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  • Assange, o anti-herói

    Assange, o anti-herói

    Haverá muitas pessoas que não conhecem Julian Assange, outras só se lembrarão do filme ficcionado sobre o hacker-jornalista em que é representado como uma pessoa vaidosa e difícil. Não vi o filme, mas pelo estilo e depois de uma passagem na diagonal, acho que é daqueles cujo trailer é melhor que o próprio filme.

    Outros fixaram-se no suposto assédio sexual sobre uma mulher, ainda que anos mais tarde essa acusação se revelasse falsa, constatando-se ter sido orquestrada pela CIA.

    Também haverá cabeleireiros que se devem lembrar do seu cabelo louro, dourado ou quase branco e dos seus cortes trendy.

    Para outras pessoas mais incautas, a WikiLeaks poderá ser uma ilha paradisíaca no Pacífico que urge visitar porque deve ter resorts incríveis.

    Por outro lado, muitos jornalistas ao início viram na plataforma (impossível de desencriptar), informação de borla e verdadeira, não havendo forma de deturpá-la, uma vez que conduzia ao acesso às próprias fontes, a documentos e emails sigilosos por exemplo, passando sempre pela casa de partida como no velho Monopólio.

    Depois de Assange ser preso, foram deixando de o fazer, o que só nos elucida acerca da força do Poder, porque a informação é eterna no planeta virtual, onde tudo vai desaguar. Está lá, é só clicar.

    Não há político ou potência que não tenha sido interpelada por esta revolução tecnológica, que é a WikiLeaks, denunciando políticos que antes estavam completamente impunes, fazendo com que o jornalista mais tarde fosse acusado de espionagem por Biden, ainda quando era vice-presidente de Obama.

    Nunca se provou que tenha colaborado com qualquer organização ou país.

    Julian Assange
    (Ilustração: Manuel Silva)

    As pessoas do Livre deveriam consultar mais vezes a plataforma. Quem diz do Livre, diz do Chega, porque para Assange não havia bons e maus, dizem. Para outros será um terrorista que favoreceu uns em prol de outros, como se a vida não fosse assim quase sempre.

    Para muitos é um criminoso anarcocapitalista.

    Um exibicionista.

    Um megalómano.

    O western do australiano talvez seja mais parecido com aquelas coboiadas em que a personagem central é um justiceiro como nos filmes chunga spaghetti, já que de qualidade são poucos.

    Mas esses heróis não acabavam na prisão com derrames cerebrais. É o preço de ter aceitado a toma da cicuta como o Sócrates de Atenas, preferindo ser morto, ou ser preso no caso de Assange, já que ser cobarde e ter de viver conhecendo as miseráveis atrocidades do Poder, pode não dar boas noites de sono se não se fizer nada, e o melhor é sacrificar-se pelos valores e pela liberdade de expressão, que com ou sem WikiLeaks continua a ser posta em causa a toda a hora. Não é para todos.

    Mas está aí uma das diferenças entre o cinema e a vida real. O que interessa sobretudo é o que consta nos documentos. Factos.

    Mas quem sou eu?… Algum jornalista, algum cyber-bófia?

    Nada disso, apenas um parolo que de vez em quando está preocupado com a vida e com a ficção.

    Fica mal dizê-lo, mas as injustiças e a ignorância… Enfim, é melhor não… Vou parecer um cripto-romântico!

    A WikiLeaks é sem dúvida o melhor polígrafo de todos e não é feito por estagiários e vigaristas. Foi através da WikiLeaks, que ficámos a saber da proposta da senhora Hillary para bombardear a embaixada do Equador em Inglaterra com o objectivo de assassinar Assange através do uso de drones.

    Para muitos, Hillary Clinton é uma humanista e pacifista que teve o azar de ser enganada pelo outro senhor do Arkansas também humanista e sensível que até tocava trompete. Mas felizmente apareceu o psicólogo de massas Obama que bombardeou mais países do que a droga que o Lou Reed consumiu.

    A grande vitória de Assange foi a pior derrota da História para as agências de inteligência como a CIA, e o seu crime foi ser jornalista e expor o que os assassinos planetários em massa fazem sem que os media tradicionais denunciem, tornando-se eles mesmos até coniventes com o que escondem. Mas é tudo conspiração quando não rima com o verbo oficial, já sabemos.

    Mas que é verdade que a CNN em tempos publicou os crimes de guerra atrozes dos EUA no Afeganistão e no Iraque e depois deixou de o fazer, sabemos; que mostrou a aniquilação massiva de civis em vários locais do mundo, também sabemos; que Israel financiou o Hamas não é novidade para poucos, mas será para a maioria; que a plataforma expõe a forma como os governos da América Latina são completamente controlados pelos EUA também só não sabe quem não quiser. Mesmo os políticos mais esquerdistas, como Obrador, do México, que quis militarizar o país em conluio total com a presidência dos EUA ou Alberto Fernandez da Argentina também lá estão a fazer das suas, mas sempre com a conversa dos trabalhadores e das boas intenções esquerdistas a adocicar os discursos.

    Até os Kissinger papers da década de 70 por lá navegam como se fosse um barco que nunca vai ao fundo, já para não falar da informação secreta das monarquias europeias e até da saudita.

    Há também informação que baste acerca da tortura e do assassinato sem piedade de jornalistas e civis por parte de muitos que têm a bênção dos media mainstream em geral.

    Enfim, quem quiser ler a WikiLeaks despenderá mais tempo a fazê-lo que nos Miseráveis de Victor Hugo.

    Hilary Clinton
    (Ilustração: Manuel Silva)

    Assange só ficou oficialmente preso no governo Trump em 2019. O próprio Trump aproveitou informação da WikiLeaks para derrotar Hillary, mas depois não quis mais saber do jornalista, tendo inclusivamente prometido libertá-lo antes de ser presidente. Ainda há quem pense que o americano saído da casca é uma alternativa ao Deep State. É tão só um plano B de um traidor que gosta da Playboy e que chegou a dizer que nem conhecia a Wikileaks anos depois.

    Não é fácil libertarmo-nos desta gente, cujo desporto preferido é contrair dívida e alimentar bancos centrais.

    Numa entrevista, respondendo sobre quem era o seu maior inimigo, Assange disse tratar-se da ignorância. O jornalista, com nacionalidade equatoriana, não brinca em serviço, mas há quem não veja isso assim, considerando que revelar segredos de Estado não é a melhor via para se ser feliz e pode ser um crime grave. Mas isso seria tinta para outro papel, como dizem os polacos.

    Voltando um pouco atrás, sabe-se que antes de ser acolhido pela Embaixada do Equador esteve a viver durante anos disfarçado num bosque, numa cabana e movendo-se em hotéis com uma identidade falsa.

    Entre 2012 e 2019, esteve, então, “preso” num quarto nessa Embaixada latina, mas suspeita-se que o presidente Rafael Correa, espiava-o através uma empresa espanhola vinculada à CIA dentro da própria embaixada. É tramado ser presidente.

    Há cinco anos Assange foi direitinho para uma cela de três metros por dois em Inglaterra.

    Uns anos antes e já detido, ainda conseguiu participar na fuga de Snowden para a Rússia, planeando o resgate do informático num avião de John McAfee, outro hacker que depois apareceu morto em condições muito estranhas numa prisão em Barcelona.

    McAfee é o responsável pelo anti-vírus que temos no computador chamado… McAfee.

    Se Assange não conseguiu um asilo na Rússia foi porque nunca cedeu a ninguém e quis expor também as cumplicidades de Putin com os Clinton e com Bush, revelando a história do urânio por exemplo. Mas certamente haveria muito mais para expor da Rússia e de Putin. Nas condições em que Assange ficou, eu tentaria logo arranjar protecção, não sou maluco. Ser neutro, neste mundo, nem num poema. Por isso há quem jure que beneficiou Putin.

    Mas ao invés de se informarem melhor, as pessoas em geral preferem continuar a consultar sites pornográficos e vídeos de gatos a tocar piano. Não tem mal, é certo, mas há mais coisas interessantes para fazer.

    Uma das conquistas do Poder tecno-político foi esse. Esvaziou a mente humana com distracção, mas isso é ar para outro balão, como dizem os alemães.

    Ora eu cá também gosto de me distrair, mas prefiro um corneto de chocolate na praia mesmo sabendo que tanto a praia como o gelado devem estar cheios de químicos.

    Vás para onde vás, és sempre passível de ser sabotado. Até a alimentação saudável hoje já é uma doença. Uma obsessão… Vá. Obsessão também é doença segundo o DSM , mas para esse manual também tudo é doença mental e estamos todos a precisar de psicotrópicos. Sobretudo quem os inventa. Aqui estou a fugir do tema, ou talvez não.

    Entretanto, há dois meses e meio, o jornalista saiu da prisão voando directamente para a Austrália, o seu país de origem onde se juntou à sua mulher Stella que deu há uns tempos uma entrevista ao PÁGINA UM e que poderá ser vista aqui.

    Devo acrescentar que esse país dos cangurus, não é muito seguro. Criou “campos de concentração” para dissidentes do covid. Mas vamos ver se lhe corre bem a estadia, de forma que possa assistir em paz um dia a um encontro de ténis jogado por outro “herói” do nosso tempo, o tenista Djokovic, que não quis ser patrocinado pela Pfizer, dando um match point à pseudo-ciência. 

    Há esperança para a humanidade de vez em quando, mesmo que hoje uma parte significativa do mundo na sua auto-representação ache que tem os dias contados. Eu não penso isso e continuo a gostar de ver ténis mesmo que a Adidas agora se considere humanista e tenha entrado no desporto da moda da filantropia e do politicamente correcto. Talvez seja bom consultar a WikiLeaks e ver se há algum email da Adidas para a Coreia do Norte, nunca se sabe. Ir dar uma volta até à WikiLeaks deveria ser um desporto universal, mas também não quer dizer que esteja lá tudo. E se não estiver, não quer dizer que não tenha acontecido. A WikiLeaks não é Deus nem pretende formar uma religião. 

    A notícia da libertação do jornalista australiano parece ter trazido alguma novidade ao mundo, pelo menos no dia em que isso aconteceu foi notícia nalguns órgãos. Depois já não se falou de Assange porque ainda andam por aí muitos gatos à solta a tocar piano à espera de visualizações e muitos vírus mortais à espera do seu dia triunfal para sair do meio do “gelo” como anunciado, para começarem a assustar pessoas.

    Passando pela Wikipédia para ver o que se diz sobre o australiano e fiquei a saber alguma coisa, mas entretanto fui ver o que é que a Wikipédia diz da Wikipédia já que este texto é um pouco wiki até. Diz o seguinte:

    A Wikipédia é um projeto de enciclopédia colaborativa, universal e multilíngue estabelecido na internet sob o princípio wiki. Tem como propósito fornecer um conteúdo livre, objetivo e verificável, que todos possam editar e melhorar. O projeto é definido pelos princípios fundadores e o conteúdo é disponibilizado sob a licença Creative Commons BY-SA e pode ser reutilizado sob a mesma licença, desde que respeitando os termos de uso. Todos podem publicar conteúdo on-line desde que criem uma conta e sigam as regras básicas, como verificabilidade ou notoriedade.

    Henry David Thoreau
    (Ilustração: Manuel Silva)

    Desisti. Se nem a própria Wikipédia diz a verdade sobre a Wikipédia quanto mais sobre o Assange.

    Vários políticos e até presidentes de países deram as graças pela libertação de Assange, entre eles Lula da Silva, mas parece estranho políticos darem graças pelo jornalismo livre. O The Guardian também o fez, mas lembro-me da perseguição feita por esse órgão e quase todos, a quem não concordasse com as políticas abusivas inconstitucionais durante a pandemia, abrindo precedentes perigosos em nome de sabe-se lá de quê, chegando a ser escorraçados.

    É certo que há muita mentira e desinformação por aí, a começar pelo jornalismo mainstream e por malucos ligados à extrema-direita, por exemplo, e não será fácil lidar com essa esquizofrenia galopante. A única coisa que muitas pessoas pedem, estando eu aí incluído, é que os assuntos sejam discutidos com transparência e neutralidade, apanágio do verdadeiro jornalismo que quando foi nobre, adorava a diversidade de opinião e o contraditório. E depois que cada um tome as suas decisões e aí a plataforma de que falo pode ajudar a que todos sejamos um pouco jornalistas já que estamos a precisar de ir ao cinema outra vez, mas para ver filmes com princípio, meio e fim.

    Filmes que tragam novamente alguma poética ao espectador, e já agora alguma coerência. Porque isso de a realidade ser uma sala de cinema, já chega. Tem piada, mas cansa muito. Qualquer dia está tudo aos tiros. E é chato.

    Anda muita gente a ver-se ao espelho, mas a usar um espelho turvo e cheio de ferrugem ao qual nos estamos a começar a habituar. Precisávamos, mas era de um espelho feito de areia, é certo, mas não daquela que nos andam constantemente a atirar para os olhos.

    Thoreau disse que perante uma lei injusta é uma obrigação e um dever desobedecer.

    Assange certamente leu Thoreau.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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  • Taxa de inflação: um embuste?

    Taxa de inflação: um embuste?


    A democracia, esse grandioso espectáculo em que o “povo” – seja lá quem for – elege os seus próprios parasitas, conhecidos por políticos. Para ingressar nesse selecto grupo, são necessárias aptidões peculiares: ser demagogo, popular e exímio mentiroso. A genialidade desta farsa reside na sua natureza despersonalizada; ao contrário da monarquia absoluta, onde o bandido tinha um rosto identificável e que podia ser odiado, enquanto na democracia todos aspiram ao papel de parasita. Afinal, se os ladrões foram eleitos por mim, são “os meus ladrões”, e assim o poder perpetua-se sem resistência.

    Além disso, não podemos esquecer a feroz competição entre esses salteadores, cada um prometendo mais favores e benesses aos grupos de pressão – sejam plutocratas, multinacionais ou sindicatos – na busca incessante pela reeleição. Em vez de limitarem o poder dessa ficção chamada Estado, alimentam-na, com promessas que apenas servem para invadir cada vez mais a vida dos cidadãos, sob o disfarce de uma “eleição legítima”. No final, o Estado expande-se, o indivíduo definha, e a liberdade evapora-se, num jogo de cartas marcadas.

    Quando um Governo, composto por parasitas, cede aos pedidos dos grupos de pressão, necessita inevitavelmente de mais recursos e de maior controlo para implementar e gerir as políticas exigidas. Isso frequentemente conduz à expansão do poder centralizado, culminando na formação de um cartel de grupos mafiosos, como é o caso da União Europeia.

    macro photography of green aphid

    Primeiro, através da criação de regulações, de supervisores e de burocracias, visando gerir e fiscalizar os benefícios e programas concedidos aos grupos de interesse. Isso exige uma coordenação centralizada para garantir que as políticas sejam aplicadas uniformemente em toda a jurisdição sob a alçada do Estado.

    Em segundo lugar, à medida que o Governo assume novas responsabilidades, o seu alcance sobre a vida dos cidadãos amplia-se. Isso pode incluir desde políticas sociais e económicas até à regulamentação de aspectos culturais e educacionais, todos geridos por uma autoridade central.

    Por fim, como sobredito, a extorsão do gado intensifica-se, dada a necessidade de financiar os programas e benefícios prometidos pelos bandidos que aspiram a ser eleitos. O Governo necessita, assim, de aumentar a arrecadação de impostos ou contrair dívidas. Mas, como se sabe, nunca é suficiente.

    A democracia, na sua brilhante “generosidade”, erradicou o ouro e a prata — os meios de troca escolhidos pelo mercado desde há milénios —, substituindo-os por simples papelinhos, ou, nos dias de hoje, por meros registos informáticos (amanhã, será o Euro Digital). Estas “moedas fiduciárias”, cuja produção não custa praticamente nada, foram confiadas a um autodenominado “independente” banqueiro central, que mais parece um comissário soviético.

    Para que o roubo passasse despercebido, o protestantismo positivista inventou o índice de preços, uma ficção científica digna de aplausos. Esse índice, supostamente, mede a inflação, permitindo ao povo manter-se actualizado sobre o poder aquisitivo do “seu dinheiro”.

    É imperativo recordar que o dinheiro serve apenas como um meio de troca, facilitando transacções e evitando a dupla coincidência de desejos característica das trocas directas. Por ser um fenómeno de mercado, o dinheiro não mede nada. Os preços, por sua vez, só fazem sentido como proporções, pois tanto o dinheiro (a escala) como os bens ou serviços (os objectos de medição) estão sujeitos a mudanças constantes, a ideia de uma medição absoluta torna-se impossível.

    Assim, quando se diz que uma maçã custa 1 Euro e uma laranja custa 2 Euros, não significa que a laranja vale exactamente o dobro da maçã; o valor relativo pode variar conforme a oferta, a procura ou a percepção de valor – algo que definitivamente não pode ser medido; em que unidade se mede isso? Portanto, a ilusão de medir algo tão mutável quanto a Economia é apenas mais uma ferramenta na vasta caixa de truques do positivismo.

    bird opening slice bread pack

    Imaginemos uma Economia onde existe apenas um bem: maçãs. A quantidade total de Euros em circulação é fixa, digamos 100 Euros, e a produção anual é de 100 maçãs, o que resulta num preço de mercado de 1 Euro por maçã. Com o tempo, o capital acumulado — em máquinas, fábricas, estradas, etc. — permite um aumento na produção, passando, por exemplo, para 110 maçãs por ano, um aumento de 10%. Agora, suponha-se que o banqueiro central lá do sítio decide imprimir mais 10 Euros.

    Neste cenário, se a procura por maçãs e por dinheiro permanece constante, o preço de uma maça fixa-se novamente em 1 Euro. A democracia, com as suas métricas de “inflação” manipuladas, diria que não houve inflação, pois os preços não subiram – milagre, inflação 0%! Contudo, na realidade, houve uma inflação de 10% na oferta monetária, e os preços deveriam ter caído para 0,9 Euros por maçã, reflectindo o aumento na produção. O efeito real no bolso dos consumidores seria, portanto, uma maior capacidade de compra devido à maior oferta de bens, mas isso é ocultado pela taxa de inflação oficial que nos diz que os preços estão estáveis, sem variação!

    Os preços não medem valores absolutos, mas apenas relações de troca. Suponhamos que, antes da putativa pandemia, uma consulta médica custava 80 Euros e um café 0,8 Euros, estabelecendo um rácio de troca de 100 cafés por consulta. Se a impressora do BCE provocar uma subida homogénea de preços de 50%, com a consulta agora a 120 Euros e o café a 1,2 Euros, o nosso médico manterá o mesmo poder de compra, desde que a inflação afecte de forma equitativa todos os bens e serviços que consome regularmente. Assim, uma inflação dos preços em 50% não impacta a sua vida.

    A moderna teoria económica erroneamente afirma que os preços medem o valor. Na verdade, uma troca ocorre precisamente porque as partes envolvidas atribuem valores diferentes ao mesmo bem; se assim não fosse, a troca não aconteceria. Consideremos um agricultor com cinco cavalos homogéneos: o primeiro cavalo é destinado à necessidade mais urgente, como puxar um arado, enquanto o último pode ser usado para actividades menos urgentes, como passear. Assim, o valor de um bem depende da necessidade menos urgente que se deixa de atender, explicando por que o pão, essencial à sobrevivência, vale menos que a platina, um metal escasso reservado para necessidades muito específicas.

    Imagine que estou num café na Av. da Liberdade, em Lisboa, e desejo tomar um café. Eu poderia preferir o café a 3,5 Euros; ou seja, até esse valor, dou mais importância ao café do que ao dinheiro. No entanto, se o café custar 1,5 Euros, aceito a transacção, pois está abaixo do meu limiar. Para o proprietário da cafetaria, o café, sendo abundante no seu inventário, não tem o mesmo valor; daí a troca ocorrer. O preço de 1,5 Euros é apenas uma relação de troca, uma intermediação entre serviços. Se eu viver de serviços de corretagem estou a trocá-los por um café, com o dinheiro a servir de intermediário dado que não satisfaz qualquer necessidade humana.

    assorted bunch of fruit lot

    Convém destacar que a impressão de dinheiro simplesmente redistribui riqueza, sem criar valor real. Tomemos o exemplo de Alves dos Reis, que falsificava notas do Banco de Portugal e as gastava, por exemplo, exclusivamente em prostitutas; o preço deste “serviço” em Lisboa dispararia, uma vez que a sua preferência por dinheiro é diminuta, dada a sua fartura. Essa inflação de preços iria espalhar-se, afectando em primeiro lugar os bens preferidos das prostitutas e assim sucessivamente. Os primeiros a receber o dinheiro falso beneficiam-se dos preços não inflacionados, o que é notório nas subidas das cotações das acções e obrigações e nos preços do imobiliário nas últimas décadas, atendendo que o dinheiro impresso pelos bancos comerciais se dirigiu em grande medida para estes mercados.

    Como é que o índice de preços capta o efeito das novas notas introduzidas pelo burlão Alves dos Reis? Qual é o real impacto da expansão da massa monetária? Qual o impacto da nova oferta, depois dos novos empreendedores de bordéis que, visando atrair este famoso cliente, decidem aumentar a oferta e a qualidade das suas “funcionárias”? Se subitamente o Alves dos Reis fosse convertido por um padre zeloso e perdesse o interesse pelos bordéis? Se estes serviços nem sequer constam do índice de preços, como captariam o impacto da nova massa monetária introduzida por Alves dos Reis?

    Então, o índice de preços opera num universo paralelo, onde o surgimento de novos produtos de “qualidade superior” ao mesmo preço indica uma “redução” dos preços. Quais são os critérios? Se os proprietários dos bordéis introduzem novas “fantasias” ao mesmo preço, como quantificam o “desconto”? Quem é o iluminado que decide?

    Na Economia contemporânea, novos produtos inundam constantemente o mercado. Como comparar médias de preços ao longo do tempo se a própria “cesta” de bens muda constantemente? E quando os consumidores trocam carne de vaca por frango por ser mais barato, eliminando a primeira do índice? Não seria isto uma piada de mau gosto disfarçada de estatística?

    Se há preços diferentes para quase todos os bens e novas variações surgem constantemente, como é o caso de ovos comuns e ovos “ecológicos”, ou ainda de diferentes marcas — quem garante que os burocratas do Governo conseguem captar essas mudanças incessantes? Que critérios obscuros aplicam para medir essas variações? Será que têm alguma fórmula mágica para compreender as complexidades do mercado? Ou será que tudo isto é apenas uma ficção orquestrada, um jogo de sombras onde o preço é tão manipulável quanto o discurso de um político?

    O índice de preços é um exercício de ilusionismo estatístico, ancorado na fantasia de uma cesta de bens fixa como unidade de medida. Não há qualquer método científico para se medir o “nível de preços”. O proprietário de uma casa, por exemplo, não se torna subitamente mais rico apenas porque o índice de preços das casas sobe — especialmente se não planeia vendê-la. O mesmo se aplica ao mercado de acções; um aumento num índice não transforma, magicamente, a prosperidade da população.

    grayscale photography of woman opening her mouth

    Falar de um “nível de preços” ou de uma “riqueza geral” para toda a Economia é tão sensato quanto tentar medir o peso de um pensamento! Cada pessoa, cada família, cada região possui uma estrutura de preços única, com variações distintas no seu poder de compra. Pretender medir isso para toda uma Economia é tão frutífero quanto calcular a “riqueza nacional” ao somar os preços de propriedades, títulos e acções e proclamar que isto, por si só, é o retrato da prosperidade de um país.

    Por fim, é sempre um espectáculo hilariante assistir às conferências de imprensa de Christine Lagarde e Jerome Powell, onde nos revelam que a meta mágica é uma inflação de 2%. Por que não 1,9% ou 2,1%? São estas taxas inflacionárias heresias? Como é que estes “iluminados”, na verdade planeadores centrais, conseguem discernir as preferências temporais de milhões de consumidores para decretar se a taxa de juro será de 4% ou 5%? O cúmulo é ver liberais de pacotilha a defenderem tais burocratas, como se eles soubessem algo, quando na verdade nada sabem e esquecem-se que servem exclusivamente para roubar silenciosamente a população através do imposto mais pérfido de todos: a inflação!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Us discurços dus noços pulíticos

    Us discurços dus noços pulíticos


    A carreira política, em Portugal, deveria ser caso de estudo.

    Quem são os nossos políticos? Como são escolhidos? Que características devem possuir? Quais os seus currículos?

    Os portugueses, tão exigentes no que respeita à escolha nalgumas profissões, pouco ou nada se preocupam na altura de eleger aqueles que nos governam.

    Os deputados, é sabido, são eleitos sem que os eleitores consigam identificar a maioria deles porque votam em listas com dezenas de nomes, mas onde só os dois ou três primeiros lhes são familiares.

    Os Governos saem dessas eleições, já que o Primeiro-Ministro será, em princípio, o líder do Partido Político que as ganhar, o que deveria aumentar a responsabilidade dos cidadãos eleitores.

    Já ficaria contente se houvesse o mesmo cuidado que têm, por exemplo, na escolha das direcções dos clubes de futebol de que são adeptos.

    E, principalmente, se estivessem dispostos a pagar salários equivalentes à excelência de cada candidato.

    Custa-me compreender que aceitem que os clubes paguem ordenados mensais de dezenas de milhares de euros e considerem que Ministros, que vão decidir tudo sobre a nossa vida, ganham demasiado ao auferir, num ano, menos do que miúdos de vinte anos, futebolistas, numa semana.

    Os ordenados pagos aos nossos governantes levam a que os melhores de nós procurem outros empregos, muitas vezes no estrangeiro, deixando que os lugares passem a ser ocupados por pessoas que não conseguiriam qualquer lugar na direcção de uma empresa privada de média dimensão.

    Percebemos isso ao ver o país na cauda da Europa e com tendência a ser cada vez mais pobre.

    Os deprimentes discursos dos nossos governantes são a prova da sua incapacidade e ignorância.

    É gente que governa um País e nem sequer consegue falar, ou escrever, correctamente, a sua língua.

    Os exemplos são inúmeros.

    Recentemente a Ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, explicava que uma das causas dos incêndios florestais tinha a ver com a “urologia” dos terrenos.

    Não faço ideia do que irá naquela cabeça, mas talvez ela quisesse dizer “orografia”, ou “orologia” [a ciência que estuda os fenómenos orográficos], e não chegasse lá o seu conhecimento de português. 

    Prefiro isso à hipótese de a senhora pensar que as árvores ali plantadas, por qualquer problema de rins, não conseguiam apagar o fogo por dificuldade em urinar.

    Já o Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, garantiu com toda a pompa e circunstância que aos beneficiários de pensões “será-lhes paga” uma verba extraordinária.

    Se for tão extraordinária como a sua aversão à língua portuguesa em breve os reformados estarão a receber um ordenado equiparado ao dos futebolistas!

    Continuando a subir na hierarquia, passemos aos Presidentes da República.

    Cavaco Silva, Primeiro-Ministro em dois mandatos e Presidente da República noutros tantos, o homem que “nunca se enganava e raramente tinha dúvidas” achou por bem, num momento raro de humildade, agradecer aos “cidadões” que nele tinham votado.

    Razão tinha um meu Amigo, Carlos Esperança, ele sim um brilhante Cronista, com textos magníficos escritos num português exemplar, ao dizer que “Cavaco já escreveu mais livros do que os que leu”…

    O actual Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, ao comentar o recente tremor de terra, do alto da sua sapiência, afirmou à plebe:

    “O sismo revelou que, felizmente, o sistema de segurança e protecção civil português é robusto e eficaz no caso de não ser preciso fazer nada.”

    Fantástica notícia.

    O alívio que todos os portugueses tiveram ao ouvi-lo!

    “Se não for preciso fazer nada o sistema de segurança e protecção civil é robusto e eficaz”. Já se for necessário agir, cada um que se desenrasque!

    Podem ser incompetentes, mas são cómicos e baratos.

    Tudo porque consideramos que não vale a pena investir em governantes capazes, ainda que mais caros.

    Deixo uma história que mostra como é errada esta opção:

    Consta que Deus, depois de criar o Homem, viu que Adão não estava muito feliz e perguntou-lhe a razão.

    – “Sinto-me muito só” – disse este – “gostava de ter uma companhia!”

    – “Que tipo de companhia?” – questionou o Criador.

    – “Outra pessoa, mas que fosse bonita, inteligente, compreensiva, amiga.”

    – “Tudo bem. Vai custar-te um olho!”

    – “Um olho??? Caríssimo!!! O que é que consegues arranjar por uma costela?”

    E, pronto.

    Os problemas causados pelo regatear já vêm de longe.

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Ambiente, clima e democracia: para onde caminhamos?

    Ambiente, clima e democracia: para onde caminhamos?


    O Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC) atualizado, e em consulta pública até esta quinta-feira, 5 de 5etembro, é suposto ser o eixo da política energética e climática, em execução entre 2021 e 2030, para que Portugal se transforme numa “sociedade neutra em carbono”, sobretudo através da “redução das emissões de GEE e o compromisso da neutralidade climática até 2045, conforme preconizado pela Lei de Bases do Clima”. Para isso, 96% da energia produzida no sistema eletroprodutor português deverá ser de origem renovável, e dessa energia 40% terá de ser de origem eólica e 42% de origem solar.

    O Plano aponta oito Objetivos Nacionais (PNEC, pág. 35), de entre os quais destaco o Objetivo 8: “Garantir uma transição justa, equitativa, democrática e coesa”. Como activista ambiental, não tenho dúvidas em dizer que este objetivo está longe de ser implementado.

    path surrounded by green grass and trees

    São inúmeras as causas ambientais activas pelo país: SOS Quinta dos Ingleses, em Carcavelos; Dunas Livres, entre Tróia e Melides; Salvem os Sobreiros de Morgavel, em Sines; Minas Não, em Covas do Barroso; Contra a Ampliação da Mina de Alvarrões, na Serra da Estrela; Não às obras na Cascata do Tahiti e aos Painéis nas Barragens de Paradela e Samalonde, no Gerês, o nosso único Parque Nacional; ou Juntos pelo Divor em Évora – apenas para nomear algumas.

    Directamente envolvida ou a acompanhar o evoluir de algumas destas causas, a percepção é a de que, no geral, as populações que nelas participam, genuinamente interessadas e preocupadas, tanto com as questões ambientais como com o património paisagístico e cultural dos lugares onde vivem, não têm sido devidamente escutadas.

    Com demasiada frequência as questões remetidas por interpelação em consulta pública, em assembleia municipal ou de freguesia, por carta, por e-mail, por petição à Assembleia da República, por manifesto ou protesto público, acabam sem ser cabalmente respondidas, ou são mesmo simplesmente ignoradas. Algumas destas causas, entretanto levadas a tribunal, entram num impasse que pode levar anos a resolver, consumindo recursos e tempo de todas as partes envolvidas.

    Neste PNEC, pouco ou quase nada se refere à importância da conservação, regeneração e criação de espaços florestais e da Natureza, essenciais como sumidouros de carbono e de calor, áreas de biodiversidade e de conservação dos solos e aquíferos para prevenir tanto as secas, como as cheias. Como contraponto às ilhas de betão e actividade humana, dentro e fora dos centros urbanos, as florestas e outros espaços onde a natureza respira, tornaram-se fundamentais, como, aliás, se reconheceu recentemente na Lei do Restauro da Natureza, aprovada pela União Europeia, com o voto favorável de Portugal.

    green grass field near road during daytime

    Qual, então, o sentido de se destruírem ecossistemas existentes para se criarem parques de energia solar ou eólica?

    No âmbito do Objetivo 8, o PNEC indica, como linha de actuação, “promover plataformas de diálogo e debate permanentes e duradouras, à escala nacional e local, que envolvam os principais agentes dos vários setores, e que possam contribuir de forma ativa para a construção de uma política energética mais transparente, proactiva e inclusiva, que assegure o cumprimento das metas e compromissos nacionais em matéria de energia” (PNEC, pág. 138).

    Passemos à sua concretização efectiva. Para além das consultas públicas online, é essencial sentar à mesma mesa, para ouvir e dialogar de forma construtiva, compreender as razões de quem quer ser escutado, e tudo fazer para verter essa informação nas decisões que enformam e melhoram a gestão desses políticas e recursos. Por parte do Governo, Assembleia da República, autarquias, e demais instituições, sobretudo da área ambiental, como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).

    blue and white solar panel lot

    O artigo 48º da nossa Constituição consagra aos cidadãos o direito de participação na vida pública, nomeadamente “tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos,” e “ser esclarecidos objetivamente sobre atos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos”.

    A democracia e a cidadania participativa só se tornam plenas se exercidas proactiva e regularmente, tanto pelos cidadãos como pelas instituições do Estado. O propósito não é mais do que encontrar as melhores decisões em favor do interesse público: desenvolver uma sociedade neutra em carbono, sem pôr em causa o desenvolvimento sustentável e a produção de energia mais limpa, nem os direitos a viver em ambiente sadio e à proteção do património local.

    Silvie Lai é activista ambiental e licenciada em Ciências da Comunicação e mestre em Estudos Europeus


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Juro que nunca festejei um golo do Sporting

    Juro que nunca festejei um golo do Sporting


    Armado de uma habilidosa trela invisível, o Génio Catamo puxou a bola para dentro até encontrar uma pista de descolagem entre os centrais. Nasceu nele, que eu vi e poderei testemunhar em tribunal, uma juba resplandecente de leão do Delta do Zambeze. Quando a perna esquerda do Aladino de Alvalade subiu ao céu, para urdir o retumbante remate de desenlace, eu abri a boca para um grito do catano, inconveniente e obsceno numa bancada de imprensa.

    – Está lá dentro! Está lá dentro!

    Uma tesoura da prestigiada marca luso-canadiana Stephen Eustáquio ainda cortou a relva num esforço inglório. De igual modo, o desesperado guarda da baliza adversária mergulhou como um perdido naquele rio selvagem. Debalde de água fria para ambos. Fatal como o destino, um filhote de leão em forma de bola voadora cruzou a grande área feito um raio e resolveu o clássico. Tendo eu gritado antes do tempo, já nem festejei o golo. Pensei antes em resgatar de imediato a reputação e a aparência de imparcialidade entre camaradas jornalistas.

    – Pedro, desculpa-me. Não devia fazer estas figuras credenciado pelo PÁGINA UM, mas foi um reflexo condicionado pelo meu início de carreira.

    E então recordei os gloriosos tempos na Rádio Alto Minho, a carregar pesadas bobines com quilómetros de cabo e mesas de mistura com dois metros por três de cursores de áudio. Ao lado de profissionais de gabarito, como Mário Gonçalves, Paulo Sérgio e o lendário Paulo Torres, mais reconhecido na Expo de Sevilha do que o José Rodrigues dos Santos, eu descrevia “o pormenor” das jogadas do Vianense e as noites gloriosas da Juventude de Viana no hóquei em patins. Quando me lembrava de dizer que um penalty a nosso favor tinha sido mal assinalado, o meu pai recebia no dia seguinte o pontual protesto de cidadãos indignados pela minha traição à cidade. Paciente, suportava estoicamente, sem comentários, os ouvintes que através dele tomavam a palavra. E depois insistia comigo para perseguir a verdade e o sonho de ser jornalista. Andei assim dos 14 anos até à maioridade. Descobri agora que, afinal, passei ao lado de uma valiosa carreira, a relatar os golos sempre em primeira mão, catorze segundos antes da concorrência.

    – Pedro, conheces outro relatador que cante golo antes de um remate de fora da área?

    O Senhor Director do PÁGINA UM respondeu que não, mas acrescentou que ando a cantar muito de galo, uma frase que lhe oiço desde que começámos a ir à bola juntos, na época passada. Eu acho que ele bem poderia personalizar tal censura com recurso estilístico a um animal verdadeiramente perigoso, como um leão ferido ou um cavalo puro sangue da Suécia. Considerando a queda dele para as aves amestradas, engulo com amizade a injustiça. E até concordo que devemos ter cuidado, em especial com as viagens dos árbitros ao Catar e outros vícios tão antigos como as velhas profissões. Ao fim de tantos anos de roubos de capoeira, estamos a expiar o tempo de presidentes, treinadores e atletas de aviário. A nossa festa é tão natural como a própria sede e a fome insaciável do Gyökeres.

    – Viste a raça do animal? Ainda gosto mais dele por ser bravo do que pelos golos atrás de golos que marca.

    Aos 92 minutos, com o resultado em aberto depois de um jogo de ostensivas oportunidades desbaratas, o namorado loiro da bela Inês foi despudoradamente derrubado pelo canivete canadiano de marca. Para o efeito, tal adversário, embora fresco e recém-entrado em campo como uma alface frisada, agarrou-se à mais bela e perigosa camisola do campeonato com as duas mãos que tinha mais ao pé, por manifesta falta de pernas para lhe aplicar uma tesourada. E o gigante sueco, em lugar de rebolar de dores e agredir a relva como ditam os tristes hábitos de violência doméstica da liga portuguesa, levantou-se como uma mola, de dentes afiados, a convidar o leão do Zambeze para a estocada final no adversário.

    – Eu passo-te a bola e vais ser tu a marcar, porque os meus pais podem estar a ver o jogo pela parabólica e cortam-me a mesada se me apanham a mentir duas vezes no mesmo jogo.

    Farnel do Sporting: sandes de leitão de Negrais, bem aviada…

    O génio moçambicano, outro rapaz educado e bem-mandado, sobretudo nos minutos de compensação pelo tempo gasto pelos adversários em rábulas e fitas manhosas, em menos de um minuto recebeu o passe, atrelou a bola, abriu a juba, fez golo e resolveu o clássico. Depois disso, festejou com os adeptos eufóricos nas bancadas, reconhecido pela assistência mas ainda intrigado quanto a tão insuperável generosidade. Só nos balneários, o mágico Pote, que tem muita graça, traduziu por gestos, com os dois pés que tem sempre à mão e os 32 dentes brancos de tantas piadas, as misteriosas razões do sueco.

    – Jag har aldrig gjort ett mål i mitt liv!

    Peço desculpa aos leitores interessados por me abster de traduzir. Se a entidade que censura a comunicação, para pontualmente justificar a própria existência, me apanha a reproduzir uma mentira despudorada, troca-me a carteira profissional por um cartão vermelho. Essa correspondência poderia agradar ao Pedro Almeida Vieira, que (ainda) é do Benfica e adora metê-los em tribunal, mas eu prefiro deixar em paz e ao pó a caixa do correio. Por favor, peçam ajuda ao dr. Google, ao mágico Pote ou a outro tradutor qualificado.

    – Jag har aldrig gjort ett mål i mitt liv!

    O cidadão Viktor Einar Gyökeres, nascido a 4 de Junho de 1998, em Estocolmo, Suécia, um metro vírgula oitenta e sete vezes noventa quilos de força bruta orientada, com residência e piscina em Lisboa, é suspeito de cometimento na forma continuada do crime de fraude sobre os valorosos e honrados defesas centrais adversários. Há indícios recolhidos e bem embrulhados nas bandeiras pelos funcionários fiscais de linha, de que o arguido proferiu aquela frase do início do jogo até sofrer uma falta inocente na grande área. Apanhado em flagrante ameaça e consumada violação da linha de baliza, alega ter-se inspirado numa entrevista recente do histórico presidente adversário.

    – Eu nunca comprei um árbitro. Isso não é verdade!

    Assim seja eu arrolado como testemunha, abonatória, e estou disposto a declarar que o arguido só disse a verdade. Pelo menos, nos exactos termos em que eu declaro, juramentado, não guardar qualquer memória de algum dia haver festejado um golo do Sporting. No último jogo, é verdade, gritei golo, mas foi antes do mesmo ser materializado. Ora, meritíssimo juiz, não pode tal descrição objectiva, factual e incontroversa da realidade, por mais adiantada, ser confundida com outra coisa que não o despretensioso relato de um profissional da imprensa desportiva, com 37 anos de experiência.


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  • Estrela da Amadora 1.0

    Estrela da Amadora 1.0


    No futebol, que não é o modelo para se levar pela vida, exponho-me como um ferrenho, no sentido de fé inquebrantável, dos presságios. Prefiro os bons, embora as mais das vezes se tornem maus, apesar de, com elevadíssima probabilidade, os supostos sinais antecipatórios sejam sempre tão relevantes como a francesa Linha Maginot foi para conter o Blitzkrieg da Alemanha Nazi.

    Porém, dizei-me, cépticos, incréus e demais descrentes: como ignorar, ao fim de 24 anos de sócio, que a águia Vitória (acho que, na verdade, era a Gloriosa) finalmente se cruza comigo? Isto é, a menos de um metro: eu a subir o elevador para a Varanda da Luz; ela, com o tratador, a sair do relvado… É certo que ela me pareceu um pouco alheia à minha presença, enquanto subíamos, e eu entabulava uma curta conversa com o seu tratador, sobre o desempenho (eventualmente) distinto das duas águias, mas, enfim, nem sempre os momentos históricos são apercebíveis por águias nem tão solenes como os do Anjo Gabriel e a Virgem Maria.

    (visto está, porque me cruzei com a Gloriosa [acho eu], que me atrasei, pelo que, somando o tempo do elevador, a ‘apanha’ do farnel e a subia a penantes da escadaria, cada vez mais íngreme, cheguei à Varanda da Luz já com cerca de cinco minutos de jogo)

    Além disso, talvez também por não me ter cruzado com tanta gente, que quase tudo estava dentro estádio, pareceu-me que hoje não havia tanta camisa negra, abrenúncio, que só o vermelho do Manto Sagrado, mesmo se por vezes sangrado, deveria merecer franquia de acesso.

    Enfim, avancemos. Convencido estou que, depois deste encontro, muito curto, surgirá uma vitória gloriosa, ou uma gloriosa vitória, várias, muitas, todas, até ao final da época, pelos séculos dos séculos; talvez sempre superiores, em bolas entradas, aos seis que o Sporting já mandou na Madeira, e, claro, dos cinco em Faro. Certo será que na hora em que lerem esta crónica, sabido já estará se foi o Sporting ou o Porto que não conseguiu a quarta vitória consecutiva, ou ambos, porquanto haverá ‘derby’ na próxima semana – que já será passado para quem agora me está a ler)

    Desconfio que mais provável seja, neste jogo e em muitos, que os cruzamentos da linha de golo sejam em menor número, sendo satisfatório que seja pelo menos e na da baliza adversária.

    (como habitual, lá em baixo, um jogo morno, sem intensidade)

    Mas, claro, quem precisa de intensidade quando temos a sublime arte de esperar por um milagre? A esperança é a última que morre, como se costuma dizer, mas cá entre nós, ela tem um jeito especial de se arrastar como o Schmidt lá em baixo, mão nos bolsos, numa noite de sábado.

    A fé no futebol é uma forma de optimismo que só rivaliza com as promessas de campanha dos políticos de que, no Verão, os planos de emergência em saúde vão fazer os obstetras suspirarem para que lhes cheguem mais grávidas, que as há poucas no Verão…

    (goloooooo… já estamos, finalmente, encaminhados: depois de dois remates fracos à baliza, lá temos o turco Kökçü lá acerta no fundo das redes, sob a forma de ‘franginho’ servido à la Brígido, o guarda do Estrela da Amadora)

    Continuemos a filosofar. Não sendo ateu, o futebol começa a ocupar agora, pelo menos para mim, e para mal dos meus pecados, a função da missa dominical da minha adolescência: ia por obrigação paterna (agora tem sido profissional), embora me esgueirasse depois, antes da comunhão, para o cemitério ver campas (agora vejo vídeos com momentos de glória).

    Convenhamos que, com o Schmidt, esta nossa Catedral está, daqui a nada, a parecer mais um necrotério do que local de celebração: raramente temos gritos, aplausos e a veneração. Bom, pelo menos não há muitos assobios hoje, porque o João Mário aparentemente já não jogará mais por aqui. Quer dizer, há pouco houve, por causa de um amarelo por protestos do Kökçü.

    (e termina a primeira parte sem chama, tirando o ‘frango’)

    Em todo o caso, sempre se mostrará mais sensato, mesmo numa época a começar mal, ter fé em ser campeão do que acreditar na política fiscal eficaz do Governo ou de que o plano de emergência para a saúde resolva o que quer que seja, excepto engrossar os bolsos de alguns com dinheiros públicos.

    Mas sigamos que, também ali em baixo, pouco se anda a fazer para resolver os ‘problemas’ dos benfiquistas, a saber: não conseguem assistir a um ‘jogo de gala’, de se tirar o chapéu, há muito tempo.

    (recomeça o jogo; renova-se a esperança similar à possibilidade de Cristo descer à Terra)

    Interessante que, confrontando-o com a religião e a própria política, o futebol acaba por ser, com toda a sua bagagem de tradições e rituais, o último bastião da superstição moderna. Entre o ‘penteado da sorte’, o ‘ritual do chuto para o lado direito’ e o ‘cruzamento com a águia no elevador’, a crença nos presságios é a única maneira de manter a esperança viva, apesar dos dados frios da realidade.

    Na verdade, a águia (Vitória ou Gloriosa, pouco importa) é o símbolo de sonhos frustrados, uma metáfora voadora da Esperança, porque se tudo estivesse a correr bem não iria acreditar que será uma rapina a alinhar o universo para uma vitória benfiquista.

    (e acho que também, pela amostra, não será o Renato Sanches, que entra, e que mais parece o Elijah Price, do filme O Protegido, realizado pelo M. Night Shyamalan)

    Enfim, já me estou aqui a arrastar em filosofias baratas, de encher chouriços, cada vez mais irritado, e desanimado, porque o meu ‘encontro’ com a água, mesmo se por breves momentos, merecia noite mais gloriosa. Espero, e já rezo, vejam lá, para que, pelo menos, não ‘voe’ a vitória (pouco gloriosa) que se surgiu de um ‘frango’.

    Com a aproximação do fim deste pobre jogo, garantido fica que a tendência para se forçar um significado aos encontros fortuitos, com águias ou com o que quer que seja (talvez com excepção de Deus), é tanto uma maneira de enfrentar o absurdo da existência como do absurdo de um segundo campeonato pelas mãos do Roger Schmidt.

    (e terminou isto, sem qualquer jogada digna desse nome durante toda a segunda parte, de parte a parte, Benfica e Estrela da Amadora; há pelejas de casados contra solteiros mais animadas)

    Conclui-se assim, acabando ‘isto’ num ‘Estrela da Amadora 1.0’ (ainda pior do que na época transacta), que um jogo morno nos pode ensinar algo: contentemo-nos com o que temos, sobretudo se o Rui Costa ainda precisa de mais para abrir os cordões à bolsa e ‘despechar’ o alemão…

    P.S. Esta crónica, acredite-se ou não, foi escrita antes do jogo contra o Moreirense, e o consequente ‘despedimento’ de Roger Schmidt. Entretanto, também houve um jogo, convenientemente ‘analisado’ pelo Carlos Enes, e com a minha ‘supervisão’, enquanto me deliciava com um ‘farnel’ na Varanda do Varandas que deveria envergonhar o Benfica. Mas esse ‘ajuste de contas’ fica para a próxima crónica…


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  • Exaltação a Rangel, ou o terremoto de Sines (em versão canónica e não-canónica)

    Exaltação a Rangel, ou o terremoto de Sines (em versão canónica e não-canónica)

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Paulo Rangel, o ministro que, qual Pombal do século XXI, após as ondas telúricas, levantou uma Lisboa que não caiu.


    Das misérias humanas, sei eu bem, embora não tenha, como sabeis, transmitido a nenhuma criatura esse legado, mas jamais deixei de me interessar pelas idiossincrasias da espécie, especialmente quando se trata de comparar a minha ilustre pessoa à do meu ilustre amigo Quincas Borba, pouco dado agora, neste estado, às escritas, mal-refeito ainda do estado de penúria e desemparo com que se finou da vida.

    Mas vamos, então, ao que interessa. Como tendes conhecimento, eu, Brás Cubas, sou o autor da “primeira narrativa póstuma do Brasil”, e, portanto, devo ser respeitado. Não é todo defunto que se dá ao trabalho de contar a sua própria história, ademais com o brilho de minha pena, afiada pela navalha da ironia e do sarcasmo, para vos deixar um ‘património do nada’. Já o meu amigo Quincas Borba quis, com o seu Humanitismo, criar uma filosofia que mais não será que egoísmo, disfarçado sob um véu de altruísmo, e que mais não nos deu do que a cómica expressão “Ao vencedor, as batatas” – que, para ser honesto, e sabendo-se que estas solanáceas se comem, assim concedem, na melhor das hipóteses, escatologicamente, uma porcaria.

    Alegoria do Terremoto de 1755, de João Glama Ströberle, exposta no Museu Nacional de Arte Antiga.

    Mas não me perca a atenção, caro leitor, pois as diferenças entre nós são cruciais. Enquanto eu, Brás Cubas, fui um desocupado crónico, que dedicou sua vida ao ócio e às frivolidades da alta sociedade, Quincas Borba teve a ousadia de ser um homem de ideias — não menos absurdo por isso.

    Agora, sejamos sinceros: entre o ócio intelectual que me caracterizou e a filosofia insana de Quincas Borba, o que é mais nobre? Difícil dizer, caro leitor, difícil dizer. De qualquer modo, ambos tivemos nossos momentos de glória.

    Sabemos todos que as glórias surgem, as mais das vezes, das desgraças. E, ah, meu prezado leitor, mas não nos devemos atender em demasia ao conceito de desgraça. Por exemplo, na transacta semana, a cidade das sete colinas, e arredores, foi sacudida por um terremoto. Uma desgraça certa se não fosse a realidade pregar uma peça: o tremor, ao invés de devastar tudo, não passou de um tremelique inofensivo, que nem telha fez cair. No entanto, se a terra não se moveu com grande entusiasmo, já a alma dos políticos, ah, essa sim, tremeu de excitação! Que ocasião perfeita para se glorificarem, como se tivessem salvado a cidade de uma hecatombe bíblica.

    Agora, imagine, leitor, eu e Quincas Borba nos reunimos em torno desse evento tão magnânimo, discutimos forma de honrar o terremoto de Sines de 2024, com artes de Voltaire em 1755. E daí a nada estava Quincas tomado por uma inspiração doida, a compor versos sobre a “grande vitória do espírito humano” diante do “inesperado cataclismo”. Segundo ele, o Humanitismo havia provado sua força mais uma vez, pois, mesmo diante do nada, o ministro Rangel fora capaz de transformar o vazio em glória. Ah, que bela reviravolta da lógica! Glorificar-se por sobreviver ao que não aconteceu é mesmo um feito digno de nota.

    Eu, por outro lado, não pude deixar de me divertir com tamanha patacoada. Que poema, que nada! Propus que escrevêssemos algo mais adequado ao contexto: uma ode à inutilidade da prontidão política, que se exibira com pompa e circunstância diante de um abalo que nem o Serafim acordara.

    Paulo Rangel, o Pombal do século XXI.

    Não chegámos a consenso, embora tivéssemos trabalhado com afinco e denodo. Quincas Borba pretendeu linguajar grandiloquente e heróico, como se a resposta do Governo tivesse sido uma vitória monumental – e merecesse as batatas. Já eu, preferia tom mais sarcástico e jocoso. Divergimos, e portanto, como sucede a bons políticos, criámos cada um seu partido, partindo a concórdia.

    Assim, a mim saiu-me isto:

    Ó Terra ingrata, que em teu forte bramir,

    Lisboa em pó já fizeste abater.

    Agora, tremes mas sem força a ferir,

    Tão leve o abalo que nada há-de ceder.

    Se outrora o Tejo em ondas te acolheu,

    E a cidade em chamas o céu ofendeu,

    Hoje, em Sines, apenas murmurou

    Um fulgor brando, que o sono não quebrou.

    Mas, ó governos, tão prontos e sagazes,

    Ao menor tremor, do que sois capazes!

    De, em alta voz, a todos proclamar:

    Que prontas estão as defesas a marchar.

    Ó Rangel, ministro de virtude,

    Que, com firme e solene atitude,

    Te ergueste, qual gigante pela paz,

    Pronto a defrontar o que a Sorte traz.

    E se em Setecentos, o grande Pombal,

    Com mão sábia, reconstruiu Portugal,

    Tu, Rangel, no abalo que nada derribou,

    Firmaste a fé em terra que jamais tombou.

    Em Belém, Marcelo, em voz segura,

    Exaltou a prontidão que, em tal altura,

    Fez da ameaça um exercício vão,

    Mas onde o Estado mostrou perfeição.

    Ó, como tal Governo é capaz

    De, na menor crise, erguer-se audaz!

    Pois se a Terra treme, sem destruição,

    Louvores mil à força da Nação.

    E se assim cantamos, em verso aclamado,

    O sismo que nenhum deixou acamado,

    E que, em verdade, nada abalou,

    Foi pela grandeza de quem não hesitou.

    Camões, visses tu como se faz,

    Como quem nos governa é falaz…

    Pois não sendo a ruína o qu’o valor mede,

    É à prontidão qu’o perigo cede.

    Por sua vez, ao meu amigo Quincas Borba, já pouco humorado, ademais por, por mofice, lhe afiançar ser eu a seguir o cânone, saiu-lhe apenas isto:

    Ó Terra ingrata, o teu forte bramir,

    Lisboa em ruína ele já fez cair.

    Mas, hoje, em Sines, apenas murmurou

    Um sismo brando, que a casinha não quebrou.

    Ó Rangel, ministro sem engano,

    Com tal destreza evitaste o dano!

    Ergues-te, qual gigante, sem tardança,

    A defrontar a Sorte com a Esperança.

    Se em Setecentos, se alevantou Pombal,

    Com sábia mão, a reconstruir Portugal,

    Tu, Rangel, no abalo que nada derrubou,

    Atinaste que a terra não tombou.

    E, na praia de Belém, com voz segura,

    Marcelo louva a prontidão que n’altura,

    Fez da ameaça um trabalho são,

    Onde o Estado mostrou a perfeição.

    Ó, como tal Governo é capaz

    De, na menor crise, erguer-se audaz!

    Pois se a Terra treme, sem destruição,

    Louvores mil à força da Nação.

    E se assim cantamos, em versos aclamados,

    O sismo que deixou a todos acordados,

    Mas que, em verdade, nada abalou,

    Foi pela grandeza de quem não hesitou.

    Camões, visses tu o que se faz,

    E do que quem nos governa é capaz…

    Pois, não sendo a ruína o que o valor mede,

    É à prontidão qu’o perigo cede.

    Agora, proponho aos nossos leitores que decidam a quem pertencem as batatas.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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  • Marques, o tudólogo conveniente

    Marques, o tudólogo conveniente


    Marques, o tudólogo conveniente

    O ‘tudólogo’ é uma figura curiosa do discurso moderno, caracterizado por sua “superciliosa empáfia” – expressão já com direitos reservados – e um ímpeto irresistível de expor as suas vastas (ainda que sempre superficiais) erudições em qualquer tema que venha à tona ou que seja pescada em águas profundas.

    Para um tudólogo não há campo do saber que escape à sua verborragia iluminada, versando com similar desenvoltura sobre astrofísica e filosofia antiga, discorrendo com aparente autoridade sobre as subtilezas da metafísica e dos segredos da alta gastronomia – e quem diz gastronomia, diz intrincados dilemas da política global.

     Para o tudólogo, cada conversa é uma oportunidade de exibir a sua suposta omnisciência, até porque, quanto à omnipresença, a todos já está patente, porque está em todo o lado a falar sobre tudo. Na verdade, um tudólogo é um bitudólogo.

    Pedro Marques, um tudólogo em todo o lado.

    Um bitudólogo é, na essência, um guardião das verdades inabaláveis, mesmo ou sobretudo daquela que ele mesmo inventou.

    Um dos expoentes do tudologismo é Pedro Lopes Marques que, para se armar aos cucos, se apresenta com um currículo extenso e variado, incluindo funções tão díspares como cauteleiro e consultor, além de licenciado em Direito, embora desconfie que tenha sido por linhas tortas que chegou a opinador de tudo o que é imprensa escrita, radiofónica e televisiva.

    Na semana passada, descobri que Marques defende a censura estatal como um meio legítimo de proteger a sociedade, enquanto escreve para uma revista que, curiosamente, passa pelos pingos da chuva, apesar de dever milhões ao Estado. É aqui que o véu da hipocrisia começa a rasgar. O bitudólogo Marques, que com tanta veemência discorre sobre a necessidade de regulação e controlo por parte do Estado para evitar abusos no discurso público, faz tudo isso debaixo do tecto de uma publicação que, por si só, é um monumento à falta de regulação da comunicação social e da fiscalidade – e daí à falta de impunidade.

    A revista Visão, um dos inúmeros ‘locais’ onde Marques publica as suas ‘tudiotices’, deve cerca de 15 milhões de euros ao Estado e acumula dívidas que totalizam 30 milhões de euros, mas o bitudólogo acha que, por exemplo, o Elon Musk deve ser culpado por aquilo que alguns escrevem na sua rede social. Nessa linha, também poderemos ficar descansados: se o Luís Delgado, dono da falida Trust in News e da revista Visão, não pagar as dívidas, Pedro Lopes Marques avança com o seu guito.

    O facto de Marques fechar os olhos a esta contradição é revelador da sua (in)coerência: pregar sobre a necessidade de censura e controlo quando se está num púlpito seguro, especialmente quando esse púlpito é mantido por uma entidade que parece gozar de uma imunidade surpreendente face às suas obrigações fiscais e judiciais. Seria de esperar que alguém tão zeloso na defesa da “verdade” e da “civilidade” também fosse igualmente rigoroso em exigir que o seu próprio veículo de comunicação fosse um exemplo de ética e cumprimento das suas responsabilidades.

    Um Estado é perfeito para censurar ‘inimigos’, mas também bom para permitir calotes aos ‘amigos’…

    Nanja. Para Marques Lopes, a censura é necessária e legítima – desde que, aparentemente, não interfira com as dívidas do seu empregador. O tudólogo Marques é daquele jaez de que se fazem os tudólogos: passaria a defender Musk se Musk comprasse a Trust in News. Mas como a única salvação da Trust in News é o Estado, do Estado só coisas boas… por agora.

    No seu mais recente artigo na Visão, Marques quer que o Estado seja um “paizinho”, que vigie e regule o que todos dizem nas redes sociais, mas parece perfeitamente confortável a trabalhar para uma revista que deve milhões ao mesmo Estado. Fala de responsabilidade e da importância de um Estado forte para controlar os excessos das grandes empresas tecnológicas, enquanto colabora com uma publicação que está atolada em problemas financeiros e que, paradoxalmente, não enfrenta o mesmo rigor que ele deseja para os outros.

    Pedro Marques Lopes coloca-se como um defensor da moralidade pública, mas está ligado a uma instituição que se esquiva das suas obrigações para com o próprio Estado, que ele quer ver fortalecido. É uma hipocrisia tão densa que até os algoritmos de que ele desconfia teriam dificuldade em processá-la. Ele denuncia os perigos da concentração de poder nas mãos de poucos homens, referindo-se a figuras como Elon Musk e Mark Zuckerberg, mas não parece ter problemas em que a Visão continue a funcionar como se estivesse acima da lei.

    No fundo, aquilo que Pedro Marques Lopes parece defender não é a democracia, mas um sistema onde as regras se aplicam selectivamente. Ele quer um Estado forte, mas apenas quando isso serve aos seus próprios interesses e aos interesses daqueles que lhe dão voz. Esta dissonância cognitiva é desconcertante: o tudólogo Marques ergue a bandeira da censura como uma ferramenta de justiça, mas fecha os olhos às injustiças que se desenrolam debaixo do seu próprio nariz. Afinal, talvez o seu conceito de censura seja apenas mais uma arma selectiva, usada para abater os adversários – denominada ‘extrema-direita’, uma espécie de albergue espanhol onde tudo cabe –, enquanto protege os seus aliados. Por agora, porque amanhã pode ser outro dia.


    Obama & ‘Monedas’, ou o provincianismo pacóvio

    Barack Obama, apesar do seu estatuto de reformado, é homem ocupado, como todos saberão. Apesar de as horas de um dia lhe passarem como aos demais, os seus minutos são escassos: daí que ouvir Carminho a despachar o fado ‘O Quarto’ em 1 minuto e 16 segundos no filme ‘Pobres criaturas’ lhe pareceu bastante para a integrar na sua playlist estival no Spotify, em vez de sugerir a versão integral de 3 minutos e 20 segundos.

    Pormenores. Afinal, um ex-presidente dos Estados Unidos, democrata como convém nos tempos de hoje, ir ao cinema e ficar deliciado com uma voz exótica que lhe deve soar vagamente ao espanhol de Porto Rico, é mais do que motivo para o Expresso ir a correr ‘gritar hossanas nas alturas’, que Deus seja glorificado para todo o sempre. Ou melhor, que Carminho seja glorificada nas páginas do semanário de Balsemão na secção “Altos”, e por bênção de Barack Hussein Obama II, e só por isso – e nem sequer por ter editado o álbum onde se insere aquela canção já no longínquo Março de 2023 em Portugal e em Novembro seguinte nos Estados Unidos.

    Portanto, esclarecidos fiquemos sobre o conceito de validação cultural: Barack Obama e a sua playlist de Verão ‘sacada’ de uma sala de cinema.

    Talvez exagere. Os portugueses sempre apreciaram que, do estrangeiro, gostem deles. E, portanto, se nos próximos tempos, a distinta fadista cair nas graças de Trump lá teremos mais um altar erguido em honra de Carminho nas páginas do Expresso, certo? E se for Bolsonaro? Ou Lula? Ou se for Putin? Ou se for Zelensky? Ou Kim Jong-un, que em jovem até teve passaporte brasileiro? Infindáveis possibilidades que auguram uma secção própria, e adequada, para solenizar os encómios estrangeiros à nossa cultura.

    Mas o desmesurado orgulho ao que vem do estrangeiro – que quase se confunde com provincianismo pacóvio – atingiu o zénite no passado sábado com o alcaide de Lisboa Carlos Monedas.

    Perdão, falo de Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que pensava eu ser capital da República Portuguesa, mas que, pelo entusiasmo com ele esteve a promover a etapa inicial da Vuelta a España, mais me pareceu que recuáramos ao Verão de 1640, aos tempos de Miguel de Vasconcelos.

    De Gira em punho – e teve muita sorte de estar a funcionar –, lá vimos ‘Monedas’ glorificar a La Vuelta, orgulhoso por se iniciar na ‘província’ mais oeste de Madrid. E isto quando não me recordo de o ter visto na chamada Volta a Portugal, que somente passou fugaz e discretamente por Lisboa, em 26 de Julho, porque o presidente de uma junta, a de Marvila, achou por bem ‘despachar’ 90 mil euros para a organização da triste prova lusitana meter Lisboa no mapa, em vez de os direccionar em desnecessárias melhorias dos seus fregueses.

    Foi ver onde parou Moedas nesse dia, em que não teve tempo para dar um saltinha à chegada da Vuelta a Portugal no município que preside. Tarefa fácil, porque a agenda do nosso alcaide está agora sempre bem patente e presente no X: esteve a ‘inaugurar’ o plantio de 20o árvores em Sete Rios, na Praça Marechal Humberto Delgado, assassinado pela PIDE em Espanha. Olé!


    Carta de amor de Valentina ao Valentão

    Nem ao leitor mais desatento terá passada desapercebida uma certa dedicada e carinhosa prosa, que o tempo e a História tratará de fazer ombrear com as missivas de Mariana Alcoforado ao militar francês Noël Bouton, Marquês de Chamilly. Não foi em formato de carta secreta, é certo, embora a condição de ‘notícia’ num jornal que vende mil exemplares a coloque num grau de sigilo quase similar, além de em nada retirar o merecido e enternecedor mérito à paixão.

    Publicada no dia 20 de Julho no Diário de Notícias, não tivemos aqui uma pena de uma freira do Convento da Nossa Senhora da Conceição, na alentejana cidade de Beja, mas sim o teclado de uma jornalista de não menor fervor e afeição pelo seu amado: Valentina Marcelino, uma jornalista já considerada a maior especialista mundial em ‘Gouveia e Melo’, conseguiu transformar um simples relato sobre a alocução de um militar a convivas de uma jantarada de oníricos elogios em visceral fogo que incandesce a alma e sublima o espírito temperado com essências vibrantes que transcendem a mera existência. A bem-dizer, escreveu ela uma carta de amor.

    silhouette of person's hands forming heart

    Valentina mal escondeu, na sua notícia, os suspiros e os tremores que, por certo, espraiou no Clube Militar Naval ao ver o seu ‘Chamilly’ sem farda, mas podemos imaginá-los pela prosa enlevada e fascinada perante aquele militar de branca e rala barba, que me lembra sempre um senhor que promove um conhecido pescado que garante apenas uma espinha em cada 41.000 unidades, o que sempre me parece mais seguro do que as vacinas contra a covid-19.

    Enfim, certo é que na leitura, em menos de sete minutos, o leitor cruza-se com encantatórias palavras, sempre meigas, sempre elogiosas, sentindo-se sempre um aroma a maresia, um sabor a grandeza. No início vai logo à espinha, para logo seguir para o coração: “Descontraído, comunicativo e até com umas tiradas de humor, o almirante Gouveia e Melo escolheu o tema da liderança para falar a uma plateia de auditores de Defesa Nacional, militares e deputados, convidados de um jantar-palestra realizado no Clube Militar Naval, em Lisboa, na última quinta-feira.” Prossegue, e logo citando as palavras, sempre modestas, sempre humildes, de um Grande Líder, que menos do que Grande Almirante não poderia ser: “Um chefe militar tem de ter coragem. Ser honesto com o poder político e, quando necessário, vir a público dar a cara. É isso que faço. Se calhar, os chefes militares eram mais do tipo Português Suave, mas eu sou de um género nada suave”.

    Como não se deslumbrar com alguém que se anuncia como sendo o oposto do Português Suave. Até eu acho que o nosso Almirante está, efectivamente, longe do Português Suave; ele é mais Kentucky, o famoso ‘mata-ratos’… Ou será mata-velhos? Não sei. Acho que isso era mais os quadriciclos

    Não nos desviemos. A prosa flui, a partir daqui, dando eco ao lamento do putativo aspirante a ocupar o lugar de Marcelo, por “a Defesa ter estado praticamente fora dos debates da campanha para as Eleições Europeias, apesar da guerra na Europa com impacto em todos países, incluindo Portugal”. E recorda uma entrevista DN-TSF, onde o almirante “chamou a atenção” para a necessidade de “preparar os jovens” para serem, um dia, carne enviada por políticos para enfrentarem canhões em cenários de guerra (perfeitos para lavar dinheiro).

    No parágrafo seguinte, Valentina já não aguenta: “vestido à civil o Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA) aproveitou a oportunidade para partilhar das dificuldades no recrutamento para a Marinha”.

    E, claro, não podia faltar, no texto de uma amante – no sentido de admiradora, não sejam más-línguas – doces palavras de saudades à pandemia do ‘vai ficar tudo bem’: “A task force da vacinação e a sua estratégia como coordenador, era o foco da sua intervenção, em que frisou que a coragem, ter valores, assumir a responsabilidade e honestidade são algumas das qualidades que, no seu entender, devem fazer parte de um líder”. Tanta modéstia.

    Ficámos a saber, pela querida ‘almirantenete’ que Gouveia e Melo não é de ferro nem de pedra, tem sentimentos, é um homem que teme os desafios que somente os gestores de logística dos frescos do Modelo Continente, e outros perecíveis, enfrentam: “confessou não ter dormido “toda a noite” quando foi convidado para liderar o processo de vacinação”.  E, escreve ainda Valentina, que um dos motivos por que passou a andar sempre de camuflado, não foi para fazer suspirar as ‘almirantenetes, apesar da justificação oficial de ser “a farda partilhada pelos três ramos” que integravam a task force, foi sobretudo para evidenciar a “guerra contra um vírus”. Ah, e era mesmo guerra, porque nisto não havia lugar para pacifistas, medricas, refugiados, deslocados ou desertores. “As pessoas tinham de escolher um lado. Quem estava contra tinha de se vacinar”, disse o nosso Almirante, e assim redigiu a nossa Valentina. Para quê seguir a Ciência quando se pode antes seguir as palavras de um especialista em faróis e submarinos, ainda por cima humilde, modesto, imbuído de bom-senso, como fica patente no mui ‘patenteado’ Gouveia e Melo?

    Assim sendo, não surpreende que todo o restante texto seja escrito, e descreva, sempre envolto em elegância e admiração, para enaltecer as qualidades de alguém destronou, com grande facilidade, um Diogo Cão, um Bartolomeu Dias, um Pedro Álvares Cabral, um Vasco da Gama, um Afonso de Albuquerque, um Fernão de Magalhães… esse não, que se ofereceu a Castela.

    Embevecida, Valentina recorda, aliás, um outro artigo que escreveu sobre o seu ídolo com o singelo e muy imparcial título: “O que vai ficar para a história da liderança de Gouveia e Melo”. Neste artigo, “alguns dos mais importantes especialistas em liderança elogiaram as opções do almirante”, escreveu Valentina. Nem faltou a opinião de um especialista para meter o nosso Almirante na gávea de proa desta navio chamado Portugal, destacando a sua “genuinidade”, que transmitiu “calma, confiança no trabalho da sua equipa”, ou a de outro que lhe viu “visão estratégica clara”. Aos jornais ainda lhes falta meter na tinta música de violino.

    No panegírico de Valentina ao seu Valentão, não faltou menção à “mesa do CEMA” neste jantar “com lotação esgotada”, onde pontificava Miguel Guimarães, deputado do PSD e ex-bastonário da Ordem dos Médicos, envolvido na polémica das ilegalidades cometidas numa campanha de solidariedade financiada quase exclusivamente por grandes farmacêuticas. Curiosamente, nessa mesma campanha de solidariedade foram desviadas vacinas para médicos não-prioritários, mas isso não interessa nada, Provavelmente, Noël Bouton também tinha os seus pecados e pecadilhos, e a sua Mariana Alcoforado também se calou. O amor é sempre lindo, talvez por ser cego.



    SEMANA 30/2024

    Marrar na parede? Não: é mesmo cair no abismo

    O Francisco Balsemão, não o José (pai) nem o Maria (meio-irmão), mas o Pedro, é o CEO da Impresa, outrora grupo de media que trabalhava para o (e tinha foco no) bem dos leitores e telespectadores. Com esse antigo serviço, credível e atraente, vinha o brinde: as empresas punham-se em fila para publicitar nas ‘plataformas’ da Impresa os seus produtos para serem comprados e usufruídos pelos consumidores que eram atraídos pela informação credível e pelos conteúdos comunicacionais de qualidade. E como era filão apetecível, e não havia espaço para todos, pagava-se bem para anunciar. Ganhavam então todos: leitores / telespectadores, os anunciantes e a própria Impresa.

    Mas isso é coisa do passado. Os produtos (notícias e conteúdos comunicacionais) descredibilizaram-se, e já nem se consegue distinguir o jornalismo da promoção e do marketing empresarial – ao ponto de o próprio CEO da Impresa andar a fazer ‘entrevistas’ numa mixórdia de funções – e como as audiências por tudo isto descambaram, abriu-se a possibilidade às maiores promiscuidades numa fuga para a frente, para onde não há sequer uma parede para marrar mas somente um abismo para cair.

    Post no LinkedIn do CEO da Impresa

    Assim sendo, nem sequer deveria surpreender muito que na apresentação de mais um resultados semestrais desastrosos – 4 milhões de euros de prejuízo, sobretudo pelo agravamento do serviço da dívida por via do endividamento completamente absurdo -, o Pedro (para que se consiga distinguir dos outros dois Francisco Balsemão) continue alegremente a dizer que “vamos continuar a trazer mais valor para anunciantes e agências, reforçando a nossa posição enquanto grupo de media português com mais investimento publicitário”.

    Nem uma palavra para os leitores e telespectadores. Nem uma palavra para o jornalismo. Nada. A Impresa hoje só quer dar “mais valor” aos anunciantes, apresentando cada vez menor qualidade nas ‘plataformas’, e às agências (deduzo que também de comunicação), que querem passar comunicação empresarial como se fosse notícias.

    Deve ser giro um CEO de uma empresa fazer um podcast para o jornal como se fosse mesmo um jornalista…

    Presumo que a estratégia para o desastre vai continuar quando o nosso Pedro acrescenta que “adicionalmente, vamos manter a nossa estratégia de expansão digital e diversificação de fontes de receitas, nomeadamente através da concretização de apostas já anunciadas como a realização do Tribeca Festival em Lisboa e a nossa nova parceria na área da bilhética online com a BOL”. Diversificar significa aqui, presumo, arranjar mais umas ideias para fazer de conta que na Impresa ainda se faz jornalismo e comunicação social.



    SEMANA 29/2024

    Paxlovid!, dizem os democratas. Ivermectina!, dizem os republicanos

    Se considerarmos que o primeiro ano de vida de um gato é aproximadamente igual a 15 anos humanos, que o segundo é igual a 9 anos humanos e que cada ano adicional é igual a 4 anos humanos, então o Biden é um ano mais velho do que eu, sabendo-se – e se não souberem, sabem agora – ter eu nascido no dia 13 de Junho de 2008. Estamos ambos idosos, mas ainda me lembro do que sucedeu há dois anos, talvez porque, nessa altura, contava 72 e não 80 anos.

    Posto isto, mesmo sabendo que Joe Biden está mesmo desmemoriado, e já nem saiba o que lhe dão, acho que, a existir uma cabala nos Estados Unidos, esta não é contra o Trump, mas sim contra o actual Presidente. Não é que logo no dia em que ele coloca a hipótese de sair da corrida eleitoral se houvesse decisão médica, surge com um teste positivo à covid-19? E que lhe fazem? Dão-lhe o mesmíssimo medicamento – o Paxlovid, da Pfizer – que ficou conhecido por ser como o Melhoral (não faz bem, nem faz mal) com a agravante de causar recaídas, como lhe sucedeu em 2022. Lembram-se? Ele, se calhar, não.

    Notícia de Julho de 2022: Biden teve uma recaída depois de lhe ser administrado Paxlovid. Dois anos depois, dão-lhe novamente Paxlovid.

    Enfim, já estou a imaginar nos próximos tempos uma titânica luta ideológica, que nada tem a ver com simpatias terapêuticas: os democratas a quererem à força que Biden tome Paxlovid, para ter recaídas até abandonar a candidatura (e se não resultar, às tantas ainda lhe darão lixívia…), enquanto os republicanos a querem se ele recupere rápido, dando-lhe vitamina D e ivermectina, de sorte a ele se manter na corrida a colecionar gaffes até Novembro. Tempos interessantes, sem dúvida.


    SEMANA 28/2024

    Leonor de Todos los Santos de Borbón y Ortiz e o seu súbdito Marcelo

    A sinistra (é canhota) Alteza Real Leonor de Todos los Santos de Borbón y Ortiz, Princesa de Asturias, Princesa de Gerona, Princesa de Viana, Duquesa de Montblanch, Condessa de Cervera e Señora de Balaguer, visitou aos 18 anos um rectângulo na Península Ibérica que, para mal dos pecados do Senhor do Morgado de Fonte Boa (um tal Miguel, de Brito, da parte do pai, e Vasconcelos, da parte da mãe), continua a falar a língua de Camões, e não a língua de Cervantes.

    E muito bem fez a jovem herdeira do trono de Espanha em, pisada esta terra, se pôr a discursar em castelhano na sua visita a Belém, onde muito bem teceu, e se entendeu, uns belíssimos considerandos sobre Portugal, apenas usando, para dar mais ‘salero’, uma palavra na língua de Pessoa – ‘saudade’ – para destacar os nobres sentimentos de seus pais sobre o país vizinho.

    Já Marcelo Rebelo de Sousa – ou será Marcelo Revelo de Sosa? – fez o que um súbdito deve fazer perante a (sua futura) rainha: brindou em castelhano, embora com tão terrível pronúncia que, vos garanto, o Cervantes, lá no sepulcro do Convento de las Trinitarias Descalzas de San Ildefonso, deu ‘erizado’ umas quantas acrobacias, apenas não uns saltos mortais, porque defunto já ele está. Em todo o caso, em resposta ao brinde de Marcelo (ou Marcelo, em castelhano), o Rocinante relinchou ‘iiirrrrí‘ e o Rucio zurrou ‘inhóóó inhóóó‘.


    SEMANA 28/2024

    Salomé e a cabeça da Verdade numa bandeja

    Há agora um novo desporto nos media mainstream: malhar em Lucília Gago e zurzir na Procuradoria-Geral da República, esse malévolo ente que ia dando cabo da vida do nosso querido Costa, o nosso ai Jesus que agora dará mais alegrias ao povo português do que o Ronaldo, já anda a pensar em pousar chuteiras, tornando-se o mais mais inteligente presidente do Conselho Europeu, PNS dixit.

    Ora, na recente entrevista à RTP, Lucília Gago disse que não se sentia responsável pela queda do Governo em Novembro passado, que fora uma decisão pessoal de António Costa, que “poderia continuar a exercer as suas funções” como, exemplificou, aconteceu com Ursula von der Leyen e com Pedro Sánchez. “Não é automático que a instauração de uma investigação tenha como consequência uma demissão”, defendeu.

    Que foi ela dizer, caramba! Caiu logo nas malhas do Polígrafo, o arguto fact-checker com uma impressionante densidade de under-30 na sua redacção, e que agora até já ‘contrata’ under-20, o que, convenhamos, poupa dinheiro em salários, mas mostra-se arriscado porque, geralmente, a memória destas gentes, tal como a idade, é curta.

    Portanto, assentando nisto, lá tivemos o Polígrafo com a jornalista Salomé Leal a pôr a Dona Lucília Gago em ordem, dando-lhe um raspanete, porque, segundo esta veneranda (nada veterana) fact checker, não é comparável a situação de Ursula von der Leyen com a de António Costa, porque, havendo um caso de alegada “interferência em funções públicas, destruição de SMS, corrupção e conflito de interesses” nas negociações de vacinas entre a presidente da Comissão Europeia e o CEO da Pfizer, a senhora alemã “não ponderou em momento algum abandonar o cargo apesar da investigação, mas também não foi, ainda, acusada da prática de qualquer crime”.

    Pintura exposta no Museu Nacional de Arte Antiga da autoria de Lucas Cranach, o Velho.

    Isto é uma chatice quando se anda a fazer fact-checking como se fosse gente grande, e depois, vai-se a ver, e entrou-se no jornalismo em 2020. E, portanto, que interessa a Salomé Leal tudo o que sucedeu antes desse prodigioso ano, incluindo, portanto, as acusações (e investigações) que ainda pendiam sobre von der Leyen em 2019 como ministra alemã da Defesa, quando então foi escolhida para a presidência da Comissão Europeia? E não seriam essas situações passadas sobre as quais Lucília Gago se estaria a referir?

    Nanja! Nada!

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    Para Salomé Leal, só se deve ver, com antolhos, para a frente de 2020. Para Salomé Leal, só há Político a partir de 2020 (e em particular, para apanhar o ‘erro’ de Lucília Gago, através da notícia do Político de 1 de Abril de 2024, que ela refere como ‘prova’); não há Político antes de 2020, nem existência, nem mundo, nem memória, somente o vazio a.S.L. (ante Salomé Leal).

    Dona Lucília Gago, para a próxima se precaveja: não queira, matusamelicamente, confundir as mentes juvenis, invocando o passada da nossa Ursula von de Leyen antes do Pfizergate; não queira relembrar casos, ‘casinhos’ e ‘casões’ que teve como ministra alemã da Defesa entre 2013 e 2019, como, hélas, se pode ver no período pré-histórico do Político (aqui, aqui, aqui e aqui).

    Enfim, a ignorância é muito atrevida, diz-se – mas numa fact checker armada em paladina da verdade, a ignorância torna-se apenas lamentável. A culpa, parece-me, nem é da Salomé, mas certo é que, com estes fact checkings, a Verdade nos surge assim decepada numa bandeja.


    SEMANA 26/2024

    Gouveia e Melo apanha Putin no cimo do ‘caralho’ (calma: é termo náutico)

    Na Teoria do Caos diz-se que pequenas alterações nas condições iniciais de um sistema complexo podem resultar em grandes e imprevisíveis eventos futuros. Conhecido por Efeito Borboleta, este conceito foi popularizado pelo meteorologista Edward Lorenz nos anos 1960, e é frequentemente ilustrada com a metáfora de que o bater de asas de uma borboleta na Amazónia poderia desencadear uma tempestade no Pacífico.

    Em Portugal, desde que o submarinista Gouveia e Melo se meteu na ‘cesta de gávea’ (também conhecida, em tempos antigos, por ‘caralho‘), a mandar postas de pescada como Chefe do Estado-Maior da Armada, sabemos por isso que, quando uma qualquer embarcação da Rússia levanta âncora de um qualquer porto e cruza águas portuguesas, nos arriscamos a ter a III Guerra Mundial. E por isso, temos de combater o ‘Efeito Borboleta’ com o ‘Efeito Gouveia e Melo’.

    Não tenham dúvidas sobre o ‘Efeito Gouveia e Melo’ para a paz mundial. A III Guerra não sucedeu ainda porque, claro, a Marinha Portuguesa ‘almirantada’ pelo mestre-da-logística-vacineira, putativo candidato a Presidente da República, coloca sempre toda a ‘infantaria náutica’, que ainda flutua, a postos para controlar os malvados espiões russo. Apenas por causa de Gouveia e Melo os russos não sabem ainda como podem sair vitoriosos de um conflito global, porque jamais conseguem vasculhar em descanso o fundo do mar português. São corridos.

    Que o Putin deixe de se armar em carapau de corrida, e tire as mãos da sardinha – com Gouveia e Melo não há cá caldeiradas. Que o Putin se entretenha com o esturjão, que se contente com o caviar. Se não se portar bem, às tantas, leva é uma solha do nosso Almirante… ou uns douraditos da Iglo (passe a publicidade).

    Por tudo isto, celebremos Gouveia e Melo. Celebremos a Marinha Portuguesa que bem viu que o ‘General Skobelev’ não era um banal petroleiro russo com destino a Kalinenegrado, nem que o ‘Akademik Ioffe’ não era um corriqueiro navio russo de passageiros com destino à Libéria, nem o ‘Nikolav Chiker’ um singelo quebra-gelo saído do porto de Mariel em Cuba, onde sabemos que nem há neve. Eram sim uns malvados “navios-espiões russos”, como noticia o Correio da Manhã depois de um comunicado do gabinete de imprensa do nosso Almirante, que só não deram início à III Guerra Mundial porque a nossa bendita Marinha cometeu uma heróica “missão de 90 horas”.

    Imagens retiradas hoje do Marine Traffic com a localização de embarcações, bem como a localização actual do Akademik Ioffe que segue para a Libéria. Cada triângulo representa a localização de uma embarcação de grande porte.

    Feito isto – e que grande feito de Gouveia e Melo comparado com os vulgares ‘passeios’ de Diogo Cão, de Bartolomeu Dias, de Vasco da Gama, de Afonso de Albuquerque e do ‘traidor’ Fernão de Magalhães –, somente se me coloca uma dúvida: será que o Putin não deveria mudar de estratégia, e em vez de mandar navios-espiões com bandeira russa, não deveria antes alugar um embarcação de outro qualquer país para espiolharem as nossas águas territoriais ou a nossa Zona Económica e Exclusiva (ZEE)?

    É que assim isto não tem muita piada! São sempre apanhados pelo olho do Gouveia e Melo, que no cima do ‘caralho’ nada deixa escapar. Dá-lhe, camarada Putin, pelo menos algum trabalho, enquanto ele não segue para Belém: há centenas de navios a cruzarem os mares portugueses, como podes ver ali em cima nas imagens retiradas do Marine Traffic. Escolhe um, para que Gouveia e Melo apanhe todos. Se o homem até já venceu um vírus


    SEMANA 25/2024

    Força Aérea: um zero à esquerda a meter dois zeros à direita

    Na aviação, um número conta muito. Por exemplo, em 1989, um voo da Varig, caiu sem combustível na floresta amazónica, só por por causa de o piloto ter inserido a direcção 027 graus, em vez de 270 graus. Um zero mal metido. Mas esse lamentável caso foi na aviação civil; na Força Aérea, como se viu desde pelo menos o Top Gun, não se brinca em serviço. Um número é um número. Rigor absoluto.

    E daí que se começou a salivar aqui no PÁGINA UM, que muito já viu em contratação pública, quando se detectou, no início desta semana, um ajuste directo celebrado há quase dois anos, mas somente agora publicitado no Portal Base, pelo Estado-Maior da Força Aérea para aquisição de apoio de engenharia relativo a um sistema de comunicações. Valor da ‘coisa’: 7.326.000 euros, ou seja, um ajuste directo de mais de 7,3 milhões de euros, montante que, com IVA, ultrapassaria os 9 milhões de euros. Ainda por cima, sem sequer existir contrato escrito, invocando uma norma inadequada para estes casos.

    man driving helicopter

    Já se imaginava as parangonas – mas vieram as relações públicas estragar a ‘cacha’, confessando um erro, corrigido depois do contacto do PÁGINA UM. Afinal, o contabilista da Força Aérea, talvez um zero à esquerda, tinha inserido dois zeros à direita, a mais. Ou seja, onde antes se lia 7.326.000 euros, passou a ler-se 73.260 euros. E lá se foi a ‘cacha’.

    O director do PÁGINA UM ainda anda a matutar se não deveria ter perguntado por comprovativos que demonstrem que nunca erros deste quilate quando se digitam números nas ordens de transferência. Às tantas, ainda se descobria, no contrato de 2021 (que só foi publicitado este ano) para fornecimento de combustíveis, que o Estado-Maior da Força Aérea em vez de ter pagado 57.276.950,99 euros à Petrogal, afinal enviou-lhe, vá lá, apenas 57,27 euros – ou, para arredondar, 57,27 euros. Erros acontecem: quem não…


    SEMANA 24/2024

    Carlos, o Papa Moedas

    Carlos Moedas já nos habituou a falar na primeira pessoa do plural sempre que, em bicos de pés, quer falar da obra que julga ser só sua: “entregámos chaves de casa”; “homenageámos fulano de tal”; “visitámos a estrada da Beira e a beira da estrada”; “distribuímos isto e aquilo”, “condecorámos sicrano e beltrano”, e hoje [sic, neste caso] “Casámos os noivos de Santo António”.

    Mas, calma, não se pense que nesta função casamenteira, o presidente da Câmara de Lisboa tenha exercido o ministério de sacristão ou de diaconato – que ofensa seria! E, para quem é, nunca aceitável seria o múnus do presbiterado, que isto de ser pároco, cónego, vigário-geral ou monsenhor é coisa de pobre. Merecia Carlos Moedas não menos do que a função, ou título, de bispo, de arcebispo, de cardeal ou de patriarca. Mas como isto seria sempre pouco, acho mesmo que este, hélas, nosso edil deveria estar mesmo no topo da hierarquia, até para fazer jus à função que melhor desempenha com o dinheiro dos contribuintes para se promover: Papa – o nosso Papa Moedas.


    SEMANA 22/2024

    Costa, o Ricardo, sem tempo para ler sobre prémio das estantes IKEA

    O jornalista Ricardo Costa tem quatro relevantes pecularidades biográficas: é cumulativamente director de informação da SIC e director-geral de informação do Grupo Impresa (dona do Expresso); é primo em segundo grau de José Alberto Castelo Branco da Silva Vieira; é irmão de António Luís Santos da Costa; e tem raízes orientais, o que, garantidamente, na douta e constitucionalíssima tese do nosso actual Presidente da República, o tornará “lento”. Só a segunda é irrelevante para a minha ‘arranhadela’.

    Sendo “lento”, ‘marceloscamente’ falando, e tendo tão elevadas funções na direcção de tantos órgãos de comunicação social, compreende-se que Ricardo Costa só leia as ‘gordas’ e que os seus olhos não comam mais do que o primeiro ‘linguado‘, porquanto, como sabe, a partir daí tudo é palha para encher chouriços.

    Por esse motivo, compreende-se que Ricardo Costa tenha vindo a correr dar uma alfinetada no Governo Montenegro por ter eliminado um rectângulo verde, um círculo amarelo e um quadrado vermelho como logótipo da Nação, uma vez que a ‘obra’ acabou de ganhar um prémio de design.

    Confirma-se, assim que Costa, o Ricardo, nem sequer leu a curta notícia da SIC, televisão do qual é director de informação, a qual destaca no seu tweet no X, para criticar “as guerras culturais [quando] chegam ao design”. Se assim não fosse, teria visto que o Grande Prémio CCP 2024, e que deveria ter merecido o máximo destaque, foi entregue à não menos famosa publicidade da estante IKEA: “Boa para guardar livros. Ou 75.800€“, alusiva ao dinheiro encontrado no gabinete de Vítor Escária, chefe de gabinete do Costa, o seu António, e que tanto frisson causou às sensibilidades políticas do PS.

    Já agora, bem vistas as coisas, às tantas os 75.800 euros do Escária eram legais: serviriam para pagar ao designer os 74.000 euros do logótipo, e o resto seria para cerveja e tremoços, que para gambas já não daria.


    SEMANA 21/2024

    Mais um frete do Polígrafo; mais um prego no caixão do jornalismo

    A vida anda difícil para todos, e até também para o Polígrafo, apesar dos mais de 400 mil euros por ano que encaixa do Facebook para fazer de cão-de-fila pelas redes sociais. E se quando esteve desempregado, o seu director, Fernando Esteves, fez uma perninha em final de 2018 para sacar quase 20 mil euros num centro hospitalar de Lisboa (sem haver sinal de ter feito ‘coisa’ alguma), mais facilmente pode o Polígrafo fazer fretes – desde que, claro, receba dinheiro. Pregar pregois no caixão do jornalismo, isso é um pormenor…

    Como se sabe, o Polígrafo orgulha-se de ser um órgão de comunicação social exclusivamente de fact-checking, que teve o seu período de ouro na pandemia, com uma função mui útil para consolidar ‘narrativas’, metendo no mesmo saco gente destemperada e racional (desde que ambos os grupos não aceitassem as ‘narrativas’, em versão low cost, porquanto metia estagiários geralmente de Comunicação Social a mandar postas de pescadas sobre complexas questões de Epidemiologia e outras ciências, muitas vezes com especialistas em migrações de sardinhas ou peritos em hidrogeografia que andaram a lançar búzios com modelos matemáticos de vão-de-escada.

    Mas estamos em 2024, e embora haja muita mentira a ser desvendada em campanhas eleitorais, a safra deve andar fraca – e, portanto, o que vier à rede é peixe. E esta semana saiu assim no Polígrafo uma notícia ‘normal’, mas nada habitual num ‘fact checker’, sobre um banal “encontro com jornalistas, esta terça-feira, em Lisboa”, onde Elisa Ferreira, a comissária portuguesa ns Comissão von der Leyen, notou que quando existe “um alargamento da União Europeia há normalmente um impulso brutal da economia” dos países que acabam de aderir ao bloco europeu”. Toda a notícia soa a pé de microfone: a comissária diz, a jornalista anota.

    E, acrescenta ainda a jornalista Ema Gil Pires, com um curioso número de carteira profissional – 7999, que, por ser nova, nem sequer deve saber o que é a cláusula de consciência, que a livra de fazer fretes a mando do ‘patrão’ –, que Elisa Ferreira notou, assim, a “grande oportunidade” que tal seria para o “processo de reconstrução da própria Ucrânia”, numa altura em que se perspectiva “uma eventual inclusão de Kiev no leque de Estados-membros”. E blá blá até ao fim.

    E é bem no fim que se vê o seguinte texto, que deve ser lido ao som de violinos, ou de marcha fúnebre em memória do jornalismo: “Este artigo foi desenvolvido pelo Polígrafo no âmbito do projeto ‘EUROPA’. O projeto foi cofinanciado pela União Europeia no âmbito do programa de subvenções do Parlamento Europeu no domínio da comunicação. O Parlamento Europeu não foi associado à sua preparação e não é de modo algum responsável pelos dados, informações ou pontos de vista expressos no contexto do projeto, nem está por eles vinculado, cabendo a responsabilidade dos mesmos, nos termos do direito aplicável, unicamente aos autores, às pessoas entrevistadas, aos editores ou aos difusores do programa. O Parlamento Europeu não pode, além disso, ser considerado responsável pelos prejuízos, diretos ou indiretos, que a realização do projeto possa causar“.


    SEMANA 20/2024

    As reuniões do Grande Líder Moedas

    Carlos Moedas, o Presidente da Câmara de Lisboa – ou, antes disso, como salienta na sua conta do X, é “Mayor of Lisbon” e, além disso, também “Maire de Lisbonne” (e direi eu, de igual modo, que será লিছবন চহৰ পৰিষদৰ সভাপতি, em língua assamesa), é um líder. Perdão: é um Líder. Penitência: um Grande Líder. Misericórdia (não a freguesia onde nasci no longínquo ano de 2008): O GRANDE LÍDER!

    O único! Mas nunca sozinho.

    Moedas surge, feito vedeta, a oferecer casas, a acompanhar obras, a distribuir subsídios, a condecorar o periquito, mas nunca o faz sozinho. Usa sempre o plural: oferecemos, acompanhamos, distribuímos, condecoramos. E nós pagamos.

    São pormenores: afinal, o Grande – metonímia para Grande Líder Moedas – liderará sempre COM as pessoas, como titula a sua ‘magnum opus’, dirão os seus empolgados idólatras. E o Macron, que diz de Moedas o que o Maomé dizia de Meca: que “servirá para encorajar e até formar as próximas gerações de cidadãos que queiram fazer viver os seus ideais”.

    Mas calma. Nem sempre o Grande – o Grande Líder Moedas – lidera com as pessoas. Tem de se ter estatuto para se estar COM o Líder. Até em reuniões que, na verdade, servirão para ele – leia-se, Ele – expor a sua liderança. Por exemplo, Moedas reúne COM o presidente da Câmara Municipal do Porto, mas já reúne OS presidentes das autarquias que integram a Área Metropolitana de Lisboa. Mesmo quando se está na mesma sala do Grande não significa que se esteja ao mesmo nível – que assim conste in saecula saeculorum.


    SEMANA 20/2024

    Das invasões do colonialismo às invasões do doutor Nuno Rebelo de Sousa

    Se os filhos vivos têm de pagar pelas invasões cometidas pelos pais mortos, conforme defende o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, parece-me bastante lógico que os pais vivos possam também pagar por invasões dos filhos vivos. E isso pode ser visto ao nível de uma geração ou de dezenas de gerações.

    Assim, enquanto andarmos então a contabilizar, por invasões desde o século XV pelos nossos antepassados, quanto deveremos pagar ao Brasil, à Angola, a Moçambique e a tantos outros territórios dos quatro cantos do Mundo que os nossos pais (no sentido lato do termo) palmilharam, também não nos devemos esquecer de apurar a quem endereçar as facturas pelas invasões ao nosso território ‘perpetradas’ pelos fenícios, pelos gregos, pelos cartagineses, pelos romanos, pelos visigodos, pelos suevos, pelos mouros, pelos espanhóis (sessenta anos) e até pelos franceses (e até dos ingleses que nos vieram ajudar por causa do Napoleão, e não quiseram ir embora facilmente).

    Já agora, talvez fosse boa ideia incluirmos as invasões das nossas antigas colónias – que tínhamos tomado a outros – pelos espanhóis, pelos ingleses, pelos holandeses, pelos alemães, etc.. Talvez não fosse má ideia pedir-lhes indemnizações agora. Ou, pelo menos, reverter péssimos acordos de paz, como aquele em Haia, no ano de 1661, onde se concordou em compensar com 63 toneladas de ouro a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos pelas mais-valias por eles criadas no Nordeste brasileiro, apesar de os termos derrotado no campo da batalha. Ainda lhe entregámos o Ceilão (Sri Lanka).

    Bem mais fácil, na verdade, será obrigar os pais a pagarem pelas invasões dos filhos. Por exemplo, o Doutor Nuno, vindo do Brasil, invadiu Portugal, dirigiu-se ao Serviço Nacional de Saúde e, com isto, desapareceram perto de quatro milhões de euros. O Doutor Marcelo Rebelo de Sousa deveria indemnizar o país por isto, não acham?


    SEMANA 14/2024

    (Ainda) Rosália Amorim & outras histórias (com acentos graves)

    Se a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) demorou quase dois meses a retirar a referência da Rosália Amorim na sua base de dados, depois desta ‘sair do armário’ e se assumir como uma marketeer, também eu posso, atendendo à minha felídea idade, preguiçar e nada escrever. E assim por isso, assim ficou o nome da Rosália Amorim, para escarmento, aqui pespegado nesta rubrica por três semanas.

    Enfim, agora vai ficar mais uns dias, porque não achei suficientemente apelativo para justificar um título em destaque a façanha dos ‘jornalistas do oráculo’ da RTP, que titularam, no rescaldo do Sporting-Benfica das meias-finais da Taça de Portugal, sobre os titulares das equipas mas com acento no I; mesmo tendo sido agudo. E nem foi uma vez – que sempre daria para conceder o benefício da dúvida de se tratar de um ‘corvacho’ – mas logo duas, e se calhar até foram três para ser como a conta que Deus fez.

    Enfim, também poderia brincar – não gozar, porque este é um senhor muito distinto e respeitável – com o Professor Jorge Miranda que no Público, à força de querer defender o estapafúrdio Acordo Ortográfico que mete o Pacto de Varsóvia ao nível do Pato à Pequim, acaba a escrever heróico com acento à moda antiga. Mas já nem vale a pena porque o nosso colunista Manuel Monteiro, também ali na concorrência, já lhe disse das muito boas, além de aproveitar para contar deliciosas histórias em redor das palavras como a do menino italiano que ‘inventou’ o petaloso.

    De resto, podia sempre gozar com a Filomena Martins, a meteorojornalista – não é só James Joyce que funde palavras, ó Manel – de serviço do Observador que, desde a minha última arranhadela, já escreveu sobre “chuva de lama“, sobre a depressão Nélson que diz ser “a primeira do rosário de tempestades até à Páscoa” passada, sobre mais poeiras e calor, e sobre a “tempestade Olívia” que vai trazer mais uma “enorme massa de poeira que pode chegar à Suécia“. Ou não. E isto já sem incluir os dois sismos, porque se é para mostrar que o Mundo literalmente está em convulsões, não há melhor mesmo do que a Filomena Martins.


    SEMANA 11/2024

    Rosália Amorim, uma potencial grevista na Ernst & Young?

    Desde que a minha taça com Royal Canin esteja bem apetrechada, sou solidário com todos, incluindo jornalistas em greve, mesmo nos jornais que pensam que uma greve deve servir “para mostrar à sociedade a importância de uma comunicação social livre, actuante e sustentável” (direcção do Público dixit), como se a sociedade não o soubesse, e não para protestar contra a existência de empresários ‘pato bravo’ como aqueles que orquestram despedimentos canalhas, do qual o último exemplo (mas não derradeiro) sucedeu ainda ontem à direcção editorial e a vários jornalistas do DN, mas este episódio lamentável foi já visto, desta vez, com ‘mais classe’ (e sem alarido), porque uma coisa é um despedimento feito pelo ‘chefe do galinheiro’, outra é se a coisa se congemina por um papalvo fundo das Bahamas.

    Mas, verdadeiramente, mais do que saber qual o grau de adesão à greve dos jornalistas ou os efeitos da dita (que vai ser nenhum, excepção ao alívio das consciências, um alívio semelhante a uma mijadela na caixa de areia), a minha felina curiosidade centra-se apenas no comportamento de uma pessoa: será que a actual directora de marketing e marcas da Ernst & Young (EY), Rosália Amorim – que foi orgulhosamente enterrando o DN, quando directora, com as suas parcerias comerciais e fretes que tais -, também vai hoje fazer greve?

    É certo que ela não consta da lista dos ‘238 magníficos jornalistas’ que decidiram mostrar à História, através de uma carta aberta fechada aos outros cinco mil camaradas, que a profissão está ‘sem papel’, mas a nossa magnífica Rosália Amorim mantém incólumes, por falta de vergonha, todos os seus direitos, isto é, a sua bela carteira profissional de jornalista número 1788, porque ainda está activa na CCPJ. Activíssima ainda hoje (pelo menos até às 12h19), 28 esplêndidos dias após ter assumido que anda agora a vender marcas na EY, contratada que foi pela sua excelsa experiência em funções similares no DN e TSF.


    SEMANA 10/2024

    Meteorologia & eu, o gato de Pavlov

    Um felídeo não costuma ser tão estúpido como um canídeo, mas confesso que perante um qualquer anúncio de banal ‘anomalia meteorológica’, que pode ser só sol ou chuva, funciona em mim como a sineta nos cães do russo Ivan Pavlov.

    Quer dizer, não me ponho a salivar, mas vou a correr ao site do Observador, em busca dos textos da Filomena Martins. Nunca falha!

    Por isso, quando hoje li um texto no Público de uns três mil caracteres da Marta Leite Ferreira – que vem da escola do Observador – a anunciar que o “tempo vai piorar nas próximas horas“, vi-me impelido, por forças que jamais controlarei, a ir em busca das previsões da directora-adjunta do Observador. Nunca desilude! Encontrei aquilo que nunca se esconde: nesta segunda-feira houvera escrito meteorológico.

    Êxtase absoluto. Tudo ali é irresistível. Empolgante. Anteontem, Filomena Martins até evocou (ou invocou, já nem sei) tempos e terras de vikings, fazendo-nos, logo no lead, vislumbrar um “bloqueio na Escandinávia [que] abre um corredor para as tempestades chegarem à Península Ibérica”.

    Calma! – ou melhor, não vai haver calma atmosférica alguma. Isto é só a pele. A ‘carnicha’ encontra-se no meio do artigo, aí se revelando que ficará aberto “um enorme e largo corredor para entrarem várias frentes chuvosas e frias pela Península Ibérica adentro: a maior, que se deve transformar numa tempestade de forte impacto, [e que] chega esta quinta, [e] mantém-se sexta, e arrasta mais uma massa de ar polar frio, cujos efeitos se prolongam até ao fim de semana eleitoral”.

    a long boat with two people in it on a lake

    Vai ser uma semana de montanha russa meteorológica. Perdão: repito, para meter aspas, porque a frase anterior é da autoria de Filomena Martins e não quero ser acusado de plágio: “Vai ser uma semana de montanha russa meteorológica.” Até porque parece que o tal corredor vai ficar aberto – “quer na horizontal (para as frentes vindas do lado da Gronelândia, com massas de ar polar), quer até quase na vertical (para as frentes que se formam já junto às ilhas britânicas)” –, assim “permitindo [a negrito no original] comboios de tempestades que entram de forma contínua na Península, umas vezes muito juntas, outras a espaços“.

    Eu acho que isto é mais um carrossel do que uma montanha russa, mas, enfim, deixemos a Filomena Martins meter mais água.


    SEMANA 09/2024

    O farnel dos lagartos deve ter pouco tabaco

    Foi jogo emocionante, o de ontem, no Estádio de Alvalade, onde se defrontou o Sporting e o Benfica, mas mais interessante, por certo, teria sido assistir à cobertura realizada pelos repórteres do jornal Record, que agora têm o Cristiano Ronaldo como o ‘patrão’ principal, com 30% da Medialivre.

    Oficialmente, houve três golos: ao minuto 9 marcou o sportinguista Pedro Gonçalves, depois ao minuto 54 o sportinguista Viktor Gyökeres e, por fim, ao minuto 68 o benfiquista Fredrik Aursnes. De permeio, houve ainda um golo anulado ao benfiquista Di Maria ao minuto 71 (que daria o 2-2) e outro ao sportinguista Nuno Santos ao terceiro minuto de compensação (que daria o 3-1).

    Porém, talvez embalados pelo farnel que, por certo, o Sporting também ofertará aos jornalistas – tal como sucede na Varanda da Luz –, mas com ingredientes especiais, os jornalistas do Record foram ‘relatando’ um ‘desenrolar do marcador’ muito peculiar.

    Ao minuto 55, estava afinal 4-0 para o Sporting.

    Ao minuto 68, o Record fez com que o o golo do Aursnes valesse por dois, colocando um empate na ‘coisa’, porque, para além do golo do norueguês ter valido por dois, acabou também por ‘sacar’ dois golos aos quatro do Sporting. Portanto, 2-2.

    Mas não satisfeito com um empate, os jornalistas concederam no minuto 74, um terceiro golo ao Benfica, colocando o marcador em 2-3 favorável ao Benfica.

    Pena esta vantagem benfiquista ter sido ‘noite de pouca dura’, porque, ao fim de quatro minutitos, houve alguém, talvez o VAR, que retirou dois golos ao Benfica, estabelecendo o resultado final, coincidente com o real.

    Em todo o caso, atenção: não vai haver, afinal, segundo o Record, é mentira que haja um segundo jogo marcado na Luz no início de Abril. Na verdade, ainda sob a influência do ‘farnel dos lagartos’, os jornalistas do Record indicaram que, depois do 2-1 do Sporting, o resultado agregado (das duas mãos) ficou já estabelecido: 5-0 a favor do Benfica.


    A dorsal anticiclónica do Observador

    Somos, por aqui, adeptos incondicionais da jornalista Filomena Martins que, sendo director-adjunta do Observador, desunha-se em fazer jus ao título: observa meticulosamente o tempo, neste caso não numa perspectiva filosófica, mas somente meteorológica, presenteando-nos sempre um Armagedão à primeira lufada ou ao segundo chovisco.

    Em todo o caso, confessamos a nossa desilusão sobre o texto de hoje em que ela anuncia, para a próxima sexta-feira, a denominada Primavera meteorológica, pois nada nos mostra a jornalista-meteorologista mais famosa do país e os seus terríveis rios atmosféricos, nem as tenebrosas ciclogéneses explosivas nem os temíveis ciclones bomba nem os tétricos comboios de tempestades. Só frio, chuva, três massas de ar polar e uma dorsal anticiclónica. Muito pouco. Assim, nunca mais chega o Fim do Mundo!


    SEMANA 08/2024

    Testículos & pénis

    O Correio da Manhã (CM) perde, com este nosso texto, o monopólio de meter genitálias em títulos, mas não poderíamos perder a oportunidade de felicitar a sorte danada dos editores deste jornal de referência (e o mais lido do país) por o método de coacção de um auxiliar de acção médica do Hospital Garcia de Orta consistir em meter a mão numa componente da genitália masculina da vítima de dimensão mais curta – mais curta no sentido do número de letras.

    De facto, por agora, sabíamos, através do nosso CM, que ataques às genitálias masculinas se faziam, por regra, segurando o saco escrotal e apertando as gónadas. Além da dor, já deu títulos bombásticos em cenários nada agradáveis só de imaginar.

    Por exemplo, em 29 de Junho de 2017, “Morre depois da nora lhe esmagar os testículos com as mãos”.

    Também em 28 de Abril de 2016, “Evita morte ao apertar testículos de agressor”.

    Ou, mais recentemente, em 26 de Abril de 2023, “Mulher arranca testículos de vizinho que atacou filha em Angola

    Na verdade, testículos em títulos é um must, garantia de voyeurismo baboso. Como não ler a notícia “Doente internado no Hospital Amadora-Sintra arranca o próprio testículo”? Ou esta: “Homem atira-se à mulher errada e cortam-lhe os testículos com faca enferrujada”? Ou mais esta ainda: “Arranca testículo do ‘ex’ com os dentes por ter negado sexo a três”?

    Mas não há bela sem senão. Jornalisticamente falando, os testículos têm um problema: são grandes demais, ocupam um grande volume num título. São 10 letrinhas monstruosas, não dá jeito nenhum em determinadas situações.

    Por exemplo, imaginem se o tal auxiliar do Hospital Garcia de Orta tivesse apertado os testículos a um idoso para lhe “sacar o código do cartão multibanco”, e comprar depois “bens de elevado valor, como relógios, TV, perfumes, e outros como azeite”. Não cabia. Por sorte, apertou-lhe o pénis, que tem apenas cinco letrinhas, fica pela metade. Cabe na perfeição no desenho da página. Concluindo, apertar um pénis em vez dos testículos é não apenas menos doloroso como muito mais cómodo para a difícil arte de titular um jornal. É um dois em um.


    Ribeiro de bocas, em enxurrada

    Dia 19 de Fevereiro

    Descobrimos ontem para que serve meter uma dezena de candidatos de pequenos partidos numa ‘linha’ a fazer de conta que a televisão pública é muito democrática e dá voz a todos.

    Aquilo serve para, como nas feiras, se mandar uns tirinhos nos bonecos. Sobretudo se se é jornalista. E sobretudo se se é um jornalista do quilate do Luís Ribeiro, que já foi apontado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social de ser um ‘jornalista comercial’ por fazer trabalhos de prestação de serviços a empresas externas (parceiros) numa revista (Visão) que integra uma empresa unipessoal de 10 mil euros que tem 10 milhões de euros de dívida ao Estado. Divertiu-se muito ontem, o Ribeiro, em enxurrada de bocas no X. Hoje, divirto-me.


    ‘todOs’ é menor que ‘todEs’

    Afinal, para o jornal Público, o ‘todes’ não é um símbolo de linguagem inclusiva, mas sim um termo para unir, colocando em pé de igualdade, os partidos com representação parlamentar com aqueles que, coitados, ainda não têm (e alguns nunca terão, pelo andar democrático da carruagem) assento parlamentar.

    Assim, está a jornalista Sofia Neves, hoje no Público, a ser rigorosíssima quando nos garante que “todOs os partidos defendem não existir uma só solução para a crise da habitação”, e depois acaba a listar somente as propostas da Aliança Democrática (PSD, CDS e PPM), Bloco de Esquerda, Chega, Iniciativa Liberal, Livre, PAN, Partido Comunista Português (sem PEV, apesar de coligados) e Partido Socialista.

    Já se tivesse escrito que “todEs os partidos defendem não existir uma só solução para a crise da habitação”, então aí teria mais trabalho, porque se fossem mesmo ‘todEs’ (e não apenas ‘todos’) teria ela que listar as propostas não apenas do grupo do ‘todOs’ mas também as propostas do PCTP/MRPP, do Alternativa Democrática Nacional (ADN), do Volt Portugal, do Juntos pelo Povo (JPP), do Partido Ecologista Os Verdes (esquecido na CDU), do Ergue-te, do Nós, Cidadãos, do Reagir Incluir Reciclar (RIR), da Nova Direita, do Alternativa 21 (Partido da Terra e Aliança) e do Partido Trabalhista Português (PTP).

    Donde se conclui que se mostra muito conveniente, a partir de agora, usar o ‘todOs’ mesmo quando não se trata da ‘totalidade’ (e vejam que termina com E) sem se ser acusado de falta de rigor, porque ‘todOs’ é, assim nos mostra o Público, inferior a ‘todES’. Pode sempre dizer-se que há uma discriminação, mas isso, em campanha para eleições democráticas, e quando são os órgãos de comunicação social a fazer, não conta.


    SEMANA 07/2024

    Dia 17 de Fevereiro

    Abrunhosa, o Senhor da Palavra, e o triste fim de um plagiador

    Esqueçam D. Dinis, o Rei Poeta.

    Reneguem Fernão de Oliveira, João de Barros, Pêro Magalhães de Gândavo e Duarte Nunes de Leão, Príncipes da Gramática.

    Olvidem Luís Vaz de Camões, o Vate de ‘Os Lusiédas’ (versão Porto Canal).

    Omitam Rafael Bluteau, na pena, e Padre António Vieira, na oratória, Imperadores da Língua.

    Menoscambem Camilo, Eça, Saramago e toda a catrefa de Escribas da Lusitânia.

    Posterguem Pedro José da Fonseca, Antonio de Moraes e Antonio Houaiss, Imperadores dos nossos dicionários.

    Não! Nanja. Nenhum destes merece o panteão nem sequer sob a forma de cenotáfio. Todas e quaisquer palavras e fonemas a um só Ente as devemos. Por exemplo:

    “Vamos” – foi ele que inventou.

    “Fazer” – também.

    “O” – com e sem som de U, idem.

    “Que” – de igual modo.

    “Ainda” – claro.

    ”Não” – sim, foi ele.

    ”Foi” – obviamente, foi ele.

    ”Feito” – por ele, e com grande precisão.

    Claro está que este Singular Ser só se deu em ajuntar estas palavras (quer dizer, as que coloquei entre aspas), nesta concreta e sábia sequência, no ano da graça de 2010 (que, no futuro, será conhecido, por bula Inter gravíssimas, como 50 Anno Abrunhosi), através da letra de uma música cantada à cana rachada, pelo que faz todo o sentido o Bloco de Esquerda ser agora condenado por blasfémia não apenas por usar algumas (que digo!, todas) mas sobretudo por deturpar as Palavras do Senhor.

    O filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire atreveu-se a usar em 1982 as palavras do título de uma música de Pedro Abrunhosa de 2010. Sabem o que lhe sucedeu?

    ”Fazer o que nunca foi feito”? Ó Mariana Mortágua! Que foste tu e o teu partido fazer. Atiçaste as Fúrias! Ainda por cima uma blasfémia em que, com a mudança no tempo verbal, especificamente do pretérito perfeito composto do indicativo para o pretérito perfeito simples do indicativo, alteras o foco temporal da frase, indicas que o Senhor (Pedro Abrunhosa) foi impreciso na temporalidade do acto jamais feito.

    Tu já viste no que te meteste? Sabes as consequências?

    Olha, Mariana Mortágua, o filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire atreveu-se em 1982, num texto sobre política educativa, a usar as exactas palavras que o Pedro Abrunhosa deu ao título da sua música em 2010 (“Fazer o que ainda não foi feito”), e sabes o que lhe aconteceu? Está morto! E desde 1997, uns 13 anos antes da música do Pedro Abrunhosa. Assim, incréus, se alcança o poder do Senhor.

    E consta que outros intentaram, nos anos 80 do século passado, escrever também “fazer o que ainda não foi feito” no número 10 da revista Educação em Debate, sem autorização do Senhor Pedro Abrunhosa, e hoje, 17 de Fevereiro de 2024, se mortos não estão, de muito boa saúde não estarão.


    Dia 13 de Fevereiro de 2024

    Ruir ou não roer, that is the question

    Tem mais de quatro séculos o famoso solilóquio de Hamlet, reflectindo sobre a natureza da existência e os dilemas perante o sofrimento da vida e o seu fim no vazio da morte. “To be, or not to be, that is the question“.

    De facto, os ingleses (ou anglófonos) devem ser mais dados do que nós, latinos, às perplexidades, porquanto nunca sabem bem quando são ou quando estão. Mas não pensem que os portugueses não têm também suas dubiedades, nem que seja no acto da escrita.

    Por exemplo, no Correio da Manhã, ou pelo menos o jornalista Rui Pando Gomes, quando se decidiu escrever sobre a final do Super Bowl, teve um dilema: “ruir, ou não roer, that is the question“. De facto, o que poderia acontecer às unhas da Taylor Swift enquanto via o seu namorado, Travis Kelce, tight end do Kansas City Chiefs, bater os San Francisco 49ers? Serem roídas ou ruírem-se?

    Obviamente, o resultado literal de roer unhas – julgo que tal acto implica necessariamente o uso de dentes, pelo que será redundante acrescentar “com os dentes” – é ficar-se com as “unhas roídas”, mas não menos verdade sucede, por extensão de sentido, que roídas em demasia, as unhas podem ficar em perigo de ruir, o que, com algum esforço e vontade, pode dar origem a “unhas ruídas”.

    Portanto, perante o dilema “unhas ruídas, ou unhas roídas, that’s the question“, o jornalista e os editores do Correio da Manhã acharam por bem decidir a favor das “unhas ruídas”. Opção legítima, claro.


    SEMANA 06/2024

    Dia 10 de Fevereiro de 2024

    Isso não se faz! Então não é que hoje, bem no topo da primeira página, logo abaixo do seu nome, e no lado esquerdo de uma menina de lingerie vermelha, o Correio da Manhã (CM) titula: “Comboio Alfa da CP usado em filme pornográfico“, levando, imagino, uma percentagem superior a 0% dos leitores (reparem no nosso extremo rigor, jamais nos podem chamar de exagerados) a correr à página 29, nem sequer reparando, à primeira vista, que a cabeça do Ricardo Salgado (que dizem não estar já ‘bom’ da cabeça) quase tapa o ‘porn’ do pornográfico.

    E depois, olhem: ‘ejaculação precoce’. Afinal, não foi nada daquilo que, naquelas fracções de segundo pela busca sôfrega da página 29, pensariam as pecaminosas e babosas mentes perversas. Na verdade, aquilo que sucedeu foi que “um filme pornográfico com cerca de uma hora tem partes da sua ação filmada dentro da carruagem de comboios da CP”, mas, desgraça, “as cenas mais ‘hardcore’ não se passam dentro da carruagem”. Só temos “a protagonista da película filmada a percorrer [a] composição de um Alfa Pendular”.

    Ora bolas! Pólvora seca. Nadinha mais! Apenas uma senhora vestida de vermelho a passear-se na carruagem, e ao contrário da outra menina que surge na capa do CM (já agora, é a Lusinha Oliveira) nem sequer mostra qualquer lingerie vermelha. Ou de outra cor. Está sempre completamente vestida.

    Em todo o caso, o autor desta ‘linda peça’ de non sense noticioso, o jornalista Miguel Alexandre Ganhão – editor do CM e membro da Comissão da Carteira Profissional do Jornalista – ainda escreve que “não deixa de ser curioso que a empresa pública apareça associada a este tipo de obra cinematográfica”.

    Aqui, já estamos a imaginar a ilimitada possibilidade de títulos ‘bombásticos’ que este estilo de jornalismo proporciona, se surgirem imagens (não autorizadas, presume-se) de protagonistas de “obra cinematográfica” do estilo hardcore a passearem por locais ou zonas públicas ou privadas antes de, em local mais recatado, mostrarem ‘acção mais concreta’. Eis alguns exemplos:

    Torre Eiffel usada em filme pornográfico

    Mercado da Ribeira usado em filme pornográfico

    Marquês de Pombal usado em filme pornográfico

    Correio da Manhã usado em filme pornográfico

    Bom, se calhar estamos a exagerar. No Correio da Manhã seria impossível. No Correio da Manhã, jamais: é um ‘santificado’ jornal, onde nunca nos passaria pela cabeça associar a ‘badalhoquices’, mesmo se de forma involuntária, não é? Claro que não, caramba! Mesmo que haja por aí imagens que metem classificados com a marca CM, onde surge a divulgar os seus atributos uma “mulata meiga”, uma “bomboca sensual”, uma “loura fogosa” ou uma “gostosa quentinha”. Tudo isto só pode ser uma montagem! E o site no canto superior direito destes classificados (que se calhar o Polígrafo até concluirá ser falso) nem sequer, às tantas, funciona! Tudo fake.


    Dia 6 de Fevereiro de 2024

    Ontem, foi um dia feliz para a imprensa portuguesa com o justo e desejado anúncio da promoção de Rosália Amorim para directora de marketing e comunicação da Ernst & Young (EY), uma consultora que muito trabalhinho tem feito para entidades públicas: contamos no Portal Base 356 contratos de 19,7 milhões de euros.

    Somos apreciadores das qualidades, inatas, de Rosália Amorim na promoção de marcas. Viu-se isso enquanto esteve como directora do Dinheiro Vivo, do Diário de Notícias e na TSF, e também na sua breve passagem na administração da Global Media.

    Na verdade, promover marcas foi o que ela melhor fez nestes cargos de direcção editorial, sobretudo através da sua presença na concretização de parcerias comerciais, mas também na subtileza de algumas notícias ou entrevistas, de tal sorte que nem sempre se conseguia perceber quais eram as que tinham sido pagas ou não. Só não conseguiu promover bem uma marca – ou melhor, conseguiu promovê-la, mas mal: os órgãos de comunicação social da Global Media, e por acrescento o Jornalismo. Aliás, não sou eu, Serafim, que o diz: ainda em Setembro passado, o Conselho de Redacção da TSF se opôs à sua nomeação para a direcção editorial desta rádio, dizendo, preto no branco (como as cores do meu pêlo), que “levanta[va] legítimas dúvidas quanto à sua real capacidade de manutenção de uma política editorial independente”. E ela, mesmo assim, aceitou.

    Por isso, embora haja sempre o ‘risco’ de um qualquer canal televisivo a contratar como ‘comentarista isentíssima’, a sua ida para a EY como directora de marketing e comunicação de uma consultora, além de um justo prémio para uma verdadeira marketeer que vivia no sufoco de ter de parecer jornalista, acaba por ser uma ‘clarificação’ de funções, e sobretudo ‘areja’ o ambiente.

    Ah, e já agora, até para que a notícia do Jornal Económico fique correcta (identifica Rosália Amorim como “ex-jornalista), convém que ela suspenda mesmo a carteira na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista: às 16h18 de hoje ainda estava activa. Não se esqueça, que já vai tarde.


    Dia 5 de Fevereiro de 2024

    De repente, todos estão preocupados com o estado da imprensa, sobre a crise da imprensa, os males da imprensa, e mais não sei o quê da imprensa. E assim sendo, por que não haveria o Centro de Arbitragem Administrativa de encaixar numa sua conferência – dedicada à política da Justiça e ao mediatismo dos casos judiciais – um tempinho para contribuir para uma reposta à magna questão: “Para onde vai o jornalismo?

    Ora, poupem o vosso tempo. Não é preciso ir assistir, porque o programa dá já a resposta, quer no formato, quer nos intervenientes: em meia hora, “Para onde vai o jornalismo” é, basicamente, uma entrevista (como é apresentado) feita por André Macedo a Nuno Santos.

    Sucede que André Macedo – que andou a cirandar, não se sabe por que méritos, pelas direcções do Diário de Notícias e da própria RTP, entre outros lugares de topo em redacções – já nem sequer é jornalista, sendo consultor de empresas de comunicação (sobretudo de apetecíveis farmacêuticas que se fartam de fazer parcerias comerciais), apesar de quando em vez surgir a comentar assuntos na imprensa (de certeza absoluta de forma isentíssima). Eis o futuro do jornalismo: alguém que fez pela vida aproveitando-se do jornalismo, acaba numa empresa de consultadoria de imprensa a entrevistar um jornalista, neste caso Nuno Santos, director da CNN Portugal.

    André Macedo, no canto inferior direito de um painel de comentadores da CNN Portugal, onde Nuno Santos é director editorial.

    Quer dizer: Nuno Santos é, na verdade, um jornalista, mas desde 2011 só ‘de vez em quando’. Na última década, tem sido mais executivo e produtor de conteúdos do que propriamente jornalista – e isso também mostra “para onde vai o jornalismo”.

    Esteve na África do Sul entre 2013 e 2016 como director de conteúdos de um conglomerado de media – onde “a sua paixão e os seus conhecimentos sobre o mundo das telenovelas e do futebol” foram muito elogiados –  e depois seguiu para Espanha para fazer as mesmas tarefas por mais uns anos. Está agora, depois de ter ido montar o Canal 11 da Federação Portuguesa de Futebol e de ser director-geral da TVI (um cargo não-jornalístico), como director editorial da CNN Portugal. Tanto é assim que só muito recentemente Nuno Santos recuperou a sua carteira profissional de jornalista, tendo agora uma numeração (7185) próxima dos ex-estagiários.

    Portanto, sem dúvida, muito oportuno e esclarecedor este evento do Centro de Arbitragem Administrativa: André Macedo e Nuno Santos foram bem escolhidos, embora provavelmente fosse mais adequado que a ‘rubrica’ se intitulasse: “Olhem para onde levámos o jornalismo”.


    SEMANA 05/2024

    Dia 3 de Fevereiro de 2024

    Dizem-me que em antanho, quer dizer em tempos passados, havia a chuva, o sol, o Anthímio de Azevedo, as nuvens, mais as altas e baixas pressões, mais o Costa Alves, mais o anticiclone dos Açores, mais as tempestades e furacões, mais o Costa Malheiro, mais os aguaceiros e as geadas, mais a Sofia Cerveira para algegrar as vistas nos anos 90, e antes a Teresa Abrantes, mais ondulações e mar alterado, mais o José Figueiras, e mais relâmpagos e trovoadas, e mais um sem número de simples fenómenos meteorológicos, que, no passado, nos orientavam, com muita probabilidade de erro, sobre se se deveria levar ou não chapéu de chuva, ou mais ou menos agasalho, também consoante os doutos conselhos das mãezinhas.

    Mas agora, que há todos os satélite e computadores, potentíssimos, já não temos apenas chuva ou sol, vento ou acalmia. Agora temos também a Filomena Martins, directora-adjunta do Observador que é, sem dúvida, a grande jornalista especializada em assuntos meteorológicos, na variante “rio atmosférico”.

    silhouette of trees and purple lightning

    De facto, não sei como ainda sobrevivemos a este ‘novi-clima’ com tanto “rio atmosférico” anunciado pela ‘meteojornalista’ Filomena Martins. Ou, na verdade, não sei como sobreviver à própria Filomena Martins.

    No seu currículo noticioso mais recente, encontro seis notícias a titular o famigerado “rio atmosférico”, sempre num estilo mui peculiar: “Portugal vai ser regado por um rio atmosférico. Vem aí muita chuva já esta terça-feira e deve ficar até meio da próxima semana” (17/10/2022); “Oscar: vem aí uma tempestade rara para esta altura do ano. E pode trazer um ‘rio atmosférico’ na quarta-feira” (4/6/2023); “Uma frente Atlântica, duas tempestades e a hipótese de um rio atmosférico. A chuva volta esta sexta-feira, 13” (11/10/2023); “Rio atmosférico atravessa centro do país. Avisos da proteção civil para chuva e vento: sete distritos sob aviso laranja” (25/10/2023); “Quinta-feira chega um rio atmosférico. E a partir de sexta-feira, dezembro entra gelado” (29/10/2023); “Vem aí mais um rio atmosférico esta quinta (há três distritos sob aviso laranja e cinco a amarelo). Mas o frio vai embora” (5/12/2023); “Um rio atmosférico no final da semana. E um Carnaval molhado e já com frio” (2/2/2024).

    E não são apenas os “rios atmosféricos” que a ‘nossa’ Filomena Martins nos concede para nos assustar.Há tudo, menos uns aguaceiros, ou um frio de rachar; já nem temos direito a um calor de ananases, nem tão-pouco a uma saraivada de partir janelas. Nos textos da Filomena Martins, temos sim, além dos rios atmosféricos, as ciclogéneses explosivas, os ciclones bomba e até os comboios de tempestades. Tudo pavoroso. Um Armagedom.

    painting of man walking down a road holding umbrella

    Mudemos, portanto, a protectora do mau tempo, a Santa Bárbara, certamente incapaz de nos precaver contras os malefícios de tamanhas mudanças meteorológicas. Elejamos, em segura alternativa, a Santa Filomena, e oremos a preceito:

    Ó Santa Filomena, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos rios atmosféricos, fazei com que as ciclogéneses explosivas não me atinjam, os ciclones bomba não me assustem e o comboio de tempestades não me abalem a coragem e a bravura“.


    Dia 1 de Fevereiro de 2024

    Os números! Ai os números, esses malvados que interagem com uma coisa chamada Matemática que serve apenas para infernizar a vida de muitos jovens que, fugindo deles (números) e dela (Matemática), escolhem Letras, e em seguida, em estudos superiores (upa! upa!), acabam por se sentar em Comunicação Social, e daí a nada estão a escrever em jornais onde o 8 e o 80, para eles, são iguais. E quem diz 8 e 80, também pode dizer um e mil.

    Ora, é exactamente um erro de 1.000 que, em catadupa, a nossa imprensa cometeu quando ontem quis falar das exportações de canábis medicinal. Ainda no passado mês de Outubro, o Jornal de Notícias tinha falado sobre o tema, com dados do Infarmed, onde se destacou “os 9271 quilos exportados no ano passado [2022]”, acrescentando-se ainda que os números mostravam não haver “sinais de abrandamento”.

    Ora, a nossa Agência Lusa decidiu actualizar a notícia, com dados finais de 2023, e vai daí, pimba: escolheu alguém que mete pouco tabaco na ‘coisa’, e saiu-lhe porcaria, transformando Portugal numa espécie de Afeganistão de outros tempos. Com efeito, o jornalista da Lusa, certamente por uma névoa nos seus neurónios, não achou estranho que, de repente, se andasse a produzir em Portugal 26.000 toneladas de canábis medicinal. Atenção: notem: 26.000 toneladas. Aqui por casa não se fuma, mas 26.000 toneladas são 26.000.000 quilogramas (26 milhões de quilos) ou 26.000.000.000 gramas (26 mil milhões de gramas). Isto dava para muitas trips, presumo.

    Presumo, não: vamos a contas, mas sem a ajuda do jornalista da Lusa. Como um douto acórdão ensina, um ‘cigarrinho’ feito a preceito leva 0,5 gramas; assim, a produção cá do burgo daria para 52 mil milhões de ganzas, mais de seis ganzas por cada alminha desta Terra. E ainda dá para meia, compartilhada com um parceiro, para se ser preciso. E isto, hélas, incluindo crianças e velhos.

    Nenhuma alminha – leia-se, editor da Lusa – reparou neste disparate, e pior: ao belo estilo do churnalism vai daí e acaba tudo publicado, sem ninguém mais reparar, em tudo o que é jornal da praça (Diário de Notícias, Observador, Expresso, Eco, etc.) como se fosse verdade que Portugal exportou 26.000 toneladas, quando, na verdade, foram apenas 26 toneladas (ou seja, 26.000 quilogramas). Mais tabaco, por favor!


    Dia 31 de Janeiro de 2024

    Se achavam que a Nelma Serpa Pinto, a ‘cara bonita’ da SIC Notícias, atingira o zénite na famosa entrevista em que encalacrou Pedro Nuno Santos, desenganem-se. Muitos e elevados voos se lhe auguram. Ou agoiram, acho eu.

    Um deles foi ontem, como moderadora de um ‘estranho’ debate, em prime time da SIC Notícias, sobre longevidade, que é tema agora mui querido da estação e do jornal (Expresso) da família Balsemão. Nelma brilhou como sempre, colocando em discussão a situação dos pobres velhos sem médico de família, daqueles que caíram que nem tordos no início deste Inverno, os lares inumanos e tantos outros temas candentes da Terceira Idade… Nah! Nanja. Foi um debate fofinho. Tinha de ser um debate fofinho. Até porque àquela hora ainda havia crianças levantadas.

    Avise-se. Aquele debate em tom fofinho de prime time na SIC Notícias (com uma jornalista em espaço informativo), ou ainda as dezenas de artigos sobre longevidade no Expresso nos últimos tempos, nada tem a ver com a existência de uns desinteressados ‘parceiros de projecto’ que dão pelo nome de Novartis (farmacêutica) e Fidelidade (seguradora).

    Certamente, que sem este ‘apoiozito’ (misturado com uns cobres) teríamos visto à mesma a Nelma a moderar aquele debate fofinho com aquelas sumidades, onde se destacavam a ex-ministra da Saúde e candidata a deputada pelo PS, mais um coordenador de um projecto governamental, mais uma demógrafa com ligações à DGS.

    Acho que daqui a umas semanitas, a Nelma sobe ainda mais alto, e irá moderar mais um debate na SIC Notícias, sempre em prime time, e em espaço informativo, com a bênção do ‘mano’ Costa (distinto jornalista), desta vez sobre a pesca do bacalhau… com o apoio da Riberalves, da Oliveira da Serra, do Zêzerovo, da Cooperativa Agrícola de Alhos Vedros e da Casa Ermelinda Freitas…


    Dia 30 de Janeiro de 2024

    Dizem-me que o presidente do Sindicato dos Jornalistas escreve n’A Bola, mas não consegui apurar se se dedica mais a desportos de pés ou de mãos. Pouco interessa. O mais relevante é dizer que está em crise. Neste caso, “o mais relevante é dizer que está em crise” tem três leituras possíveis: pode-se aplicar ao presidente do Sindicato dos Jornalistas, ao próprio Sindicato (por metonímia) e ao jornal A Bola. E todas são verdadeiras.

    Já quanto ao sentido de um comunicado de imprensa do Sindicato dos Jornalistas sobre a violência contra estes profissionais, hoje divulgado, onde se fala de um deles que foi “agarrado pelas pernas e pelos braços”, para se ser claro, será obrigatório dizer que tamanha falta de clareza (se involuntária) se deveu ao facto de ter sido escrito com os pés. Senão, atendamos à seguinte frase desta ‘peça’:

    A agressão a um jornalista do ‘Expresso’, que foi retirado à força, agarrado pelas pernas e pelos braços, de uma conferência na Universidade Católica, em Lisboa, com a participação de André Ventura, e a agressão a uma equipa de reportagem do Porto Canal, à porta de uma fábrica em São João da Madeira, são os dois exemplos mais recentes das ameaças físicas à segurança dos profissionais da Comunicação Social, comunicadas no âmbito do programa sobre a segurança dos jornalistas da OSCE.

    De facto, há aqui duas hipóteses sobre a participação de André Ventura, a saber:

    1) “A agressão a um jornalista do ‘Expresso’, que foi retirado à força, agarrado pelas pernas e pelos braços, de uma conferência na Universidade Católica, em Lisboa, com a participação de André Ventura […]”

    2) ou simplesmente “[n]uma conferência na Universidade Católica, em Lisboa, com a participação de André Ventura […]”, onde, causado por outras pessoas, entre as quais um militante da Iniciativa Liberal, ocorreu “a agressão a um jornalista do ‘Expresso’, que foi retirado à força, agarrado pelas pernas e pelos braços […]”

    No primeiro caso, o André Ventura é um cúmplice.

    No segundo caso, o André Ventura é um azarado.

    E o jornalismo, assim escrito, é um desastre, independentemente de o visado ser o dono da malograda Acácia, ainda mais quando sai da pena do Sindicato dos Jornalistas, que deveria dar o exemplo de rigor, de clareza, de objectividade e de isenção. O jornalista que escreveu este comunicado merecia, metaforicamente falando, ser “agarrado pelas pernas e pelos braços” e arrastado para longe. Com doçura, claro.


    Dia 29 de Janeiro de 2024

    Uma simpatia, a Cristina Freitas. Empática também. Parece que esteve para ser obstetra e depois veterinária. Acabou jornalista, na SIC Porto, com a carteira profissional 5393, predicados suficientes para hoje estar a ser mestre-de-cerimónias do Encontro Fora da Caixa, um evento que serve para a Caixa Geral de Depósitos também ‘financiar’ de forma completamente descomprometida a nossa independente imprensa. Bem esteve, por isso, a nossa empática e simpática Cristina Freitas quando, ao chamar Paulo Moita de Macedo, o CEO da benemérita CGD, vislumbrou uma plateia indiferente e lhe deu, pois bem, um raspanete a preceito: “uma salva de palmas, por favor!” É assim mesmo. A Imprensa e o Jornalismo nasceram para isto: para bater palmas a quem merece!


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  • No centenário de Franco Basaglia

    No centenário de Franco Basaglia


    Celebram-se em 2024 os cem anos do nascimento, em Veneza, do famoso psiquiatra (ou, como prefere dizer a generalidade dos actuais cultores da área, “anti-psiquiatra”), filósofo e revolucionário italiano Franco Basaglia, a quem, segundo Norberto Bobbio, se ficou a dever a maior reforma realizada no século XX em Itália: a do encerramento dos hospitais psiquiátricos (na altura, com cerca de cem mil pessoas internadas), através da aprovação da Lei n.º 180, de 13 de Maio de 1978 (a Lei Basaglia), depois das experiências por ele levadas colectivamente a cabo em Gorizia e em Trieste, nos anos sessenta e setenta do século passado, com muitos jovens, estudantes e médicos, vindos das mais diversas partes do Mundo.

    Inscrição no muro do ex-manicómio de Trieste.

    Depois de uma “marcante” viagem por três cidades do Brasil, em 1978/1979, Basaglia viria a deixar o seu testamento intelectual nas Conferenze brasiliane (reunidas em obra organizada e publicada pela sua mulher, Franca Basaglia Ongaro, e por Maria Grazia Giannichedda).

    Se o primeiro contacto que tive com o nome de Basaglia foi no ano seguinte ao da sua morte (ocorrida em Agosto de 1980, aos 56 anos), quando na Itália por todo o lado se ouviam ainda as discussões acerca do problema do encerramento dos hospitais psiquiátricos, a evocação da sua memória tem aqui dois propósitos: o de dar a conhecer um extraordinário trabalho jornalístico, da autoria das jornalistas italianas Ludovica Jona e Elisa Storace, que começou a ser divulgado ao público, pelo jornal Corriere della Sera, no passado dia 8 de Março[1], bem como o de dar também a conhecer (sobretudo àqueles que alimentem sonhos de transformação social) o método (simultaneamente revolucionário, humano e eficaz) de Franco Basaglia.

    Um dos hospitais visitados por Franco Basaglia no Brasil. Foto: DR

    Num dos momentos mais decisivos da sua revolução, quando Basaglia tinha já aplicado as suas ideias ao monumental manicómio de Trieste, conseguiu-se, a dada altura, que o saxofonista Ornette Coleman viesse à cidade, para aí dar um concerto ao ar livre, tendo a escutá-lo também algumas centenas de utentes do ex-manicómio (entretanto já totalmente transformado); a certa altura, uma mulher no público começou a tocar um realejo, sem que ninguém soubesse o que fazer; ao ouvir a música, Ornette Coleman decidiu então acompanhá-la, até a senhora terminar.

    Este momento, tal como dezenas e dezenas de outros, são-nos contados no 4.º episódio (“Tutta colpa di Basaglia” [Tudo por culpa de Basaglia]) de uma série de podcasts esmeradamente realizados por aquelas duas jornalistas, em homenagem a esse grande vulto da psiquiatria, a que no entanto a realidade psiquiátrica italiana dos dias de hoje não faz justiça e que a academia ostensivamente ignora (8.º episódio).

    Ilustração: © Corriere della Sera.

    Para quem domine a língua italiana, o melhor é mesmo começar já a ouvir o primeiro episódio da série Tutta colpa di Basaglia, no que só ficará a ganhar em conhecimento, realismo e verdadeira emoção.

    Relativamente ao método, sem pretender teorizar nem dogmatizar um tema que tem sido abundantemente tratado, na minha perspectiva e a partir da visão de conjunto do trabalho jornalístico referido, o método de Basaglia talvez se possa resumir através dos seguintes traços:

    • Abertura interdisciplinar[2], estudo aprofundado e reflexão constante[3];
    • Aprendizagens a partir da experiência concreta e do estado real das coisas[4];
    • Inconformismo radical[5], à luz do primado do ser humano e da sua liberdade – das suas potencialidades;
    • Determinação humanista e trabalho colectivamente articulado;
    • Clarividência, ousadia, imaginação e resistência à adversidade.
    Franco Basaglia (1924-1980)

    Sintetizado o método e na impossibilidade de respigar aqui para o leitor português, como se pensara inicialmente, uma ou outra das passagens narradas em cada um dos podcasts (por não ter sido obtida em tempo útil a autorização solicitada para o efeito), deixaremos pelo menos o link e o título em português de cada um dos episódios da bela homenagem assim feita pelo histórico diário italiano a Franco Basaglia.

    Episódio 1. «Eu não assino»

    Episódio 2. «Desamarre-o, imediatamente!»

    Episódio 3. O impossível torna-se possível

    Episódio 4. Tudo por culpa de Basaglia

    Episódio 5. Os empresários da loucura

    Episódio 6. De Trieste ao Brasil: os Basaglianos no Mundo

    Episódio 7. Aprova-se a lei, a utopia torna-se realidade

    Episódio 8. O tratamento não pode ser um privilégio

    José Melo Alexandrino é professor universitário


    [1] Constam da respectiva nota de apresentação as seguintes indicações: “Ludovica Jona ed Elisa Storace hanno realizzato una bio-inchiesta, tra scienza, medicina, politica e sociologia, trovando risposte spesso sconvolgenti. Accanto alla ricostruzione del percorso che portò alla chiusura degli ospedali psichiatrici e all’apertura verso il territorio, attraverso le voci di molti testimoni diretti e materiali di repertorio inediti, si sviluppa un’inchiesta su come viene affrontato, oggi, in Italia, il disagio mentale. Una questione di grande attualità, specie tra i più giovani. Una serie, in 7 episodi, di Ludovica Jona ed Elisa Storace. In uscita ogni venerdì. Adattamento e produzione di Carlo Annese. Editing audio di Manuel Iannuzzo e Giulia Pacchiarini. Montaggio di Federico Caruso. L’illustrazione di copertina è di Marta Signori” [sublinhados originais].

    (Ludovica Jona e Elisa Storace realizaram uma bio-investigação, envolvendo a ciência, medicina, política e sociologia, encontrando respostas muitas vezes perturbadoras. A par da reconstrução do caminho que levou ao encerramento dos hospitais psiquiátricos e à abertura ao território, através das vozes de muitas testemunhas directas e de materiais de arquivo inéditos, desenvolve-se uma investigação sobre a forma como a perturbação mental é hoje enfrentada em Itália. Um assunto muito actual, sobretudo entre os mais jovens. Uma série, em 7 episódios, de Ludovica Jona e Elisa Storace. Lançada todas as sextas-feiras. Adaptação e produção de Carlo Annese. Edição áudio de Manuel Iannuzzo e Giulia Pacchiarini. Edição de Federico Caruso. A ilustração da capa é da autoria de Marta Signori” [sublinhados originais]).

    [2] Sem prejuízo de ter abandonado, logo em 1961, a docência universitária – por razões óbvias.

    [3] Agora reunidos nos dois volumes dos seus Escritos: Franco Basaglia, Scritti, vol. 1 – 1953-1968: Dalla psichiatria fenomenologica all’esperienza di Gorizia, Torino, Einaudi, 1981; Scritti, vol. 2 – 1968-1980. Dall’apertura del manicomio alla nuova legge sull’Assistenza psichiatrica, Torino, Einaudi, 1997.

    [4] Especialmente sobre esta dimensão, veja-se a antologia, e respectiva nota introdutória, organizada por Franca Basaglia Ongaro, L’ utopia della realtà, Torino, Einaudi, 2005.

    [5] Presente logo na sua Conferência “La distruzione dell’ospedale psichiatrico come luogo di istituzionalizzazione” de 1964 (disponível aqui).


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Democracia: o regime menos mau?

    Democracia: o regime menos mau?


    Desde tenra idade, somos incessantemente doutrinados com mantras sobre a democracia: “o regime menos mau”, “o Governo do povo, pelo povo, para o povo”, “a vontade soberana do povo”.

    Mas será que a realidade corresponde a tais idealizações? Hoje, os Governos das repúblicas democráticas autoproclamam-se nossos benevolentes protectores em quase todos os aspectos das nossas vidas: “redistribuem a riqueza”, “amparam os desvalidos”, “oferecem-nos habitação”, “asseguram-nos a reforma”, “educam-nos”, “protegem-nos na velhice”, “defendem-nos dos vírus, mesmo dos invisíveis”, “salvam-nos das alterações climáticas”— uma cornucópia de promessas gloriosas!

    person standing near table

    Na realidade, a democracia é o disfarce perfeito para a mais insidiosa das criações humanas: o Estado. Sob a pretensa promessa de representação, os “nossos” representantes autorizam o confisco do fruto do nosso labor; restringem liberdades fundamentais e legitimam a criação de dinheiro do nada pelos bancos — uma prática, eufemisticamente conhecida por reservas fraccionadas —, que noutras circunstâncias seria simplesmente rotulada de roubo.

    Esses mesmos representantes resgatam empresas falidas sob o pretexto de proteger os empregos das suas clientelas políticas, enquanto erguem barreiras artificiais que impedem a população de perseguir a sua própria felicidade, garantindo oligopólios aos plutocratas que os financiam. Além disso, “oferecem-nos” a educação estatal, não com o intuito de esclarecer, mas sim para doutrinar as futuras gerações numa aceitação passiva de uma vida de servidão — como ilustrado pelo infame livro “Joaninha e os impostos“. A saúde pública? Nada mais que uma ferramenta de controlo assente no medo, garantindo, ao mesmo tempo, lucros obscenos às farmacêuticas, num conluio incestuoso entre indústria, classe política e reguladores.

    Em conclusão, a “tirania” da maioria é inescapável, pois, no final, são os representantes eleitos que tudo decidem, legitimados ironicamente por uma minoria que ainda se dá ao trabalho de votar para nomear as pessoas à frente desta instituição parasitária, conhecida por Estado.

    O que é o Estado? É a entidade que detém o monopólio para confiscar os recursos e os rendimentos dos residentes debaixo da sua jurisdição, uma prática eufemisticamente conhecida como tributação. Também detém o exclusivo do uso da força, desarmando, sempre que possível, a população para minimizar a possibilidade de qualquer revolta – hoje, com a excepção dos Suíços, todos os europeus estão desarmados.

    view of stadium interior

    O Estado detém o monopólio absoluto sobre a criação e imposição de leis, sendo simultaneamente o legislador e o juiz dos conflitos, mesmo quando é uma das partes envolvidas. Essa instituição, na sua magnânima benevolência, reivindica o direito de escravizar a população, forçando-a a servir nas suas guerras sob o nobre estandarte da “liberdade, pátria e democracia”. Como qualquer parasita eficiente, o Estado busca incessantemente expandir o seu território, pois quanto maior o número de hospedeiros, maior a sua sustentação.

    Em que ponto da história surgiu tal instituição? Precisamente, com o aparecimento das monarquias absolutas na Europa, pois durante a Idade Média, período “estranhamente” vilipendiado pelos historiadores, tal instituição simplesmente não existia. Após a queda do Império Romano do Ocidente, surgiu uma ordem natural que deveria merecer a nossa atenção, muito diferente da propaganda que recebemos na escola pública.

    Em primeiro lugar, os tribunais, tanto dos senhores feudais quanto do próprio rei, eram instituições de carácter privado. Os tribunais reais funcionavam essencialmente como instâncias de recurso ou para a arbitragem de conflitos, dispensando, muitas vezes, a necessidade de recorrer à justiça baseada em costumes estabelecidos.

    Em segundo lugar, durante a dinastia Merovíngia, precursora do Sacro Império Romano-Germânico, o conceito de legislação e o papel do monarca na criação de leis eram substancialmente diferentes do que conhecemos hoje. A promulgação de novas leis era rara, com a jurisprudência fundamentada predominantemente na lei natural e nos costumes vigentes. A Igreja também exercia uma enorme influência sobre o direito e a justiça, com o direito canónico a coexistir com as leis seculares e frequentemente moldando a prática jurídica da época.

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    Por fim, é importante ressaltar que o rei estava subordinado à lei e não acima dela, existindo essencialmente para garantir o seu cumprimento. Além disso, poderia ser deposto tanto pelas instituições seculares como religiosas, havendo o direito à resistência caso o monarca se tornasse um tirano.

    Um exemplo emblemático é o de Eduardo II, rei de Inglaterra, que, em Janeiro de 1327, foi formalmente deposto por uma convocatória do Parlamento, o qual o declarou incapaz de governar devido à sua má administração e à estreita associação com a poderosa e amplamente detestada família Despenser.

    De igual modo, a deposição do Imperador Henrique IV do Sacro Império Romano-Germânico pelo Papa Gregório VII em 1076, durante a Querela das Investiduras, constitui um exemplo clássico do exercício do poder papal sobre um monarca. Após Henrique desafiar a autoridade do Papa e insistir no direito de nomear bispos, Gregório VII excomungou-o, libertando os seus súbditos da obrigação de lealdade. Esta excomunhão, que se traduziu efectivamente numa deposição, forçou Henrique IV a buscar o perdão, culminando na célebre Humilhação de Canossa em 1077.

    Imediatamente, evoca-se o famigerado anátema da Idade das Trevas; sim, é verdade, havia os servos da gleba, mas o que é um cidadão de um Estado democrático senão um escravo moderno? Logo ao nascer, recebe um número fiscal, marcado como se marca o gado, destinado a ser saqueado toda a vida, correndo como um rato numa roda sem fim.

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    Também temos a crítica hobbesiana, que nos assegura que, sem o Estado, os homens se devorariam mutuamente; se isso fosse verdade, a sociedade europeia teria desaparecido durante a Idade Média, onde não existia Estado. Mas, ao contrário, não só sobreviveu como floresceu, erguendo maravilhas arquitectónicas como as catedrais medievais, fundando as melhores universidades do mundo e dando origem a banqueiros como os Médicis, que acumularam tanto capital que puderam financiar a mais sublime arte já produzida pela humanidade. Era sobre essa ordem natural, fragmentada, descentralizada e sem Estado, que deveríamos ter evoluído. A Europa destacou-se no mundo precisamente por essa ordem sem a pesada mão do Leviatã estatal.

    O surgimento do Estado, particularmente das monarquias absolutas, foi o resultado da convergência de duas correntes de pensamento: o direito divino e o direito da irresponsabilidade. O direito divino conferia ao monarca a posição de representante de Deus na Terra, tornando o seu poder incontestável por qualquer autoridade terrena. O direito da irresponsabilidade, por sua vez, fundamentava as monarquias absolutas, ao estabelecer que o monarca se situava acima da lei, sendo, portanto, insusceptível de ser responsabilizado pelas suas acções.

    O surgimento do Estado, mais do que uma simples evolução ideológica, resultou da manipulação deliberada da população, particularmente dos mais vulneráveis. Como frequentemente ocorre, bastou fomentar a inveja e a intriga. A Guerra dos Camponeses na Alemanha (1524-1525), um dos maiores e mais significativos levantamentos de camponeses da Europa, exemplifica esse processo. Os camponeses clamavam pela abolição das obrigações feudais e por maior autonomia — o eterno desejo por benefícios sem custos (o grátis!), como segurança e justiça gratuita, fornecidas outrora pelos senhores feudais.

    Os príncipes resolveram a questão de forma brutal, reprimindo os camponeses com o auxílio do influente líder religioso Martinho Lutero, que proferiu as célebres palavras: “Que se esmague, estrangule e apunhale, secretamente ou abertamente, quem puder, e lembrai-vos de que não há nada mais venenoso, nocivo e demoníaco que um rebelde.” Este evento abriu caminho para o poder absoluto do monarca e do Estado, suprimindo tanto o poder da Igreja Católica quando os tribunais privados dos senhores feudais. Afinal, os exércitos reais, criadores do próprio problema, resolveram-no através do esmagamento da revolta e eliminando o sarilho enfrentado pelos senhores feudais — um clássico exemplo da tríade: problema, reacção e solução. Ainda hoje resulta!

    Vamos então traçar um paralelo entre a monarquia absoluta e as modernas repúblicas ou monarquias constitucionais, nascidas após o morticínio conhecido como Revolução Francesa. Na primeira, o governo é propriedade privada do rei e da sua linhagem. Assim, o monarca tem todo o interesse em preservar o seu “capital”, evitando, por exemplo, legar uma colossal dívida ao seu herdeiro ou sobrecarregar os súbditos com tributos excessivos, já que é preciso garantir a saúde dos seus “hospedeiros”. No segundo caso, porém, os governantes são meros gestores temporários do poder, cujo objectivo primordial é saquear e extorquir a população no menor tempo possível, sem qualquer preocupação com as consequências a longo prazo.

    Enquanto na monarquia absoluta o governo está rigidamente fechado e inacessível, com uma clara distinção entre os que governam e os governados, na democracia, em teoria, qualquer um pode ascender a essa instituição parasitária, vivendo do saque ao colectivo e atraindo os piores da sociedade. Na monarquia, governar é privilégio de poucos, enquanto na democracia qualquer um pode aspirar a ser poder, mesmo que isso signifique ser governado por bandidos eleitos. Em resumo, o povo aceita ser explorado na democracia porque acredita na ilusão de poder vir a ser o próximo grande saqueador, daí a reduzida resistência ao poder, mesmo que o assalto seja em torno de 60% e 70% do seu rendimento. Tal não acontecia com a monarquia absoluta, que enfrentava uma enorme resistência.

    grayscale photo of people walking on street

    Numa monarquia absoluta, o rei evita redistribuir riqueza, pois punir a população mais produtiva prejudicaria a sua própria arrecadação. O objectivo central do monarca é extrair riqueza para si, sem sufocar os que geram prosperidade. Já na democracia, onde o governante do momento necessita de ser reeleito, surge a necessidade de confiscar os bens dos mais ricos, uma minoria, e redistribui-los aos mais pobres em troca de votos. É o que se observa quando os políticos “oferecem” casas ou passes de transporte “gratuitos” como forma de garantir o seu voto.

    Por fim, numa monarquia absoluta a expansão territorial foi muitas vezes realizada pelo casamento, ou seja, de forma pacífica. Veja-se o caso dos Habsburgos que consolidaram vastos territórios europeus através de alianças matrimoniais. Maximiliano I de Habsburgo, ao casar-se com Maria da Borgonha em 1477, assegurou para a sua dinastia o controle da Holanda e parte da actual Bélgica. O seu filho, Filipe, o Belo, casou-se em 1496 com Joana de Castela, herdeira dos tronos de Castela e Aragão. Este casamento uniu a Espanha e as suas vastas colónias ao domínio dos Habsburgos, ampliando significativamente o poder e a influência da família na Europa.

    Nas assim chamadas democracias, as guerras que devastaram a Europa no século XX, frequentemente iniciadas por líderes democraticamente eleitos, como o regime nazi que “heroicamente” invadiu a Polónia em 1939, exemplificam a transição para um novo tipo de conflito, agora alimentado por nobres ideais.

    A Primeira Guerra Mundial assinalou o fim do capítulo das monarquias, com a queda dos Habsburgos (Império Austro-Húngaro), dos Hohenzollern (Império Alemão) e dos Romanov (Império Russo). Este conceito de conflito, aliás, já tinha despontado com a Revolução Francesa, que, em nome da conscrição obrigatória e da gloriosa tríade de liberdade, fraternidade e igualdade, transformou os exércitos em imponentes massas de cidadãos-soldados, contrastando com as monarquias absolutas, onde as guerras, aparentemente, eram menos ideológicas e mais “cavalheirescas”. Não tardou que esse nobre conceito fosse exportado para o Novo Mundo, resultando na guerra civil norte-americana, onde uma democracia em ascensão demonstrou o seu valor ao engendrar uma guerra total, com a justificação moralista da “libertação dos escravos”.

    soldier walking on wooden pathway surrounded with barbwire selective focus photography

    O que nos legou então a democracia? Se a monarquia absoluta jamais ousou entregar a emissão de moeda a um comissário político, hoje, temos um banqueiro central não eleito à frente dessa ignominiosa entidade chamada Banco Central. Embora tal instituição tenha existido sob o domínio das coroas absolutas, ao menos o dinheiro era lastreado em ouro, uma mercadoria que a humanidade, com sabedoria milenar, escolheu como moeda.

    Actualmente, num espectáculo de desfaçatez coordenada, todos os Estados destroem sistematicamente o poder aquisitivo das moedas, enquanto os Bancos Centrais, numa orquestra afinadíssima, vendem-nos a fábula do índice de preços, ignorando deliberadamente o aumento exponencial da quantidade de moeda em circulação que há décadas incha como um balão prestes a explodir.

    Como bons discípulos do medo, temem que o mundo um dia desperte e decida abandonar a moeda reserva do mundo, o venerável Dólar norte-americano. Para evitar esse terrível destino, o império recorre à sua fiel impressora de notas, financiando guerras em série – enquanto nós, súbditos involuntários, pagamos o tributo oculto chamado inflação. É o preço imposto àqueles que ousam sonhar com a fuga dessa prisão monetária, como nos exemplares casos do Iraque, da Líbia ou da Ucrânia. Como se não bastasse, somos agraciados com impostos exorbitantes, cuidadosamente desenhados para nos manter atrelados ao Euro ou ao Dólar, de modo que não cometamos a heresia de seguir o exemplo da Venezuela ou do Zimbabué – onde a fuga para as ruas é a última tentativa desesperada de as pessoas se livrarem dos papelinhos mágicos emitidos pelo Banco Central da tão aclamada democracia.

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    Durante as monarquias absolutas, jamais os impostos ultrapassaram a marca dos 10% do PIB, e isso apenas em circunstâncias excepcionais, como no reinado de Luís XIV na França (1643-1715) ou na Espanha dos Habsburgos, especialmente sob Filipe II (1556-1598), que acabou por arruinar o tesouro real com seu endividamento crescente, fruto das inúmeras guerras em que se lançou. O que temos hoje? Uma economia onde o Estado, na sua benevolência sem limites, nos confisca 50% de tudo o que produzimos – mesmo assim não chega, recorrendo a dívida pública e inflação –, enquanto uma considerável fatia da população espera ansiosamente que o mesmo Estado saqueie impiedosamente a minoria que arca com a conta, tudo em nome da sagrada “solidariedade”, da “habitação gratuita”, da “educação gratuita” e daquela encantadora utopia chamada “solidariedade intergeracional” – refiro-me ao esquema em pirâmide conhecido por Segurança Social.

    Na gloriosa democracia, temos também um endividamento sem precedentes, muito além dos sonhos das antigas monarquias absolutas. Afinal, os bancos comerciais e o Banco Central têm a mágica habilidade de criar dívida a partir de meros papelinhos e registos electrónicos – um verdadeiro milagre moderno, onde nada existe além de números nos computadores. O dinheiro da democracia, materializado do nada, financia todas as agendas: energias flagrantemente ineficientes como a eólica e a solar; substâncias experimentais que nos são inoculadas com a suavidade da coerção, da chantagem e do medo; ajudas generosas, em nome da “democracia e liberdade”, a alguns dos países mais corruptos do planeta; sem falar do nobre combate às “alterações climáticas”.

    Enquanto na Idade Média a lei era a própria tradição e os costumes, e na Monarquia Absoluta quase não se dignavam a fazer novas leis, na democracia moderna as leis são produzidas ao metro, como se fossem mercadoria em linha de montagem.

    silhouette of three woman with hands on the air while dancing during sunset

    Os “nossos” representantes, esses exemplares defensores do povo, redigem leis sob medida para o plutocrata que lhes paga melhor, enchendo os cofres de escritórios de advogados que, de útil à sociedade, não produzem nem uma migalha. Como se não bastasse, somos agraciados com a presença da União Europeia, um cartel de Estados que se dedica a fabricar leis destinadas a tornar as nossas vidas miseráveis, enquanto garante monopólios e lucros pornográficos aos plutocratas que os controlam e instituem ferramentas de controlo do gado a mando destes.

    Na verdade, a democracia “protege-nos” de tudo, excepto a nossa própria propriedade privada. Hoje, sob a égide do Estado democrático, a nossa propriedade nunca esteve tão vulnerável. O Estado pode confiscar-nos as contas bancárias, o imobiliário, os valores mobiliários, o carro e até o recheio da casa, em nome do combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo! Recordemo-nos que são os Estados que invadem países em nome da “democracia” e massacram milhões de pessoas nessa cruzada – isto não é terrorismo, atenção! Por fim, ainda temos de receber hordas de selvagens do terceiro mundo, em resultado desses nobres conflitos. Apetece gritar: viva a democracia!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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