança? Achas? Mesmo? Que essa gente, que controla a América, que por seu turno faz tudo o que pode para dominar o mundo, tem princípios? Clarinha?”
O Dick sempre teve, e continua a ter, este traço de personalidade irritante de ver claramente o passado, sumarizar o presente numa frase, e ter umas ideias sobre o futuro que nunca são desinteressantes. Antes de aparecer o Obama, andava excitadíssimo com a rapidez com que os latinos e os chicanos se reproduziam. Aquela gente estava a transformar-se na nova maioria populacional, ia toda votar, era toda católica, portanto, finalmente – tiro no porta-aviões. A Compaixão ia entrar nas prioridades do País Mais Poderoso do Mundo.
Depois apareceu o Obama e estivemos três horas aos berros de grandes visões no Skype. Ele convenceu-me que era possível quando ainda ninguém sabia dizer Barak.
Depois vivemos durante oito anos com um governo que agora, visto daqui, parece um franchising das Nações Unidas.
Mas, exactamente durante esse Intervalo do Bem, fomos obrigados a aprender as lições mais amargas de todas. O Presidente do País Mais Poderoso do Mundo pode ser bonito, um grande dançarino, um grande cantor, um grande stand-up comedian, um gajo que arrepia toda a gente quando se atira mesmo à jugular, um político que detesta o Putin ainda mais explicitamente do que a Princesa Diana detestava o Príncipe Carlos, o grande herói que consegue, por fim, pôr a funcionar um Sistema Nacional de Saúde tão bem montado que Donald Trump teve quatro anos para espernear mas não conseguiu desmontá-lo[8], o ser humano que chama sonhadores[9] às pessoas que dantes eram conhecidas como imigrantes ilegais e dá mesmo tudo por tudo para regularizar as suas vidas[10].
Os seus discursos podem ser bestiais, a sua mulher pode ser linda, podem estar os dois indiscutivelmente apaixonados e dedicar todo o tempo que tiverem às filhas, e mais. Michelle pode abraçar a solo causas dificílimas para os americanos, como por exemplo correr as escolas dos cinquenta estados para estimular alunos e professores no sentido de comerem menos[11] e se mexerem mais. Pode não ter medo de dançar ela própria na televisão, para mostrar que fácil e que curtido que é dedicar quinze minutos de intervalo a uma cena de aeróbica. Pode fazer coros para o Bruce Springsteen com um à-vontade total, e agarrar na pandeireta para marcar o ritmo do GLORY DAYS como se nunca fizesse mais nada na vida. Pode fazer discursos de improviso. E – no total oposto do desastre pessoal de Hillary – toda a gente concorda: “she’s a sweetheart.”.
Quando aqueles dois se retiraram era só apresentador de late night show atrás de apresentador de late night show, na rádio e na televisão, a implorar-lhe que se candidatasse ela a seguir.
Ela ria-se, mas ria-se mesmo, e começou a dar uma resposta que acabou por transformar-se num refrão extremamente apetecível,
E era um sonho tão lindo que foi preciso aqueles dois desaparecerem mesmo de cena para…
… que horror, foi só nessa altura que saltaram das névoas marginais todas aquelas sombras que estavam escondidas por trás da luz.
Essas sombras continuam a nunca se ver bem, mas desde que agarraram nas rédeas nunca mais as largaram, e é exactamente como na história do Ricardo Salgado, nós não podemos provar absolutamente nada mas sabemos que são elas que mandam em nós.
Pessoal, vocês estão bem a ver o xadrez do inferno que agora se joga a toda a nossa volta? Estão a ver bem que trémula que já se tornou a noção da democracia, quando num total de 27 países há quatro que votam contra a continuação do apoio da União Europeia à Ucrânia e toda a gente faz disso uma grande desgraça, como se fosse obrigatório votar em bloco, ao melhor estilo ditatorial? Num mundo destes, as questões de princípios não poderiam ser mais importantes. O respeito tem que começar a ser ensinado nas escolas. Anteontem, no fim de uma explicação, disse a um miúdo de catorze anos que teve a lata de me fazer perguntas muito ordinárias sobre a minha vida amorosa[13] que, antes de mais nada, ele nunca deveria ter podido fazê-las estritamente por uma questão de respeito, e ele recuou um passo, abriu muito os olhos, respirou fundo, e acabou por perguntar,
“O que é uma questão de respeito?”
Ainda por cima, não esqueçamos que o mundo sempre foi assim desde que temos registos da actividade humana. Os jardins de Shangri-La sempre estiveram à mercê de vandalismos sacralizados no intervalo entre duas batalhas sanguinolentas travadas no âmbito de uma guerra interminável com uma tendência raivosa para rebentar em nome de um deus qualquer, ou mesmo, pura e simplesmente, em nome de formas diferentes de venerar o mesmo deus – é ver como isso abunda desde que os gregos cilindraram os troianos, desde que os vikingues invadiram a Mongólia, desde que os hunos desceram até França, desde que Hypatea de Alexandria foi lapidada por uma turbamulta de cristãos em puro estado de histeria porque preferia a Filosofia à Religião, desde que Henrique VIII mandou decapitar o seu grande amigo Thomas More apenas porque ele se recusou a tornar-se anglicano e a sua filha Maria Tudor mandou cinco mil súbditos para a fogueira apenas porque eles se mantinham protestantes em vez de se converterem ao catolicismo, enfim – é rememorar todos estes lugares-comuns, mais todas as actividades diabólicas dos condutores de seitas como a dos seiscentos americanos que o reverendo Jones levou consigo para a Guiana em pleno século XX para lhes ordenar que se suicidassem em massa depois de envenenarem em massa, ordem que a seita acatou com tanta limpeza como a das meninas apaixonadas por Charlie Mason que esfaquearam a Sharon Tate, é eu contar-vos que aos dezanove anos, ao fim de três semanas, o meu filho mais velho fugiu aterrorizado da sua primeira experiência de vida independente com mais outros três rapazes num apartamento para os lados das Amoreiras porque eles passavam a noite inteira a meter linhas de coca enquanto viam na TV-Cabo programas sobre os Illuminati e sobre as seitas Satânicas, é deixar o puto dormir uma noite na cama da Mãe para conseguir dormir mesmo, é voltar a embalá-lo como dantes, engolir em seco, e recordar, uma vez mais, que a humanidade tem uma face lunar que quanto menos a gente tiver que ver melhor.
O pior é que, em tempos como este, temos que vê-la todos os dias.
E o condutor de seita diabólica mais diabólico de todos é, sem dúvida, o Donald Trump.
Se me disserem que Putin é um ditador bastante mais aflitivo do que Trump, e que, muito provavelmente, a sua longa escola no KGB lhe permite ter hoje em dia uma boa metade do mundo na mão, eu concordo incondicionalmente. Qualquer psicanalista que proponha a tese de Putin ter passado a infância a sonhar que havia de ser um novo czar de uma nova Grande Mãe Rússia está certamente cheio de razão, e qualquer geoestratega que acrescente que ainda por cima o cabrão conseguiu mesmo alçar-se exactamente a essa posição ainda completa melhor a composição. E por aí fora, devido a várias outras palavras acabadas em mente, tais como folha, automóvel, e paraquedista. Putin é o veneno russo personificado, é possível que daqui a uns anos seja o dono de nós todos e também da TAP, e tudo isto se vê bem e se entende muitíssimo bem.
O que torna Trump incomparavelmente mais diabólico que Putin é que ele já é o dono de nós todos e também da EDP, mas, como as suas manobras foram congeminadas nas sombras que se escondiam por trás da luz dos dois mandatos Obama, e ainda por cima o gajo é bruto que nem uma porta e um consumado bandido que se orgulha da sua esperteza que lhe permitiu não pagar um cêntimo de impostos durante vários anos seguidos e ao ser desmascarado pelos democratas transforma essa esperteza num slogan de campanha[14], nada do que lhe diz respeito se vê bem ou se entende bem.
A única coisa que se vê muito bem é que há cada vez mais dirigentes espirituais no mundo inteiro que vêem em Trump o modelo perfeito de indecência e brutalidade a seguir por forma a capturar o entusiasmo de todo o lixo dos seus países – e levem a taça que isto até Jesus sabia, qualquer país é uma lixeira infecta à espera de ter condições para cobrir todo o terreno livre à sua volta. Depois abrirá as portas às hienas e às gaivotas, esta nova fauna mantém o lixo controlado com muito prazer, e nós umas vezes somos necessários para limpar o chão de um novo arranha-céus na Malásia e outras vezes somos absolutamente descartáveis. O que já não somos, quando chegar a hora, é donos do nosso destino. E ainda bem. Quem é que quer ter que pensar no seu destino?
Que neura.
O nosso destino, para falar bem e depressa e inequivocamente, é sempre muita mau.
Ainda por cima – e este desastre inacreditável Trump já conseguiu semear como sizânia pelas sete partidas do mundo – já nenhum povo acredita na fiabilidade do sistema eleitoral do seu próprio país. Com este horrível presente envenenado já a extrema-direita americana conseguiu minar o chão que a humanidade ainda vai tentando pisar para sair da lixeira. Não adianta. As notícias são todas falsas e os votos foram todos manipulados, portanto a democracia nem sequer existe a não ser nos tais supracitados e muito louvados romances russos onde se aprendem todos os segredos do funcionamento do Mal.
E nós, os discípulos, já nos tornámos melhores do que os mestres.
Até convivemos fraternalmente com as hienas.
Somos o futuro.
Deixem-nos passar.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Isto agora é mesmo assim, havendo um partido de extrema-direita que concorra a qualquer eleição já nem se faz trabalho de casa: é evidente que essa eleição será falsificada, e que, consequentemente, esse partido vai ganhar.
[2] A ter que escolher uma única explicação para o controlo do movimento de rotação da Terra, eu por mim prefiro a de Isaac Newton, que atribuiu esse controlo ao trabalho árduo, constante, e seriamente matemático dos anjos. Este controlo explicava imensas passagens estranhas das Escrituras através de diversas operações de cálculo baseadas em geometrias que devem ter feito do Pitágoras o morto mais feliz do mundo.
[3] Sobre este, Newton preferiu nem se pronunciar. Cerca de setenta anos antes, o luterano Johannes Kepler, que estava em Praga a fazer os horóscopos diários do Imperador católico Rudolfo da Baviera, já tinha estragado a festa a toda a gente quando percebeu que as posições irregulares dos planetas enquanto giravam em torno do sol se devia ao facto de as suas órbitas não serem esféricas, como sempre se pensara, mas antes elípticas. O próprio Kepler odiou este resultado, e foi muito claro a esse respeito quando o publicou “por respeito para com Filosofia”. A esfera é o símbolo da perfeição. A elipse é o símbolo de tudo quanto é caótico e ficou para sempre inacabado.
[4] Ou queira parecer que dá, um apetite que já não serve nem para vender jornais, mas serve sempre para aumentar ainda mais a confusão.
[5] Nem que mais não seja, porque é bastante mais fácil berrar do que reflectir. Mas isto é só a base antiquíssima por onde começa a história de todas as tragédias humanas, incluindo aquelas que nos são relatadas minuciosamente por Diogo do Couto, João Baptista Lavanha, e Francisco Vaz d’Almada, nas HISTÓRIAS TRÁGICO-MARÍTIMAS. Muito berra toda aquela gente. Às vezes, como no caso da Grande Nau Santo Alberto, berra e morre afogada com a terra ali mesmo à vista. Mas como chegar a terra, por muito bem que ela se visse? Lá está – haveria que reflectir. Já agora, também haveria que ter reflectido antes de desobedecer sistematicamente às ordens da Coroa e não fazer qualquer espécie de manutenção nas Grandes Naus da Carreira das Índias durante todo o tempo em que elas estavam aportadas em Goa. Enfim. Banalidades.
[6] Estava ali para falar dos benefícios e malefícios da Reprodução Medicamente Assistida, por causa do livro escrito em co-autoria com o Scott Gilbert FEAR, WONDER, AND SCIENCE, que ia ser publicado em breve pela Columbia University Press. Por acaso estudei criteriosamente a energia nuclear durante o meu curso de Biologia, sei por razões muito sérias que é a pior solução possível para toda e qualquer crise e das energéticas quanto menos se falar melhor, e claro que me apeteceu vituperar tudo isto – mas não competia a nenhum dos convidados interromper brutalmente o moderador.
[7] Talvez o Henrique ainda tenha essa série, ou saiba onde ela está. O tema é intemporal. Lembro-me de termos começado o primeiro artigo incitando o leitor a ler mesmo, com a seguinte promessa: “Pode ler tudo até ao fim descansado. Verá que não falaremos de passarinhos nem uma única vez.” E, se bem prometemos, melhor cumprimos.
[8] Não sei se isto, à época, ficou suficientemente claro em Portugal, mas nunca tinha existido qualquer espécie de SNS na América. Quarenta milhões de americanos sem dinheiro para comprarem o seu próprio Seguro de Saúde bem podiam esticar o pernil diante das Urgências dos Hospitais, que todos aqueles médicos, com todos os seus Juramentos Hipocráticos, nem sequer olhavam para a porta: sem Seguro de Saúde, ninguém podia entrar num hospital americano. Antes do Obamacare entrar em efeito no Massachusetts, precisei de fazer um exame mesmo chato, uma punção espinal, e nem queria acreditar: despacharam-me sem anestesia logo ali na Urgência, para eu poder voltar para casa pelo meu pé assim que os analgésicos começassem a fazer efeito. O Seguro que a Universidade proporcionava aos Professores Estrangeiros não pagava cá mordomias tais como refeições e internamentos.
[9] Durante oito anos, antes de Trump começar a construir a vergonha do Muro e a separar as suas famílias, aquelas pessoas foram os dreamers. Os estudantes universitários que falavam inglês conseguiram chegar ao ambicionado Cartão Verde. A prazo, há de permitir-lhes naturalizarem-se, e, a seguir, chamar pais e filhos. Desde que a Duck Dynasty fique onde está a matar patos.
[10] Conseguiu regularizar tantas, de forma tão hábil, que ainda hoje não há percentagens. Percentagens sérias implicariam que seria fácil desencadear progroms sérios. Há coisas que os negros americanos sabem melhor do que ninguém.
[11] E melhor. A maioria dos americanos desconhece o sabor da fruta e dos legumes. E nunca bebeu água na vida.
[13]Amorosa é como quem diz. Eu com 68 anos e o menino a fazer-me perguntas sobre a minha vida sexual. A parte mais desastrosa é que o Josué não estava, com toda a evidência, minimamente consciente da sua própria ordinarice e das razões óbvias que tornavam aquelas perguntas inaceitáveis.
[14] “Yes, America! Can you hear me! I didn’t pay taxes! THAT PROVES THAT I’M SMART!” A audiência levanta-se a aplaude-o de pé. Milhões de pessoas orgulham-se da esperteza do seu dirigente espiritual. A gente nunca viu nada assim e sente a cabeça a andar à roda.
Ontem, o PÁGINA UM foi obrigado, pela segunda vez no espaço de uma semana, por deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a publicar um direito de resposta do director do Público, David Pontes. Em causa estiveram duas notícias factuais do PÁGINA UM que revelavam as promiscuidades comerciais entre este órgão de comunicação social e, no primeiro caso, entidades públicas (Biopolis e Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte) com vista à prestação de serviços de ‘feitura’ de notícias de ambiente; e, no segundo caso, uma farmacêutica (Sanofi), com vista à ‘promoção’ de uma doença (infecções pelo vírus sincicial respiratório) para a posterior ‘promoção’ e venda de um fármaco.
David Pontes justificou, em ambos os casos, que as notícias – factuais e evidentes – do PÁGINA UM afectavam o “bom nome” daquele jornal. Sou de opinião de que o “bom nome” de alguém, ou de um jornal, é afectado sobretudo pelas suas próprias acções, e mal seria se um mensageiro ou um denunciante, dizendo a verdade, fosse agora culpado pela perda desse suposto “bom nome”. O jornalismo é, sobretudo, não assumir que o “bom nome” é algo perene, que não pode ser colocado em causa.
Bem sei que o instituto do direito de resposta é sagrado – e o PÁGINA UM só não o aceita de imediato, como sucedeu aos pedidos de David Pontes, quando, através dessa resposta, se transmitem falsidades sobre o meu trabalho e sobretudo se notar ali posturas de hipocrisia. Nesses casos, somente publicarei direitos de resposta sempre sob protesto, em consequência de deliberações da ERC.
Sobre esta matéria, e porque é vedada a possibilidade de contra-argumentar no próprio dia da publicação do direito de resposta, atente-se agora na parte final do texto de ontem de David Pontes: “No PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais. A redacção não faz escolhas editoriais tendo em conta o que sai ou não sai no Estúdio P ou noutro espaço comercial.”
Nem de propósito, enquanto escrevia este texto, decorre no auditório do Museu do Oriente uma conferência subordinada ao hidrogénio verde, a ser transmitida online, “promovida pelo jornal Público em parceria com as Galp, a Hyveritas, a PRF, a SmartEnergy, com o apoio institucional da Associação Portuguesa de Energias Renováveis e da Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio e ainda tendo a Deloitte como parceira de conhecimento”. Assim é apresentada. E consta na secção Estúdio P, com a devida referência a “Conteúdo comercial”.
E é “Conteúdo Comercial” porque, na verdade, mesmo que se ouça ou leia “parceria”, há sim um pagamento pelos ditos “parceiros”, que, na verdade, recebem uma factura pela prestação de serviços, neste caso, a conferência com direito ao uso da chancela Público, como jornal.
Mas é aqui que a ‘porca torce o rabo’. e é aqui que muitos directores editoriais permitem a promiscuidade que somente uma torpe hipocrisia pode sustentar.
Pode defender-se que um jornal, ainda mais nestes tempos de multimédia, se comporte como uma estação de televisão ou uma rádio, fazendo conviver programas de entretenimento ou de formação – onde é mais do que aceitável e bastante justificável o patrocínio ou publicidade, devidamente identificados – com programas de informação. Porém, nos programas de informação ou com conteúdos informativos jamais é aceitável que surja directa ou indirectamente qualquer relação comercial externa com a actividade jornalística, mesmo se implicitamente mencionada sob a forma de “parceria”, porque isto é um eufemismo comercial para prestação de serviços a troco de dinheiro.
E, no meio disto, os jornalistas só podem fazer como o diabo fez à cruz: fugir dali a sete pés. O mundo dos jornalistas é fazer notícias; não é ser um funcionário comercial.
Ora, no jornalismo, tem de se ser como a ‘mulher de César’. E por isso quem diz: “No PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais“, tem de ter noção do valor das palavras.
Assim sendo, quem acham que foi o mestre-de-cerimónias da dita conferência comercial sobre hidrogénio verde paga por um leque de empresas e associações?
Nem mais: David Pontes, director do Público – esse mesmo que, vamos lá repetir, escreveu que “no PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais”, e que garante que “a redacção não faz escolhas editoriais tendo em conta o que sai ou não sai no Estúdio P ou noutro espaço comercial.”
Como manter a equidistância quando jornalistas noticiam sobre empresas que, por sua vez, são parceiras comerciais em eventos pagos onde esses jornalistas participam activamente?
Mas se David Pontes quer manter a aparência de jornalista impoluto – batendo no peito a sua independência e mostrando-se ofendido por acusarem o seu jornal de promiscuidades –, não convém então que vista a pele de lobo, querendo com isso parecer cordeiro.
Não convém nada que, por exemplo, apareça assim numa sessão de boas-vindas de um evento comercial – um dos tais que ele diz não sabe nada nem ter de saber –, a declarar logo no início: “Queria agradecer a todos os presentes e a todos os que fizeram esta conferência possível; obviamente aos nossos parceiros: a Galp, a Hyveritas, a PRF, a SmartEnergy, a Deloitte, como nossa parceira de conhecimento, e ainda obviamente a Associação Portuguesa de Energias Renováveis e a Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio”.
Isto foi o que ficou gravado. E imagine-se aquilo que não ficou, entre salamaleques, enquanto a Público Comunicação Social S.A. facturava aos “parceiros” a credibilidade de um jornal com a presença do seu próprio director como mestre-de-cerimónias. Não é essa a função de um jornalista, muito menos de um director que quer ser credível, e que acha que o jornalismo se credibiliza com essa promiscuidades.
Enfim, o problema disto tudo não é só a hipocrisia; é estar a matar-se, assim, o jornalismo. E achar-se que o ‘mau da fita’ é o mensageiro e não o hipócrita que só torna a degradação ainda mais lastimável.
Parece estranho olhar para o Orçamento de Estado num momento em que o Planeta arde com guerras, taxas de juro, inflação e um empobrecimento geral da população. Tendo em conta a irrelevância de Portugal no contexto internacional, e o caos em que estamos mergulhados, pensar na política nacional e nas decisões à nossa micro-escala, é quase um momento de puro masoquismo.
Mas como já expliquei algures por estes textos, eu sou aquele tipo de pessoa que reduz a velocidade, causa algum congestionamento na estrada e fica ali a olhar para o acidente do outro lado da faixa, enquanto segue a 20 quilómetros por hora. Não consigo evitar olhar para desgraças e, como tal, mesmo com dramas e calamidades a encherem as 24 horas do dia, fui perder tempo à volta do debate do Orçamento do Estado apresentado pelo Partido Socialista (PS) para 2024.
Olho sempre para Orçamentos com alguma desconfiança porque, no essencial, parece-me que os sucessivos Governos se limitam a distribuir apoios e subsídios e nunca a fazer as reformas estruturais ou a tomar as opções políticas que o país precisa. Com a Educação como ponto de partida, obviamente. E quando falo em Educação, refiro-me a tudo o que vai da creche até à universidade. Grátis e universal. É esse o desígnio de um país que se quer desenvolver e não apenas fazer de incubadora de talentos para os países de primeiro mundo.
As linhas gerais deste orçamento são um sonho para a direita e veio daí a minha principal curiosidade. O que diriam o Partido Social Democrata (PSD) e a Iniciativa Liberal? O Chega nestas contas não importa tanto porque, por regra, grita e critica para chamar a atenção mas não tem ideias para apresentar. E enquanto for assim, são um problema a menos. Quando além do milhão de votos começarem também a ter propostas inteligentes, é que a coisa fica sem solução.
Redução do IRS nos cinco primeiros escalões parece ser uma boa iniciativa, apanhando a maior parte dos trabalhadores e deixando aqueles que ganham mais de 2000 euros de fora. O que em Portugal se considera rico, num país desenvolvido seria um pobre, mas enfim, há que começar por algum lado. Ao mesmo tempo, aumentam-se alguns impostos indirectos em artigos como o tabaco e outros não essenciais para não causar muita polémica e ainda aliviar o SNS. Medina repetiu várias vezes o jargão das “contas certas” que, por tradição, pertencia ao PSD de Passos Coelho.
Luís Montenegro anda há meses a dizer que o Governo de Costa é o campeão dos impostos, e Costa resolve baixar os impostos sobre os rendimentos. Julgo que cheguei a ouvir o PSD a queixar-se das pensões baixas e dos aumentos miseráveis dos salários na função pública. Montenegro grita por medidas em que nunca acreditou e tenta ultrapassar o PS pela esquerda. O que faz António Costa? Aumenta as pensões acima do nível da inflação e passa o salário mínimo para 820 euros, ultrapassando o PSD pela direita.
Até o IVA da restauração diminuiu, uma antiga exigência da direita no apoio às empresas. A TAP, como se sabe, está a caminho de ser vendida e o governo, já se percebeu, também não vai travar o aumento das rendas. Em resumo, o PS apresentou o orçamento com que o PSD sempre sonhou e, de uma só vez, secou a direita e deixou Luís Montenegro sem qualquer oposição para fazer. O que disse ele? Que o PSD votaria contra o Orçamento porque, e cito, “o partido não poderia votar de outra forma um documento que continua a viver da “ilusão” das alegadas contas certas, de uma suposta baixa de impostos que não acontece e de serviços públicos mínimos, ao mesmo tempo que hipoteca o futuro do país e adia reformas verdadeiramente estruturais”.
Estão a compreender? O PSD de Montenegro queria contas menos certas, mais impostos e mais serviços públicos. Um dia que nunca pensei ver, afinal, chegou. Melhor teria feito se, tal como a IL e o Chega, se tivesse agarrado com unhas e dentes a disparates como o aumento do IUC (Imposto Único de Circulação) para automóveis mais velhos. Não tendo nada para dizer, disfarça-se a ausência de projecto próprio procurando algo para criticar, mesmo que seja o IUC, esse desígnio nacional de extrema importância.
O que o PS conseguiu com este Orçamento, não foi propriamente melhorar muito a vida dos portugueses. No essencial, continuaremos pobres, sem criar riqueza, sem ter uma educação verdadeiramente universal e com um SNS em contínuo estado de degradação. O que António Costa e a sua equipa de ministros fizeram foi mostrar ao país que a oposição de direita não tem uma única ideia, um único projecto, uma única visão para o desenvolvimento de Portugal.
Até aqui, pensava-se que o papel de cavalgar as gaffes do governo e disfarçar a falta de ideias com gritos era uma exclusividade do Chega. Agora percebe-se que é um denominador comum à IL (já se desconfiava) e até ao PSD, que deveria ter mais alguma responsabilidade na vida pública portuguesa.
Reparem até no alinhamento patético e algo deprimente que, esta tríade, consegue ter em assuntos verdadeiramente sérios para lá do parlamento português. Todos condenaram, com maior ou menos violência, as palavras de António Guterres sobre as constantes violações de Israel em Gaza.
Se no caso de André Ventura não se espera outra coisa porque se rege pelo racismo básico contra árabes, já de Paulo Rangel e Cotrim Figueiredo, aguarda-se mais alguma inteligência e conhecimentos básicos de história, mesmo que aborrecidos para a ideologia.
Não há oposição de direita em Portugal e a que, neste momento, faz esse papel, é apenas uma piada de mau gosto. Montenegro nunca chegará a primeiro-ministro enquanto Costa, o sonho de qualquer verdadeiro partido de centro, por cá andar. E neste cenário, apenas neste cenário, essa não é uma má notícia. O Governo não é bom, e desde 2020 tem acumulado um rol de disparates a considerar mas esta oposição que lhes tocou, nem de encomenda poderia ser melhor.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Numa altura em que o país debate o Orçamento de Estado para 2024, e na mesma semana em que se assinou o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, é pertinente fazer-se uma reflexão sobre a situação em que nos encontramos e o rumo que estamos a tomar – não obstante muitos de nós termos os olhos postos no conflito Israel-Hamas. E, infelizmente, parece que ainda não é possível, nem será tão cedo, vislumbrar a cada vez mais esperada “luz ao fundo do túnel”.
Um relatório recente da Rede Europeia Anti-Pobreza revelou dados preocupantes – que se tornam ainda mais alarmantes tendo em conta que se referem a 2021, não reflectindo por isso a hecatombe da crise inflacionista e do aumento dos juros que o ano de 2022 nos trouxe. Ou seja, o cenário será ainda mais negro. Há dois anos, segundo este relatório, quase metade da população assolada pela pobreza encontrava-se, mesmo assim, a trabalhar. Também havia 1.696.000 pessoas em situação de risco, significando que os seus rendimentos se situavam abaixo dos 551 euros mensais.
O Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza também levou a que a atenção mediática e política se debruçasse, por momentos, no flagelo dos sem-abrigo, com o Presidente da República a pedir para se fazer mais, mas sabemos que ele é reincidente em pedidos deste género, como se viu em 2019 e no ano passado. Apesar dos desejos presidenciais, já havia sido noticiado em Setembro que Portugal é o sexto país da União Europeia com mais sem-abrigo, com quase 10 mil pessoas nessa condição. O Governo, por seu turno, aproveitou a efeméride para apresentar o “Plano de Acção da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2022-2025”.
Mas se a pobreza extrema é um problema grave e que necessita de ser combatida, é igualmente pavoroso assistir a uma classe média cada vez mais estrangulada, num país onde quem aufere 2000 euros brutos pertence ao clube dos mais “ricos”, e com um nível de vida já mais baixo do que a Roménia.
Ora, face às dificuldades financeiras crescentes, algumas das principais medidas previstas no Orçamento de Estado e que o executivo anunciou de forma emproada, foram a diminuição do IRS, o aumento do salário mínimo e de apoios sociais como as pensões e o abono de família, e subsídios a vitimas de violência doméstica. Uma migalha para cada nicho de eleitores, portanto, capitalizando o desespero generalizado – mesmo que, no fim, fiquemos com menos.
Quanto ao salário mínimo: se metade dos pobres, trabalham, deixarão de ser pobres com mais 60 euros por mês?! E se o preço das casas sofreu um aumento de 90% em relação a 2015, enquanto os salários aumentaram apenas 20%, subir salários por decreto servirá para resolver o problema?
No fundo, é mais um Orçamento assistencialista, numa perspectiva de damage control, mas, na verdade, com mais de damage do que de control. Porque, longe de promover soluções reais, apenas tapa buracos, e mal. No fim, sem se investir numa economia mais competitiva, continuará a não se produzir riqueza – e a tendência do empobrecimento não se inverterá.
O Governo adoptou a estratégia de parecer responsável, alardeando o slogan das contas certas – irónico, vindo do partido que nos colocou em três bancarrotas –, enquanto propagandeou uma redução de impostos que é, na verdade, ilusória.
Como foi noticiado, os impostos indirectos aumentaram, e serão mais 3 mil milhões de euros para os bolsos do Estado (mais 9% em relação ao presente). Contas feitas, o Governo deverá bater um recorde de receita fiscal em 2024. Falar de um alívio da carga fiscal é, assim, um engodo. Pelo meio, com a Saúde e a Educação a rebentar pelas costuras, também vemos dinheiro público desperdiçado para causas vazias, como a “Igualdade de Género”, para onde serão canalizados 426 milhões de euros.
Este executivo continua, enfim, igual a si próprio: vai tapando o sol com a peneira, enquanto fomenta a dependência do Estado, e nos corta cada vez mais as pernas. Por este caminho, o que se vai conseguir é esbater as diferenças, mas seremos apenas mais iguais na pobreza. A classe média será esmifrada, e apenas alguns conseguirão escapar a esta verdadeira carnificina.
Os portugueses continuam a caminhar em direcção ao abismo da dependência e da domesticação, e a contar os tostões para se manterem à tona. Neste cenário aterrador, o Governo fez o que faz bem: dá-nos a mão, não para nos salvar, mas apenas para que o afogamento seja um pouco mais lento.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Este fim-de-semana realizou-se o primeiro turno das eleições presidenciais na Argentina, com a vitória do candidato Peronista, de “centro-esquerda”, Sergio Massa, com 36,7% dos votos.
O peronismo é um movimento político e ideológico que surgiu com a ascensão de Juan Domingo Perón ao poder em 1946. Foi presidente da Argentina em três mandatos não-consecutivos (1946-1955, 1973-1974), dando origem a um fenómeno político assente essencialmente em ideias socialistas e social-democratas, com um pendor fortemente proteccionista da Economia – pautas aduaneiras altamente penalizadoras de importações.
Sergio Massa, em primeiro plano
Em 1946, a Argentina era um dos países mais ricos do mundo; hoje, 77 anos depois, é um país pobre, a viver com uma inflação superior a 120%. Foi neste contexto que surgiu o fenómeno Javier Milei, que ficou colocado em segundo lugar, com 30% dos votos, e vai à segunda volta contra Sergio Massa.
Quem ficou relegada da corrida foi a candidata de “centro-direita”, Patricia Bullrich, com apenas 23,8%. Na verdade, o único fenómeno destas eleições é o candidato Javier Milei, que defende ideias libertárias e anarcocapitalistas e partiu praticamente do anonimato há cerca de três anos na vida dos argentinos.
Os órgãos de propaganda nacionais e internacionais classificam as suas ideias de uma forma curiosa. Há uns meses, a Lusa dizia-nos que era de “extrema-direita”; agora, parece que é um “ultraliberal” ou mesmo “ultradireitista”.
Javier Milei
Que ideias defendeu Javier Milei ao longo desta campanha presidencial e nos últimos anos? Destaco algumas afirmações: “Imposto é roubo”; “os políticos são uns parasitas e não necessitamos deles para nada”; “a instituição do banco central é um dos maiores ladrões na história da humanidade”; e “o teu Estado Social é obtido com uma arma apontada para a cabeça dos outros”. Tudo ideias de liberdade, em particular de que do Estado e dos políticos nada se pode esperar. Qual a relação disto com a extrema-direita? Não sabemos.
Recordo que o Partido Nacionalista Alemão defendia a nacionalização dos monopólios, a divisão dos lucros de todas as indústrias pesadas ou arrendamento dos grandes armazéns a baixo custo para as pequenas empresas, tudo ideias intervencionistas, em que se fixam preços abaixo do preço de mercado, se determinam os “lucros possíveis” e quem continua ou não em mãos privadas.
E o que dizer da máxima de Benito Mussolini, o fundador da ideologia fascista: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”. Estas ideias são hoje defendidas por partidos como o Bloco de Esquerda e Partido Comunista, onde o Estado é o pai que nos rouba, decide o que cada um recebe de esmola e que direitos temos.
Patricia Bullrich
Mas talvez a ideia mais certeira de Javier Milei é “onde existe uma necessidade, nasce um direito”. Efectivamente, a necessidade de uma casa, um bem escasso, é razão para se proclamar que é um “direito”, quando na verdade é um bem económico. Acertadamente, nos diz que é necessário roubar uma parte da população para satisfazer o tal “direito” de outros. A confusão de direitos com bens económicos suportou o avanço do Estado nas nossas vidas sem precedentes.
O incrível destas eleições foi o triunfo destas ideias: a liberdade e a critica à instituição mais perversa e totalitária criada pelo homem: o Estado. Que 30% dos argentinos votem nestas ideias já foi uma vitória. Apenas foi possível porque Javier Milei é um excelente produto televisivo, altamente polémico e combativo em todas as suas aparições televisivas.
Apesar do desgosto dos órgãos de propaganda, a possibilidade de tais ideias de liberdade vencerem é um sinal de esperança, num mundo crescentemente estatizado, intolerante e a caminho de uma ditadura global distópica.
Caso vença, teremos de ver se o discurso corresponde à prática. Tenho dúvidas que logre cortar 30% sequer do gasto público, onde talvez a medida mais fácil seja encerrar o Banco Central argentino, responsável por emitir uma moeda que nenhum argentino quer. Por outro lado, algumas das suas atitudes durante a putativa pandemia levantam-me dúvidas sobre a sua sinceridade.
No entanto, que estas ideias possam vencer umas eleições deixam-me sempre esperança num mundo melhor.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Em Gaza, entramos na fase do conflito conhecida como “medição das ditas cujas”: o momento em que cada líder ameaça os seus adversários com a força que, por regra, não tem. Netanyahu, o primeiro-ministro israelita, anda há 10 dias a perceber como fazer valer a sua palavra perante a população local e a promessa da invasão terrestre na Faixa de Gaza que, em teoria, erradicaria o Hamas do planeta.
Ao mesmo tempo, Joe Biden vai avisando Netanyahu que aquela história de we have your back só funciona se ele não matar muitos civis inocentes por dia. Quantos? Não sei. Mas vou arriscar: 50… Ou 100. Não interessa, são palestinianos… Quem é que se vai dar ao trabalho de os contar ou dizer os respectivos nomes? Isso só existe em conferências de imprensa levadas a cabo em Telavive ou Washington.
A norte, na fronteira com o Líbano, o líder do Hezbollah grita a plenos pulmões que caso a infantaria israelita entre em Gaza, o grupo armado também entrará no conflito. Esta ameaça levou Netanyahu a reagir: se isso acontecer, será o fim do Líbano como o conhecemos hoje. Isto levou a que os irmãos mais velhos entrassem no bate-boca. No caso de Israel atacar o Hezbollah no Líbano, o Irão avisou já que entraria na confusão também. O irmão mais forte de todos, na pessoa de Biden, respondeu à ameaça iraniana com um simples Don’t. Don’t. Don’t.
Portanto, temos uma matrioska de ameaças onde velhos que mal conseguem andar sem a fralda, por esta altura das suas vidas, andam sim a prometer pancada uns aos outros, à custa do sangue de soldados mais novos, que terão de combater as guerras por eles decididas. O caldo está mais do que montado e a possibilidade de um conflito regional é real. Há combates na fronteira do Líbano e rockets disparados até do Iémen; portanto, já ultrapassámos os muros de Gaza e ninguém consegue adivinhar o que aí virá.
Noto uma ansiedade nas reportagens que diariamente anunciam que “a invasão terrestre está por horas”. Parece que a chacina dos bombardeamentos já não vende o suficiente e é preciso sangue fresco. Por vezes, esquecemo-nos que enquanto se discutem tácticas de invasão terrestre, diplomacia e como entrar nos túneis do Hamas e tudo o resto, a aviação israelita continua a bombardear aquela prisão a céu aberto chamada Gaza. Isto é como pescar à cana num aquário e ficar espantado por ver que os peixes não fogem, não nadam para longe.
Nestas duas semanas de bombardeamentos, já morreram cerca de 5.000 palestinianos, a maior parte civis inocentes, não são líderes ou combatentes do Hamas. Para se entender a dimensão do massacre que, pessoas como a Helena Ferro Gouveia continuam a dizer que está dentro do direito de defesa de Israel, atente-se nestes números.
Segundo as Nações Unidas, desde o dia 24 de Fevereiro de 2022, data do início da invasão russa à Ucrânia, morreram cerca de 9.700 civis. Portanto, em Gaza, em pouco mais de 10 dias, morreram metade dos civis que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia levou em 600 dias. Conseguem por aqui perceber o massacre e genocídio que está em marcha, antes sequer de uma qualquer invasão terrestre?
Um dos comentários que mais me espantou, de um conhecido e, por norma, errático comentador da nossa praça, é que a paz seria alcançada depois de se erradicar o Hamas. Digam-me, por favor, em que momento da História é que se arrasaram populações inteiras e se conseguiu outra coisa que não fosse criar mais ódio?
Ouço um pai que perdeu os três filhos num bombardeamento em Gaza, um dos tais sem nome que ali anda pelos escombros à procura da família. Não pertence ao Hamas, limita-se a tentar fazer uma vida naquela prisão. Qual agora a razão que o impede de se juntar ao Hamas? Que se produz dali, agora, que não seja o ódio?
Controlar populações e impor-lhes regras (o hobby favorito dos governos americanos) alguma vez trouxe paz? Em que zona do globo isso resultou, que eu não me lembro? No Iraque? Na Síria? Na Líbia? No Curdistão? Na América Central? Nos Balcãs? No Afeganistão? Em que sítio é que, bombardeando-se populações, não se criaram novos inimigos ou não se deu origem a regimes ainda piores?
Enquanto Lavrov visita o Irão, para ver como param as modas, Putin deixou um recado a Biden: os norte-americanos podiam começar a respeitar as decisões dos outros povos, e não ter o impulso de querer impor fosse o que fosse para lá das suas fronteiras. Dessa forma, não precisariam de estar constantemente a reprimir outros povos. E o pior é que a intromissão norte-americana nos cinco continentes mostra-se de tal forma, que fazem um ditador de extrema-direita ter razão e parecer um turista.
Entretanto, o foco saiu da Ucrânia porque o Ocidente precisa agora de defender um invasor e, com isto, Putin vai ganhando em vários palcos ao mesmo tempo. Putin aperta a mão de Orban, defende a solução dos dois Estados em Israel, visita a China e manda o número dois a Teerão. Nada mau para uma semana no escritório.
Já Joe Biden, que mal conseguia respirar e falar ao mesmo tempo, tal era o estado de debilidade, dizia a um jornalista norte-americano que não só se iria recandidatar, como achava que os Estados Unidos tinham aqui uma hipótese de ouro, com estes conflitos, de deixar o Mundo melhor (com o fim do Hamas e de Putin). Não é que ele acredite nisso, mas está a fazer o que pode pelo lobby das armas e a tentar não perder a influência no Médio Oriente. Ele sabe tão bem, como qualquer um de nós, que não se acaba com o radicalismo erguendo mais muros ou largando mais bombas. Mas, como ele dizia nos tempos de senador, Israel é o melhor investimento externo dos Estados Unidos para dominar aquela região.
E com decisões que afectam a vida de todos em curso, Paulo Portas aproveitou o espaço semanal na TVI para nos lembrar da nossa pequenez e das linhas clássicas dos programas do CDS. Diz que é tempo da Europa controlar melhor a imigração e não receber mais terroristas. Aliás, como se sabe, de momento a entrada é um passeio no parque e os milhares de mortos no Mediterrâneo só por ali ficam, afogados, por má vontade. É caricato e algo deprimente que a direita clássica, e aquela mais camuflada na voz de diversos comentadores das televisões portuguesas, nunca discutam a base do radicalismo. Ou até, vá lá, que um emigrante não é necessariamente alguém mau.
Vendem-se duas narrativas neste momento. A primeira é que Israel tem direito a defender-se, embora já tenha morto mais de três vezes o número de vítimas que recebeu. A outra é que depois de eliminar o Hamas, a paz virá finalmente e que os restantes palestinianos vão viver felizes para sempre nas prisões que para eles Israel reservou.
Por esta altura, a avaliar pelos protestos que vão sendo proibidos pela Europa de apoio à Palestina (outro exemplo forte de democracia, diga-se), parece-me que a maior parte das populações já percebeu o que aqui se discute.
O conflito não começou a 7 de Outubro, o Hamas não nasceu de geração espontânea, o ódio não desaparece com muros ou bombardeamentos. Os territórios estão ocupados, até Guterres o disse, há 50 anos. Portanto, neste cenário, Biden, Ursula von der Leyen, Netanyahu, Rishi Sunak e mais uma série de tristes líderes, querem-nos convencer de que estamos, novamente, numa luta entre o Bem e o Mal. Não estamos. Estamos perante um genocídio com o apoio norte-americano e inglês e o silêncio cúmplice e vergonhoso da Europa.
É disso que se trata e, por uma vez, tenham a coragem de o assumir.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A grande realidade: a saúde converteu-se num sistema ao estilo da McDonald’s. Todos os actos e procedimentos e diagnósticos são codificados numa classificação estatística internacional, o ICD-10. Todos os serviços são auditados, ou querem ser, por normas internacionais ISO, por vezes por certificadores internacionais.
Todos os profissionais são formatados e formados em escolas, com cursos – menos os que entram por cunha (que na McDonald’s não acontece de modo tão partidário).
Temos um sistema repetitivo, verificado, com inúmeros protocolos e consentimentos, regras muito específicas, e sobretudo cada dia mais mecanicista. Os programas pretendem mais vendas, menores custos, mais eficiência, menos consumo, mas simultaneamente mais segurança para o prestador, e em tese mais segurança para o consumidor.
De facto, a pressa é inimiga da qualidade, embora quanto mais se faz e se repete menos nos enganamos, menos erros existem. A saúde McDonald’s é uma ideia que eu próprio alimentei durante décadas. No fundo, mais gente pode ser tratada. Conseguir por preços menores, objectivos mais vistosos, é um sonho de qualquer empresário.
Os problemas surgem, porém, nas altas mais precoces, nos internamentos que estão sob a pressão de novas chegadas, de ritmos de produtividade aumentados, com menos camas, com menor relação profissional/ doente. As rotinas tornam-se cegas e, portanto, fazem-se inúmeros exames em excesso, criam-se mecanismos protocolados que são cegos à individualidade, desenham-se normas protectoras da decisão, mesmo que incluam inocuidades, desperdícios, crimes ao ambiente.
A saúde está carregada de parvoíces – como a esterilização do ânus ou da boca (obviamente impossíveis porque a sua existência é imunda e assim deve ser) –, os pensos estéreis em feridas conspurcadas, a utilização de material esterilizado para fazer um toque rectal. Há toneladas de desperdício nas compras de material com datas de utilização curtas. O lixo gerado por um acto médico é impressionante. Em rigor, nunca se provou que houvesse mais infecções ou problemas quando a Medicina se exercia nos consultórios não escrutinados pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) ou pelas Administrações Regionais de Saúde (ARS) ou pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS).
A Fábrica da Saúde não é um serviço nacional. A fábrica é um negócio onde milhares de pessoas entram carregadas de medos gerados por informação estúpida e viciosa (só se fala do mau e do que corre mal), e por essa razão se entregam a outra crença: querem informações (consentimentos informados) de que não percebem patavina.
Outra crença vem das farmacêuticas e da tecnologia, que contra todo o ruído do medo, arvoram que a saúde está muito evoluída. De facto não está, e pode correr mal tudo aquilo que se faz. Uma punção, um exame simples, uma cirurgia, podem correr mal – não que maioritariamente seja assim, mas inevitavelmente, por vezes, não é como se quer.
Uns ganham milhões nas vendas – querem que até os que têm saúde procurem a fábrica. Outros ganham produzindo números e incentivam actos que se podiam evitar. Outros procuram conforto para as frustrações na fábrica. Uns desejam o impossível, arriscam o imponderável, pedem a ultrapassagem dos limites médicos. Os trabalhadores pedem exames em excesso para se protegerem das decisões.
Os políticos tornaram a Saúde um campo ideológico. Tudo de graça para todos é uma corrida para a bancarrota da prestação. A Saúde é como uma fábrica gerida por um deslumbrado. As carnes entram para fazer salsichas em grande número e já não importa a forma. Importa o registo, a escrita e a contabilidade, mesmo que o cuidar se perca, mesmo que a mão carinhosa invisível desapareça.
Como se aumentam custos materiais na Saúde, reduz-se em pessoal. Não se promove o incentivo à prestação de qualidade. Não se premeia os que melhor trabalham e cuidam. Não se opta pelo melhor, mas pelo mais barato. Este paradigma McDonald’s é uma construção ideológica de uma esquerda que acredita que somos todos iguais, que podemos criar fórmulas igualitárias, repetíveis e, sobretudo, que podemos padronizar tratamentos – a tal evidência.
A medicina baseada na evidência é uma alegoria com custos demenciais que vai conduzir à destruição do Serviços Nacional de Saúde (SNS) por uma via sofisticada. Eu já encontrei essa outra estrutura na Arábia Saudita, quando um administrador observa e manuseia os seguros que o cliente paga e decide aquilo que o médico pode ou não fazer. A prestação é gerida pelo pagador – o seguro.
Os médicos estão a ser desenhados neste padrão. As escolas não se importam com o ensino dos custos, com a necessidade de gestão clínica, porque agora o importante é sugar do pagador o mais possível, gerindo do menu aquilo que se aplica melhor.
Diogo Cabrita é médico
Recomenda-se a leitura da parte I e da parte II desta Saúde: uma autópsia
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Tenho um lema como jornalista: devo escrever para que o meu leitor mais burro me entenda e que o meu mais entendido leitor não me chame burro.
Isto a pretexto de uma notícia da edição de ontem do semanário Expresso, da autoria da jornalista Carla Tomás, que escreve sobre Ambiente há já umas boas duas décadas – e, portanto, tem mais do que obrigação (nem que seja para si própria) de não transmitir disparates, nem que estes saiam da boca de outros. Excepto se agora os jornalistas forem apenas pés de microfone ou transmissores de narrativas da moda, forçando tudo a ir até às alterações climáticas, como as dissertações do professor Aquiles Arquelau, especialista em Mitologia, que sempre descambavam na Bruna Lombardi.
A dita notícia do Expresso, sob o antetítulo de “Crise Climática”, lança a parangona: “Torre de Belém ameaçada por nível do mar e ondas de calor”. E relata o seguinte: “A acelerada subida do nível médio do mar e as cada vez mais intensas e frequentes ondas de calor estão a pôr em risco um dos ícones da cidade de Lisboa, classificado como Património Mundial. Construído no século XVI, o monumento é frequentemente batido pela ondulação em dias de temporal conjugado com a maré alta e corre o risco de ficar inundado no futuro com consequências para a estrutura que sustenta este monumento, isto quando se projeta uma subida de um metro no nível médio do mar antes do final do século”.
E acrescenta que “o alerta é feito pela arquiteta americana Barbara Judy, que está em Lisboa a coordenar uma equipa que estuda o impacto das alterações climáticas no Mosteiro dos Jerónimos e na Torre de Belém e que, até novembro, irá apresentar um relatório com sugestões de como minimizar os impactos e adaptar este património cultural a eventos extremos futuros”, informando ainda que “os trabalhos resultam de uma parceria da direção do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém com a embaixada dos EUA, no âmbito do Programa Embassy Science Fellow”.
O artigo da Carla Tomás também apresenta duas fotos do Torre de Belém, em preia-mar e baixa-mar, sendo que na primeira o monumento está rodeado de água e na segunda se vê uma ‘língua de areia’, o que não é surpreendente atendendo que está em plena boca do estuário do Tejo, onde as variações do nível da água do mar (“culpa” da Lua) rondam os três metros.
Como não me canso de dizer, existem evidências de alterações climáticas, com um aumento significativo do ponto de vista da frequência de fenómenos extremos – e isto independentemente das suas causas, sendo que se estas forem mesmo derivadas do dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa, bem que podemos meter a “viola no saco”, porque a China está a fazer com que qualquer sacrifício de redução seja em vão.
Mas uma coisa é a necessidade de assumir a existência de um problema – as alterações climáticas, com as suas cambiantes e especificidades, encontrando medidas de minimização, mitigação e adaptação, de forma racional –; outra é a necessidade de não permitir que se tornem um monotema ambiental – e com isso permitir um pornográfico greenwashing, onde se pavoneiam empresas com passado e presente poluidor travestidas agora de “amigas do ambiente” –; e outra ainda, e muito importante, a necessidade de rigor informativo arredando o sensacionalismo manipulatório.
Torre de Belém, à esquerda, integrado em mapa de Lisboa do século XVIII, onde também se observa o Mosteiro dos Jerónimos ainda quase banhado pelas águas do Tejo. Sucessivos assoreamentos e aterros aumentaram a área terrestre, ligando o ilhéu à cidade.
Bem sei que a imprensa vive de soundbites, e sei também que, sobretudo depois da pandemia da covid-19, existe uma enorme tentação nas editorias menos escrupulosas de fazer suceder à emergência sanitária uma emergência climática, onde qualquer tempestade se transforma numa evidência das alterações climáticas, quando na verdade os processos são mais lentos, embora inexoráveis, e até mais afastados da Europa. E nem os impactes serão trágicos como uma crise sanitária se houver planeamento preventivo.
Por exemplo, se não expandíssemos áreas urbanas para leitos de cheia ou não impermeabilizássemos zonas de drenagem, provavelmente não teríamos tantos estragos em tempestades. Ou se fizéssemos uma prevenção mais activa, em simultâneo com mudanças na estrutura silvícola, porventura os incêndios num mundo rural (cada vez mais desertificado de pessoas) não seriam tão dramáticos.
Mas não quero falar agora mais sobre isso. Foquemo-nos na notícia do Expresso sobre a Torre de Belém – e nos seus disparates.
Pintura de Filipe Lobo, patente no Museu de Arte Antiga, retratando o Mosteiro dos Jerónimos no século XVII. Ao fundo, à esquerda, a Torre de Belém, bem dentro do estuário.
Como disse no início, convém a um jornalista que não lhe chamem burro.
E, assim sendo, que se pode dizer então de uma notícia que, titulando estar a subida das águas do mar e as ondas de calor a AMEAÇAR a Torre de Belém, se “esquece” de referir que, enfim, este agora monumento estava, quando construído no século XVI, num pequeno ilhéu a cerca de 250 metros da margem?
Carla Tomás, e o Expresso, além das fotos a mostrarem simples variações de marés, deveriam sim ter também apresentado mapas, pinturas ou gravuras antigas onde a Torre de Belém (ou Torre de São Vicente) se mostrava bem dentro do Tejo, tal como a chamada Torre Velha (ou Forte de São Sebastião da Caparica), portanto muito mais “afectada” por ondas e salinidade – muito menos “protegida” do que agora.
Na verdade, foi a evolução costeira, a dinâmica estuarina, com assoreamentos progressivos, e em outras partes com desassoreamentos para tornar navegável o estuário, a par de aterros – que, por exemplo, “afastaram” o Mosteiro dos Jerónimos das águas do rio Tejo –, que “colocaram” a Torre de Belém onde está. Quer dizer, está no mesmo sítio, mas tudo mudou em seu redor. E essa mudança não foi derivada das alterações climáticas nem é absolutamente nada expectável que o aquecimento global coloque qualquer pressão relevante. Não é por aí que o gato vai às filhoses…
Torre de Belém, em gravura do século XVII de Dirk Stoop.
Ao longo dos séculos, e não por causa de quaisquer alterações climáticas, a Torre de Belém – que bem antes da Revolução Industrial (“berço” das emissões de dióxido de carbono) estava rodeada de águas do estuário – foi beneficiando de constantes e sucessivas remodelações e reabilitações, porque o tempo, esse “grande (mau) escultor”, desgasta sem parança. Que haja agora necessidade de uma nova intervenção, parece evidente. Basta conferir o Sistema de Informação para o Património Arquitectónico, onde se constata que foram executadas 27 obras de reabilitação em diversos graus na Torre de Belém ao longo do século XX, mas não havendo registos de alguma acção relevante nas últimas duas décadas. Por isso, sejamos honestos: “pedras partidas, molhes erodidos e juntas sem argamassa”, relatadas pela especialista citada pelo Expresso, não se devem às alterações climáticas. Apenas ao tempo, à lenta acção dos agentes físicos e químicos – e, vá lá, à incúria do Estado em relação a um rico património histórico. Nada mais.
Torna-se, também, risível a referência no título do Expresso às ondas de calor ameaçarem a Torre de Belém, como se um aumento de temperatura por via de um aquecimento global – nem que fosse de 10 graus ou mais – pudesse causar qualquer dano de monta a pedras sujeitas a contínua salinidade, ondulação e variação das marés. É tão absurdo que nem merece mais comentários…
Enfim, por tudo isto, só por incompreensível ignorância, ou por sensacionalismo bacoco ou por uma intencional manipulação da realidade – coisas que pouco incomodam os reguladores (ERC e CCPJ) e a classe jornalística (e o Conselho Deontológico do Sindicato de Jornalistas, mais afoito a fretes para difamar o jornalismo incómodo e independente) –, se faz uma notícia onde declarações de uma pouco conhecida arquitecta norte-americana que trabalhou no National Park Services – equivalente ao nosso Instituto de Conservação da Natureza e Florestas com a componente do património – se transformam em “provas irrefutáveis” das alterações climáticas sobre a Torre de Belém, que já “assistiu” a muitas façanhas e também muitos disparates em cinco séculos.
Foto da Torre de Belém, publicada pela revista política norte-americana Harper’s Weekly, em 13 de Maio de 1865, acompanhando o relato de um incidente em Março daquele ano quando a fortificação portuguesa disparou contra o navio Niagara.
Mas o pior é a notícia do Expresso não ser um exemplo isolado de mau jornalismo, a forçar uma “missão”; antes é um novo paradigma. Se assim não fosse, outros jornais não correriam a propalar o disparate do Expresso, como sucedeu com o Correio da Manhã e o Observador, o que mostra o nível de conhecimentos (até históricos) da malta que anda pelas redacções a copiar mutuamente disparates.
Enfim, se isto é jornalismo de referência… vou ali e já venho. Ou melhor, sigo sozinho.
Desde que a Humanidade existe, a esmagadora maioria dos homens pertence ao grupo dos produtivos, que quer fazer coisas, enquanto uma minoria, infelizmente, apenas deseja agredir, roubar ou violar o próximo. Da coexistência destes dois grupos derivam, obviamente, conflitos, não só entre os dois grupos, vítimas e agressores, mas também entre o grupo produtivo. Infelizmente, o paraíso de Adão e Eva não existe: terra, recursos (metais preciosos, água, minérios…) e tempo são, por desgraça, escassos.
Para uma civilização prosperar é essencial a protecção dos direitos de propriedade, bem como a existência de mecanismos de arbitragem de conflitos. Um agricultor não vai semear se existir a forte possibilidade de ser assaltado a qualquer momento ou de aparecer alguém a ocupar-lhe as terras. Ninguém investe sem estar seguro da existência de penalidades e indemnizações, caso os contratos sejam incumpridos de forma impune.
Por fim, a especialização e as trocas comerciais são essenciais para o aumento exponencial do bem-estar. Em sociedades complexas, todos dependemos de todos, em que cada um se especializa naquilo que sabe fazer melhor. Em resumo, segurança, previsibilidade, especialização e mercados são essenciais para o florescimento e prosperidade de qualquer civilização.
As primeiras cidades surgiram em zonas de fácil defesa, aproveitando obstáculos naturais como montanhas, rios ou lagos. Para além de um local seguro, as primeiras comunidades viram-se forçadas a eleger juízes para arbitrar conflitos, elegendo, regra geral, o mais bravo, inteligente e com maior sucesso, fossem estes nobres, homens de negócios ou anciões com autoridade.
O Estado moderno foi-nos vendido como indispensável para arbitrar estes conflitos, algo inevitável, no entanto, até ao aparecimento das monarquias absolutas, este simplesmente não existia. Trata-se de uma organização que exerce um monopólio territorial, de violência e jurisdicional, de arbitragem final em casos de conflito; um juiz em causa própria. Sem o consentimento das partes, estas são obrigadas a recorrer ao Estado, impondo-se-lhes, sem discussão, um preço pelo respectivo serviço. Mas não são os únicos privilégios, nem os principais, pois o maior é o monopólio de confisco da população, vulgarmente conhecido por tributação.
Com a queda do Império Romano do Ocidente, a sociedade europeia organizou-se num sistema a que chamamos feudalismo. Foi um processo natural. Sem a defesa do exército romano, as pessoas associaram-se a um senhor da guerra, por forma a obterem segurança. Eis a especialização a funcionar: o senhor oferecia segurança ao servo por troca de horas de trabalho e ajuda militar em caso de conflito.
Nos seus domínios, o senhor feudal estabelecia as regras e administrava a justiça. O Rei era o senhor feudal de maior importância, que provinha, regra geral, de famílias com prestígio e que possuía mais terras e um exército privado de maior dimensão face aos outros senhores feudais.
Importa ter em conta que o Rei não tributava a população nem tinha o monopólio da justiça, tinha de viver dos rendimentos dos seus domínios; no entanto, em muitos casos, prestava serviços como um tribunal de segunda instância, a quem a população se socorria caso não estivesse satisfeita com as decisões do respectivo senhor feudal. Muitas vezes, o servo podia fugir e associar-se a outro senhor feudal ou ir mesmo ajudar a fundar cidades “livres”, sem laços de vassalagem.
Como foi posto fim a este equilíbrio? Através de uma “crise”, com o intuito do poder real obter essencialmente duas vantagens: o monopólio da arbitragem de conflitos e lançar a tributação sobre a população. Todos eram obrigados a utilizar os seus tribunais. Os custos da guerra, que antes impactavam o seu “bolso”, podiam agora ser “distribuídos” pela população através dos impostos. Eis o início do Estado.
E como se desencadeia uma “crise”. Como sempre: estimulando a inveja e espalhando o medo. Por parte dos servos, a tentação de não pagar a renda ao senhor feudal ou de não aceitar as suas regras era enorme, bastando prometer-se liberdade para que aparecessem revoltas “espontâneas”. Como sempre, a “carneirada” necessita sempre de uma mão superior a conduzi-la!
Depois do problema, a reacção: os senhores feudais apelavam aos monarcas o fim do caos. Martinho Lutero, o iniciador da “revolução” protestante, para além do confisco da Igreja Católica, propôs a seguinte solução para o conflito: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados, apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães raivosos”.
Depois de satisfeitos os senhores feudais com o fim do caos, e apesar dos privilégios que acabavam de perder, como a administração da justiça nos seus domínios, oferecia-se-lhes sinecuras na burocracia real, tornando-os membros da máquina de propaganda e de prestígio da corte, e extinguiam-se os seus exércitos privados, integrando-os no exército real e pondo fim a qualquer oposição.
Em lugar do senhor, passava-se a lutar em nome do Estado. Para se garantir soldados obedientes e com sentido de nação, a revolução protestante fundou a escola pública, por forma a doutrinar as crianças bem cedo. Tudo passou a ser centralizado, até a cunhagem de moeda, deixando esta de estar em mãos privadas para passar a ser um privilégio real – roubava-se também a população de forma silenciosa, caso fosse necessário.
Agora que a conta da guerra podia ser paga pela plebe, através de impostos e inflação, a dimensão dos exércitos cresceu substancialmente. Foi precisamente o que aconteceu na Guerra dos Trinta Anos, talvez o primeiro conflito mundial.
E assim foi parido o Estado: da “crise” e da guerra. Uma organização com tantos poderes e privilégios que inevitavelmente passou a atrair parasitas, necessariamente uma minoria, pois um parasita pode viver de vários hospedeiros e não o contrário. Para se obter o consentimento dos hospedeiros, não basta a força, também é necessário o seu consentimento: como? Através do medo.
E que medo foi instigado e que até hoje perdura? O medo do caos. Na percepção da população, sem o Estado, os conflitos entre as pessoas são intermináveis, não têm fim, é necessário um monopolista da força e da arbitragem final.
Todos sabemos que um pequeno grupo ou uma pequena comunidade não necessita do Estado para nada na arbitragem de conflitos; no entanto, quanto maior a dimensão do Estado menos existe essa percepção. É precisamente isso quando se utiliza o seguinte argumento: e quem faria as estradas senão o Estado? Como se numa pequena comunidade não se conseguisse colocar de acordo na construção de uma estrada e respectivo financiamento!
Importa ter em conta a diferença entre parasitas e pessoas produtivas? Os segundos aumentam o bem-estar de pelo menos uma pessoa, sem reduzir o bem-estar dos outros indivíduos; os primeiros aumentam o bem-estar de alguns à custa de outros, seja por apropriação indevida de terras, seja por roubo do que os demais produziram, como é o caso dos impostos.
O butim tornou-se tão luzidio que começaram a surgir ideias igualitárias, como a democracia e o socialismo. Por que motivo só o Rei pode ter o monopólio da justiça e do confisco dos demais cidadãos: “eu também quero”. Em lugar de um privilégio pessoal, havia que transformá-lo num privilégio funcional: qualquer um podia aceder ao tacho, não era necessário um Rei para liderar um Estado.
O fim da instituição real surgiu, uma vez mais, com uma “crise”, conhecida pela Tomada da Bastilha, onde a “carneirada” se insurgiu contra as “injustiças” deste mundo. Consequências? Os parasitas de Luís XVI foram decapitados e substituídos por um gangue de assassinos e fanáticos, posteriormente liderado por um “génio” da guerra total.
Surgiu assim o Estado moderno, passando a existir propriedade pública e privada, lei pública e lei privada. Quem está no público pode permitir-se coisas que seriam crime na esfera privada, como escravizar jovens do sexo masculino, como foi o caso do aparecimento da conscrição obrigatória na Revolução Francesa. Por essa razão, a dimensão dos exércitos subiu desta vez de forma exponencial, passando a envolver forças superiores a um milhão de soldados.
Na monarquia absolutista, o Rei tinha a preocupação de não tributar excessivamente, pois diminuía a produtividade dos seus súbditos, dado que diminuiria as suas receitas no longo prazo; nem tão pouco endividar-se excessivamente, pois poderia onerar os seus herdeiros ou até afectar a sua reputação. Nem tão pouco a inflação era um método que se pudesse abusar, pois passados uns anos, o Rei estaria a receber impostos em moeda inflacionada. Tudo mudou com o advento do Estado moderno.
Quando existe propriedade privada, o seu dono pode comprar, vender, ceder o seu uso e obter um rendimento, dar-lhe fins distintos, fazer obras, etc.; no caso da propriedade pública, os que se encontram no poder, apenas podem saquear o respectivo rendimento enquanto lá estão, nada mais.
Se o Rei arrendasse uma propriedade, iria certamente ter em conta o número de inquilinos e de como tratariam o imóvel; no caso do “cuidador público”, apenas lhe importa o rendimento. Colocar lá um número excessivo de inquilinos, apesar de destruir a propriedade em poucos anos, é uma opção seguida, dado que permite roubar no mais curto espaço de tempo. O risco de perder a posição a tal obriga.
Em conclusão, os incentivos passaram a ser totalmente diferentes com o aparecimento da propriedade pública, naquilo a que hoje chamam o “dinheiro de todos nós”! Com o advento da “democracia”, passou a haver enorme concorrência para os lugares de parasitismo. Chamo a atenção de que a concorrência é benéfica para as actividades produtivas, pois incrementa a qualidade e baixa o custo do serviço ou produto, não significando necessariamente a eliminação de um ou mais concorrentes.
Tal não se passa com uma actividade parasitária, onde se “luta” para obter o pior entre os piores: o mais mentiroso, o mais demagógico, o mais conspiracionista, o mais ladrão. Para além de se garantir tal gangue ao poder, as sinecuras são temporárias, pelo que o roubo terá de se processar com a máxima intensidade e no mais curto espaço de tempo.
Não é obra do acaso que tenham sido democracias – Hitler foi eleito – a espoletar grandes guerras, com milhões de vítimas; nem tão pouco que pela sua iniciativa sejam desencadeadas guerras em nome da “democracia” ou “combate ao terror”. Não é obra do acaso, que as democracias tenham criado milhões de dependentes do Estado, comprados com o roubo a uma minoria produtiva da população.
A guerra e o Estado Social são a forma mais rápida e eficiente de enriquecer a casta parasitária, dado que exigem colossais emissões de dívida de pública, que produz suculentas comissões e butins através da inflação, como vimos na recente putativa pandemia e conflitos militares.
E como mantém o consentimento da população? Pelo medo e doutrinação; não se esqueçam: sem o Estado estaríamos todos aos tiros uns aos outros.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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