Etiqueta: Destaque Opinião

  • Vacina Sputnik, meu estupor (ou meu amor?)

    Vacina Sputnik, meu estupor (ou meu amor?)


    Em Dezembro de 2022, o médico germânico Mersad Alimoradi defendeu a sua opinião sobre vantagens da vacinação contra a covid 19 e descreveu um extenso estudo comparativo entre as diferentes vacinas. Estudou a literatura sobre as diferentes apostas, mRNA, vírus atenuado, e vírus inactivado. Para ele, era tudo igual!

    Nesta sequência, temos a Pfizer, a Sputnik da Rússia e a Sinopharm dos Chineses. Houve dezenas de artigos do mundo científico que durante a covid-19 expressaram as vantagens da primeira e as inúmeras desvantagens das segundas, apesar de serem fáceis de distribuir, não terem constrangimentos de produção, serem seguras em termos de riscos para efeitos secundários.  Houve revistas científicas a colocar dados que eram refutados rapidamente por cientistas opinativos na gestão da estratégia pandémica.

    A vacina Sputnik ficou em Portugal associada a uma má imagem, que obviamente foi introduzida com fins comerciais e de escolha em prol das vacinas da Pfizer, da Moderna e da Astra Zeneca. O tempo veio provar o contrário, e sobretudo veio demonstrar que a Sputnik V era mesmo melhor que a da Pfizer.  

    Ficam célebres os esclarecimentos do Governo português para a compra de vacinas, sempre baseados na recomendação de peritos. Infelizmente, os especialistas recebiam dinheiro de algumas farmacêuticas. No Brasil, onde a confusão de política com saúde foi ainda maior, os especialistas derramaram litros de imprensa e televisão contra Bolsonaro por ter comprado 60% de vacinas da Sputnik, levando à recusa em as tomar de muitos brasileiros. Realidade construída por jornalismo medíocre.

    Bolsonaro seria mesmo vilipendiado pelo diretor da Pfizer. Houve também Trump a debitar ataques à vacina atenuada da Sputnik porque era Russa. Revistas importantes fizeram claras verificações de qualidade e de paridade em eficácia das propostas para vacinar, mas não se coibiram de lhe aplicar um ‘achismo’ de autor que empurrava para uma escolha.

    Um artigo da Nature de Novembro de 2021, apesar de colocar a Pfizer no topo da eficácia, admitia que afinal, “nenhuma vacina foi associada de forma estatisticamente significativa a uma diminuição do risco em comparação com outras vacinas”. A realidade, vista à posteriori, encarregou-se, aliás, de demonstrar que os países vacinados por Pfizer e outras mRNA não obtiveram sucessos fantásticos no resultado final da pandemia em relação aos países que escolheram e distribuíram Sputnik e Sinopharm.

    Comparar os quadros permite perceber, ao fim destes anos, que os resultados, quando não martelados por políticos dão surpresas substanciais e não podem ser usados para concluir enormidades. Muitas ditaduras tiveram melhores resultados que democracias, e isso não permite pensar que a ditadura é uma vacina para as pandemias.

    Vale a pena começar a rever o que a instrumentalização da informação fez com que pessoas que temos por inteligentes se tenham entregado a discursos basistas, a análises de uma superficialidade anedótica e ignorante e agora sejam incapazes de rever o que então escreveram. Carecemos de perceber os resultados finais de uma crise.

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    Nenhum dos grandes críticos da Suécia ainda bateu com a mão no peito e percebeu como a sua estratégia foi a melhor. A Suécia é um país de terceira idade e por isso é comparável connosco e o Japão. Ainda ninguém se interrogou sobre o país envelhecido que é o Japão ter tido excelentes resultados. Aquilo que importa é expurgar da saúde os discursos ideológicos, as convenções de bom senso porque a doença é como o dinheiro: fria, sem pena, sem magia, com e sem lógica, com sorte ou azar. A doença não respeita protocolos, não serve lógicas políticas e sobretudo é de um egoísmo brutal! 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sair novo de Portugal: uma viagem sem regresso (ou só para férias)

    Sair novo de Portugal: uma viagem sem regresso (ou só para férias)


    Começo esta crónica a citar o cabeçalho de uma reportagem publicada no Expresso: “Portugal tem a taxa de emigração mais alta da Europa e uma das maiores do mundo. A vaga contínua de saídas ao longo das últimas décadas engrossou o número de portugueses no estrangeiro, acelerando a perda de população jovem. De acordo com uma estimativa do Observatório da Emigração, 30% dos nascidos em Portugal com idades entre os 15 e os 39 anos deixaram o país em algum momento e vivem atualmente no exterior. São mais de 850 mil.”

    Escrevi, numa destas crónicas do PÁGINA UM, aquilo que considerava ser o flagelo da emigração jovem, tendo como base a equipa com a qual trabalho no norte da Europa. Uma infeliz coincidência que, ainda assim, ilustra perfeitamente os tais 30% que desapareceram.

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    Somos sete (daqui a 15 dias seremos oito) engenheiros formados em Portugal que tomaram a decisão de emigrar ainda na casa dos 20 anos. Eu, o mais velho, ainda cheguei a trabalhar em Portugal cinco anos, mas já os restantes, muito mais espertos do que eu, começaram logo num sítio onde a força de trabalho é recompensada com salários decentes.

    Estamos a falar de gente que adquire os seus conhecimentos na Escola Pública, financiados pelos impostos, e que, em muitos casos, vão utilizar esses conhecimentos adquiridos em Portugal para o desenvolvimento económico de outro país qualquer.

    E já agora – e este é um detalhe importante, pelo que vou observando na minha área: são profissionais com uma formação de excelência que, uma vez fora de Portugal, com as portas que conseguem abrir à custa dessa mesma formação, ficam com o caminho de regresso praticamente vedado. As hipóteses de carreira que nos são oferecidas nos países desenvolvidos, desculpem-me a honestidade, envergonham aquilo que é expectável em Portugal.

    No nosso país chegamos a um ponto em que tudo está errado. A cultura de trabalho, a necessidade de marcar hierarquias, a limitação da criatividade, a burocracia em lugar da produtividade, os salários miseráveis.

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    Quando saí de Portugal, ainda Pedro Passos Coelho não nos tinha sugerido emigrar. As diferenças para a Europa civilizada eram mais fáceis de disfarçar. Lembro-me de ter pensado em emigrar porque queria ver qualquer coisa diferente. Acho que, no fundo, queria viajar. Estava convencido que dois ou três anos depois estaria de volta a Lisboa para vestir um daqueles fatos que nos exigiam para estar a trabalhar atrás de um computador. Ao fim desses mesmos três anos, já o meu filho tinha nascido fora de Portugal e o regresso passou a ter mais impedimentos.

    Já não eram só as condições de trabalho, mas também as regalias da paternidade. Também aí estamos a um mundo de distância. Os dois ou três anos passaram a 18 e, durante esse tempo, nada mudou de relevante em Portugal. Quer dizer, fizeram-se mais estradas, aquilo que os sucessivos Governos continuam a vender como “progresso e desenvolvimento”. Alguém continua a vender-nos a ideia de que, num país com 650 por 200 quilómetros, o crescimento económico aparece antes de termos 40 auto-estradas, Scuts e IPs espalhadas por todo o lado com portagens infindáveis. Ninguém ainda se deu ao trabalho de verificar que os países mais desenvolvidos no Norte da Europa não têm propriamente uma grande rede de auto-estradas, excepção feita à Alemanha por ser zona de passagem para todas as rotas do comércio.

    Por isto tudo, hoje… o que pensará um miúdo que sai de uma Universidade e percebe que os salários disponíveis não chegam sequer para ser independente e autónomo? A dúvida é sempre entre ficar perto de família e amigos a contar trocos para sobreviver ou, em alternativa, fazer o sacrifício de emigrar e deixar de ter preocupações com contas. Sim, sacrifício.

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    Emigrar acaba sempre por ser um sacrifício. Ou na altura da partida ou quando percebemos que o regresso é impossível. Foi isso que os restantes sete que trabalham comigo fizeram. Ganharam independência e autonomia antes de completarem 23 anos. Não precisam de viver com os pais, não dependem da formação de um casal para dividirem as contas de uma casa e são integrados num ambiente de trabalho onde todo o crescimento depende apenas da competência e da dedicação. Podem de facto chegar a algum lado pela via do trabalho se assim quiserem. Não é esse o cenário mais comum em Portugal.

    Diz o Expresso que 30% das pessoas entre os 15 e os 39 anos estão fora do país. Isto significa que não só o mercado de trabalho é afectado como a natalidade do país se ressente (ainda mais). O acaso de termos uma das populações mais envelhecidas da Europa e a taxa mais alta de emigração, como compreenderão, não é mera coincidência.

    Há 20 anos que me deito a pensar o que seria o nosso país se, em vez dos desastrosos investimentos na rodovia e nas construtoras do regime ou no resgate da banca, se tivessem construído creches públicas, tornado o ensino verdadeiramente universal e aumentado os salários para níveis de Primeiro Mundo?

    Li esta semana que o salário mínimo passou, aqui ao lado em Espanha, para 1.100 euros. Mas o que me espantou verdadeiramente foi perceber que apenas 5% dos espanhóis recebem esse salário. Em Portugal quase 75% das pessoas trazem para casa 900 euros ou menos – ou seja, não estamos longe de ter quase o país todo a receber o salário mínimo. O mais incrível é que partimos nesta corrida dentro da União Europeia ao mesmo nível de Espanha. Hoje somos, na melhor das hipóteses, o envergonhado parente pobre.

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    Portanto, não há três soluções para estancar a saída de jovens do país. Ou se aumentam os salários para cobrir o absurdo custo de vida ou se reduz drasticamente, pelo menos, o custo da habitação e da Educação.

    Não se pode esperar que um casal fique num país onde o salário médio são 1.100 euros e uma creche, uma prestação de um carro, a renda de uma casa, energia e alimentação não deixam nada no bolso para viver. Limitamo-nos a trabalhar para pagar contas. Por mais que se goste do sol, do céu azul e da sardinha a pingar, ninguém quer passar 17 anos a estudar para andar os 40 anos seguintes a ver se chega ao fim do mês. A vida é e tem de ser algo mais do que isso.

    Voltamos sempre ao ponto crucial desta história toda que são as opções políticas. Portugal passou décadas a desviar subsídios europeus para uma clientela (para não lhe chamar corrupção) sem ter preocupações de verdadeiro desenvolvimento. Somos o caso de estudo na União Europeia para o que falhou. Há 30 anos que os nossos Governos se limitam a gerir fundos sem com isso contribuir verdadeiramente para o crescimento do país. São opções. No fim do caminho estão sempre as nossas escolhas. O Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) trilharam este caminho.

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    Hoje, ontem, e provavelmente amanhã, Portugal escolhe fazer estradas e embelezar hotéis para receber turistas. Entretanto, aqueles que por cá nasceram, vão-se afogando em impostos, salários vergonhosos e custos de vida absolutamente incomportáveis. E vão-se embora.

    Quem é que os pode criticar? Eu não, certamente.

    Chegará o dia em que seremos oficialmente a Republica Dominicana do continente europeu – e estaremos divididos entre aqueles que ficam cá a servir à mesa e aqueloutros que voltarão, a cada Agosto, para matar saudades.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Da hipocrisia de quem cava o ‘buraco negro’ do jornalismo

    Da hipocrisia de quem cava o ‘buraco negro’ do jornalismo


    Escreveu anteontem Licínia Girão, presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), uma espécie de manifesto panfletário que intitulou “O jornalismo caiu num buraco negro”, ao melhor estilo farisaico.

    Licínia Girão é jornalista e tem o direito e o dever de opinar em matérias de jornalismo, embora tenha muitas dúvidas se o deve fazer a título de presidente da CCPJ, colocando as suas opiniões (pessoais) no site de uma entidade que tem, exclusivamente, funções de atribuição de títulos de acreditação e de disciplina dos jornalistas. E já não é pouco, se fosse feito, e bem feito, o que, infelizmente, não é o caso.

    Mas, enfim, mal não viria ao mundo se a doutora Licínia Girão, nomeada por alegadamente ser “uma jurista de mérito” (apesar da escandalosa ausência de currículo científico, académico ou técnico na área, a par do insucesso no estágio de advocacia e da candidatura para acesso à formação de magistrados), não tivesse composto um hino à hipocrisia. E isso não pode ser deixado passar impune. Já na semana passada vimos demasiados ‘coveiros do jornalismo’ a chorarem lágrimas de crocodilo nas audições sobre a Global Media na Assembleia da República. Cito dois nomes: Domingos de Andrade e Rosália Amorim, expoentes dos ‘vendilhões do templo’ com as suas mercantilizações do ‘produto jornalístico’ como forma de prestar serviços a quem melhor pagar.

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    Lendo o texto de Licínia Girão – que faria mais sentido ser exposto no site do Sindicato dos Jornalistas (e eu sou sindicalizado), e não na CCPJ (que é uma entidade de natureza pública) -, cheio de lugares-comuns e analogismos de trazer por casa (com buracos negros, terras movediças e abismos), não consegui deixar de me enjoar (é o termo correcto) com a pureza da sua hipocrisia.

    Escreve a dita doutora, presidente da CCPJ: “Nunca seremos verdadeiramente livres se os poderes não forem escrutinados. Se os jornalistas, em observância ao indissociável compromisso com a verdade, de forma isenta, rigorosa e independente não desempenharem o seu superior dever de garantir que todo e qualquer cidadão aceda a informação livre e credível”.

    Ora, a CCPJ é a exacta entidade que recusou pedidos de acesso às actas das suas reuniões de plenário pedidas pelo PÁGINA UM, estando agora em curso uma intimação nos tribunais administrativos.

    Ora, a CCPJ é a exacta entidade que recusou pedidos de acesso aos seus relatórios e contas, escondendo gastos e receitas, incluindo pagamentos aos seus membros, apesar de ser uma entidade pública.

    Ora, a CCPJ é a exacta entidade que não quer sequer revelar se abriu ou não processos disciplinares aos ‘jornalistas comerciais‘ identificados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social como tendo participado activamente na execução de contratos comerciais.

    Licínia Girão, presidente da CCPJ.

    Ora, a CCPJ é a exacta entidade que recusa mostrar como conduz e conduziu processos de averiguação contra jornalistas conhecidos e que, aparentemente, foram beneficiados (i.e., esquecidas as suas tropelias) por razões de ‘companheirismo’.

    Ora, a CCPJ é a exacta entidade que fecha os olhos às maiores promiscuidades de certos jornalistas e direcções editorais, que mercantilizam notícias e influências através de supostas parcerias com entidades públicas e privadas, que mais não são do que prestações de serviços incompatíveis com a profissão, e que degradam a credibilidade de toda a imprensa.

    Mas, por outro lado, a CCPJ é a exacta entidade que acolheu uma queixa do presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e fez um inédito parecer a censurar as minhas investigações que, hélas, resultaram na suspensão do dito presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia de consultor do Infarmed e na aplicação de um processo de contra-ordenação pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    A CCPJ é também a exacta entidade que acolheu uma queixa contra mim do almirante Gouveia e Melo, e lesta me abriu um processo disciplinar em fase de instrução desde Maio ano passado (sem acusação ao fim de oito meses, tendo como relator um jornalista do Correio da Manhã), antes mesmo de serem concluídas as averiguações instauradas pela IGAS em resultado de investigações jornalísticas publicadas pelo PÁGINA UM há mais de um ano. Ah, e depois teve a lata de me querer conceder uma amnistia venenosa.

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    E a presidente da CCPJ é, de igual modo, a exacta pessoa que mexeu os cordelinhos para que o Conselho Deontológico me fizesse um parecer censório, ao melhor estilo crápula, sem sequer considerar a minha argumentação, mas depois não teve coragem de responder ao meu repto: accionar um processo disciplinar no seio da própria CCPJ para que as ‘regras do jogo’ fossem as que constam das leis da República Portuguesa. Passaram seis meses desde esse ‘pedido’ e a resposta não veio, apesar das várias insistências para uma resposta.

    Enfim, tem sido a inacção intencional e a acção enviesada da CCPJ que muito tem contribuído para descredibilizar o jornalismo aos olhos dos leitores, ouvintes e telespectadores. Se a crise da Global Media (e também da Trust in News) se deve, em grande parte, à falta de intervenção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a crise reputacional dos jornalistas deve-se sobretudo a uma postura de corporativismo aceite intencionalmente pela CCPJ, onde todos os desvarios e deboches são permitidos se se for amigo, e onde todas as ‘perseguições’ são promovidas se houver um outsider a clamar que o rei, coitado, vai nu, e ainda por cima anda feio como o caraças.

    No texto de Licínia Girão há apenas duas frases que, na verdade, fazem sentido na sua boca: “O Jornalismo caiu num buraco negro. E os jornalistas estão ancorados em terras movediças a um passo de tombarem também para o abismo”. De facto, ela e os outros membros que compõem a CCPJ são a prova de que esse ‘buraco negro’ existe, até porque eles andam a cavá-lo há muito.


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  • A juventude que merecemos

    A juventude que merecemos


    As próximas Eleições Legislativas, tudo indica, serão renhidas e qualquer voto pode ser decisivo.

    Daí que haja, da parte dos políticos profissionais e das máquinas partidárias, um “cuidado especial” para com os jovens, no intuito de conseguirem diminuir as taxas de abstenção habituais, mas também, fazendo uso do mais descarado aproveitamento, dando-lhes uma atenção que nunca tiveram e que deixarão de ter logo após o encerramento das urnas.

    Ainda assim, não acredito numa votação maciça dos jovens.

    A nossa juventude, salvo raríssimas excepções, não só não demonstra grande apetência pela política como, de modo geral, se refere a ela sempre com sentido pejorativo.

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    São várias as razões.

    Em primeiro lugar, desde logo, o Ensino.

    As escolas, liceus e faculdades, na sua maioria, têm perdido qualidade, como todos os indicadores, nacionais e internacionais, demonstram à saciedade.

    Uma classe docente abandonada, mal paga, sem qualquer força nas salas de aula, por muito profissional que seja, por muito que goste da profissão, deixará, a pouco e pouco, de se esforçar.

    Os programas escolares são de uma pobreza franciscana.

    A imensa maioria dos alunos faz todo o seu percurso nas escolas primárias, liceus e faculdades, sem nunca lhes ter passado pelas mãos uma “Gramática Portuguesa”.

    Depois, há um espanto generalizado quando ouvimos de universitários, políticos, jornalistas, professores, algumas palavras que farão corar de vergonha qualquer miúdo que tenha completado, há quarenta anos, a 4ª classe.

    Já nem falo da conjugação do verbo “haver” mas do ‘póssamos‘, ‘tanhamos‘, ‘cidadões‘, “vivenda germinada”, etc., etc., etc..

    A matemática é o terror dos alunos portugueses.

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    Isto porque, nas nossas escolas secundárias, as notas decentes de matemática são, na maioria das vezes, de filhos de imigrantes. Nomeadamente chineses.

    Sendo que, para nossa vergonha, muitos destes também conseguem melhores notas a Português…

    Os últimos números dos testes internacionais de Matemática e Leitura do PISA de 2022, invertendo a tendência de melhoria que se vinha registando na última década, são péssimos com uma “quebra sem precedentes”.

    A História de Portugal, de que o País tanto se deveria orgulhar, é esquecida.

    Mesmo a mais recente.

    O que faz com que os jovens não tenham grande preocupações em tentar perceber os meandros da política.

    O facilitismo, com todos os alunos a passar de ano, independentemente do que tiverem aprendido, explica bem a frase: “se não acreditam na exigência terão de se contentar com a mediocridade”.

    A situação socioeconómica das famílias é, também, determinante para o sucesso ou insucesso dos seus jovens nas escolas.

    a person with their hand on a rock

    Entre os alunos de famílias mais favorecidas, apenas 9% tiveram um desempenho fraco nas provas, mas entre os mais desfavorecidos a percentagem disparou para 37%.

    O futuro destes jovens, principalmente os oriundos de famílias pobres, é mais problemático e isso vê-se, também, pelo aumento dos que se encontram presos em Portugal.

    Ou em Centros Educativos.

    Entre os mais novos, dos 16 aos 18 anos, estavam presos, nas cadeias portuguesas, no último dia do ano de 2023, 56 jovens.

    Entre eles, 10 raparigas.

    Isto sem contar com os presos no Estabelecimento Prisional de Leiria Jovens com 220 presos e Linhó com 490 reclusos, muitos deles jovens.

    Seria preciso recuar dez anos para encontrarmos números semelhantes.

    Os políticos estão desatentos a este fenómeno?

    Nem todos.

    O “Chega”, por exemplo, porque não tem qualquer problema em fazer um discurso populista e xenófobo, por exemplo, tentando fazer passar a ideia de que os jovens não conseguem empregos porque estes estão ocupados por “deslocados”, como se os nossos jovens aceitassem os empregos que aqueles conseguem, mas vai conseguindo algumas adesões ao partido.

    brown wooden table and chairs

    Uma recente sondagem da Aximage, para a TSF-JN-DN, coloca o Partido Socialista em primeiro lugar (34.1%), o Partido Social Democrata (24.8%, sem o CDS, sendo que com o partido de Nuno Melo teria a adição de 1.2%), e o Chega, de forma destacada como terceira força política (16.3%).

    Mais importante, e reforçando o acima escrito, esta sondagem permite-nos saber a intenção de voto por faixa etária.

    Os maiores de 65 anos estão, em maioria, com o Partido Socialista, a faixa intermédia divide-se, mas a faixa mais jovem, escolhe destacadamente (25%), o Chega como partido de eleição.

    Uma vez mais vamos ter o que merecemos!

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • História Universal da Infâmia

    História Universal da Infâmia

    Abandonei as surpresas inerentes ao estilo barroco e também as surpresas que levam a um final que ninguém viu chegar. Em poucas palavras, preferi satisfazer as expectativas em vez de providenciar grandes choques: depois de fazer setenta anos, creio que encontrei a minha própria voz.

    Jorge Luís Borges

    O RELATÓRIO DE BRODY – PREFÁCIO (1970)


    A mercearia da Belinha fica na rua mais estreita que ao fundo desagua no Rossio, entre a praça da minha casa e a esplanada do Zé Russo, logo seguida pela da padaria, frente aos taxis que por sua vez param à frente do tribunal, e rumo ao grande centro de tudo isto onde todos os sábados a festa vai ao rubro com o mercado e com as famílias e grupos de amigos que se juntam para almoçaradas e jantaradas infindas, dentro e fora de horas. De onde está, ou cá fora a remexer intemporalmente nos caixotes da fruta quando não tem fregueses, ou lá dentro a corujar desalmadamente quando chega alguém com uma história nova ao mesmo tempo que espreita através dos vidros, a Belinha só não vê o que não quiser ver. Ao fim da tarde, ao à hora da sesta, quando descem sobre a calçada os períodos de maior acalmia, ela aprecia sentar-se no banco sombreado pelas árvores majestáticas do Ministério da Justiça e saborear uma pausa de repouso na companhia dos taxistas, que lhe alargam ainda mais o campo de visão. Tem por melhor amiga uma menina muito apagada, magrinha e silenciosa, e de ocupação assaz duvidosa, que passa outros tantos períodos de acalmia na zona obscura junto ao fundo da loja, e que também deve dar-lhe a ver muitas e muito boas novas perspectivas sobre a vida quotidiana de Estremoz, porque a Belinha parece adorar a sua companhia. Ontem fiquei a saber que, desta vez, a Chefe da Rua tinha visto o invisível através do meu espelho. Fui até à mercearia para comprar tangerinas e uvas, porque a fruta da Belinha é verdadeira, e enquanto tal[1], nesta terra abençoada, é verdadeiramente deliciosa. Mas aquilo foi um anúncio às massas de tal forma desagradável que saí logo dali e ainda não voltei a entrar lá. Que se lixe a fruta.


    Para contar esta parte pouco interessante depressa, só preciso de contar que andei imenso tempo a sentir-me cada vez mais doente mas sem saber de quê até que fui parar ao hospital, onde me internaram nos Cuidados Intensivos. Quando acordei disseram-me que lhes tinha pregado um grande susto e viajado até às portas da morte, enquanto a mim me parecia mais, de tão estranho que aquilo era, que tinham antes conseguido fechar-me num reality show onde eu era era a última concorrente. Entre isto e o tempo que estive a comer aquela aproximação à comida quase fria e confeccionada sem qualquer espécie de sal que existe nos hospitais, e depois o tempo em que estive a recuperar do reality show dos Cuidados Intensivos numa caminha da Medicina 1[2], passou-se cerca de um mês e meio, e depois vim recuperar ainda mais para casa. E, entre uma coisa e a outra, a verdade é que só esta semana é que comecei a sair livremente à rua, a ver os meus amigos, e a celebrar com eles o meu regresso às rotinas quotidianas.

    Uma dessas rotinas costuma ser o convívio com o espírito de festa revisteira que a Belinha transporta consigo como uma bomba-relógio.

    yellow monitor

    Quando virei rumo à mercearia para ir comprar fruta e vi a sua imagem, sempre toda decorada com requintes de  capricho, a remexer nos caixotes com grande estrilho de colares e pulseiras, fiquei tão contente que apressei o passo, lhe dei um grande abraço, disse qualquer coisa como “ai, Belinha, que bom voltar a ver-te”, e lhe espetei com dois beijinhos muito sentidos. Ela olhou para mim apanhada de surpresa, e a primeira coisa que lhe saiu pela boca fora, desta vez, e por uma vez sem exemplo sem qualquer espécie de graça, foi,

    Olha lá, vais pagar-me o que me deves, não vais?

    Eu penso logo, no piloto automático,

    Porra, que chata que é esta gaja,

    e ao mesmo tempo respondo, ainda dentro meu sorriso inicial,

    Belinha, claro que te pago, então. Eu não fugi com o dinheiro, achas? É mais que fui internada no hospital e estava inconsciente. Depois fiquei lá até à semana passada, e só agora é que consegui começar a sair de casa. E não vês que vim cá logo comprar-te fruta?

    À medida que ela me ouve, os olhos azuis da Belinha tornaram-se pensativos por baixo da maquilhagem.

    Ah, no hospital. Estás doente, não é? Estás outra vez doente, cada vez mais doente. Escuta, sabes o que é que me disse aquela minha freguesa que te conhece muito bem?

    Eu cada vez duvido mais que esta freguesa da Belinha exista mesmo na vida real. Da maneira como ela repete as suas histórias, dá-me ideia de que esta freguesa é um personagem inventado que lhe permite dizer-me, e suspeito que dizer a toda a gente que lhe dê ouvidos, o que lhe apetece dizer a meu respeito mas carece de substrato fiável. Desde que alguém lhe lhe mostrou as minhas fotografias de outros tempos na internet, juntamente com os textos que noutros tempos se postaram na internet a meu respeito, a Belinha descobriu que eu agora sou uma sexagenária mas já fui uma boazona chamada Clara Pinto Correia. Ou seja, dá ideia que descobriu que, no meu caso, envelhecer foi um grave pecado em cuja indulgência eu não tinha o direito de incorrer.

    a person in a red dress sitting on the ground under a red umbrella

    Aquela minha freguesa, sempre que te vê aqui, diz-me logo, Tsss…Meu Deus… Coitada… O que aquela mulher era!

    Ó Belinha. Que disparate. Então uma mulher não tem o direito de envelhecer? Essa tua freguesa queria o quê, queria que eu fosse uma americana cheia de plásticas?

    Ah, mas ela mostrou-me as tuas fotografias, minha filha. E deixa-me que te diga, tu apresentavas-te bem.”

    Não caias de tão baixo. Tu, naquela idade, também te apresentavas bem de certeza.”

    Desta vez, no entanto, a freguesa da Belinha teria ido à mercearia contar uma história ainda mais infame a meu respeito. Ela voltou a estudar-me com um ar pensativo, e depois atirou-me com o golpe de misericórdia.

    Sabes, assim que tu voltaste para casa eu falei com a minha freguesa que te conhece. E ela disse-me assim, Aquela mulher… Como as coisas são, aquela mulher, que já deu na televisão… aquela mulher que dantes era da televisão, olha: agora anda a comer do padre!

    Aquilo inicialmente foi um choque, porque soava mesmo a “anda a comer o padre.” A pessoa até se arrepia. A comer quem? O Padre Francisco? Um senhor tão simpático? Eu? A comer o padre? Mas pronto, o choque passou depressa porque a frase fora, inequivocamente, a comer do padre. E isso só podia ter a ver com a minha situação financeira, que se resume a sobreviver com uma reforma mensal de ordenado mínimo, juntamente com a solidariedade social de Estremoz,  que é rápida e eficaz a responder às necessidades dos doentes e indigentes, e ainda juntamente com a organização protectora das minhas três irmãs, que são uma espécie de sindicato de protecção da ovelha transviada da família[3]. Juntando esforços enquanto eu jazia na minha cama da Medicina 1, tinham-se organizado para que as voluntárias do Lar de Santo André viessem cá a casa trazer-me o almoço todos os dias da semana – e é um almoço tão caseiro, tão saboroso, e tão bem servido, que chega e sobra para também ser um jantar.

    Fiquei tão mal disposta com o pressentimento óbvio do que queria dizer aquele “comer do padre” que já nem comprei tangerinas, nem uvas, nem nada – inverti a curva, afastei-me da mercearia o mais depressa possível, e quase que corri para casa num desespero de conseguir afastar-me do mal.

    man in green robe sitting on chair

    Perguntei a uma das senhoras que cá apareceu com o almoço logo a seguir ao meu encontro imediato com a “freguesa da Belinha”, e ela confirmou o meu pressentimento.

    Uma das pessoas  que se senta no conselho de direcção do Lar de Santo André é o Padre Francisco.

    E, com base nesta informação, à partida muito límpida mas à chegada certamente já extremamente turva, onde dantes eu recebia com imenso gosto esta nova rotina de o termos com o almoço caseiro muito bem servido trazido por duas senhoras da cidade, a Belinha conseguiu instaurar um autêntico Edward Jenner.

    Edward Jenner deixou a sua marca no caminho da Europa entre 1749 e 1823. Este cirurgião britânico era um menino do campo, filho de um pastor protestante e, a partir dos cinco anos, depois da morte do pai, um fruto da educação providenciada pelo irmão mais velho, que também era um pastor protestante. Isto aconteceu tudo em pleno Iluminismo, ou seja, numa época e num lugar em que a Ciência e a Religião estavam pouco menos que sobrepostas, pelo que as respostas para os grandes mistérios da Natureza se procuravam sistematicamente na Bíblia.

    Com o tempo, Jenner tornou-se um cirurgião muito popular e respeitado, amigo lá de casa dos grandes nomes da época e chamado a leccionar em Berkeley pouco depois de ter concluído a sua própria formação, prática e teórica. Juntamente com as aulas, juntou-se a dois grupos académicos que laboravam pela promoção do conhecimento médico, escreveu os seus artigos, aprendeu a tocar o seu violino com a devida doçura, compôs os seus poemas ligeiros com o devido virtuosismo, estudou com particular interesse os hábitos parasíticos de nidificação do cuco[4], e  começou a debruçar-se cada vez mais, primeiro só na população inglesa mas depois na do mundo inteiro, sobre os segredos com que a vacina da varíola se escondia do conhecimento humano.

    Fossem aqueles tempos politicamente correctos como são hoje, e Jenner seria logo proibido de inocular pessoas à vontadinha sem saber ao certo o que é que estava a fazer. Sendo assim, é muito provável que nunca tivesse descoberto coisíssima nenhuma, embora a atitude de princípio que presidia a essa ignorância fosse muito mais decente. E a ausência desta descoberta quereria dizer que o nosso conhecimento sobre inoculações contra vírus assassinos teria evoluído muito mais devagar. Mas estávamos na fronteira entre os séculos XVIII e XIX. A varíola era especialmente odiosa para as classes dominantes porque, ao contrário de outras armas mortíferas como a sarna e a sífilis, não respeitava estratos sociais. Ainda por cima, quando não matava os atingidos, deixava-os a todos desfigurados por igual para o resto da vida. Claro que, neste cenário, os grandes médicos tinham o caminho aberto para testarem as suas teorias no mundo vivo desde que fossem devidamente discretos – e que, claro, restringissem o mais que pudessem o seu campo de acção aos pobres e aos pretos[5]. Ora acontece que, graças a Deus, cobaias dessa natureza eram o material que mais abundava no planeta[6].

    Com base nas suas observações veterinárias, no campo e no laboratório, Jenner concluiu que a melhor defesa contra o agente da varíola[7] seria a inseminação de humanos com varíola bovina, que provocava no humano uma resposta muito mais suave mas aumentava imediatamente o quociente imunitário[8].

     Só para poder ter esta certeza,  não sabemos quantas pessoas é que a grande vedeta da medicina britânica teve que inseminar com soro de vacas doentes.

     No primeiro livrinho que publicou[9], enquanto outros colegas a quem tinha dado amostras do soro começavam também a testá-lo em pessoas que nunca foram identificadas, aparece, por extenso, o nome de sete voluntários.

    two guinea pigs eating carrot

    Agora, nós sabemos que sete cobaias não representam, minimamente, um valor de confiança para um investigador que está à procura de um soro capaz de desencadear uma resposta imunitária no organismo do ser humano. Talvez Jenner tenha antes seleccionado cinquenta cobaias. Ou mesmo quinhentas, para jogar pelo seguro. Hoje em dia seriam umas cinco mil, com um punhado de post-docs estafados, sempre agarrados às micropipetas onde escreveram o seu nome com uma daquelas canetas de tinta resistente à água, o dia inteiro a micropipetar o agente da vacina tirado das vacas doentes, a passar o dia inteiro o sobrenadante dos seus eppendorfs de um lado para o outro[10], tudo isto num silêncio de cortar à faca o dia inteiro porque agora é assim que se fazem as coisas[11].

    Edward Jenner descobriu mesmo a vacina para a varíola.

     Mas, pelo caminho, nunca saberemos quantos pobres e quantos pretos é que morreram nesta escalada para a nossa salvação colectiva.

    Se a história se passasse hoje, claro que o grande cirurgião seria chamado à Justiça e submetido a um longo e penoso julgamento, que, entre outras coisas, traria a público um rol angustiante de identidades das vítimas.

    Mas naquela altura, naquelas vítimas, detalhes desses eram considerados de somenos importância.

    Da mesma forma, para a Belinha, turvar as águas de um programa muito bem organizado de solidariedade social da sua cidade chamando-lhe “comer do padre” e atirando-nos a todos para a gamela dos pobrezinhos suplicantes também é de somenos importância – a malta percebeu a ideia, foi ou não foi? E, dito assim, até é mais colorido.

    topless woman holding red apple

    Se depois de ouvir a versão da “sua freguesa” eu tenho dificuldade em voltar a entrar na mercearia, muito bem – o problema é meu.

    Há mais quem queira.

    Aliás, até deve haver mais quem queira saber que “aquela mulher, que até já andou a dar na televisão”, agora anda “a comer do padre”.

    Belo romance.

    Hm, não.

    Soares de Passos não faria melhor  com as suas estrofes do que eu consegui fazer com a minha vida[12].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] … honra lhe seja…

    [2] Aqui, evidentemente, já tinha percebido que aquilo não era nenhum reality show. Mas se o que eu vi eram mesmo as portas da morte, bem – organizem-se. Que caos.

    [3] Que sou eu, caso não se entenda bem a frase.

    [4] Um verdadeiro parasita, a merecer maior desenvolvimento metafórico um dia destes. Na Primavera vem de propósito de África para acasalar, depois do que o macho desanda para casa e a fêmea espia os passarinhos pequeninos das redondezas, escolhe os que fazem o melhor ninho, despeja lá o seu ovo, e parte também ela para África. O bebé cuco costuma sair do ovo imediatamente antes dos seus irmãos adoptivos, e a primeira coisa que faz é deitar-lhes todos os ovos ao chão para se tornar filho único. A partir daí, tudo o que faz é berrar com fome, enquanto os pais adoptivos, muito mais pequeninos que o seu filho monstruoso e completamente esfalfados, correm pelos bosques o dia inteiro para lhe trazerem alimentos ao ninho. Muitos morrem quando o gigante está quase criado, mas, como o demónio é sábio, nunca morrem os dois. Quando o jovem cuco se sente capaz de voar, estica as patas, abre as asas – e parte para África, onde ficará a crescer e a engordar atá à Primavera seguinte, quando estará pronto para vir à Europa parasitar com o seu ovo o ninho de um passarinho qualquer. Por acaso, com tudo o que vimos e ouvimos, eu e o Dick ainda nos lembrámos de que poderia ser útil para outros pais adoptivos escrevermos uma autobiografia chamada O OVO DO CUCO. Mas concluímos que era uma péssima ideia.

    [5] Pedimos desculpa, mas o pensamento da época funcionava mesmo assim.

    [6] Bem, abundava na altura assim como abunda hoje. Até podemos escolher não dizer nada, mas sabemos perfeitamente que são precisos imensos pobres para sustentar um rico e que todos os pretos são pobres. Voltamos a pedir desculpa, mas esta história é mesmo tirada da vida real.

    [7] A ideia do vírus ainda estava longe da sua consolidação científica. Esta teve por esperar pelas publicações do  microbiologista russo Dmitry I. Ivanovsky, em 1980, e do microbiologista e botânico holandês Martinus W. Beijerinok, em 1893. Ambos os cientistas estavam a estudar uma doença que afectava as folhas da planta do tabaco.

    [8] Também aumentou o nosso léxico, e de que maneiro. Em português isto não é particularmente espectacular, mas pensem no negrume em que viveram os pobres ingleses, ou nos desgraçados alemães. A palavra latina para vaca é vacca, o que faz com que a varíola bovina se chame vaccinia. Jenner decidiu chamar ao processo de inoculação com o soro da vacciniavaccination. Ou, em português, vacinação, rapidamente simplificado para vacina por sucessivos acordos ortográficos. Estão a ver como se fazem as coisas?

    [9] Note-se que a introdução desta vacina foi muito polémica, sobretudo porque a classe médica não acreditava no efeito benéfico das vacinas. Os primeiros artigos que Jenner submeteu para publicação foram todos chumbados, e o grande cirurgião acabou por optar por uma primeira publicação em livro.

    [10] Ah, desculpem. Os eppendorfs. No caso das micropipetas, os eppendorfs são aquelas pontinhas translúcidas, descartáveis e renováveis, onde se processa o material em estudo. A gente fala deles tantas vezes, por tantas razões, que acaba por esquecer-se que os leigos carecem de nota de rodapé.

    [11] Eheheh! A berraria com que eu fiz as minhas coisas, no meu tempo, já ninguém me tira. Aprendíamos os palavrões mais debochados deste mundo, contávamos histórias francamente porcas, apaixonávamo-nos, chorávamos, valeu tudo. Foi bom.

    [12] Vai alta a lua! na mansão da morte. Já meia-noite com vagar soou; etc. A “mansão da morte” é o cemitério, só podia. E estes são os dois versos de abertura do famoso poema O NOIVADO DO SEPULCRO, que no final do século XIX todas as meninas sabiam de cor (também, não é tão longo nem tão difícil como isso), e que conta a história de dois jovens apaixonados, acabados de falecer, que no final conseguem abraçar-se numa única sepultura, deixando a outra vazia, com a lápide quebrada. É um bocado picante, porque para o fim o rapaz parece insinuar que vai, por fim – e já que não o fez em vida – fazer da rapariga sua mulher. Depois parece que quebrou a lápide. Estão a ver as colegiais do século XIX? Hm-hm.


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  • Preparem-se para o ‘lançamento’ do Costa Jr.

    Preparem-se para o ‘lançamento’ do Costa Jr.

    A ‘cadeira do poder’ de António Costa ainda está quente – tanto que ele ainda lá está, como primeiro-ministro em gestão –, e já vemos o seu primogénito, Pedro Tadeu Costa, a ser alavancado pela comunicação social para eventuais ‘voos’ altos na política portuguesa. Findo o Congresso do Partido Socialista (PS), depois de vermos Costa ‘filho’ na SIC Notícias no domingo à noite – como é sabido, o seu tio, Ricardo Costa, é Director de Informação da SIC – a fazer comentário em conjunto com a vice-presidente do Partido Social Democrata (PSD), Inês Palma Ramalho, ontem podíamos vê-lo na CNN, frente a Margarida Bolseiro Lopes, vice-presidente da Comissão Política Nacional do PSD. Há pouco tempo, Pedro Tadeu Costa também já tinha estado na CNN a defender a candidatura de Pedro Nuno Santos à liderança do PS.

    Mas, vejamos: quais os ‘títulos’ que acumula para ser posto a “debater”, nestas estações televisivas, com duas dirigentes do Partido Social Democrata? Pedro Tadeu Costa destaca-se agora, aos 33 anos, por ser presidente da junta de freguesia de Campo de Ourique (venceu as autárquicas de 2021 por apenas 25 votos, depois de uma juíza ter negado recontagem) e também deputado do Grupo Municipal do PS na Assembleia Municipal de Lisboa. Para além de, claro, ser filho do primeiro-ministro demissionário.

    De imediato, surge a dúvida: quão comum é vermos presidentes de juntas de freguesia a fazer comentário político regular? Sobretudo, como se o seu estatuto comparasse com o das duas dirigentes do PSD?

    Dizem alguns que o currículo do jovem (ou deveríamos antes chamá-lo D. Pedro I, da dinastia Costa?) fá-lo meritório do espaço recentemente adquirido nos media, onde opina de forma desprendida, como se o Governo do seu pai não tivesse arrasado o país. Mas se atentarmos às suas qualificações académicas e profissionais, concluímos que o ‘palco’ mediático que tem vindo a ganhar é desproporcional. Inevitavelmente, a sensação que fica é de estar-lhe a ser pavimentado o caminho para quando chegar o dia em que já esteja ‘maduro’, poder candidatar-se a altos cargos políticos, seguindo as pisadas do seu progenitor.

    De facto, olhando para o seu percurso, vemos claras semelhanças entre Costa pai e Costa filho. Ambos se filiaram na Juventude Socialista com apenas 14 anos, e ingressaram na licenciatura de Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sendo que Pedro Tadeu Costa tem também uma pós-graduação em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação pelo ISCTE. No então, Pedro não tem inscrição na Ordem dos Advogados, presumindo-se que não se inscreveu ou não concluiu o estágio.

    Pedro Tadeu Costa ‘transformou-se’ agora em comentador da CNN Portugal.

    António Costa deu o seu primeiro salto na Política servindo na Assembleia Municipal de Lisboa. Pedro, por seu turno, começou a trabalhar como autarca na Assembleia de Freguesia de São Domingos de Benfica em 2013, passando para a Junta de Freguesia de Campo de Ourique em 2017.

    Em entrevista recente, o ‘rebento’ de António Costa assumiu a sua preferência por Pedro Nuno Santos, em detrimento do seu próprio pai, para a liderança do partido. Faz sentido: a hipótese de integrar um executivo comandado pelo pai já está descartada, enquanto que, pelo novo secretário-geral, é uma hipótese cada vez mais palpável.  

    Poderia até pensar-se que Pedro Tadeu Costa sofre da típica vergonha dos adolescentes – pese embora estar já a caminho dos 34 anos – em relação aos pais. Mas a “vergonha” é um mal que não toca aos famosos ‘boys’ carreiristas do PS. Pelo contrário: se partilham os apelidos entre si como resultado dos laços familiares, o ‘descaramento’, a ‘arrogância’ e a ‘prepotência’ serão os seus nomes do meio.

    E, se dúvidas houvesse, o Congresso deste fim-de-semana foi o teste do algodão quanto ao sentimento de impunidade e à prepotência que grassa no Partido Socialista. Durante dois penosos dias, assistimos a um deplorável espetáculo onde o lambe-botismo foi prato principal e onde os sabujos de António Costa não se coibiram de mostrar provas do seu respeito e lealdade incondicionais, branqueando o lastro de incompetência e destruição que foi o seu legado. Pelo meio, António Costa ainda fez o número do “mártir”, com a inenarrável tirada “podem ter-me derrubado, mas não me derrotaram”.

    Costa, que parece crer-se uma espécie de Deus-Todo-Poderoso, pode fingir-se vítima da Justiça; mas, na verdade, é o carrasco dos portugueses. E, pelos vistos, não lhe basta: nos bastidores, os cordelinhos já estão a ser puxados para que o seu filho possa almejar, num futuro não muito distante, dar cabo do que reste do país.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


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  • PS: ‘Portugal inteiro’

    PS: ‘Portugal inteiro’

    Marcadas para 10 de Março, as eleições legislativas vão lançar uma campanha onde, como naturalmente, ruas e praças serão invadidas por cartazes.

    Ora, estes cartazes, embora já secundarizados por outros meios ‘mais modernos’ de comunicação, desempenham um papel crucial na divulgação dos soundbites dos partidos políticos. Pela sua massiva ocupação do espaço público onde passamos a pé, ou em veículos de duas ou quatro rodas, a presença do cartaz torna-se imperativa para a persuasão do eleitorado.

    Segundo o designer suíço Müller-Brockmann, “um cartaz deve ser activo, muito embora ao ser colocado numa parede ou num pilar, esteja condenado à imobilidade”. Numa sociedade capitalista, o cartaz passou a desenvolver-se em função do consumidor, e o sector da política segue a tendência. Sintéticos, são um espaço de grande diversidade de abordagens, que vai da fórmula convencional materializada numa simples promessa à modalidade mais acidulada que abre espaço à ironia ou a críticas concretas das abordagens concorrenciais.

    ‘Cartaz’ na zona da Foz Arelho, tirada durante o confinamento em 2020. Foto: Ruy Otero.

    Representando o cartaz uma verdadeira força motriz no desenvolvimento das campanhas partidárias, variam tanto em estilos como em objectivos. Numa reflexão crítica sobre o marketing político feito em Portugal em 2024, examino aqui o conteúdo das representações discursivas produzidas pelas máquinas eleitorais dos diferentes partidos. Vamos esmiuçar slogans, esquadrinhar as simbologias patentes, perscrutar os atributos das fotografias, dissecar as opções gráficas que vão do design global à especificidade das fontes tipográficas ou da iconografia de letra.

    Combinando elementos textuais e visuais, o cartaz político é uma peça gráfica desafiante que deve funcionar tanto de perto como ao longe, seja parado ou em movimento. Isto explica a razão dos slogans serem curtos, não obstante o facto destas mensagens irem evoluindo à medida que a data das eleições se aproxima à luz dos inquéritos e estudos desenvolvidos por quem assume a gestão da campanha tendo como missão primordial ganhar relevância e competitividade face aos adversários mais directos.

    Em Portugal, se o período pós-25 de Abril envolveu artistas plásticos na criação de campanhas partidárias, de que são exemplos José Guimarães, João Abel Manta, ou até mesmo o poeta Eugénio de Andrade, os tempos modernos da propaganda atestam uma forte homogeneidade visual. Assim, o vanguardismo da mobilização política assente num registo plástico de grande impacto visual foi substituído por lógicas altamente racionais e uma linguagem uniformizada e repetitiva centrada na exploração dos seus logótipos e símbolos. A primazia é, portanto, dada à função e eficácia.

    Começo esta série com o primeiro cartaz do Partido Socialista (PS) que já ‘anda’ pelas ruas. O seu candidato a primeiro-ministro, Pedro Nuno Santos, antigo ministro das Infraestruturas, escolheu como slogan “Portugal Inteiro”. Um apelo ao valores nacionais associado a um adjectivo que sugere um país a que nada falta, e que nunca se deixa corromper. O foco é, portanto, a promessa de uma conduta exemplar baseada em valores de honestidade e integridade, uma escolha destinada a diluir as últimas acções governativas deste candidato.

    Segundo o próprio, a explicação para a escolha da palavra “inteiro” é que “Portugal só será um país desenvolvido, um país rico, se for capaz de aproveitar plenamente o seu território, deixando de aceitar que algumas regiões fiquem sempre depois”, afirmação feita durante um encontro com apoiantes no dia 12 Dezembro de 2023 no distrito de Faro.

    Em 2024, a iconografia usada no logótipo do PS é agora apenas a ilustração do punho, à semelhança, aliás, da campanha de Costa, mas diferente da de Sócrates, que conjugou rosa e punho.

    Cartaz do Partido Socialista exposto na Rua da República, em Lisboa. Fotografia de Sara Battesti.

    Em relação ao tipo de letra, a escolha recai sobre uma fonte de utilização gratuita, parecida com o design germânico da tipografia Galano Grotesque. Se por um lado a legibilidade é boa, peca por ser comum e sem grande personalidade. O efeito luminoso dado nas primeiras letras da frase central confere alguma tridimensionalidade, na tentativa de contrabalançar uma abordagem simplista e pouco impactante.

    O verde é a cor da campanha do candidato PS, cor que simboliza por um lado esperança, liberdade e vitalidade; é ainda representativa da natureza, aludindo a noções de crescimento e renovação. Curiosamente, esta foi também a cor usada nas campanhas às eleições legislativas de António Costa e de José Sócrates. Esta opção tem a mais-valia de ser um elemento bem distintivo que marca um distanciamento com a linha de esquerda do BE, do Livre e da CDU-PCP, partidos que mantêm a aposta nos tons quentes do vermelho.

    A fotografia de Pedro Nuno Santos é um dos aspectos mais caprichados da campanha. Revela um estilo responsável e uma postura amigável através de um olhar directo independentemente da posição – frontal ou lateral – do leitor em relação ao cartaz. Em contrapartida, o tom azul vibrante da gravata acaba por destoar com o blazer preto de abas pouco elegantes e que lembra o uniforme do revisor dos transportes públicos. Embora se possa perceber a necessidade de projectar a imagem de um homem de origens humildes com o intuito de cativar o eleitorado mais conservador (socialista mas não só) e que vota, o meu impulso caso fizesse parte da equipa de consultoria deste candidato, seria recomendar um outfit mais clássico com um fato azul petróleo de linhas sofisticadas da última colecção Outono/ Inverno.

    Uma característica menos convencional é a barba, algo mais comum entre políticos orientais do que ocidentais. Ao longo dos 50 anos de democracia em Portugal, é de sublinhar que nenhum político com barba ou bigode foi eleito Presidente da República ou primeiro-ministro. Resta saber se não teria sido preferível pôr as barbas de molho, ou então inspirar-se em oportunismos mediáticos como a do primeiro-ministro francês Emmanuel Macron que, antes de sua candidatura presidencial, convocou a imprensa para cobrir publicamente a sua ida à barbearia para desfazer a barba e encetar um novo ciclo.

    Ilustração de Ruy Otero e Bruno Cecílio a partir do filme They live (1988), de John Carpenter.

    O design é extremamente institucional, com uma composição gráfica feita de diagonais que lembra um certificado de organismo público. É uma campanha neutra, possivelmente destinada a compensar a imagem de imaturidade que a postura de Nuno Santos sempre revelou, factor esse que não cai bem ao eleitorado não urbano de um país conservador como Portugal.

    Olhando para o mais recente estudo realizado pelo Pitagórica, o PS é o partido que atrai os mais velhos ao alcançar mais de um terço dos votos entre os maiores de 54 anos, dominando também a população menos instruída do país. Ficam explicadas as razões da adopção de uma solução convencional, de certa maneira old fashion, mas certamente eficaz para conquistar quem vota, ou seja, quem interessa.

    Sara Battesti é estratega e especialista em Comunicação


    Avaliação do cartaz

    Design: 2/5

    Impacte: 3/5

    Eficácia: 4/5

    Média: 3/5


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  • Aveiro: crónica dos lugares

    Aveiro: crónica dos lugares

    Percursos ainda se fazem assim em terras lusas – as placas, as que melhor se aguentam, aquelas que parecem verdadeiras, em molde de cimento, pintadas de branco, letras negras, para ali sabemos que, a partir dali, se inicia uma terra, outra terra, pouca terra.

    Mas aqui é diferente. As aguarelas são pintadas na ria de Aveiro, pela ria de Aveiro. Canais estendem-se por pântanos, e cegonhas a deslizar no ar, uma com uma cobra no bico (aqui comem cobras e lagartos). E flamingos ceifando crustáceos, e as cores esbatendo-se, difusas, em diferentes planos, ali no horizonte.

    people in boat in front of buildings

    Se desviamos o olhar de casas que insistem em ferir as vistas, em cimento húmido e contornos brutos, conseguimos ver telas dignas de museu, e melhor ainda, pois estão vivas (aqui dizem cobras e lagartos).

    E ora pois que raio! Que lindo! Não vêem? Não ouvem? Terão as casas olhos? Terão as casas ouvidos?

    Pois o que fazem agora a casas e línguas que se perdem as subtilezas? As nuances, o enredo. Não peço frufru, arre! Peço saliva enrolada a lamber os conceitos, as formas, os remates! Não este indecente percorrer de palavras directas, comunicação, rudeza torpe e pensamentos esquemáticos em tabulações ocas! Tão ocas que lhes ouvimos o eco de gota que cai da torneira

    Ping…

    E nota-se que esperamos outra. Arre!

    Não. Acalmemo-nos. Quero o deslizar daquelas asas, suavemente sobre a ria que, se espelha, resplandecente e nítida, ocre, verde acinzentado, a esbater-se no plano, ao longe, que esconde fábricas num pano de fundo azulado, diáfano, etéreo.

    A ponte, corcunda se debruça na outra margem, que serve para desaguarmos, calmamente, na atlântica continuidade do caminho.

    brown wooden dock on sea under blue sky during daytime

    Couves galegas encostadas às meações como reduto de subsistência, um canteiro horta onde se consegue semear. Em Aveiro, as casas não se encostam umas às outras. Nem que seja a largura de ombros de alguém franzino, sobra com distância de segurança, as portas erguem-se degraus em relação à rua, como se as casas arregaçassem as saias para quando a água passar.

    Vamos aos cricos.

    O vento, sempre o vento. Que nos segue por cada ponto cardeal de maneira incompreensível, não há muro que nos resguarde, como se o mar quisesse manter o seu poder de arear a terra (que gorda que nasce aquela batata). São sítios, como muitos sítios. Fisionomias que ficam de quem flutua em moliceiros e colhe sal do mar.

    Flor de sal.

    – O que é aquilo branco na água, mãe?

    É sal, é a espuma do sal (espuma dos dias), algo que existe para deixar de existir num pequeno embate, excepto para quem aporta remos a pentear as ondas para pescar tempero.

    (E a espuma dos dias da lista do Jeffrey Epstein? Curioso, a cada trimestre ou coisa e tal, lá vem tema quentinho do forno para nos entreter, para nos pôr às turras, a dar mais umas opiniões, mais umas especulações, e outras coisas acabadas em ões.)

    gray pathway near lighthouse

    Batam pratos. Batam panelas. Batam com os talheres na mesa para exigir o sal e o pão (paz, habitação).

    Caminhos e lugares, podemos fazer crónicas de passeio em silêncio a ver a paisagem esbatida em água, entretidos com a desgraça alheia, alheados do entretenimento desgraçado.

    O que conta é a viagem.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Dois ingredientes de combate aos problemas de saúde mental

    Dois ingredientes de combate aos problemas de saúde mental


    Estava num museu londrino quando uns girassóis de Van Gogh me fizeram parar. Eram belos, magníficos…

    Que porcaria de adjectivos que não comunicam nada do que senti.

    Recomecemos.

    Era muito, muito, muito mais do que isso — um arroubo estético‑espiritual em que senti que, por uma vintena de experiências assim, qualquer vida já valeu a pena. Já sentira isso na poesia, na literatura, na música, numa lagoa em São Miguel ao ver o Sol nascer, com o céu azul infindo e o Sol à distância de um mover de mão, mas aquela tela do museu londrino continha propriedades mágicas, porque o olhar e a coisa olhada se tornavam num só ente.

    O meu espírito flutuava por outras regiões, como se a existência tivesse umas brechas minúsculas que se abrem meia dúzia de vezes ao longo da vida. Estava completamente absorto e extático, completamente instalado no sublime, quando o meu amigo e a minha amiga que me acompanhavam me sacudiram:

     — Estás aí há mais de meia hora! Já vimos tudo. Que é que estás a fazer?

    Para mim, a experiência ainda estava no início, e eu morava ali havia dois minutos. Pedi que me deixassem contemplar a tela mais uns minutos e continuei imerso no quadro, enquanto pensava na palavra «gratidão» e dizia de mim para mim: «Por que raio estou a pensar nesta palavra?»

    Quando os meus olhos se moveram vagarosamente do quadro, li numas letras pequenas que o pintor havia feito aquele quadro para descrever pictoricamente a gratidão. Voltei a reler para concluir que não sonhara.

    Nunca mais deixei de olhar para um girassol sem lhe agradecer, e o mais curioso é que ele me retribui sempre.

    Bem sei que há vidas dificílimas, bem sei que há muita injustiça, bem sei que temos tendência para contabilizar mais o que nos falta do aquilo que temos, mas é preciso vasculhar a gratidão nas nossas vidas.

    a large field of sunflowers with a sky background

    Sem gratidão, definhamos e tornamo-nos pessoas-cactos, criaturas inaturáveis para os outros.

    Além da gratidão, é forçoso cultivar o acto da escuta. Poucos terão dado conta de que se aprende mais a ouvir do que a falar. Há pouco tempo, cruzei-me com uma amiga no metro. Ela falou sem parar, sempre e só sobre a sua vida, e, quando saiu na estação perto da sua casa, perguntou-me: «Contigo, está tudo bem, não está?» Antes de eu ter tempo de responder, ela respondeu por mim: «Está tudo bem, claro, é assim mesmo. Gostei muito da nossa conversa. Bom ver-te!»

    Ela ficara contente com a conversa, mas não houve conversa: houve monólogo, e isso satisfê-la.

    Noto crescentemente que as pessoas perderam a capacidade de escutar o Outro. Escutar… algo mais fundo do que ouvir.

    A cara do Outro tem escrita que está noutro lugar quando não estamos a ser escutados.

    Numa discussão, a maioria das pessoas, pura e simplesmente, não ouve, apenas fica a pensar no que dizer a seguir, enquanto o outro vai falando. Como as pessoas não se ouvem nas discussões, têm sempre de acrescentar que não disseram o que os outros disseram que elas disseram — têm, em suma, de rebater inúmeras falácias do espantalho. E há argumentos espantosos entre pessoas que se conhecem bem e se respeitam: «Mas, para ti, a vida das crianças do país x não vale nada?», diz uma. «Não te importas com o genocídio, já percebi», responde a outra.

    two women's sitting in front of sunflowers

    Se as pessoas se descentrassem do seu umbigo, praticariam mais o egoísmo altruísta, seriam mais felizes e fariam os outros mais felizes. Tudo isto soa a conversa pueril e livro de auto-ajuda? Talvez. A criação excede o criador, e eu limito-me a descrever o que a vida me apresenta. Sim, acredito no egoísmo altruísta, por ridiculamente trivial que possa soar este oximoro. Pelo que observo, sou obrigado a ter muita dificuldade em acreditar na felicidade (perdão pela rima) sem o verbo dar conjugado na primeira pessoa. (Que é isso da felicidade?, dirão muitos. É o pano de fundo, contraponho.) Tenho muita dificuldade ainda em acreditar no bem-estar de cada um se não nos interessarmos vivamente por outros. (Não escrevi «pelos», a abrangência seria maior.) E esse interesse acarreta escuta. Inevitavelmente.

    Em suma, que a conversa já vai longa, se as pessoas escutassem o Outro, os psicólogos e psiquiatras teriam um quarto dos clientes.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Global Media: o cemitério está cheio de má e promíscua imprensa (e ainda bem!)

    Global Media: o cemitério está cheio de má e promíscua imprensa (e ainda bem!)


    Sendo eu de ‘esquerda’, aquilo que mais me irrita e faz sair do sério é quando alguém, supostamente de ‘esquerda’, se mete a culpar a ‘direita’ de algo que nada tem a ver com ideologias. Percebe-se a estratégia – criar uma clivagem, identificar um suposto inimigo ideológico, para que haja uma decisão política favorável –, mas isso é passar um atestado de indigência e sobretudo retirar a responsabilidade aos verdadeiros culpados. E não permitir uma reflexão e discussão sérias.

    Hoje, a jornalista e antiga directora-adjunta do Público Ana Sá Lopes veio defender a nacionalização da Global Media. Veio tratar de fazer a ‘cama’ para deitar os desejos de políticos – e.g., Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Moreira, Carlos Moedas e Pedro Adão e Silva – em se meter dinheiro dos contribuintes (porque não há ouvintes e leitores suficientes) para assim simplesmente se salvarem empregos de jornalistas que, durante anos, contribuíram para a degradação do seu ‘produto jornalístico’ a ponto de hoje ser já um ‘produto comercial’ sem interesse nem préstimo.

    a close up of a pile of paper on a table

    Ao contrário daquilo que defende Ana Sá Lopes – que funciona aqui como ’porta-voz’, porque sei que o seu ponto de vista é comungado pela generalidade da corporativa classe jornalística –, não vivemos “um momento totalmente crítico na imprensa”. De facto, vivemos sim um momento de clarificação.

    Por exemplo, um jornal como o Diário de Notícias – por mais que simpatizemos com a sua vetusta idade (foi fundado em 1864) – não pode sobreviver se atrai apenas 1.500 pessoas para comprarem a sua edição diária contando com uma equipa de três dezenas de jornalistas e sucessivas direcções editoriais (e conselhos de redacção) permeáveis a interesses políticos e mercantis.

    Veja-se, aliás, que na Global Media chegámos a ter directores editoriais do Diário de Notícias (Rosália Amorim), Jornal de Notícias (Inês Cardoso) e TSF (Domingos de Andrade) no Conselho de Administração nos tempos de Marco Galinha. A promiscuidade e cumplicidade começa aqui, quando jornalistas passam de ‘geradores de notícias’ credíveis – para que, trazendo público haja interesse externo em anunciar – para gestores comerciais a vender banha da cobra, ainda por cima usando estratégias capciosas para fazer com que marketing seja perceptível como notícias baseadas em interesse editorial.

    Aliás, a hipocrisia de supostas virgens inocentes do jornalismo, que se comportaram como autênticas megeras nos anos mais recentes, ficou bem patente na audição desta semana de Domingos de Andrade na Assembleia da República.

    Domingos de Andrade, durante a audição esta semana no Parlamento, foi administrador da Global Media durante três anos, mantendo-se jornalista e director editorial, e assinando contratos de prestação de serviços com entidades privadas e públicas, algumas das quais sob suspeita do Ministério Público.

    Com a carteira profissional de jornalista activa, Domingos de Andrade assumiu durantes vários anos funções de responsável editorial de diversos órgão de comunicação social da Global Media (DN, JN e TSF), ao mesmo tempo que era administrador da holding – sendo o braço direito executivo de Marco Galinha até ao ano passado –, e era também, de acordo com o Portal da Transparência dos Media, gerente da TSF – Rádio Jornal Lisboa, da TSF – Cooperativa Rádio Jornal do Algarve, da Difusão de Ideias – Sociedade de Radiodifusão, da Pense Positivo – Radiodifusão e ainda vogal do conselho de administração executivo da Rádio Notícias – Produções e Publicidade.

    Domingos de Andrade foi um jornalista meigamente multado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) em Janeiro do ano passado por ter andado a assinar contratos comerciais com empresas que financiavam os periódicos da Global Media, e agora vem dizer que “não estamos apenas a assistir ao fim de marcas, estamos a assistir à destruição reputacional de marcas e redacções”? Está a fazer auto-crítica ou está a fazer lavagem de imagem?

    Que eu saiba, “a destruição reputacional de marcas e redacções” sucede quando se fica a saber, através de um despacho do Ministério Público, que “Eduardo Vítor Rodrigues, na qualidade de autarca, solicitou a Domingos Portela de Andrade, vogal do Conselho de Administração do Grupo Global Media, que os meios de comunicação pertencentes a tal Grupo, nomeadamente o Jornal de Notícias e TSF, elaborassem notícias e cobrissem conferências promovendo a atuação da Câmara de Vila Nova de Gaia e do seu presidente”. É o jornalismo de Domingos de Andrade que queremos que o Estado financie? É a credibilidade de Domingos de Andrade que deve ser atendida quando falamos do fracasso da Global Media?

    Rosália Amorim, durante a audição esta semana no Parlamento, tornou-se conhecida pela constante promoção e moderação de eventos pagos por empresas públicas e privadas ao Diário de Notícias. Assumiu em Novembro passado, o cargo de directora da TSF, mesmo apesar da oposição do Conselho de Redacção da rádio, que não a considerava capaz de uma “política editorial independente”.

    Quando vejo, por exemplo, pessoas como Rosália Amorim, ex-directora do Diário de Notícias, manifestar “tristeza” pela situação da Global Media, sabendo como funcionavam as parcerias comerciais naquele diário, estamos não apenas perante hipocrisia; há uma desfaçatez terrível. Como pode uma “marca” ter alguma reputação se o próprio Conselho de Redacção da TSF se opôs à nomeação de Rosália Amorim – levantando “legítimas dúvidas quanto à sua real capacidade de manutenção de uma política editorial independente” – e ela mesmo assim aceitou o cargo?

    De facto, vivemos um momento de clarificação.

    Jornalismo mercantilista, sem qualidade, com personagens munidos de carteira profissional de jornalistas mas de ética mais do que questionável, permeáveis ao poder político e ao poder económico, que enganam os leitores e ouvintes através de contratos de prestação de serviços que resultam em supostas notícias, entrevistas e eventos independentes – esse jornalismo não pode sobreviver.

    As empresas que o praticam, não podem sobreviver. Não podem ser ajudadas pelo Estado. Além de tudo, é imoral.

    A ‘morte’ de projectos jornalísticos baseados na falta de ética é mesmo bem-vinda – é mesmo essencial, não apenas para que o crime não compense, não apenas para evitar o uso imoral de impostos dos contribuintes para insuflar e alimentar procedimentos errados e nefastos para uma sociedade, mas sobretudo por ser necessário dar espaço a projectos credíveis e sem vícios, que provem que os leitores, perante a credibilidade, valorizam economicamente o jornalismo.

    Mais do que nunca, a pluralidade e diversidade da comunicação social, essencial como alicerce da defesa da democracia – que em Portugal está podre, em parte pelas promiscuidades sustentadas por jornalistas (sobretudo directores editoriais, os tais que vão defender no próximo Congresso dos Jornalistas formas de financiamento) com o poder político e económico – baseia-se na credibilidade de projectos, e não na sua história.

    O PÁGINA UM foi o primeiro órgao de comunicação social a identificar Clement Ducasse como o beneficiário efectivo do fundo das Bahamas que controla agora a Global Media, mas a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ainda não teve capacidade para saber se este francês é um mero ‘testa de ferro’.

    Quando o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias nasceram, nos idos do século XIX, existiam largas dezenas de periódicos, alguns com largos anos, como o Açoriano Oriental, que ainda hoje se mantém a caminhar para os 200 anos. Todos viram nascer outros, muitos, quase todos foram ‘morrendo’, e sendo substituídos por outros, alguns tiveram várias vidas até sucumbirem, independentemente de terem sido, em tempos, instituições de prestígio, como os casos de O Século, o Comércio do Porto, a Capital, o Diário Popular ou o Diário de Lisboa.

    Os ‘cemitérios da imprensa’ estão cheios de jornais que nasceram cheios de esperança, alguns se mostraram pujantes, mas por ‘causas naturais’, que incluíram sempre inadaptação ao mercado ou a erros próprios, claudicaram. Mas a sua ‘morte’ nunca significou a morte do jornalismo. Pelo contrário: na imprensa, a morte de um jornal permite o nascimento de outros (ainda) sem vícios.

    Os jornais (ou as rádios, ou as televisões) morrem, mas o jornalismo não morre se extirparmos a tempo o mau jornalismo. Se se persiste na manutenção de um mau produto, artificializando a sua sobrevivência, ainda mais com dinheiros público, salvam-se a prazo (a curto prazo) empregos, mas traça-se uma ameaça para a credibilidade de todo o jornalismo, nega-se a possibilidade de nascerem outros projectos mais sérios, mais credíveis… e mais economicamente viáveis.

    Por isso, para mim – e sem prejuízo de ser apoiante de um modelo de apoio social pelo Estado aos desempregados de empresas falidas, incluindo as do sector dos media –, nada mais saudável e natural do que a morte de (maus) órgãos de comunicação social, até porque, ao fim e ao cabo, são apenas títulos – que, aliás, anos mais tarde podem ser recuperados para novos projectos editoriais sérios.

    José Paulo Fafe, CEO da Global Media indicado pelo obscuro World Opportunity Fund, deixou a empresa gestora do Tal&Qual em falência técnica e está agora no ‘olho do furacão’ da crise no JN, DN e TSF.

    [o próprio PÁGINA UM foi um título inicialmente fundado em 1976 por Isabel do Carmo e Carlos Antunes, de ideologia de extrema-esquerda de apoio a Otelo Saraiva de Carvalho; tornou-se mais tarde, entre 1995 e 1997, um boletim informativo da Associação Académica da Universidade do Minho, e antes de se tornar este jornal digital independente, tomou o nome de um programa da católica Rádio Renascença… ou seja, nomes leva-os o tempo, e simplesmente, no caso do PÁGINA UM, o aproveitámos por estar disponível]

    Quando Fernando Alves, um histórico jornalista de rádio e fundador da TSF, afirma hoje no Público que “o departamento comercial comeu a cabeça de todas as redacções que conheço”, não se refere apenas àquela rádio da Global Media nem a outros órgãos de comunicação social deste grupo. Falará, mesmo que não queira englobar, de praticamente todos os grupos de media que, à conta de uma crise (que é muito de credibilidade), querem fazer-nos crer que os problemas são de hoje e que se salvam com a prostituição do jornalismo (através de parcerias comerciais) ou com dinheiros públicos.

    O problema da Global Media – e também da Trust in News, que lhe vai seguir, em breve, as pisadas – não é de hoje. Uma empresa que desde 2017 soma prejuízos consecutivos, que já ultrapassavam os 42 milhões de euros em 2022, que tinha uma dívida ao Estado de 10 milhões no final desse ano (sem que o regulador soubesse), e que via os seus activos imobiliários serem ‘chupados’ pelos accionistas, não pode vir agora carpir pela salvação com dinheiros públicos como se lhe tivesse sucedido um terramoto imprevisível. E o mesmo se diz em relação aos actuais e antigos responsáveis editoriais e jornalistas.

    Sede da Entidade Reguladora para a Comunicação Social: uma regulação que ‘anda a ver navios’.

    E também não se mostra admissível que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social tenha uma atitude de irresponsável passividade a ponto de defender, como fez há cerca de dois meses em resposta a perguntas do PÁGINA UM, que não tem capacidade para sequer pedir e analisar os relatórios e contas da Global Media.

    O fraco papel do regulador, mais a sua plataforma de Transparência dos Media, para evitar entrada de empresas e pessoas com interesses suspeitos, seria anedótico se não fosse grave. Foi o PÁGINA UM – e não o regulador – que detectou no ano passado falsas declarações de diversas empresas de media, incluindo ocultação de dívidas ao Estado (Global Media e Trust in News), de falência técnica (empresa do Tal & Qual) e de dependência financeira (empresa do Polígrafo).

    Na verdade, tem sido o PÁGINA UM que, com as suas denúncias e já com uma seccção própria (pela relevância num sistema democrático), mais tem revelado as promiscuidades entre jornalismo e empresas (públicas e privadas, e até Governo, o que, aliás, tem merecido a devida reacção corporativista dos visados, razão pela qual a generalidade dos órgãos de comunicação social mainstream ignora as nossas investigações, e os ‘órgãos reguladores’ (ERC, CCPJ e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas) se mostram tão favoráveis a atender os nossos críticos.

    man sitting on chair holding newspaper on fire
    Salvar empregos (e má imprensa) ou salvar o jornalismo, eis a questão.

    Por tudo isto, e regressando ao início, se vamos para “pactos de regime”, como defende Ana Sá Lopes, para salvar empregos de más empresas jornalistas, fazendo com que passem a ser controladas pelo Estado, não vejo como isso pode ser bom para a democracia – diria antes: será péssimo para o jornalismo e para a democracia. Nacionalizar empresas de media, ou entregá-las a empresas do regime, é o ‘sonho húmido’ de quem está no poder. Não nos bastou as tentativas de Sócrates de controlar a TVI e como foram nomeados alguns directores da Lusa e da Global Media nos tempos do seu Governo?

    Por tudo isto, são uma ofensa as palavras de Ana Sá Lopes – que é apenas um peão com o objectivo de colocar uma clivagem ideológica num problema meramente empresarial e de ética jornalística – a defender que quem contestar uma salvífica entrada de capitais públicos (dinheiro dos contribuintes) especificamente na Global Media é alguém de ‘direita’ a qualificar o Estado como um “diabo”, que é “mau, horrível, [que] come criancinhas ao lanche e por aí fora”, como escreve no seu artigo de opinião no Público de hoje.

    Estou saturado deste tipo de paleio, sobretudo por jornalistas, sobre um assunto que exige debate sério, e sem estar contaminado por pessoas que compactuam ou compactuaram com um ‘modelo de negócio’ da imprensa que descredibilizou o jornalismo português nos últimos anos.

    printing machine

    Melhor regulação – não necessariamente mais (acho que a ERC dedicou mais horas de trabalho a analisar queixas contra o PÁGINA UM do que a analisar a crescente e evidente degradação da Global Media) –; maior participação e independência dos jornalistas nas redacções; outra seriedade na anedótica Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (que deixa impune claríssimas incompatibilidades e promiscuidades); e um debate sério sobre a definição de critérios apolíticos (sem intervenção conjuntural dos Governos ou da Assembleia da República) para o financiamento público dos media (por constituírem um bem público, na concepção económica do termo), são temas fundamentais para definir o futuro da imprensa escrita (em papel e online), radiofónica, televisiva e multimédia.

    Mas esse debate deve ser feito à margem do que está a suceder com a Global Media, que antecipa o caso similar da Trust in News, dona da Visão. Aliás, por mim, seria saudável e até útil que se discutisse o futuro da imprensa em Portugal depois da concretização da queda destes dois grupos à força das leis do mercado, da oferta e da procura e da boa gestão da res publica (dinheiros públicos), porquanto assim a análise da sua ‘morte’ constituiria ensinamentos para não se cometerem os mesmos erros e nos vermos livres de pessoas que conspurcam a nobre profissão de jornalista.


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