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  • Ingerência governamental no processo disciplinar contra Filipe Froes

    Ingerência governamental no processo disciplinar contra Filipe Froes

    Ministério da Saúde já faz tudo para proteger pneumologista de ser castigado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Na intimação do PÁGINA UM feita no Tribunal Administrativo de Lisboa, o gabinete de Manuel Pizarro decidiu substituir a IGAS, que é o réu no processo, e defende agora secretismo do processo de averiguações por alegadamente estar inserido no inquérito disciplinar que está engavetado há 14 meses. A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos advoga que “um documento administrativo, ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”.


    Manuel Pizarro já subiu mais um patamar na defesa intransigente do obscurantismo como forma de fazer política: agora, o Ministério da Saúde já se aplica na ingerência de processos disciplinares levados a cabo pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

    Depois de em Dezembro do ano passado o gabinete do ministro ter garantido ao PÁGINA UM que aguardaria a conclusão do processo disciplinar levantado pela IGAS ao pneumologista Filipe Froes por forte suspeita de ligações ilegais ao sector farmacêutico, o Ministério da Saúde assumiu agora a defesa do secretismo daquela investigação, que já dura há longos 14 meses.

    Filipe Froes, pneumologista. Praticamente em todas as conferências onde participa publicamente recebe contrapartidas financeiras de farmacêuticas, apesar de se manter como consultor da DGS e se assumir, na imprensa mainstream, como perito independente.

    Apesar dos longos 14 meses que já dura aquele processo disciplinar, não há conclusão à vista – apenas agora a defesa intransigente de que as provas coligidas até Fevereiro de 2022, que constam num processo de averiguações, sejam mantidas secretas, custe o que custar.

    Apesar da IGAS ter autonomia administrativa, as alegações desta entidade – que tem atribuições inspectivas que exigem a máxima independência política – junto do Tribunal Administrativo, em resposta a uma intimação do PÁGINA UM, foram, desta vez, assumidas directamente pelos Serviços Jurídicos e de Contencioso da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.

    O argumento usado pelo Ministério da Saúde, que cita o artigo 10º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, não encontra respaldo com outras situações similares envolvendo a IGAS, o que demonstra uma ingerência política num processo da esfera disciplinar, e que envolve um conhecido médico com ligações à indústria farmacêutica.

    De facto, num outro processo de intimação do PÁGINA UM – aliás, favorável – contra a IGAS, em Agosto do ano passado, a defesa foi sempre assumida por aquela entidade, sem participação directa ou indirecta do Ministério da Saúde. Nessa intimação estavam em causa algumas dezenas de processsos instaurados pela IGAS, incluindo o do presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais, que viria a redundar no seu afastamento como consultor do Infarmed e na aplicação de uma coima.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde. Quer aguardar pelas conclusões do inquérito a Filipe Froes, mas em vez de se preocupar com a sua reduzida celeridade (corre desde Fevereiro de 2022), tudo faz para manter secreto o processo inicial de averiguações.

    Saliente-se, contudo, que apesar de o Ministério da Saúde defender agora, no caso específico do processo que envolve Filipe Froes, que a intimação deveria ser feita contra si, na verdade a IGAS tem sido réu em diversos processos nos tribunais administrativos ao longo dos últimos anos. De acordo com uma consulta do PÁGINA UM à base de dados do Citius, encontram-se 11 processos apenas no Tribunal Administrativo de Lisboa em que a IGAS é classificado com réu – ou seja, foi a entidade directamente requerida, incluindo um levantado pela Ordem dos Enfermeiros em 2019.

    Mostra-se assim cada vez mais evidente que Filipe Froes – que recentemente ganhou maior peso institucional, após a eleição de Carlos Cortes para bastonário da Ordem dos Médicos, do qual foi mandatário durante a campanha – goza de uma protecção política do Ministério da Saúde, por ter sido um “porta-voz” mediático na defesa da estratégia governamental durante a pandemia.

    Ao invés de determinar a aceleração dos procedimentos para apurar ilegalidades nas ligações entre Filipe Froes e as farmacêuticas – que surgiram logo no Verão de 2021, quando foram conhecidos os montantes que o pneumologista recebia de empresas deste sector, apesar de se manter como consultor da DGS –, o Ministério da Saúde está activamente a obstaculizar o apuramento da verdade.

    Até para a publicação de uma antologia de crónicas, escritas para o Diário de Notícias durante a pandemia, Filipe Froes contou com o patrocínio de uma farmacêutica, neste caso da Bial. O montante recebido nunca foi declarado na Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed, como exige a lei.

    Refira-se que, nesta fase, não estão já apenas em causa meras insinuações ou suspeitas. O inquérito disciplinar em curso há quase 14 meses, para eventuais efeitos sancionatórios, já que Filipe Froes é funcionário público, surge após a conclusão de um processo de averiguações – que se reveste já de grande formalismo –, ao longo de cinco meses, onde se terão encontrado provas substanciais. Se tal não tivesse sucedido, teria havido um arquivamento.

    Evidente se mostra sim a delicadeza política deste assunto, que tem sido tabu na imprensa mainstream, que continua a considerar Filipe Froes como uma referência de independência, mesmo para falar de terapêuticas e medicamentos onde tem evidentes conflitos de interesse.

    Ainda esta semana, em declarações ao Diário de Notícias, onde é colunista, Filipe Froes defendia que “há um acréscimo de risco de mortalidade por doença tromboembólica e cardíaca” mas apenas a associada à “após a infeção pelo SARS-CoV-2”, acrescentando ainda que “o risco de morte súbita está aumentado em dez vezes, após a covid-19, que a destruição de células pancreáticas após a infeção aumentou o aparecimento de novos casos de diabetes e que quem tinha doenças crónicas também ficou com a sua comorbilidade agravada após ter contraído a doença”.

    Filipe Froes, primeiro a contar da direita, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia, uma “parceria” com o Instituto Superior Técnico, onde terão resultado relatórios que a instituição universitária defende terem sido afinal “esboço[s] embrionário[s], que consubstancia[m] mero[s] ensaio[s] para eventua[is] relatórios].”

    Ou seja, o pneumologista descartou qualquer hipótese (académica que seja) de existirem efeitos adversos das vacinas a causar essa mortalidade excessiva. Saliente-se que Froes é consultor ou palestrante de todas as farmacêuticas que produzem vacinas contra a covid-19 administradas em Portugal (Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Jannsen).

    A confirmação de delitos com efeitos disciplinares por parte de Filipe Froes poderia assim trazer consequências políticas e públicas, sendo esta uma das explicações para o processo não ter um fim, nem ser possível consultar qualquer diligência tomada pela IGAS desde Setembro de 2021.

    Recorde-se que após a recusa da IGAS em libertar o acesso ao processo de averiguações a Filipe Froes, iniciado em Setembro de 2021 – que resultaria na instauração formal de um processo disciplinar em 19 de Fevereiro de 2022 –, o PÁGINA UM apresentou há cerca de um mês e meio uma nova intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Filipe Froes, ao centro, foi mandatário do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes (quarto a contar da esquerda).

    Neste procedimento alegava-se que, de acordo com a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, “o acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”, e que “o acesso ao conteúdo de auditorias, inspeções, inquéritos, sindicâncias ou averiguações pode ser diferido até ao decurso do prazo para instauração de procedimento disciplinar.”

    Significa isso que o processo de averiguações às práticas suspeitas de Filipe Froes – formalmente concluído em 19 de Fevereiro de 2022 – já deveriam estar disponíveis, na pior das hipóteses em 19 de Fevereiro deste ano. E, na verdade, o conteúdo do processo de averiguações até deveria estar disponível a partir da decisão do inspector-geral Carlos Caeiro Carapeto em instaurar o processo disciplinar ao médico Filipe Froes – que se tornou figura pública durante a pandemia, enquanto era simultaneamente consultor da Direcção-Geral da Saúde (na definição das terapêuticas anti-covid) e de farmacêuticas com interesses comerciais directos à pandemia.

    De facto, o processo de averiguações – uma fase formal dos procedimentos da IGAS – terminou com o despacho do inspector-geral da IGAS que, face à gravidade dos indícios apurados, decidiu existir matéria suficiente para um processo de inquérito disciplinar.

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    Porém, 14 meses depois, o processo mantém-se inconcluso – e, aparentemente, ao contrário de existirem manifestações para o terminar, há sim movimentações para tudo manter secreto.

    Aquando da solicitação do PÁGINA UM à consulta do processo de averiguação ao pneumologista – que, aliás, deveria ter sido incluído num vasto pedido que já culminara numa sentença anterior do Tribunal Administrativo de Lisboa, mas sobre o qual a IGAS preferiu omitir por não ser claro que o nosso pedido incluía o processo de Filipe Froes – aquela entidade inspectiva recusou tal pretensão, alegando que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, incluindo, naturalmente o inquérito que o precede”, invocando mesmo uma norma da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.

    Porém, nessa norma nada se refere sobre o inquérito precedente, neste caso o processo de averiguações, uma vez que simplesmente se diz que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, podendo, contudo, ser facultado ao trabalhador, a seu requerimento, para exame, sob condição de não divulgar o que dele conste.” Por agora, o PÁGINA UM pretende pelo menos ter acesso ao processo de averiguações e ao despacho para a abertura do processo disciplinar.

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    Agora, nas alegações junto do Tribunal, o Ministério de Manuel Pizarro segue a mesma estratégia para manter o processo de averiguações secreto: os documentos encontram-se anexados ao processo de inquérito ainda em curso. No entanto, saliente-se que o entendimento da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), presidido pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, terá sido muito claro sobre esta matéria: “um documento administrativo, ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”. Ou seja, a existência de processos judiciais ou outros que têm carácter secreto não pode servir de truque, através da sua inserção, para abranger outros documentos politicamente sensíveis.

    Essa postura da CADA foi, aliás, explicitamente utilizada num célebre parecer da CADA de 13 de Outubro de 2021 que concedeu razão ao ex-primeiro-ministro José Sócrates no acesso ao inquérito à distribuição da Operação Marquês. O Conselho Superior da Magistratura alegava que os documentos desse inquérito eram secretos por terem sido inseridos em processo judicial ainda em segredo de justiça, mas a CADA considerou que eram, à mesma, documentos administrativos e que deveriam ser acessíveis.

  • Aeroportos nacionais com cinco meses de procura superior ao período pré-pandemia

    Aeroportos nacionais com cinco meses de procura superior ao período pré-pandemia

    Os dois primeiros meses deste ano confirmam uma tendência do crescimento da procura dos aeroportos portugueses acima dos níveis pré-pandemia. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, que divulgou hoje dados referentes a Fevereiro deste ano, já se contam cinco meses (desde Outubro de 2022) com afluência de passageiros superior aos meses homólogos no período anterior à pandemia. Depois de uma valente queda provocada pelas restrições às viagens aéreas, que causou um descalabro sem precedentes na aviação comercial, o sector está agora com novas “asas”.


    Já não há “vestígios” da pandemia nos aeroportos portugueses, e isso vê-se pelos números de passageiros que passaram pelos aeroportos nacionais no último semestre. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), a afluência total ao longo de Fevereiro deste ano confirma mais uma vez, pelo sexto mês consecutivo, mais do que uma recuperação: um crescimento sustentado.

    Nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro do ano passado, os números dos passageiros aerotransportados já tinham sido superiores aos dos meses homólogos de 2019. Agora, os dois primeiros meses de 2023 também apresentam valores acima de Janeiro e Fevereiro de 2020, antes do início das fortes restrições politicamente impostas às viagens aéreas por causa da pandemia.

    cars parked in a parking lot at night

    Nos dados divulgados hoje pelo INE ficou-se a saber que em Fevereiro passado passaram pelos aeroportos nacionais 4.042.000 de passageiros, representando um acréscimo de cerca de 8% face ao período homólogo de 2020. Em comparação com Fevereiro de 2022, quando ainda se aplicava a obrigatoriedade de certificado digital e/ ou de testes à covid-19, o crescimento é de 55,6%.

    Recorde-se que, em Fevereiro de 2022, o Governo decretou o fim da exigência de um teste negativo para a entrada em Portugal, mas ainda vigorava a obrigatoriedade de apresentação do certificado digital covid-19, ou seja, que atestasse a vacinação ou a recuperação (por um período de seis meses). Só em Julho de 2022 é que a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) anunciou o fim da imposição de teste ou certificado nas fronteiras portuguesas.

    O INE revelou ainda que em Fevereiro passado registou-se uma média diária de 73,6 mil viajantes a aterrar em Portugal – um aumento de 54,1% face ao mesmo mês de 2022, e de 13,1% em relação ao período homólogo de 2020. Nessa altura, os efeitos da pandemia, que não tinha sido ainda identificada em Portugal, não se faziam sentir no tráfego aéreo. No entanto, foi precisamente a partir de Fevereiro de 2020 que o movimento de passageiros caiu a pique e “tombou” entre Abril e Junho. Aumentou posteriormente, mas mantendo-se baixo durante os restantes meses do ano.

    Número de passageiros nos aeroportos portugueses entre Janeiro de 2019 e Fevereiro de 2023. Unidade: milhares. Fonte: INE.

    Saliente-se que já desde Abril de 2022 que se verificava uma recuperação significativa no sector da aviação comercial, com o número de voos a aproximar-se bastante do registado em 2019.

    Os dados do INE também revelam que no segundo mês deste ano foram mais os que entraram em solo nacional do que aqueles que o abandonaram. Porém, em ambos os casos, as deslocações tiveram lugar maioritariamente dentro da Europa, perfazendo estas cerca de 68% nos voos internacionais.

    A França foi, em simultâneo, o principal país de chegada e de partida dos voos. Entre os que embarcaram, para além da França, a maioria rumou ao Reino Unido, a Espanha, a Alemanha e a Itália. O ranking foi semelhante para os desembarcados, com apenas uma diferença assinalável: o Brasil foi o quinto país de onde chegaram mais passageiros, e não a Itália.

    A seguir à Europa, o continente americano foi a região mundial mais representada no tráfego internacional, tanto no destino como em origem.

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    O aeroporto de Lisboa manteve a sua primazia como origem e destino dos passageiros no sector da aviação comercial. Nos primeiros dois meses deste ano concentrou 56,3% do total a nível nacional, o que significou um aumento de 4,5% face ao período homólogo de 2020.

    No Porto, o aeroporto Francisco Sá Carneiro, também movimentou mais passageiros do que no primeiro ano da pandemia, com um incremento na ordem dos 3%, tendo ficado em segundo lugar no ranking, com 22,8% do total de passageiros transportados. Entretanto, o aeroporto da Madeira “destronou” do pódio o de Faro, registando a terceira maior afluência, com 636 mil passageiros.

    No transporte aéreo de mercadorias, porém, o cenário contrasta com o de passageiros. O movimento de carga e correio sofreu um decréscimo de 3,5% face a Fevereiro de 2020, e de 2,2% comparativamente com o mesmo mês do de 2022. Tendo registado uma quebra assinalável ao longo de 2020 e nos primeiros meses de 2021, na segunda metade daquele ano este tráfego já denotava um regresso à normalidade, e em 2022 ultrapassava até, em grande medida, os valores de 2019.

    airliner on runway

    No comunicado de divulgação destes dados, o INE destaca que o tráfego aéreo de passageiros é “tipicamente influenciado por flutuações sazonais e de ciclo semanal, e foi significativamente afectado pelo impacto da pandemia”.

    No entanto, os dados dos últimos cinco meses confirmam a tendência de retoma da normalidade com um apreciável crescimento, augurando assim uma época estival até acima da registada no Verão do ano passado, já próxima dos níveis anteriores à pandemia.

  • O Estado da Nação ou o estado da podridão

    O Estado da Nação ou o estado da podridão


    Pedro Almeida Vieira e Luís Gomes reencontram-se no 13º episódio de Os economistas do diabo para falar sobre a contínua crise política e sobre o Estado da Nação em vésperas de mais um aniversário do regime democrático em Portugal. E ainda há tempo para conversas paralelas e até para se falar da candidatura de Robert Kennedy Jr às primárias das eleições norte-americanas.

    Na rubrica Memórias de elefante recordamos o debate, que se esfumou, sobre a famigerada revisão constitucional.

    Acesso: LIVRE

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  • Em França, o obscurantismo do Governo também se derrota nos tribunais administrativos

    Em França, o obscurantismo do Governo também se derrota nos tribunais administrativos

    Em Portugal, o PÁGINA UM é o único jornal português que luta para a obtenção de informação sobre a pandemia. Mas não é o único na Europa nem no Mundo. Esta semana, o histórico jornal Le Parisien, numa luta em todo idêntica às encetadas pelo PÁGINA UM, obteve uma vitória contra o obscurantismo das entidades governamentais: o Tribunal Administrativo de Paris obrigou o Ministério da Saúde a revelar publicamente uma auditoria à gestão da covid-19 feita há mais de dois anos.


    O Governo francês foi obrigado pelo Tribunal Administrativo de Paris a revelar ao jornal Le Parisien – Aujourd’hui en France um relatório mantido secreto de avaliação da primeira fase de gestão da pandemia da covid-19. E também a pagar 2.000 euros de custas do processo ao jornal parisiense, que conta, na capital francesa, com uma tiragem média diária de 184 mil exemplares, bem superior a qualquer periódico português.

    A sentença, revelada esta semana pelo jornal regional francês – criado no tempo da Resistência Francesa na II Guerra Mundial –, anula uma decisão do Ministério da Saúde do Governo Macron de não transmitir um relatório da Inspeção-Geral de Assuntos Sociais (IGAS) extremamente crítico à gestão política nos primeiros meses da epidemia.

    O obscurantismo e o show off em França durante a pandemia foi muito similar à verificada em Portugal. Em França, tal como em Portugal, poucos foram os jornais que não aceitaram a recusa de informação. Em França, o Le Parisien; em Portugal, o PÁGINA UM.

    O percurso do jornal francês até à obtenção desta vitória da transparência apenas em tribunal tem contornos muito similares aos diversos intentados pelo PÁGINA UM – o único jornal português que recorreu aos tribunais para aceder a informação escondida pelo Governo de António Costa sobre a pandemia. Até pelas entidades a que recorreu e à duração de todo o processo.

    Segundo o relato do jornal francês, em Junho 2020, o então ministro francês da Saúde, Olivier Véran, solicitou à Inspecção-Geral dos Assuntos Sociais um relatório sobre a resposta à primeira fase da pandemia. Essa auditoria, intitulada “Feedback da gestão da resposta à epidemia de covid-19 pelo Ministério da Solidariedade e Saúde”, foi-lhe entregue cinco meses depois, em Novembro de 2020.

    Mas apenas um número muito pequeno de pessoas no executivo conseguiu vê-lo. O Le Parisien solicitaria o acesso em Fevereiro de 2021, e recorreu depois à francesa Comissão de Acesso a Documentos Administrativos, em Abril, mas sempre em vão.

    Notícia do Le Parisien de quinta-feira, actualizada hoje, revelando a vitória nos tribunais para acesso a uma auditoria escondida pelo Ministério da Saúde de França sobre a gestão da primeira fase da pandemia.

    O recurso ao tribunal – tal como tem feito o PÁGINA UM – foi a derradeira solução para quebrar o obscurantismo. A petição ao Tribunal Administrativo de Paris, com a ajuda de um escritório de advocacia, foi apresentada em meados de 2021, passando ainda por audiência no Conselho de Estado, e depois regressou ao Tribunal Administrativo de Paris.

    O Ministério da Saúde francês alegava – aliás, como já fez o Ministério da Saúde português num processo ainda em recurso – que esse relatório fazia parte de decisões ainda em curso.

    Contudo, o Tribunal Administrativo de Paris acabou por considerar que “na ausência de qualquer precisão quanto à natureza e ao momento das decisões que recomendaria adoptar, o ministro da Saúde não demonstra que qualquer decisão foi tomada com base no relatório, ou que as decisões estariam sendo preparadas e que seria inseparável de um processo de tomada de decisão”.

    Capa do relatório de 205 páginas que foi escondido pelo Ministério da Saúde de França durante dois anos, e apenas libertado oficialmente por sentença do Tribunal Administrativo de Paris.

    Os juízes franceses concluíram assim que “não tem [a auditoria], ao contrário do que se sustenta, o carácter de documento preparatório para uma ou mais decisões administrativas”, ordenando que o Ministro da Saúde transmitisse “este relatório no prazo de 14 dias a contar da notificação da sentença”.

    Apesar da auditoria da Inspecção-Geral dos Assuntos Sociais ter sido já divulgada esta semana no seu site – e que o PÁGINA UM colocou já também no seu servidor –, o Le Parisien conseguira acesso por uma “fuga de informação” no início deste ano.  

    De acordo com o relatório, que abrangeu entrevistas a mais de três centenas de pessoas, para avaliar a resposta nas primeiras fases da pandemia, concluiu-se que a organização de centros de crise de saúde era “muito fluida” e o processo decisório “fragmentado”, onde ninguém pareceu ter “uma visão clara e exaustiva, independentemente de seu nível hierárquico”.

    Além disso, ficou patente que os serviços do Ministério da Saúde francês rapidamente se viram “sobrecarregados” e que “não conseguiu organizar-se de forma estruturada e sustentável”, pelo que, em resultado desta atmosfera caótica, vários fracassos surgiram.

    O Le Parisien revela, por exemplo, que nas primeiras semanas da crise sanitária cerca de 611 mil idosos residentes em lares acabaram completamente esquecidos.

    Saliente-se que em Portugal, apesar dos pedidos do PÁGINA UM, o Governo sempre se recusou a revelar dados estatísticos sobre a mortalidade exacta nos lares de idosos (ERPI) e nunca deu a conhecer a realização de um qualquer relatório de avaliação à resposta dos diversos serviços do Ministério da Saúde.

    Muitos destes pedidos podem ainda vir a ser satisfeitos, alguns já em fase de recurso, se os magistrados dos tribunais portugueses decidirem tomar uma linha similar às dos seus congéneres franceses.


    N.D. Os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos no decurso das intimações para a obtenção de informações escondidas pelo Ministério da Saúde, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 17 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • ERC mostra “cartão amarelo” ao Porto Canal e até identifica “jornalista comercial”

    ERC mostra “cartão amarelo” ao Porto Canal e até identifica “jornalista comercial”

    Menos de um ano após um polémico arquivamento, por caducidade, de um procedimento contra o Porto Canal, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) quis corrigir a mão, e passou a “pente fino” uma dezena de contratos entre o canal televisivo do Futebol Clube do Porto e entidades públicas. Saiu um rol de irregularidades e ilegalidades. E foi identificado, pela primeira vez, um jornalista, Pedro Carvalho da Silva, por participar em conteúdos que consubstanciam a execução de contratos comerciais. Este poderá ser o primeiro caso de muitas dezenas espalhados pelos principais órgãos de comunicação social portugueses. Além disso, a Porto Canal vai ter de exibir e ler um longo texto no seu noticiário para assumir as falhas.


    Ausência de identificação de patrocínios em programas, jornalistas a executarem programas comerciais, publicidade ilegal a bebidas alcoólicas e violação das normas do Código dos Contratos Públicos – este é o rol de irregularidades e ilegalidades detectadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) numa averiguação a “pente fino” de contratos entre o Porto Canal – detida pela empresa Avenida dos Aliados, maioritariamente detida por uma sociedade ligada ao Futebol Clube do Porto e presidida por Jorge Nuno Pinto da Costa.

    A deliberação do regulador, assumida em 22 de Março passado – e à qual o PÁGINA UM teve acesso em primeira-mão, e que ainda não constava hoje no site da ERC –, além de originar três procedimentos autónomos com vista a processos de contra-ordenação, obriga desde já o Porto Canal à leitura e exibição de um longo texto no seu serviço noticioso de maior audiência, “atendendo à colisão com a obrigação e garantir uma programação independente face ao poder económico”.

    Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do Futebol Clube do Porto SAD e da Avenida dos Aliados S.A., detentora do Porto Canal.

    Nesse texto, o Porto Canal vai ter de assumir que em dois dos seus programas (Imperdíveis, patrocinado pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), e Viver Aqui, patrocinado pelo município de Vila Nova de Gaia, em Novembro e Junho de 2021, respectivamente), “ambos sob alçada da Direcção de Informação”, houve publicitação de bens, marcas e serviços de entidades públicas “sem que tal tivesse sido devidamente identificado perante os telespectadores”.

    A ERC obriga também o Porto Canal a assumir que esta sua opção “revestiu-se de opacidade, não cuidando de informar os telespectadores de que tais conteúdos resultaram de contrapartidas monetárias”, e que tal, quando não devidamente identificada, ameaça seriamente a independência do órgão de comunicação social e o livre exercício do direito à informação”.

    O regulador – no âmbito de uma análise detalhada, mas que incidiu somente no período de um ano (1 de Julho de 2021 a 30 de Junho de 2022, e em contratos exclusivamente com entidades públicas – identificou também, pela primeira vez, jornalistas habilitados com carteira profissional a executarem tarefas incompatíveis, ou seja, no cumprimento de tarefas impostas em contratos comerciais.

    Depois de ter deixado caducar um procedimento aberto em 2018, ERC voltou a passar os contratos do Porto Canal a “pente fino”. Irregularidades e ilegalidades são mais que muitas.

    Esta tem sido uma das matérias mais polémicas dentro da classe jornalística, denunciado várias vezes pelo PÁGINA UM, e sobre as quais a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, presidida pela jurista Licínia Girão, nada tem feito em concreto para atalhar.

    Desta vez – e é mesmo uma situação inédita –, a ERC nomeia explicitamente o jornalista Pedro Carvalho da Silva (CP 4108), pivot do Porto Canal e apresentador do programa de “infoentretenimento” Viver Aqui, por participar na produção de conteúdos onde “compromete não só o seu direito à autonomia e independência, como também o seu dever correspondente, tal como determinado no Estatuto do Jornalista”.

    Por outro lado, o Porto Canal comprometeu-se, neste contrato de 15 mil euros, a realizar cinco reportagens de 10 minutos em cinco meses, com conteúdos articulados entre as duas entidades, e ainda uma reportagem alargada de uma hora, ficando a hipótese de “dar ênfase ao Património Histórico ou até mesmo fazer várias reportagens em simultâneo em várias Caves de Vinho do Porto.” Ou seja, ingerências escandalosas na definição editorial de um órgão de comunicação social sob a forma de contrato público.

    Pedro Carvalho da Silva (“mascarado”), jornalista do Porto Canal, que será (em princípio) alvo de um processo disciplinar pela CCPJ, durante o primeiro aniversário do programa Viver Aqui (15 de Março de 2022), patrocinado pela autarquia de Vila Nova de Gaia. Ao seu lado esquerdo, o antigo director do Porto Canal, Tiago Girão, que cessou funções no mês de Março, mas que não foi abrangido pela deliberação da ERC.

    Na sua deliberação, os membros do Conselho Regulador dizem mesmo – e querem agora que o Porto Canal o exponha aos seus telespectadores – que “ao não acautelar as previsões legais e deontológicas exigidas, a televisão do Futebol Clube do Porto SAD “poderá ter comprometido a veracidade , rigor e objectividade dos conteúdos, em prejuízo do interesse público e da livre formação da opinião”.

    Nessa medida, a ERC enviou o processo do jornalista Pedro Carvalho da Silva para instauração de um processo disciplinar pela CCPJ. Ao contrário do que é habitual, desta vez a ERC invoca expressamente o artigo 14º do Estatuto do Jornalista, o que impedirá, em princípio, a CCPJ de não abrir, como é habitual, a abertura deste tipo de procedimentos disciplinares.

    Além de outras situações aparentemente legais mas que revelam grande promiscuidade – como autarcas que patrocinam programas a serem entrevistados nesses mesmos programas, como sucedeu com políticos de Valongo (duas vezes), Vizela e Póvoa de Varzim –, a ERC detectou ainda três casos de contratos públicos celebrados em data posterior à emissão das “peças jornalísticas”, designadamente aqueles assinados entre o Porto Canal e a UTAD e os municípios de Valongo e Póvoa de Varzim. Para estes casos, a ERC remeteu o caso para o Tribunal de Contas que poderá vir a determinar a nulidade destes três contratos e a correspondente devolução das verbas, além da eventual aplicação de multas.

    Excerto do caderno de encargos entre o Porto Canal e o município de Vila Nova de Gaia que estipula a obrigatoriedade da realização de reportagens jornalísticas sobre o município e uma entrevista ao edil.

    No caso do contrato com a UTAD, que envolveu a divulgação e cobertura do evento Vinhos Alumni, a ERC considerou que, pelas declarações dos enólogos, se estava perante publicidade a bebidas alcoólicas, pelo que será levantado um processo de contra-ordenação por violação da Lei da Publicidade.

    Na mesma linha, o patrocínio da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte para o programa Norte num Minuto mereceu críticas do regulador que, apesar das justificações do Porto Canal, decidiu abrir um “processo administrativo com vista ao apuramento sistemático e em profundidade das questões legais”.

    Em suma, o regulador pretende analisar com maior detalhe uma prática cada vez mais sistemática dos media mainstream: a encomenda de conteúdos específicos por parte de um patrocinador para serem explicitamente transmitidos por um órgão de comunicação social sem que seja claro para o público que se está perante um condicionamento (pelo menos indirecto) à liberdade editorial.

    Além de tudo isto, a ERC ainda detectou que a empresa Avenida dos Aliados – a detentora do Porto Canal – não tinha colocado no ano passado a informação sobre os fluxos financeiros na Plataforma da Transparência dos Media e se existiam clientes relevantes.

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    Jornalistas a cumprirem contratos comerciais abundam nas redacções, mas até agora a ERC não os identificava nem remetia os processos para a CCPJ invocando o artigo correcto do Estatuto do Jornalista.

    A situação foi entretanto corrigida, ficando-se agora a saber que a empresa do Porto Canal teve um prejuízo em 2021 da ordem dos 233 mil euros e que depende quase exclusivamente da FCP Media (do universo da Futebol Clube do Porto SAD) para sobreviver. Com efeito, dos cerca de 3,7 milhões de euros de rendimentos naquele ano, quase 3,5 milhões (93,94%) foram “injectados” pela FCP Media.

    Saliente-se que esta fiscalização especial ao Porto Canal sucede depois de um polémico arquivamento no ano passado de um procedimento, que deveria ter culminado num processo de contra-ordenação. O arquivamento foi justificado por “caducidade”, através de uma deliberação do Conselho Regulador da ERC, e a celeuma provocou mesmo uma reestruturação interna.

    A ERC, sabe o PÁGINA UM, está também a analisar um vasto conjunto de contratos similares aos do Porto Canal que envolvem a maioria dos principais órgãos de comunicação social, tendo jornalistas habilitados com carteira profissional a executá-los como se fossem “jornalistas comerciais”.

  • O pântano de uma república de mentiras: a pretexto de Manuel Pizarro e suas aldrabices

    O pântano de uma república de mentiras: a pretexto de Manuel Pizarro e suas aldrabices


    Faz este mês um ano que o PÁGINA UM iniciou as suas lutas pelos meandros dos tribunais administrativos, vistos como o derradeiro reduto – dir-se-ia ringue – para obrigar entidades públicas a disponibilizarem documentos administrativos, não apenas por serem e conterem matéria noticiosa mas sobretudo por esse acesso ser a única forma de se poder exercer em pleno o necessário controlo democrático.

    Dará, certamente, quase um filme, talvez kafkiano, entre o cómico e o dramático, descrever todos os episódios dos diversos processos de intimação que o PÁGINA UM tem encetado, desde logo o primeiro em que, nem de propósito, o visado é o Conselho Superior da Magistratura (CSM). O PÁGINA UM venceu em primeira instância – e já depois de um parecer favorável da Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos –, mas o CSM tem mau perder – e os magistrados não pagam custas – e recorreram.

    woman holding sword statue during daytime

    O processo está em banho-maria no Tribunal Central Administrativo Sul desde Novembro do ano passado, apesar do Ministério Público até ter já tomado posição favorável às pretensões do PÁGINA UM.

    Tanto no caso dessa intimação sobre o CSM como nas demais, a grande “batalha” tem-se regido sobretudo em duas linhas: invariavelmente, as entidades públicas – com as do Ministério da Saúde à cabeça –, mostram-se sempre muito preocupadas com a protecção da intimidade das pessoas, vulgo dados nominativos. A protecção é feita de tal modo que, por vezes, até se pretende esconder o simples nome de funcionários públicos que exercem funções e acções públicas com os dinheiros públicos. Um dia destes nem sequer será permitido saber qual é o nome do primeiro-ministro para proteger a sua intimidade.

    No caso particular da saúde, a estratégia seguida pelos diversos organismos tutelados pelo Ministério da Saúde – quase todos defendidos pela mesma sociedade de advogados, a BAS, que sempre ganha os contratos por ajuste directo – tem sido de argumentar até que a anonimização de dados permite, mesmo assim, a identificação de pessoas. Mesmo sendo um contrasenso – e mesmo um absurdo, porque a anonimização torna irreversível retomar aos dados nominativos iniciais –, à conta deste argumento, o PÁGINA UM perdeu (na quase totalidade) em primeira instância um processo contra o Infarmed.

    Certo é que à conta de se alegar a pretensão de se proteger a intimidade de uma incerta Dona Maria da Dores, que nem sabemos quem é, sobre os seus bicos de papagaio, se estarão a esconder crimes contra a Saúde Pública dos portugueses.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Mas a estratégia principal da Administração Pública – que extravasa a generalidade de todos os processos intentados pelo PÁGINA UM – tem sido o recurso sistemático à mentira e ao confundimento.

    Já tivemos relatórios que afinal são classificados como “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” (alô, IST).

    Já tivemos entidades (leia-se, CSM) a jurarem que os documentos continham dados nominativos, quando tal não era verdade (como confirmou um juiz que os pediu).

    Já tivemos uma entidade a jurar ser impossível anonimizar uma base de dados (alô, ACSS) e afinal descobriu-se que existia um despacho que explicitamente concedia uma delegação de competência a uma vogal.

    Já tivemos uma entidade – na verdade, duas (Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos) – a tentar convencer uma juíza de que, em vez de ceder os documentos contabilísticos e operacionais, bastaria fornecer uma auditoria encomendada. Diga-se que a auditoria, se foi concluída, nunca foi revelada.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: é um exemplo do burocrata obscurantista: anda há um ano a esconder dados do Portal RAM. Os dados são anonimizados, mas alega sempre que podem ser identificadas pessoas.

    Já tivemos uma entidade (leia-se, Direcção-Geral da Saúde) a alegar que não deveriam ser disponibilizados documentos enquanto os dados (da pandemia) estivessem sendo continuamente coligidos, porque como estavam em contínua actualização, o processo estava em curso, logo não finalizado. Por mais obtuso que tudo isto seja, houve uma juíza em primeira instância que tomou por bom este argumento, donde significa – a ser confirmado em sede de recurso – que a melhor forma da DGS não disponibilizar nada sobre a pandemia é nunca decretar o fim da pandemia.

    Já tivemos uma entidade (na verdade, foi também a DGS) que, depois de uma sentença a decretar que disponibilizasse actas de reuniões (da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19), veio depois dizer que afinal não houve actas porque se queria salvar pessoas.

    Podia continuar.

    Mas hoje veio mais uma pérola – e esta, como habitualmente, do Ministério da Saúde, com dedo, mão, pé, corpo e cabeça do ministro Manuel Pizarro.

    Como se sabe, o PÁGINA UM deseja ter acesso – por ser do mais elementar interesse público – aos contratos de compras das vacinas contra a covid-19. Não apenas por envolverem verbas gigantescas – pelo menos, para já, de quase 700 milhões de euros, havendo o risco de se gastar mais 500 milhões de euros, mesmo que não venham essas doses a serem administradas –, mas também para se entender quais as responsabilidades assumidas por ambas as partes nos contratos.

    Graça Freitas, directora-geral da Saúde: esconder, esconder e esconder, mesmo recorrendo à mentira.

    Ora, sabe-se que houve compromissos entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas – que estão, aliás, ensombradas – para a aquisição de vacinas pelos diversos países comunitários. Mas Portugal não perdeu ainda a soberania completa e rege-se por leis próprias. E essas determinam que todos os contratos públicos devem ser públicos. Porém, depois de terem sido colocados quatros contratos no Portal Base nos primeiros meses de 2021, a DGS não mais acrescentou nenhum.

    O PÁGINA UM foi requerendo ao longo do tempo mais informação detalhada, sempre negada, até que usámos o trunfo habitual: intimação no Tribunal Administrativo. O PÁGINA UM não mete o rabo entre as pernas perante uma recusa de acesso a documentos administrativos.  

    Depois desta intimação, feita em 31 de Dezembro do ano passado, o ministério de Manuel Pizarro – ou seja, Manuel Pizarro himself –, em conluio com a DGS – que ficará na História como a mais obscurantista entidade de Saúde Pública –, já fizeram e tentaram tudo.

    Primeiro, a DGS veio dizer ao Tribunal Administrativo de Lisboa que está em curso uma auditoria para tentar adiar uma consulta. Claro que não apresentou provada da realização dessa auditoria. Num país decente, essa afirmação seria investigada e se fosse falsa – como aparenta ser – a Doutora Graça Freitas seria acusada de perjúrio.

    Segundo, o Ministério da Saúde veio negar junto do mesmo Tribunal a existência de contratos entre a DGS e as farmacêuticas, tendo dado orientações – só pode – para serem expurgados integralmente os primeiros quatro contratos que constavam no Portal Base. Uma sacanice que lhes correu mal, porque o PÁGINA UM tinha esses ditos primeiros quatro contratos antes do expurgo.

    Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna, e inicialmente colocados no Portal Base, antes do expurgo ordenado pelo Governo. O Tribunal Administrativo de Lisboa tem, na sua posse, os primeiros quatro contratos assinados pela DGS e as farmacêuticas, tanto a versão integral como a expurgada. O PÁGINA UM quer aceder a todos os contratos e também às guias de transporte e às comunicações com as farmacêuticas.

    Apanhado a mentir e perante provas evidentes de ter apagado intencionalmente contratos do Portal Base, o Ministério da Saúde recusou responder a uma solicitação da juíza do processo, e veio hoje finalmente lançar mais poeira no processo.

    Perante a evidência de existirem contratos – o PÁGINA UM apresentou-os nos autos, não há forma de os negar –, Manuel Pizarro, por interposta pessoa, teve a desfaçatez, a cara-de-pau, de dizer o seguinte ao processo de intimação:  

    “(…) sobre a existência dos contratos celebrados pela Direção-Geral da Saúde ou outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde com as empresas farmacêuticas que comercializam vacinas contra a COVID-19, desde 2020, até à data do pedido (22-11-2022), esses documentos existem e a informação passível de ser conhecida, é de acesso público estando disponibilizada na página eletrónica da Comissão Europeia.” [sic]

    E acrescentou ainda:

    “Contudo, os contratos celebrados no âmbito da aquisição de vacinas contra a COVID-19 são matéria reservada, em cumprimento do dever de confidencialidade exigido pela Comissão Europeia relativamente aos seus dados, nomeadamente no que diz respeito ao preço unitário das vacinas, sendo dados sujeitos a restrição e não de acesso livre. Inexistem anexos e cadernos de encargos visto ter-se tratado de aquisições efetuadas através de compras centralizadas pela Comissão Europeia.”

    Com duas singelas páginas, Ministério da Saúde tenta confundir Tribunal Administrativo de Lisboa insinuando que os contratos assinados pela Direcção-Geral da Saúde constam do site da Comissão Europeia. É falso. Tal como é falso que esses contratos contenham matéria reservada perante a lei nacional.

    Quem ler isto – e presume-se que a juíza do processo lerá –, pode pensar que os contratos entre a DGS e as empresas farmacêuticas estão disponibilizados na página electrónica da Comissão Europeia. Mentira. Não estão nada – e Manuel Pizarro sabe e só a sua aldrabice pode permitir a tentação de enganar uma juíza. A informação disponibilizada pela Comissão Europeia consta aqui, e nada aí encontra que remeta para os contratos relativos a Portugal, assinados explicitamente entre a DGS, alguns pelo punho da Doutora Graça Freitas, e as farmacêuticas.  

    Por fim, não há matéria reservada coisíssima nenhuma. Os contratos públicos em Portugal não são matéria reservada – pelo contrário –, e jamais podem ser se continuarmos a querer chamar Democracia ao regime deste rectângulo. E mesmo que houvesse matéria reservada como poderia esta incluir matérias como o “preço unitário das vacinas”?

    O que anda a ser afinal escondido? Que negócios são assim tão apetitosos que a aldrabice reine e transforme uma república democrática num pântano fedorento?

  • Juíza aplicou “ultimato”, que termina hoje, para Manuel Pizarro esclarecer contratos sonegados

    Juíza aplicou “ultimato”, que termina hoje, para Manuel Pizarro esclarecer contratos sonegados

    Depois de apagar contratos públicos relativos às compras de vacinas contra a covid-19 no Portal Base, o Ministério da Saúde quis ignorar o Tribunal Administrativo como tem feito com o PÁGINA UM. Mas a juíza do processo não foi pelos ajustes e deu um “ultimato”. Se, pela segunda vez, não responder ao Tribunal Administrativo de Lisboa com aquilo que lhe é solicitado, Manuel Pizarro pode ser condenado como litigante de má-fé. Entretanto, a adesão à vacinação está a aproximar-se do zero: na última semana com dados, apenas se vacinaram por dia menos de 600 pessoas; em Dezembro eram quase 18 mil. Mas Portugal pode estar obrigado a comprar mais doses mesmo que não as administre, daí o interesse em se conhecerem os contratos e as comunicações com as farmacêuticas.


    No mês passado, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, quis elevar ao absurdo os padrões de obscurantismo deste Governo no acesso à informação de documentos administrativos públicos, recusando responder ao despacho da juíza que analisa o processo de intimação do PÁGINA UM com vista ao acesso aos contratos de compra de vacinas contra a covid-19 assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (DGS) e as farmacêuticas.

    Mas um novo despacho da juíza Telma Nogueira, no passado dia 24 de Março, deixou-o sem margem de manobra, e mandou repetir a notificação para a “Entidade demandada [Ministério da Saúde] (…), em cinco dias, se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado pelo Autor [PÁGINA UM] em 06.02.2023, nomeadamente, quanto à existência dos contratos cujo acesso é peticionado nos autos, cf. doc. n.º 1 junto com a Petição Inicial.”

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    Nesse requerimento, o PÁGINA UM apresentou provas cabais da existência de quatro contratos integrais – ou seja, as cópias, que estiveram durante mais de um ano no Portal Base –, bem como das páginas expurgadas de quaiquer dados que actualmente constam na plataforma da contratação pública.

    A sonegação daqueles quatro contratos foram feitos no Portal Base após a apresentação da intimação pelo PÁGINA UM em 31 de Dezembro do ano passado, e teve o claro objectivo por parte do Ministério da Saúde de convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa que nunca houve contratos assinados por nenhuma entidade da Administração Pública portuguesa e as farmacêuticas.

    Além destes quatro, haverá um número indeterminado de outros contratos, uma vez que terão já sido adquiridas cerca de 45 milhões doses de vacinas e os quatro primeiros contratos englobam pouco mais de 10 milhões de doses. Porém, o número de 45 milhões de doses não tem nenhum documento de suporte; são meras indicações transmitidas pelo gabinete de imprensa do Ministério da Saúde aos órgãos de comunicação social. Também se ignora os montantes já pagos pelo Governo português às farmacêuticas.

    A notificação ao Ministério da Saúde do despacho da juíza foi concretizada no dia 27 de Março passado, pelo que o prazo de cinco dias termina hoje.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde, nem ordens do Tribunal Administrativo de Lisboa quis respeitar.

    Caso Manuel Pizarro dê instruções para não dar mais qualquer informação ao Tribunal, o Ministério da Saúde pode vir a ser condenado, desde já, como litigante de má-fé, conforme requerimento já apresentado no mês passado pelo PÁGINA UM.

    Recorde-se que o PÁGINA UM apresentou (mais) este processo de intimação face à recusa do Ministério da Saúde em disponibilizar os contratos assinados entre a DGS e as farmacêuticas para a compra de vacinas contra a covid-19. Numa primeira fase, o Ministério de Manuel Pizarro começou por alegar a existência de uma auditoria em curso à gestão das vacinas, algo que nunca comprovou nem justificou, e que nem conflitua com uma consulta. E também tentou convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que não existiam contratos entre entidades públicas portuguesas e as farmacêuticas.

    Tanto num ofício da DGS, assinado por Graça Freitas, enviado ao PÁGINA UM em Dezembro, como num requerimento de defesa do Ministério da Saúde, argumenta-se que, no âmbito da aquisição de vacinas contra a covid-19 se “estabeleceu um processo de contratação central”, através dos denominados Advance Purchase Agreements (APAs), entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, acrescentando que isso “dispensa[ria] os Estados-membros de qualquer procedimento adicional de contratação”.

    Despacho da juíza Telma Nogueira a dar ultimato ao Ministério da Saúde. São cinco dias para responder.

    Mas isso não é verdade, como comprovou o PÁGINA UM. Durante cerca de dois anos, constaram quatro contratos no Portal Base assinados pela DGS: dois com a Pfizer e outros dois com a Moderna. Os quatro contratos originais encontram-se no servidor do PÁGINA UM.

    Porém, estes quatro contratos abrangiam uma percentagem minoritária das cerca de 45 milhões de doses supostamente adquiridas pelo Governo, razão pela qual o PÁGINA UM requereu o acesso aos outros contratos, bem como às guias de transporte e às comunicações entre farmacêuticas e Ministério da Saúde. O objectivo também é de saber se existem indicações sobre compras obrigatórias futuras e cláusulas sobre responsabilidades futuras em caso de reacções adversas graves.

    Recorde-se que Portugal terá já gastado mais de 675 milhões de euros com vacinas contra a covid-19, mas está em risco de deitar para o lixo mais de oito milhões de doses, no valor estimado de 120 milhões de euros, face ao desinteresse manifestado nos últimos meses pelos portugueses na toma dos denominados boosters.

    Além disso, os acordos assumidos pela Comissão von der Leyen – e que tanto polémica já suscitam – poderão obrigar o Estado a assumir compras obrigatórias de mais 500 milhões de euros de vacinas mesmo que não as administre.

    Face às manifestas mentiras do Ministério da Saúde, o PÁGINA UM remeteu ao Tribunal Administrativo de Lisboa um conjunto de provas documentais sobre a existência dos quatro contratos do início de 2021, bem como do “apagão” desses documentos no Portal Base ordenado pelo Ministério da Saúde.

    Em consequência, a juíza do processo, Telma Nogueira, exarou um despacho no passado dia 20 de Fevereiro com o seguinte conteúdo: “Notifique a Entidade demandada [Ministério da Saúde] para, em cinco dias se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado pelo Autor [PÁGINA UM] em 06.02.2023, nomeadamente, quanto à existência dos contratos cujo acesso é peticionado nos autos, cf. doc. n.º 1 junto com a Petição Inicial.”

    Mas o Ministério da Saúde decidiu simplesmente ignorar a ordem do Tribunal, nem sequer respondendo à juíza Telma Nogueira, consubstanciando assim a prática de litigância de má-fé. De facto, de acordo com o Código do Processo Civil, um litigante de má-fé é a parte que, “com dolo ou negligência grave”, por exemplo, tenha “alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” ou “tiver praticado omissão grave do dever de cooperação”.

    Se recusar uma segunda vez, aparentemente não restará à juíza do processo outra opção que não seja considerar que ostensivamente o Ministério da Saúde se recusa a colaborar com um Tribunal.

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    Ministério da Saúde apagou quatro contratos do Portal Base e nunca publicou um número indeterminado de outros contratos de compra de vacinas contra a covid-19. A intimação do PÁGINA UM pretende fazer luz sobre estes estranhos negócios.

    Além do interesse em perceber quais as verbas que foram já gastas pelo Governo português com as vacinas contra a covid-19, o PÁGINA UM pretende verifcar se constam condições específicas para aquisições futuras, daí que tenha requerido também as comunicações entre entidades públicas e as farmacêuticas.

    Sabe-se que os compromissos estabelecidos pela Comissão von der Leyen com as farmacêuticas incluem compras adicionais que, aparentemente, não serão usadas. Com efeito, a procura por vacinas contra a covid-19 têm estado em queda livre à medida que a confiança neste fármaco, tanto em termos de eficácia como de segurança, tem decaído.

    Por exemplo, em Portugal, de acordo com o último relatório sazonal, relativo à semana 12 deste ano (20 a 26 de Março), apenas foram vacinadas contra a covid-19 uma média diária de 561 pessoas. Em Dezembro do ano passado, na semana 50 de 2022, foram vacinadas 17.960 pessoas por dia. A procura pelo booster sazonal (Inverno) na população com menos de 50 anos terá sido de cerca de 1%, enquanto no grupo etário dos 50 aos 59 anos foi de apenas 45%.

    A baixa adesão pode ter, como consequência imediata, a perda de validade de lotes de vacinas. O PÁGINA UM estima que, incluindo as já entretanto destruídas, Portugal venha a desperdiçar oito milhões de doses de vacinas contra a covid-19 no valor de 120 milhões de euros, já pagos às farmacêuticas.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 17 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Caso Filipe Froes: Inspecção-Geral das Actividades em Saúde com nova intimação no Tribunal Administrativo

    Caso Filipe Froes: Inspecção-Geral das Actividades em Saúde com nova intimação no Tribunal Administrativo

    O pneumologista Filipe Froes, figura mediática durante a pandemia e consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), é também um dos médicos com mais conflitos de interesse, devido às suas ligações (em muitos casos promíscuas) com mais de duas dezenas de empresas do sector farmacêutico. Um processo de averiguações da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) foi-lhe levantado em Setembro de 2021, e até resultou num processo disciplinar em Fevereiro do ano passado. Mas tudo está a “marinar” há meses, e a IGAS nem sequer quer mostrar agora os documentos preparatórios, alegando segredo. O “jogo do gato e do rato” terminará com uma decisão do Tribunal Administrativo, por via de mais uma intimação – a única forma que o PÁGINA UM tem tido para aceder a documentos oficiais.


    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está com um novo processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, intentado pelo PÁGINA UM, por recusar disponibilizar o processo de averiguações levantado ao pneumologista Filipe Froes em Setembro de 2021 por alegadas ligações ilegais à indústria farmacêutica. A intimação visa também obrigar o inspector-geral da IGAS a facultar o seu despacho que determinou esse processo disciplinar, que já dura há mais de 13 meses.

    Esse processo de averiguações foi concluído em 19 de Fevereiro do ano passado, tendo resultado na abertura de um processo disciplinar àquele médico, que se destacou como figura mediática durante a pandemia, ao mesmo tempo que era consultor da Direcção-Geral da Saúde – definindo as terapêuticas para os tratamentos – e também consultor e palestrante de mais de duas dezenas de farmacêuticas.

    Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde, já perdeu um processo de intimação intentado pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    A acção do PÁGINA UM culmina quase um ano de um autêntico jogo do gato e do rato, onde a IGAS se tem furtado a disponibilizar elementos que possam trazer mais luz sobre os meandros das ligações promíscuas entre certos médicos e a indústria farmacêutica.

    Em finais de Outubro do ano passado, o PÁGINA UM chegou a obter uma sentença favorável do Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a várias dezenas de processos intentados nos últimos anos pelo IGAS, mas, ao contrário do expectável, não estava ainda incluído qualquer documento referente a Filipe Froes.

    Mais tarde, em finais de Novembro, a IGAS acabou por revelar ao PÁGINA UM que o processo de averiguações sobre Filipe Froes, que fora conhecido desde Setembro de 2021, tinha resultado num processo disciplinar em 19 de Fevereiro de 2022, por determinação do inspector-geral Carlos Carapeto, mas então ainda não concluído, estando assim em segredo. Quatro meses depois, continua sem estar concluído, significando que está a “marinar” há mais de 13 meses.

    Filipe Froes foi o autor de um livro patrocinado por uma farmacêutica (BIAL), mas não se encontra registo de qualquer apoio no Tribunal Administrativo.

    Ora, mas de acordo com a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, “o acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”, acrescentando-se ainda que “o acesso ao conteúdo de auditorias, inspeções, inquéritos, sindicâncias ou averiguações pode ser diferido até ao decurso do prazo para instauração de procedimento disciplinar”.

    Nessa medida, mesmo que a IGAS queira, e eventualmente até por pressão política, adiar sine die a conclusão do processo disciplinar a Filipe Froes para manter o secretismo das eventuais ilegalidades por si cometidas, a legislação parece determinar, de forma inequívoca, que todos os procedimentos prévios ao processo disciplinar (processo de averiguações e despacho do inspector-geral) passaram a ter acesso não protegido desde 19 de Fevereiro passado.

    A IGAS, contudo, tem opinião distinta, salientando que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, incluindo, naturalmente o inquérito que o precede”, invocando mesmo uma norma da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.

    Porém, nessa norma nada se refere sobre o inquérito precedente, neste caso o processo de averiguações, uma vez que simplesmente se diz que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, podendo, contudo, ser facultado ao trabalhador, a seu requerimento, para exame, sob condição de não divulgar o que dele conste.” Por agora, o PÁGINA UM pretende pelo menos ter acesso ao processo de averiguações e ao despacho para a abertura do processo disciplinar.

    two Euro banknotes

    A IGAS chega também a alegar que a norma da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos que concede o direito de “acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos” pelo menos ao fim de um ano se aplica apenas a “informação ambiental” – um equívoco, certamente, porquanto essa norma refere-se às restrições ao direito de acesso aplicável a qualquer tipo de documento administrativo.

    Saliente-se que, ao longo dos meses, a IGAS nunca quis adiantar quais os motivos de tantos meses para a instrução deste processo disciplinar, tendo laconicamente informado que vem no seguimento da “informação de avaliação n.º 149/2022”, que mereceu um despacho em 19 de Fevereiro passado do inspector-geral Carlos Carapeto, que deu instruções para ser iniciado um processo disciplinar, ignorando-se também o “castigo” eventualmente a aplicar.

    Em todo o caso, a decisão de instauração de um processo disciplinar a Filipe Froes após um processo formal de averiguações – revelado em Novembro do ano passado pelos semanários O Novo e Expresso – mostra já a existência de fortes indícios de irregularidades e/ ou ilegalidades.

    De facto, o processo de averiguações só avançaria para uma fase posterior se se tivesse apurado matéria suficiente para uma “condenação” em processo disciplinar, o que não surpreenderá, tendo em conta o que se foi tornando público.

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    O PÁGINA UM tem acompanhado as relações promíscuas de vários médicos e, particularmente de Filipe Froes, neste caso pelos montantes envolvidos e pelas acções em que participa que se confundem com marketing. Além disso, o PÁGINA UM já detectou, através de declarações de Filipe Froes no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed sinais de alguma “contabilidade criativa” para que não fosse ultrapassada a média anual (no último quinquénio) de 50 mil euros de recebimentos da indústria farmacêutica. Esta é a fasquia monetária a partir da qual Froes ficaria impedido de ser consultor da DGS.

    Mas também existem suspeitas de que Filipe Froes é apoiado por farmacêuticas sem que estas registem os montantes no Portal da Transparência do Infarmed. Exemplo disso passou-se com a antologia de crónicas que publicou no Diário de Notícias com o patrocínio (ainda não declarado) da farmacêutica Bial, que nunca respondeu ao PÁGINA UM sobre essa matéria.

    Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia. Foi também mandatário da lista de Carlos Cortes, o novo bastonário da Ordem dos Médicos.

    Filipe Froes (ao centro) foi o mandatário da candidatura vencedora de Carlos Cortes (quarto à esquerda) a bastonário da Ordem dos Médicos.

    De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado ultrapassa os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. No ano passado também ultrapassou a fasquia dos quatro mil euros por mês.

    Este ano tem sido mais “comedido”: recebeu no primeiro trimestre “apenas” 6.620 euros, o que representa pouco mais de 2.200 euros mensais. Contudo, convém salientar que o Infarmed não faz, por rotina, qualquer tipo de fiscalização destes registos, pelo que se mostra fácil receber dinheiro e outras ofertas de farmacêuticas sem declaração no Portal da Transparência, como aliás fez o antigo bastonário da Ordem dos Médicos Miguel Guimarães.


    Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM já intentou 17 processos de intimação desde Abril do ano passado. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido.

  • Probabilidade de morte em 2020, 2021 e 2022, mesmo para os mais idosos, foi inferior à registada em 2013 e anos anteriores

    Probabilidade de morte em 2020, 2021 e 2022, mesmo para os mais idosos, foi inferior à registada em 2013 e anos anteriores

    Foi anunciada como a pandemia do século e colocou a sociedade em estado de pânico e mais do que à beira de um ataque de nervos, colapsando Economia e relações sociais. Que houve um excesso de mortalidade nos últimos três anos, é uma evidência, sobretudo nos mais idosos (com mais de 85 anos). O relatório do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), anteontem divulgado, confirma este facto, e até alerta para um estranho acréscimo da mortalidade em 2022 nos jovens dos 15 aos 24 anos. Mas esta análise do INSA acaba por ser extremamente redutora e nem sequer escalpeliza a evolução da taxa de mortalidade padronizada e dos diversos grupos etários, que apresentam em quadros e em gráficos sem quaisquer comentários. Não fizeram eles, faz o PÁGINA UM. E assim se fica a saber que, afinal, a pandemia da covid-19 esteve muito longe de um impacte superior à da gripe espanhola, como certos especialistas quiseram fazer crer. Na verdade, basta recuarmos a 2013 para encontrar anos com taxas de mortalidade padronizada e por grupos etários para constatar que, não há muitos anos, e sem covid-19, as doenças “banais” representavam um maior risco de morte, mesmo nos mais idosos.


    Chegou a ser classificada por muitos especialistas como uma pandemia equiparada à gripe espanhola, mas afinal os dados constantes no relatório do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) sobre o excesso de óbitos em 2022, revelado anteontem, mostram que afinal as taxas de mortalidade durante o triénio da pandemia (2020-2022) estiveram até a um nível mais baixo do que aquelas que, por norma, se registaram em 2013 e nos anos anteriores.

    Embora estranhamente o relatório do INSA não tenha desejado interpretar a evolução das taxas de mortalidade padronizada e por grupos etários, uma tabela (e gráficos) com a evolução destes indicadores entre 1991 e 2022 para cada um dos intervalos de idades – a começar dos 0 aos 4 anos e a terminar nos maiores de 85 anos –, uma análise do PÁGINA UM permite aferir facilmente que a probabilidade de morte em 2013 foi superior (8,5 por mil habitantes ) à de qualquer dos três anos da pandemia: 2020 (8,4 por mil habitantes), 2021 (8,2 por mil habitantes) e 2022 (8,1 por mil habitantes). Se recuarmos para as datas anteriores a 2013, e até 1991, o cenário é idêntico: genericamente, a taxa de mortalidade padronizada situou-se acima (e, por vezes, bem acima) da registada no triénio da pandemia.

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    Na verdade, as taxas de mortalidade padronizada e por grupo etário dos anos da pandemia pareceriam quase idílicas na primeira década do presente século ou nos anos 90 do século passado. Por exemplo, a taxa de mortalidade padronizada até 2005 foi superior a 10%, atingindo os 14% em 1991. A taxa de mortalidade padronizada durante os três anos de pandemia situaram-se, repita-se, entre os 8,1 e os 8,4 por mil habitantes.

    Mesmo no casos dos mais idosos (maiores de 85 anos), os mais vulneráveis à covid-19, apesar de se ter registado um forte agravamento da respectiva taxa de mortalidade no triénio de 2020-2022 face ao triénio anterior – média aritmética de 156,5 por mil face a 149,5 por mil nos anos de 2017-2019 –, se se observar os valores de anos anteriores constata-se também que a pandemia não foi uma hecatombe. Ou, pelo menos, confirma-se que os mais idosos de agora resistiram muito mais às doenças (incluindo a covid-19) do que num passado não muito longínquo.

    Em termos concretos, pelos dados calculados pelo INSA, no grupo dos maiores de 85 anos (já acima, portanto, da esperança média de vida), em 2020 – primeiro ano da pandemia – morreram por todas as causas quase 16 em cada 100 idosos desta faixa etária (159,4 por mil), descendo depois para 15,3% em 2021, e voltando estranhamente a subir em 2022, para os 15,72% (ou 157,2 por mil). Ora, o valor elevado no ano passado chega a ser superior ao registado em 2012 (158,2 por mil) e à generalidade dos anos anteriores.

    Página 21 do relatório do INSA apresenta a evolução das taxas de mortalidade padronizada, taxa bruta de mortalidade total e taxa de mortalidade por grupo etário, mas acaba por não escalpelizar esses indicadores relevantes e tira até conclusões incrongruentes com os dados que revela.

    Aliás, se recuarmos ao ano da gripe pandémica A (H1N1), em 2009, a probabilidade de morte nesse ano, dos mais idosos, foi superior: a taxa de mortalidade no grupo dos maiores de 85 anos foi de 16% (160 por mil). E nos anos 90, esse indicador ultrapassava geralmente os 20%. Por exemplo, se por cada 1.000 idosos com mais 85 anos, morreram 214 ao longo de 1991, no período mais agreste da pandemia para este grupo (2020) morreram “apenas” 159 – ou seja, menos 55 mortes em cada 1.000 pessoas desta faixa etária.

    Esta evolução apenas demonstra que a pandemia da covid-19 “apanhou” a sociedade numa altura em que a tecnologia e os cuidados de saúde estavam num processo de contínua melhoria com evidentes reflexos na diminuição da taxa de mortalidade por grupo etário, e que, mesmo havendo uma inversão (subida), esta não deveria ter justificado o pânico generalizado. Afinal, a covid-19 e todas as outras doenças tiveram uma letalidade em 2020, 2021 e 2022 menor do que aquela que todas as doenças (sem covid-19, que ainda não existia) registaram há uma ou duas décadas.

    Em todo o caso, não parece existirem dúvidas de que a pandemia – integrando o agravamento da letalidade de outras doenças – inverteu a tendência de decréscimo ou estabilização das taxas de mortalidade sobretudo nos grupos etários acima dos 60 anos. Se comparado com o triénio anterior, também nas faixas etárias dos 80 aos 84 anos houve um agravamento no triénio da pandemia (2020-2022), passando de uma média aritmética de 56,3 por mil (ou 5,63%) para 58,5. O agravamento foi mais ténue nos grupos antecedentes. Por exemplo, dos 60 aos 64 anos, comparando os dois triénios, a subida foi apenas de 0,04 pontos percentuais (7,9 para 8,3 por mil).

    Página 22 do relatório do INSA, que apresenta em gráfico a evolução das diferentes taxas de mortalidade, incluindo por grupo etário, entre 1991 e 2022, extraindo também o efeito covid-19. Essa “extracção” acaba também por mostrar que a pandemia não teve qualquer efeito abaixo dos 50 anos e que a covid-19 terá sido uma causa “exagerada” na atribuição de muitos óbitos em idades mais avançadas.

    No entanto, os quadros do INSA mostram um aspecto que não é suficientemente aflorado no conteúdo do relatório: embora a taxa de mortalidade padronizada tenha descido entre 2021 e 2022 – acompanhada a transição para a fase endémica da covid-19 e perante a dominância da menos letal variante Ómicron –, verificou-se um significativo agravamento da taxa de mortalidade dos maiores de 85 anos entre 2021 e 2022, subindo de 15,3% para 15,72%.

    Este fenómeno somente se repetiu na faixa etária dos 15 aos 24 anos – e com grande preocupação por serem idades onde a mortalidade era naturalmente bastante baixa.

    Estas duas situações – tanto para os jovens como para os mais idosos – tem vindo a ser acompanhado pelo PÁGINA UM desde o ano passado. No caso dos idosos, o INSA aponta a culpa para a covid-19, frios e ondas de calor, mesmo em Maio, quando as temperaturas acima da média acabam por ser inferiores às temperaturas normais dos meses de Verão, o período naturalmente de menor mortalidade em Portugal. Em relação aos mais jovens, embora destaquem a anormalidade do aumento da taxa de mortalidade, o INSA não quis ir mais longe.

    Os investigadores do INSA dizem apenas que “os excessos de mortalidade nos grupos mais jovens são raros estando, maioritariamente, associados a causas externas de mortalidade”, mas depois simplesmente acrescentam que “a ausência de informação disponível quanto às causas de morte não nos permite confirmar esta hipótese que colocamos como mais provável, dado o conhecimento anterior e o padrão do excesso observado (aumento acentuado em relação ao habitual e de curta duração)”.

    Saliente-se que existe informação: o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) contém, na base de dados de raiz, todas as causas de mortes de todas as pessoas, incluindo os 375 jovens entre os 15 e os 24 anos que morreram no ano passado.

    Mas foi a estranha subida da taxa de mortalidade dos maiores de 85 anos, também ainda sem uma cabal explicação – e apenas possível se se analisarem as causas de morte per si, e não os fenómenos adjuvantes (como frio, ondas de calor ou mesmo gripe ou covid-19) – que justifica quase todo o excesso considerável de mortalidade (absoluta) que se registou em 2022. E, em consequência, do aumento da mortalidade absoluta nos últimos três anos.

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    Na verdade, a subida da taxa de mortalidade bruta – portanto, sem ser padronizada – apenas se justifica pelo envelhecimento e também agora por “distúrbios” nos cuidados de saúde dos mais vulneráveis.

    Uma nota final para as conclusões do relatório do INSA, que entram em profunda contradição com os dados que são expostos, sobretudo com a tabela da página 21 e os gráficos da página 22. Na parte final refere-se taxativamente que “em termos relativos, os excessos de mortalidade foram inferiores a outros períodos de epidemias de gripe e de covid-19, o que poderá dever-se à menor atividade gripal observada em 2022, em especial nos grupos etários mais velhos (dados da vigilância da gripe não publicados) e à menor gravidade da infeção por SARS CoV-2 após a vacinação”.

    Esta frase não encontra respaldo na realidade: como os quadros dos próprios investigadores do INSA expõem, a taxa de mortalidade do grupo etário mais idoso (maiores de 85 anos) agravou-se em 2022 face a 2021, exactamente quando surgiu uma variante menos letal (Ómicron) e depois do processo de vacinação com sucessivos boosters. O INSA nem academicamente coloca sequer a mais ténue hipótese de alguma coisa estar a correr mal com o próprio processo de vacinação: é tema claramente tabu, cuja hipótese jamais deve ser colocada em cima da mesa para ser descartada com provas científicas. Em prol da “Ciência”, claro.

    Por outro lado, na ânsia de mostrarem que não houve assim tanto excesso de mortalidade não-covid, nem sequer se terão apercebido que destacaram inadvertidamente o ténue impacte da pandemia da covid-19 num contexto cronológico mais alargado. De facto, pela via das taxas de mortalidade por grupo etário, até os idosos do triénio de 2020-2022 se “portaram” bem melhor com uma pandemia em cima do que os idosos da mesma idade há pouco mais de uma década sem a pandemia. Basta ver pelos melhores quocientes de sobrevivência em cada um dos anos (o inverso da taxa de mortalidade).


    N.D. Recomendamos a leitura e análise atenta do relatório do INSA, até para observar em maior detalhe os quadros e gráficos aqui referidos. E confirmar o rigor da análise do PÁGINA UM, que está em contraciclo com aquilo que têm sido as análises da generalidade da imprensa ao relatório em causa.

  • Internamentos hospitalares: Ministério da Saúde “estrebucha” mas vai ter (mesmo) de mostrar base de dados escondida

    Internamentos hospitalares: Ministério da Saúde “estrebucha” mas vai ter (mesmo) de mostrar base de dados escondida

    Enquanto coniventes investigadores do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge garantem, num relatório ontem divulgado, que não existem dados disponíveis para saber as causa do excesso de mortalidade, o PÁGINA UM continua a sua luta pela transparência, tentando obrigar o Ministério da Saúde a mostrar as diversas bases de dados efectivamente existentes mas intencionalmente escondidas sobre os internamentos e as causas de morte dos portugueses. Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul – a segunda instância – veio agora reconfirmar a legitimidade do direito do PÁGINA UM para ver aquilo que o Governo não quer mesmo mostrar: a base de dados que permite saber quais foram as doenças que levaram os portugueses a serem internados e quais as suas taxas de mortalidade ao longo do tempo. A Administração Central do Sistema de Saúde, presidido por um amigo de longa data da ex-ministra da Saúde Marta Temido, tem agora 10 dias para disponibilizar ao PÁGINA UM a base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos.


    É um acórdão verdadeiramente histórico em prol da transparência – e a confirmação de (mais) uma derrota da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) na desesperada tentativa de esconder o que se tem passado no Sistema Nacional de Saúde nos últimos anos.

    Aprovado pelos desembargadores Ricardo Ferreira Leite, Catarina Jarmela e Paula Ferreirinha Loureiro, o acórdão com data de 23 de Março, em resposta a um recurso da ACSS, é categórico na confirmação da sentença de primeira instância, de Novembro do ano passado, que obrigara a entidade tutelada pelo Ministério da Saúde a “facultar (…) o acesso ou cópia digital da base de dados do GDH [Grupos de Diagnósticos Homogéneos], expurgada dos dados pessoais que nela constem” ao PÁGINA UM.

    Marta Temido (ex-ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. A antiga governante e o dirigente da ACSS foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    O acórdão do passado dia 23 de Março concede um prazo de 10 dias úteis para o seu cumprimento. Embora ainda haja possibilidades de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, um volte-face será pouco provável: os desembargadores descartaram agora qualquer possibilidade de nulidades pretendidas pela ACSS, através da sociedade de advogados BAS, que através de contratos por ajuste directo tem assessorado diversas entidades ligadas ao Ministério da Saúde.

    A base de dados em causa (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença.

    Contém também dados de identificação (nome, idade e sexo), mas como em qualquer base de dados moderna, o expurgo de dados nominativos, neste caso o nome do doente, é uma opção prevista na concepção dos perfis de acesso, tornando assim os dados completamente anonimizados (insusceptíveis de identificação de pessoas), permitindo assim todo o tipo de tratamento estatístico.

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    Constitui assim – e sem qualquer risco de violação da intimidade, porque os dados estão completamente anonimizados – uma ferramenta por excelência para identificar e quantificar o efectivo impacte da pandemia e da covid-19 desde 2020. Perante as dificuldades de acesso aos dados integrais do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – que também se encontra em análise nos tribunais administrativos –, a BD-GDH possibilitará obter indicadores fundamentais sobre as principais afecções e doenças que poderão estar a contribuir para o contínuo excesso de mortalidade, numa fase em que a covid-19 se encontra já em fase endémica.

    Esta redobrada vitória histórica do PÁGINA UM – que se sucede a outras sentenças favoráveis – surge no decurso de um longo processo de obstaculização por parte do presidente da ACSS, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido –, que começou, em meados de Maio passado, por expurgar do Portal da Transparência do SNS uma base de dados pública sobre morbilidade e mortalidade hospitalar, uma versão manipulada e mais simplista da BD-GDH.

    A decisão de Victor Herdeiro – justificada pela necessidade nunca provada de “análise interna” – foi uma reacção política ao conjunto de artigos de investigação do PÁGINA UM sobre o desempenho hospitalar desde 2020, e não apenas relacionado com a covid-19.

    No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho do ano passado, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa. A BD-GDH tem um potencial informativo muito superior.

    Mesmo sendo uma simplificação da BD-GDH, essa base de dados que estava no Portal da Transparência permitira, através de análise estatística feita pelo PÁGINA UM, revelar que, até Janeiro desse ano, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Após várias tentativas para “convencer” o Ministério da Saúde – que nunca quis rectificar a conduta de Victor Herdeiro –, o PÁGINA UM apresentou em 19 de Agosto passado uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra a ACSS, mas já não apenas para a reposição da versão original da base de dados da mortalidade e morbilidade – que fora entretanto reposta mas completamente “mutilada”. Com efeito, foi também solicitado o acesso à BD-GDH, por se ter considerado ser uma base de dados mais completa e muito mais “imune” a intervenções políticas.

    No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa. A BD-GDH tem um potencial informativo muito superior.

    Desde logo, a ACSS mostrou que não estava interessada em abrir mão à “secreta” BD-GDH. Alegando que já repusera a base de dados original da morbilidade e mortalidade hospitalar – o que, de facto, terá sucedido em meados de Agosto –, a ACSS começou por tentar iludir a juíza do processo, Ilda Maria Côco, fazendo crer ter já satisfeito o pedido integral do PÁGINA UM, e solicitou assim que a intimação fosse “totalmente julgada improcedente e indeferida, tudo com legais consequências”.

    Somente após um requerimento do advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, provando que estava sobretudo em causa a continuada recusa do acesso à BD-GDH, a ACSS veio pronunciar-se sobre este assunto – ou seja, foi obrigada a justificar a recusa. Mas recorrendo à mentira.

    Com efeito, através da mesma sociedade de advogados, a ACSS defendeu que a BD-GDH continha “dados pessoais” e que “as funcionalidades dos sistemas de informação nos quais se encontram localizadas não permitem tecnicamente a respetiva consulta sem acesso aos dados pessoais em causa”, acrescentando que “reprodução (digital) da informação da base de dados com expurgo dos dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado que ultrapassa a simples manipulação”.

    Primeira página do acórdão histórico de 23 de Março passado.

    E concluiu ainda que, “associado à extensão dos dados em causa e à própria arquitetura dos sistemas de informação em que se suportam as bases de dados”, obrigar a anonimização “acarretaria para ACSS uma atuação administrativa, com gestão dos recursos disponíveis para a prossecução das respetivas atribuições legais em desvio dos princípios aplicáveis e pelos quais se deve reger a atividade administrativa, nomeadamente, os princípios do interesse público, da boa administração, da proporcionalidade e da razoabilidade”.

    Este arrazoado tinha, porém, apenas um fito: continuar a esconder a BD-GDH do escrutínio público, tentando convencer a juíza do processo de que a anonimização de uma base de dados deste género não é um processo corriqueiro, nem que basta seleccionar as variáveis que se pretenda e, nessa linha, excluir aquelas que não se pretendem. Destaque-se que o PÁGINA UM jamais teve a pretensão de revelar dados pessoais de doentes, sobretudo por não ser ético, mas também por ser de interesse nulo para quaisquer diagnósticos em saúde pública.

    Mas este arrazoado jurídico tinha perna curta. De facto, a anonimização da BD-GDH é um procedimento tão corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, conforme a Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto do ano passado.

    Na sentença de primeira instância, a juíza Ilda Côco deu razão ao PÁGINA UM. De acordo com a magistrada, como a ACSS apenas se limitou a “alegar, de forma conclusiva, que o expurgo de dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado (…), mas sem que alegue quaisquer factos concretos que permitam concluir no sentido por si pretendido”, terá assim 10 dias para facultar o acesso à base de dados… carregando no teclado e/ ou no rato do computador para expurgar os dados nominativos.

    No recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, a ACSS ainda alegou nulidades diversas e apontou um custo elevado para disponibilizar uma base de dados que terá 44 milhões de registos – o que, convenhamos, numa época de big data dá tanto trabalho como 44 registos – mas os desembargadores não foram convencidos.

    No acórdão, os desembargadores afirmam que a ACSS “limitou-se a considerações genéricas sobre a onerosidade de satisfação do peticionado, nunca procurando densificar (como pretende fazer agora, em sede de recurso), em que se traduziria tal ‘onerosidade’ e em que medida a mesma se mostrava ‘desmesurada’.”

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    E criticam os desembargadores ainda a ACSS por apresentar novos trunfos nesta fase. “O que, oportunamente, não foi levado aos autos, permitindo ao tribunal a respetiva apreciação, in illo tempore, não pode agora, em sede de recurso, ser usado como ‘arma de arremesso’ contra uma argumentação que, forçosamente, não levou tais argumentos em linha de conta”, destaca-se no acórdão.

    A única “vitória” da ACSS neste recurso acabou por ser na distribuição das custas. Na primeira instância, a juíza decretara que deveria ser a ACSS a arcar com todas as custas do processo. Os desembargadores, assumindo que uma pequena parte do pedido – que envolvia também a disponibilização de uma outra base de dados no Portal da Transparência do SNS – já fora satisfeita – determinaram que o PÁGINA UM assumisse afinal um terço das custas, ficando os outros dois terços da responsabilidade da entidade presidida por Víctor Herdeiro, que há mais de nove meses anda a esconder informação pública.


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