Por causa do seu protagonismo na contestação às políticas de Educação, a imprensa tem escrutinado o passado do líder do STOP, André Pestana, colocando-o como de “extrema-esquerda” e com alusões nada abonatórios. Ainda na passada semana, a ex-eurodeputada socialista Ana Gomes afirmou que “André do STOP está ao nível do outro André da extrema-direita”. Para pôr tudo em pratos limpos, o Polígrafo meteu-se na querela, compondo um fact checking. Saiu “chamuscado” na tarefa: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) concluiu que, afinal, a análise não foi nem rigorosa nem isenta nem fundamentada. Em artigos académicos, estes partidos são classificados, na verdade, como esquerda radical, no sentido de ruptura política, sem qualquer conotação depreciativa.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) concluiu que o verificador de factos Polígrafo “não cumprir as exigências de rigor informativo” numa análise feita em 6 de Fevereiro deste ano ao passado político de André Pestana, o líder do Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (STOP). No artigo, assinado pelo jornalista Carlos Gonçalo Morais, o mote em questão centrava-se sobretudo no alegado ponto de diferenciação deste sindicato face aos restantes: a sua independência face a um directório político partidário, algo que acabava por nem sequer ser abordado.
No mesmo dia, no programa SIC Polígrafo, apresentado por Bernardo Ferrão, director-adjunto de informação do canal televisão do Grupo Impresa, foi emitida uma peça similar, que considerava como “Verdadeiro” que “o professor que coordena o STOP tem passado na extrema-esquerda”. Em concreto, concluía-se que “o currículo de André Pestana é vasto em experiência politico-partidária, especificamente ligada a movimentos de extrema-esquerda”.
André Pestana, líder do STOP.
Note-se, contudo, que em órgãos de comunicação generalistas, a tentativa de colagem do STOP a movimentos denominados de extrema-esquerda foi frequente na imprensa generalista, como se pode observar em notícias do Diário de Notícias, da Sábado e do Observador. Aliás, neste último periódico, mostra-se evidente o sentido depreciativo do uso do termo, quando a jornalista Ana Kotowicz cita “um dirigente sindical [que não identifica, pelo que pode ser inventado] que tem acompanhado o STOP nas reuniões com o ministro da Educação, onde considera que as suas atitudes são sempre muito extremadas”.
Nessa notícia do Observador é colocada na boca desse ignoto sindicalista, sem nome nem filiação, a seguinte afirmação: “Além da extrema-direita do André Ventura ficávamos com a extrema esquerda do André Pestana”, sobre uma possível candidatura à autarquia de Lisboa.
Até nos sectores ideologicamente mais à esquerda do Governo, o protagonismo de André Pestana e do seu STOP na contestação dos professores tem sido cada vez mais criticado, sobretudo por estar fora da esfera de influência política dos sindicatos tradicionais. E não se perde oportunidade para o atacar. Ainda na passada semana, a ex-eurodeputada socialista Ana Gomes afirmou categoricamente que “André do STOP está ao nível do outro André da extrema-direita”, aludindo ao caso dos cartazes contra o primeiro-ministro António Costa, mesmo se o seu autor é professor afiliado na FENPROF.
Porém, na deliberação hoje divulgada no seu site – que apenas é incidente no Polígrafo, em reacção a uma queixa não identificada –, a ERC considera que, apesar de se comprovar que André Pestana foi (mas já não é) militante da Juventude Comunista (JCP), Bloco de Esquerda (BE) e Movimento Alternativa Socialista (MAS), a análise do Polígrafo “não cuida de fundamentar a razão pela qual tais partidos pertencem a um espectro ideológico-partidário de extrema-esquerda”, mais grave por se estar perante um fact checking.
Polígrafo (e SIC Polígrafo) fizeram fact checking sobre passado de André Pestana, e não tiveram dúvidas em classificar Partido Comunista, Bloco de Esquerda e Movimento Alternativa Socialista como partidos de extrema esquerda. Sem rigor nem fundamentação, concluiu ERC.
Mesmo dizendo que não cabe a si catalogar os partidos referidos num espectro político, o regulador dos media conclui que “a notícia do Polígrafo aqui visada não logrou comprovar o que sustenta a classificação daqueles partidos políticos [JCP, BE e MAS] como sendo de extrema-esquerda, inexistindo factos no texto que sustentem tal conclusão”, lê-se na deliberação, acrescentando ainda que “ao invés, a total ausência de fundamentação padece não só de rigor informativo, como também parece resultar de uma avaliação subjetiva de quem escreve a notícia e, portanto, não cuidando de demarcar os factos da opinião”.
O jornal dirigido por Fernando Esteves – que, curiosamente, proíbe os seus colaboradores de serem militantes de partidos e assume não possuir “uma agenda político-ideológica” – ainda argumentou que aquela denominação “não é uma originalidade do Polígrafo”, acrescentando que “há várias esquerdas e que nem sempre é fácil categorizá-las com rigor quase científico”, e defendendo ainda que “não é esse o papel dos jornais”.
A ERC, contudo, não concordou com essa argumentação, criticando mesmo o Polígrafo por este fact-checker – que tem um poder quase ilimitado no Facebook para tachar publicações como fake news, com repercussões gravosas para os seus autores – promover a simplificação. “A simplificação no discurso, embora atendível em certa medida, não pode fazer perigar o rigor jornalístico, muito menos em trabalhos jornalísticos que se apresentam como verificadores de factos, que, enquanto tal, criam a expetativa de um cumprimento acrescido do dever de rigor”, salienta-se na deliberação do regulador.
Incómodo com acções do STOP, fora das estruturas sindicais tradicionais, associadas à CGTP e à UGT, são evidente, mesmo no espectro político de esquerda. A ex-eurodeputada socialista Ana Gomes, na sua coluna de opinião na SIC, já “colou” André Pestana a André Ventura, líder do Chega.
Refira-se que, como facilmente se pode encontrar em trabalhos académicos – que devem ser usados como fonte na verificação de factos –, os partidos de esquerda em Portugal como o PCP, BE e o MAS são classificados como “esquerda radical”, no sentido de ruptura, e não de violência.
Por exemplo, num artigo científico publicado em 2016 por José Santana Pereira, investigador do Instituto de Ciências Sociais, sobre a esquerda radical no período pós-2009, considera-se a existência de três grupos de partidos de esquerda radical: um formado por PCP e BE, já com décadas de presença no parlamento nacional e europeu; outro formado pelos “novos partidos, criados após a crise das dívidas soberanas (MAS e Livre)”; e um terceiro por “micropartidos de esquerda radical, com décadas de existência e incapacidade reiterada de obter representação”, exemplificando com o maoista PCTP-MRPP, mesmo usando slogans mais virulentos. O uso por académicos de termos como “extrema-esquerda” quase sempre se aplicam em ambientes políticos de violência ou de atitudes não-democráticas.
Esta é a quarta vez que a ERC considera que o mais conhecido verificador de factos português, o Polígrafo, falha no rigor das suas análises. Nesta deliberação, hoje publicada, o regulador destaca a gravidade da actuação do Polígrafo “por se tratar de conduta reincidente”, remetendo para a deliberação ERC/2021/362 e a deliberação ERC/2021/151.
Contudo, além destes dois casos, a ERC também já este ano relembrou ao Polígrafo – e, neste caso, também à sua parceira SIC, com quem tem um programa televisivo (Polígrafo SIC) –, “o dever de informar com rigor e isenção”, uma obrigação “ainda mais premente nos conteúdos jornalísticos que têm como missão a verificação dos factos (fact check)”, após queixas dos secretários de Estado da Natureza e Florestas e das Pescas.
Mas além destes casos, há três anos, por causa da emissão de imagens chocantes sem aviso prévio no Polígrafo SIC, a ERC aplicou mesmo uma multa de 30.000 euros à Impresa. A parte irónica desta coima está no facto de a emissão dessas imagens, ao longo de um minuto e 20 segundos de corpos a boiar, ter servido para corrigir um erro de fact checking: ao contrário do que SIC e Polígrafo tinham dito em programa anterior, aquelas imagens não eram da passagem por Moçambique do furacão Idai em Março de 2019, mas sim de uma outra tragédia ocorrida no Paquistão em 2017.
A Administração do Hospital de Braga “esqueceu-se” de publicar no Portal Base, durante mais de dois anos, e em alguns casos até mais de três anos, dezenas de contratos de aquisição de equipamentos de protecção individual e de materiais relacionados com a pandemia. O PÁGINA UM identificou 32 contratos acima de 100 mil euros, envolvendo 17 empresas, que tiveram um custo total de 7 milhões de euros para os cofres do Hospital de Braga. A legislação obriga que sejam publicitados na plataforma da contratação pública no prazo máximo de 20 dias úteis, mas detectaram-se sete contratos que demoraram mil ou mais dias até serem conhecidos. O atraso, que curiosamente só atinge aquisições associadas à covid-19, não é um mero pormenor burocrático. Ao fim deste tempo todo, mostra-se agora quase impossível averiguar as condições de aquisição e se as entregas foram mesmo realizadas pelos fornecedores, tanto mais que, como se estava num regime de excepção, tudo foi combinado por ajuste directo e sem redução a escrito.
O Hospital de Braga demorou mais de dois anos, e por vezes até mais de três anos, a disponibilizar pelo menos 32 contratos no Portal Base relacionadas com aquisições de equipamentos de protecção individual e materiais relacionados com a pandemia.
Como a generalidade desses contratos foi feita por ajuste directo, sem sequer serem reduzidos a escrito – beneficiando de um regime de excepção instituído pelo Governo – não existem quaisquer documentos de suporte nem referências, na maior parte dos casos, às quantidades compradas nem comprovativos idóneos que atestem as quantidade efectivamente entregue pelos fornecedores escolhidos a dedo, e sem critério objetivo, pela administração hospitalar.
São 32 contratos acima de 100 mil euros que acabaram “esquecidos” pelo Hospital de Braga durante mais de dois anos, dificultando agora qualquer verificação da sua execução. Todos associados a aquisições no âmbito da pandemia.
De acordo com um levantamento do PÁGINA UM, foram estabelecidos, sem documentação, 32 contratos superiores a 100 mil euros pelo Hospital de Braga durante 2020 – e em grande parte nos primeiros meses da pandemia – e os primeiros meses de 2021 (até Maio) para a compra sobretudo de máscaras, luvas de nitrilo e outros equipamentos de protecção individual, bem como de zaragatoas e testes. Só estes contratos totalizaram 7.013.105 euros. Existem mais contratos com valores abaixo da fasquia dos 100 mil euros, a generalidade por ajuste directo sem redução a escrito.
Cinco destes contratos ascendem aos 400 mil euros, tendo sido estabelecidos por ajuste directo entre Março e Agosto de 2020, embora a informação no Portal Base apenas tenha começado a surgir a partir de Janeiro deste ano. Três destes contratos milionários de 2020, esquecidos nos corredores do Hospital de Braga, só foram introduzidos no mês passado, em Maio deste ano. Segundo a portaria que regula o funcionamento e gestão do portal dos contratos públicos (Portal Base), as entidades públicas têm a obrigatoriedade de entregar informação sobre os contratos, mesmo daqueles que sejam por ajuste directo e sem redução a escrito, até 20 dias úteis após a sua celebração. Atente-se também que sem o regime de excepção seria impossível a aquisição deste tipo de materiais por ajuste directo, sem contrato escrito, envolvendo tão avultados montantes.
Sendo certo que nem sempre as entidades públicas cumprem o prazo de 20 dias, mostra-se, contudo, completamente inaudito a ocorrência de atrasos tão elevados nestes contratos do Hospital de Braga, até porque somente atingem as aquisições relacionadas com a pandemia ao longo de 2020 e dos primeiros meses de 2021. Numa panóplia de outros contratos, para a aquisição de medicamentos para outras doenças, por exemplo, o Hospital de Braga não apresenta atrasos desta ordem de grandeza, nem pouco mais ou menos, mesmo em aquisições feitas no auge da pandemia. O “problema” foi, de facto, exclusivamente, dos contratos relacionados com a covid-19.
Com efeito, dos 32 contratos analisados pelo PÁGINA UM – todos acima de 100 mil euros, dos quais 28 se celebraram em 2020 e quatro em 2021 (até Maio) –, aquele que demorou menos tempo entre a celebração do contrato (sem redução a escrito) e a sua publicação do Portal Base foi para a compra de 4.800 testes PCR à empresa Horiba, em 20 de Maio de 2020, com um custo total de 178 mil euros. Como a sua publicitação ocorreu apenas em 23 de Maio passado, decorreram assim 733 dias até constar no Portal Base.
No extremo oposto, identificaram-se dois contratos que demoraram 1.140 dias a serem publicitados: um da Teprel, para a aquisição de um número indeterminado de humidificadores com gerador de fluxo, no valor de 106.961 euros – adquiridos logo no início da pandemia (26 de Março de 2020), e que apenas foi colocado no Portal Base no mês passado –, e outro da Colunex, que vendeu em Março de 2020 um número indeterminado de máscaras cirúrgicas e FFP2 no valor de 477.500 euros. Ignora-se o valor unitário de cada tipo de máscara e, obviamente, a quantidade adquirida e efectivamente entregue.
Aliás, os contratos envolvendo a Colunex, uma empresa conhecida por vender colchões, já tinha merecido uma notícia do PÁGINA UM em 6 de Novembro do ano passado, quando se detectou que tinha facturado 1,3 milhões de euros numa semana no início da pandemia por vendas de máscaras aos hospitais do Tâmega e Sousa, aos dois centros hospitalares do Porto, à Unidade Local de Saúde de Matosinhos e ao Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira. Neste último caso, existe a informação no Portal Base de que “na 1ª entrega todo o material foi devolvido por não corresponder ao adjudicado”, mas não são registadas anomalias nos outros contratos.
Conselho de Administração do Hospital de Braga, que a partir de 2019 deixou de ser gerido por uma parceria público-privada. Em primeiro plano, o presidente, João Porfírio Oliveira, responsável máximo pelas aquisições e pelos atrasos na publicitação dos contratos no Portal Base.
Como em Novembro do ano passado ainda não constavam as vendas da Colunex ao Hospital de Braga – dois contratos por ajuste directo, um no valor de 477.500 euros e outro de 414.000 euros –, agora sabe-se que a empresa de colchões terá facturado, em contratos sem redução a escrito, cerca de 2,3 milhões de euros. Isto se não houver mais contratos “escondidos” do Portal Base. Note-se que antes da pandemia as vendas da Colunex a entidades públicas foram de zero.
No caso destas compras do Hospital de Braga, a Colunex – que, portanto, facturou nos dois contratos 891.500 euros – nem foi a empresa que mais facturou. O pódio vai para a Alfagene, uma empresa de comercialização de produtos laboratoriais, que conseguiu três chorudos contratos em 2020, que só agora em 2023 acabaram plasmados no Portal Base, embora sem qualquer documento associado, porque também foram por ajuste directo sem redução a escrito.
O mais elevado foi assinado em 6 de Agosto de 2020 para a aquisição de 30.000 testes e custou 573.900 euros. Demorou 900 dias a aparecer no Portal Base. O segundo contrato mais valioso da Alfagene envolveu a compra de “kits de estracção e detecção de SARS-CoV-2”, sem indicação da quantidade. Celebrado em 15 de Janeiro de 2021, com um valor contratual de 426.762 euros, a informação da sua existência apenas surgiu no Portal Base 840 dias depois. O terceiro contrato foi assinado em 12 de Maio de 2021, para mais kits em número indeterminado, tendo o Hospital de Braga desembolsado mais 426.762 euros. A informação sobre este contrato demorou 744 dias a chegar ao Portal Base. No total, a Alfagene facturou ao Hospital de Braga 1.427.424 euros em contratos escondidos durante mais de dois anos. Quantos kits entregou? Não se sabe.
A Colunex, com sede numa freguesia de Paredes, fundada em 1986, vende sobretudo colchões de gama alta, mas facturou 2,3 milhões de euros em equipamentos de protecção individual nos primeiros meses da pandemia, sempre por ajuste directo.
Além da Colunex e da Alfagene, o Hospital de Braga celebrou contratos, “esquecidos” durante mais de dois anos, com a Teprel (quatro contratos no valor total de 697.977 euros), a PTTEX (três contratos no valor total de 569.500 euros), a Interhigiene (dois contratos no valor total de 440.000 euros), a Intehigiene (dois contratos no valor de 397.500 euros), a Bastos Viegas (dois contratos no valor total de 393.646 euros), a A Menarini (dois contratos no valor total de 316.000 euros), a Fapomed (dois contratos no valor de 255.000 euros) e ainda, com um contrato cada, as seguintes empresas: Clinifar, Intersurgical, Roche, Horiba, Quilabam, PHM, Medicinália Cormédica, Batist Medical Escala Braga (para remodelação dos serviços de urgência) e Enerre.
Note-se que fora deste período (a partir de Maio de 2021), e com outros produtos (ao longo de todo o período da pandemia), os prazos entre a celebração dos contratos e a sua publicitação são incomensuravelmente mais curtos. A título de exemplo, um contrato assinado entre o Hospital de Braga e a empresa Raclac para a aquisição de luvas de nitrilo em 22 de Julho do ano passado, no valor de 127.594 euros, demorou apenas cinco dias a surgir no Portal Base. Ou seja, um contrato assinado mais de um ano depois dos primeiros é publicitado em cinco dias; os outros, na primeira fase em que tudo era permitido com o argumento da urgência em salvar vidas demoraram, por vezes, mais de 1.000 dias, ficando esquecidos mesmo quando a calma ressurgiu.
No passado dia 2, o PÁGINA UM contactou à Administração do Hospital de Braga, presidido por João Porfírio de Oliveira, pedindo diversos esclarecimentos e documentos. Questionou-se sobre como se comprovava a verdadeira aquisição dos materiais e a veracidade das entregas dos materiais, quem foi responsável pelas aquisições e quais foram as razões para a demora da publicitação da informação dos contratos no Portal Base. Também se perguntou se o Hospital de Braga informava alguma entidade tutelada pelo Ministério da Saúde sobre as aquisições feitas no âmbito da pandemia.
Também se questionou se ainda existem mais contratos relativos aos anos da pandemia (2020 a 2022) não colocados no Portal Base e quais os montantes efectivamente gastos pelo Hospital de Braga em equipamentos de protecção individual e em testes e outros materiais no âmbito da pandemia.
Solicitava-se, de igual modo, que fossem enviados as facturas e os documentos de entrega (guias de remessa) dos materiais.
Hoje, em nota enviada ao PÁGINA UM, que pode ser lida aqui na íntegra, a Administração do Hospital de Braga nada esclarece de forma considerada plausível sobre os motivos do atraso na publicitação dos contratos escondidos por mais de dois anos – e que, saliente-se, de novo, apenas atinge contratos relacionados com a covid-19 – nem envia qualquer documento.
Hospital de Braga passou de novo para a esfera pública em 2019.
Apesar de ser evidente o tempo em que os contratos e os montantes envolvidos estiveram escondidos, o Conselho de Administração do Hospital de Braga diz que “a priorização dada à situação epidemiológica de Covid-19, bem como as medidas excecionais e temporárias decorrentes, obrigou à aquisição de diverso equipamento de proteção individual e sanitário, tendo sido celebrados para o efeito diversos contratos, todos no cumprimento dos requisitos, procedimentos e transparência exigíveis.” Ou seja, a transparência foi tão grande que, na esmagadora maioria dos contratos, nem sequer se explicita a quantidade adquirida, e portanto nem se sabe o valor unitário e o nível de especulação de preços.
Mais adiante, na sua nota, o Conselho de Administração do Hospital de Braga diz também que “a excecionalidade da situação, associada a dificuldades relacionados com os recursos humanos, conduziram à publicação desfasada de alguns contratos, encontrando-se, atualmente, os procedimentos normalizados e todos os contratos integralmente publicados”, acrescentando ainda que “a missão e o foco de atuação do Hospital de Braga, EPE passam por privilegiar o acesso, a prestação de cuidados de excelência e a melhoria contínua da Qualidade, da Segurança e Sustentabilidade Financeira e Ambiental, desenvolvendo a sua atividade no cumprimento do enquadramento legal que lhe é aplicável.”
Por fim, diz ainda que “anualmente, é elaborado, entre outros, o Relatório e Contas, onde se encontra espelhada informação referente à atividade, ao desempenho e às contas do Hospital de Braga, EPE e onde consta, desde 2020, um capítulo dedicado à Covid-19.”
Transparência e rigor na gestão dos dinheiros públicos continuam a ser atributos menosprezados. Administração do Hospital de Braga apresenta justificações absurdas para atrasos incompreensíveis.
Analisado os relatórios e contas do Hospital de Braga de 2020 e 2021, o PÁGINA UM confirmou que os capítulos dedicados à covid-19 nada esclarecem sobre as aquisições, fornecedores e quantidades entregues. Do ponto de vista contabilístico, no ano de 2020 apenas surge um quadro elencando os custos por grandes itens, com um montante total de 20.439.019,77 euros. Para o ano de 2021, o pouco detalhe é similar, apontando-se um custo global de 38.33.071,93 euros.
Que todo este dinheiro foi gasto, não haverá grande dúvidas. Se correspondeu a material efectivamente entregue e consumido, e a custos justos, aparentemente só com uma investigação policial se encontrará luz. Até porque, face a tantos contratos de elevado montante, por ajuste directo, sem conhecimento de quantidades nem preços unitários, e escondidos durante mais de dois anos do conhecimento público, somente uma instância de investigação policial, ou uma qualquer divindade, conseguirá apurar se estamos perante uma mera negligência ou um esquema ilegal num período onde o dinheiro público era fácil de gastar, aos milhões, sem questionar. Aliás, parecia mesmo mal estar a questionar-se. E houve empresas privadas que agradeceram.
CONTRATOS DO HOSPITAL DE BRAGA NO ÂMBITO DA COVID-19 ACIMA DE 100.00 EUROS ENTRE MARÇO DE 2020 E MAIO DE 2021
Alfagene
Data do contrato: 6/8/2020
Data da publicação: 23/1/2023
Dias entre contrato e publicação: 900 dias
Aquisição de 30.000 testes para SARS-CoV-2 com colocação de equipamentos
Não há uma sem duas, e não houve duas sem três: depois de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, três juízes conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo só precisaram de três páginas para recusar as pretensões da Administração Central do Sistema de Saúde para que fosse negado o acesso ao PÁGINA UM de uma das mais importantes bases de dados de saúde do país, que permite avaliar, de uma forma independente, o desempenho do Serviço Nacional de Saúde e identificar anomalias graves nos hospitais. A luta judicial dura há mais de um ano, entre um “David” e um “Golias” que não se importou, durante o processo, em usar mentiras e argumentos falaciosos. A ACSS começou por alegar a impossibilidade de anonimização de dados, mas quando foi demonstrada a mentira, adiantou que, afinal, o pedido era “manifestamente abusivo” porque demoraria muito tempo a retirar dados nominativos dos registos, apesar de estarmos no século XXI e de um sistema informático fazer essa operação enquanto o diabo esfrega um olho. Esta acção do PÁGINA UM (que só em taxas de justiça já ultrapassou mais de 1.000 euros) foi financiada pelos seus leitores através do FUNDO JURÍDICO. A defesa da ACSS, a cargo da sociedade BAS (que costuma cobrar 60 euros por hora), foi financiada através do Orçamento do Estado.
Derrota no Tribunal Administrativo de Lisboa. Derrota no Tribunal Central Administrativo Sul. E, mesmo alegando ser “manifestamente abusivo” o pedido de acesso por parte do PÁGINA UM à base de dados anonimizados dos internamentos – que permitirá uma avaliação verdadeiramente independente do desempenho do Serviço Nacional de Saúde ao longo dos últimos anos –, a Administração Central do Sistema de Saúde recebeu terceira derrota, desta vez do Supremo Tribunal Administrativo.
O Ministério da Saúde, através das entidades tuteladas por Manuel Pizarro, vai ter mesmo de disponibilizar o acesso ao PÁGINA UM da base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos. O acórdão, com data de 1 de Junho, assinada por três conselheiros, com José Veloso como relator, é muito claro e taxativo na análise ao “recurso de revista” apresentado pela ACSS. Em apenas três páginas, os conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo decidem “não admitir a revista” das decisões dos outros tribunais.
Supremo Tribunal Administrativo: em três páginas “concede” terceira derrota ao obscurantismo do Ministério da Saúde.
“Constatamos desde logo a ‘unanimidade de decisão dos tribunais de instância’, o que não sendo só por si garantia de acerto não deixa de constituir um relevante sinal de bom direito”, salientam os conselheiros do Supremo, acrescentando que “também se constata que tais ‘decisões’ – mormente a consubstanciada no acórdão recorrido – embora abordem matéria de algum melindre, face à dimensão e à relevância dos direitos com que contende, não se mostra, no caso, de tratamento particularmente complexo, e foi apreciada e decidida pelos tribunais de instância de forma suficientemente consistente, e aparentemente correcta, não se vislumbrando nelas a ocorrência de erros manifestos que imponham a revista em nome da clara necessidade de melhor aplicação do direito”.
Além de tudo isto, seguindo o texto do acórdão exarado pelo conselheiro José Veloso, as alegações da ACSS não imputam qualquer “erro de julgamento de direito”, mas sobretudo “a dificuldade de execução da intimação, mormente no que respeita à concretização dos dados pessoais que devem ser expurgados, facilitando, e esclarecendo, a fase executiva que lhe compete”.
Mas essa alegada dificuldade – uma completa falácia porque a anonimização de dados, num sistema informático do século XXI, é um procedimento que exige ordens muito simples e seguras –, acrescenta o acórdão do Supremo, concordando com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, “não deverá ser desvirtuado o reconhecimento do direito na fase declarativa mediante a antecipação das dificuldades da fase executiva.”
Em suma, a ACSS – que já defendia, em desespero, que o pedido do PÁGINA UM (um órgão de comunicação social, cujo acesso à informação constitui um direito consignado na Constituição da República) deveria ser recusado por ser “manifestamente abusivo” – terá 10 dias para fornecer finalmente o acesso e cópia digital da BD-GDH
A importância da informação contida nesta base de dados é enorme, podendo revelar mesmo informação com consequências políticas significativas, quer durante a pandemia, quer antes, quer depois.
Esta base de dados (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença.
Embora também constem dados de identificação (nome, idade e sexo), o sistema informático possibilita o expurgo dessa informação – neste caso, como se tratam de milhões de registos, basta substituir o nome do doente por um código – a base de dados é perfeitamente anonimizável.
Em todo o processo judicial, iniciado a 21 de Julho do ano passado, a ACSS – ainda presidida por Victor Herdeiro, um amigo próximo da ex-ministra Marta Temido –, esteve sempre em discussão se a base de dados continha ou não informação nominativa, como defendia o Ministério da Saúde, que é aliás argumento recorrente da estratégia de obscurantismo do Governo em matérias sensíveis politicamente.
Victor Herdeiro, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (quarto a contar da esquerda, ao lado da ex-ministra da Saúde): há quase um ano a tudo fazer para esconder uma base de dados politicamente sensível. O Supremo Tribunal Administrativo é a terceira instituição judicial a dar razão ao PÁGINA UM sobre o direito de acesso a informação anonimizável.
No entanto, no caso da BD-GDH, a falácia dos dados nominativos facilmente caiu por terra e nem os diversos magistrados que tiveram o processo de intimação em mãos – desde a primeira juíza do Tribunal Administrativo até aos três conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo, passando pelos três conselheiros do Tribunal Central Administrativo Sul – foram insensíveis às alegações capciosas dos advogados da ACSS, pertencentes à sociedade BAS, que chegaram a afirmar ser tecnicamente impossível a anonimização.
Porém, a mentira tinha a perna curta. A anonimização da BD-GDH é um procedimento corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, através da Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto de 2021.
Na verdade, o receio do Ministério da Saúde passa pela possibilidade de se fazer uma análise independente a uma das bases de dados fundamentais de avaliação do desempenho do Serviço Nacional de Saúde, que permitirá detectar situações anómalas nos hospitais, escondidas aos cidadãos e até aos próprios doentes e familiares.
PÁGINA UM quer saber o que se passa nos hospitais públicos. O Ministério da Saúde não quer que o PÁGINA UM tenha acesso a uma base de dados que revela o que se passa nos hospitais públicos.
Por exemplo, através da BD-GDH conseguir-se-á avaliar, por indicadores de internamento, a evolução de doenças e outras afecções, como enfartes ou tumores, ou mesmo a ocorrência de acidentes ou outras falhas médicas em unidades de saúde, uma vez que se mostra possível comparações cronológicas e por hospital. Conseguir-se-á também, por exemplo, esclarecer afinal se a incidência de internamentos durante a pandemia por covid-19 ou com covid-19, e mesmo a sua prevalência como infecção nosocomial (ou seja, “apanhada” durante um internamento por outra causa). Por isso, esta base de dados é politicamente sensível, mas de fundamental acesso para uma sociedade de princípios democráticos.
Aliás, no ano passado, antes de o PÁGINA UM ter solicitado acesso à BD-GDH, a informação tratada e acessível no Portal da Transparência do SNS permitira a revelação de um conjunto de situações escamoteadas pelo Ministério da Saúde durante a pandemia. Com efeito, usando a então base de dados da Morbilidade e Mortalidade – uma simplificação da BD-GDH –, o PÁGINA UM revelara que, até Janeiro de 2022, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurara que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificara problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinara que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificara a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificara estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocara dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.
No decurso dessa investigação, Victor Herdeiro terá ordenado a suspensão da divulgação daquela base de dados, para a “análise interna”, restaurando passado algumas semanas, mas completamente mutilada. Apenas a repôs depois do PÁGINA UM ter decidido, face às evidentes manipulações, solicitar formalmente o acesso à BD-GDH, a base de dados primitiva, que também serve para determinar os financiamentos a receber pelos hospitais públicos.
Contudo, a prioridade do PÁGINA UM passou a ser o acesso à BD-GDH por ser uma base de dados com elementos em bruto, e que a serem manipulados politicamente já configuram actos criminosos, uma vez que a informação ali constante tem relevância financeira, uma vez que parte do financiamento dos hospitais públicos provêm desses registos.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.
A ADENE, uma agência de energia controlada por entidades tuteladas pelo Ministério do Ambiente, pagou à TSF a emissão de 12 podcasts em ajuste directo por 19.995 euros. O contrato foi assinado por Nélson Lage, antigo adjunto de João Galamba na Secretaria de Estado da Energia, e por Bruno Veloso, ex-deputado socialista. O primeiro convidado foi o próprio ministro Duarte Cordeiro, que esta terça-feira teve um “direito de antena” de 35 minutos na TSF para promover o seu trabalho. A entrevista foi conduzida por Paulo Tavares, que apesar de ser apresentado pela ADENE (e por si próprio) como jornalista, não tem carteira válida por ser proprietário de uma empresa de consultoria política e assessoria de imprensa. Este é mais um lamentável episódio das promiscuidades e atropelos legais e deontológicos na imprensa mainstream, sob a cúmplice apatia da ERC, CCPJ e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
“Obrigado por ter aceitado o nosso convite” – foi assim que o entrevistador Paulo Tavares, presumido jornalista, agradeceu ao ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, a concessão de uma entrevista à TSF, emitida esta terça-feira, integrada num conjunto de podcasts desta rádio da Global Media, e apresentada como uma parceria com a ADENE.
Tudo fake. De facto, a entrevista, ou melhor, uma conversa descontraída com palco para exposição das políticas ministeriais, não foi conduzida por um jornalista acreditado. Não houve também propriamente um convite, porque a “parceira” do podcast da TSF, a ADENE é indirectamente tutelada por Duarte Cordeiro. E chamar “parceria” é abusivo, porquanto a relação entre a TSF e a ADENE é similar à aquisição de um serviço de relações públicas: a ADENE apenas deu dinheiro para, em contrapartida, ser-lhe feitos e emitidos os podcasts que desejava.
Verdadeiro, assim, apenas uma conversa de promoção das políticas do Ministério do Ambiente e da Acção Climática, mesmo se, aos ouvidos dos ouvintes, possa ter parecido que se tratou de uma entrevista com liberdade editorial – um pleonasmo, porque entrevista pressupõe a existência de liberdade editorial.
Mas comecemos por saber quem é a ADENE, suposta parceira da TSF.
Embora seja uma associação – que integra como sócios, por exemplo, a Galp e a EDP –, esta agência de energia é um dos braços da política energética do Governo, tendo como sócios principais a Direcção-Geral de Energia e Geologia (25,1% de participação), o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (24,71%), a Agência Portuguesa do Ambiente (11,67%) – todas tuteladas pelo Ministério de Duarte Cordeiro – e as suas contas estão integradas no perímetro do Orçamento do Estado. Ou seja, apenas por entidades por si tuteladas, Duarte Cordeiro “controla” mais de 60%. Acrescentando a participação da Direcção-Geral das Actividades Económicas (11,67%) tem o Governo um controlo acima de 70%.
A ADENE assegura ainda a gestão da Academia ADENE, que “promove formação especializada na certificação energética de edifícios e reforço de competências nos domínios da eficiência energética, das energias renováveis, da eficiência hídrica e da mobilidade eficiente”.
Mas, na verdade, aquilo que poderá ter parecido, aos ouvintes, um conteúdo editorial independente, até porque a ADENE refere ser apresentado por um jornalista, é afinal mais um programa de conteúdos pagos.
Nélson Lage, presidente da ADENE, foi adjunto de João Galamba, quando o actual ministro das Infraestruturas era secretário de Estado da Energia. Transitou para a agência de energia, nomeado pela tutela, em Agosto de 2020.
Com efeito, em 18 de Abril, o actual presidente da ADENE, Nelson Lage – licenciado em Ciências Políticas e antigo adjunto de João Galamba, na secretaria de Estado da Energia – e o seu vice Bruno Veloso – ex-deputado socialista – assinaram um contrato com Marco Galinha, administrador da Global Media, no valor de 19.995 euros para a “aquisição de serviços associados ao desenvolvimento, produção e dinamização do ‘Podcast ADENE, Toda a Energia”. Acrescente-se que o valor de 19.995 euros não é um acaso: a partir de 20.000 euros os contratos deste género não podem ser feitos por ajuste directo.
Apesar do caderno de encargos não constar, como deveria, no Portal Base, em comunicado ontem divulgado a ADENE refere que serão transmitidas “12 emissões, cada uma com cerca de 15 minutos”, sob o comando do “jornalista Paulo Tavares”. Ou seja, 1.666 euros pagos por cada episódio.
Nesse comunicado era logo transmitido que o ministro Duarte Cordeiro seria o primeiro participante, no qual se abordaria “o significado da Política Energética, as suas diversas dimensões e a importância para o desenvolvimento do país”, acrescentando-se ainda que “ser[ia] explicado como os cidadãos podem contribuir para o sucesso e implementação da política energética.” O episódio foi, efectivamente já emitido ontem, tendo o ministro um bónus: a conversa ocupou um espaço de antena de 35 minutos e 34 segundos.
Duarte Cordeiro é “reincidente” ao beneficiar de cobertura mediática favorável em eventos que, afinal, envolvem prestação de serviços.
Além do pagamento de quase 20 mil euros por podcasts financiados por uma entidade associada ao Ministério do Ambiente, a entrevista – e depreende-se que a totalidade dos outros episódios – foi assumida por alguém que, na verdade, já não é jornalista, embora publicamente usurpe essas funções.
Com efeito, apesar da ADENE identificar Paulo Tavares como jornalista – e o próprio também o fazer na rede LinkedIN –, o entrevistador deste podcast não tem carteira profissional activa, tanto mais que exerce agora funções como consultor de comunicação, actividade incompatível de acordo com o Estatuto do Jornalista.
Apesar disso, Paulo Tavares continua a manter-se ligado à comunicação social de uma forma ambígua (assumindo-se como jornalista), através da sua empresa unipessoal, a PTS (iniciais de Paulo Tavares Sardinha), constituída em Dezembro do ano passado para a “prestação de serviços de consultoria política e assessoria de imprensa, e de consultoria editorial”, bem como “produção, gestão e apresentação de eventos” e ainda “produção e realização de programas de rádio e televisão” e ainda “edição de revistas e outras publicações não periódicas”.
Paulo Tavares conduziu “entrevista” ao ministro do Ambiente no podcast pago pela ADENE. Apesar de se apresentar como jornalista, não tem carteira válida por ser proprietário de empresa de comunicação, mas continua com ligações ambíguas com a Global Media.
No ano passado, Paulo Tavares – que foi efectivamente jornalista na TSF entre 1993 e 2016 e, mais tarde, director-adjunto do Diário de Notícias, entre 2016 e 2018 – chegou a exercer uma função ambígua (e inexistente) num evento pago (MobiSummit) por uma empresa municipal de Cascais à Global Media: “curador editorial”, ou seja, responsável pela cobertura mediática pelos órgãos de comunicação social do grupo de Marco Galinha.
Esta situação ilegal não teve qualquer intervenção conhecida da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
Ouvindo a “entrevista” a Duarte Cordeiro, ressalta logo, pelas questões, a abertura de caminho para que o ministro do Ambiente pudesse publicitar e promover, sem quaisquer perguntas incómodas, as políticas em curso.
Aliás, não é a primeira vez que Duarte Cordeiro beneficia de entrevistas ou notícias feitas no âmbito de alegadas parcerias de entidades associadas ao Ministério do Ambiente com órgãos de comunicação social, mas que são, na verdade, prestação de serviços envolvendo publicidade travestida de conteúdos noticiosos.
Em Maio do ano passado, o PÁGINA UM relatou que o Instituto da Conservação da Natureza pagou 19.500 euros para a cobertura de um evento, tendo uma notícia escrita por um jornalista com carteira profissional sido colocada numa ambígua secção (Projetos Expresso), onde empresas públicas e privadas adquirem “serviços de jornalismo”.
Uma semana após o primeiro evento, o ministro teve direito a uma entrevista descontraída por três jornalistas do Expresso, onde até posou, sorridente, sentado na escadaria do edifício da Rua do Século.
Também no MobiSummit, em Setembro do ano passado, Duarte Cordeiro esteve envolto em polémica por recusar prestar declarações a determinados órgãos de comunicação social alegando ter exclusivo com os media partner do evento, os três periódicos do grupo empresarial da Global Media: Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Dinheiro Vivo.
Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas continuam a “fechar os olhos” a sistemáticas violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.
Também nestes casos não houve intervenção conhecida da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, apesar das evidentes violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.
O PÁGINA UM contactou o gabinete de Duarte Cordeiro questionando se o ministro do Ambiente “já concedeu outras entrevistas pagas a outros órgãos de comunicação social”, e se sim a quais, e também se considerava “esta prática aceitável, ou seja, financiar podcasts ou outros eventos através de entidades públicas tendo como contrapartida entrevistas ou artigos noticiosos favoráveis”. Não obteve ainda resposta.
Em Abril do ano passado, o Público anunciou uma forte aposta nos temas ambientais, destacando seis jornalistas, numa equipa de 10 pessoas, supervisionados por duas editoras de Ciência, e através de um modelo assente em parcerias ao estilo de mecenato. Assim nascia o Azul. Mas o único contrato que, entretanto, veio a público com um dos parceiros iniciais (Biopollis) é afinal uma prestação de serviços, envolvendo 90 mil euros em seis meses. Entretanto, na semana passada, o Público alargou os serviços do Azul: vai fabricar conteúdos editoriais para organismos estatais. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) é o primeiro cliente e vai pagar 31 mil euros. E ainda trata o Público como “prestador de serviços”, exigindo prévia revisão dos podcasts a produzir.
Azul – assim se chama o projecto editorial do Público apresentado, em Abril do ano passado, como um modelo de jornalismo independente dedicado em exclusivo ao Ambiente.
Considerando “a crise climática como a grande causa política das novas gerações”, na verdade o Azul também mostra uma outra crise: a do jornalismo a transformar-se numa plataforma de conteúdos prêt-à-porter, onde se mercadejam “conteúdos comerciais” como informação, e onde até institutos públicos, como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), podem garantir, através de pagamentos, a execução de conteúdos controlados com prévia validação.
Desde a sua fundação, integrado na edição digital do Público, os responsáveis do Azul diziam, no respectivo estatuto editorial, ser um projecto de jornalismo de causas ambientais – com a biodiversidade, a sustentabilidade e a crise climática como bandeiras –, e que, estando aberto à sociedade civil, contava “com o apoio de parceiros comprometidos com agenda do ambiente para financiar a sua equipa e a sua operação”.
Na linha da frente, como parceiros, foram então destacadas quatro entidades: a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biopolis – um consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier –, a Lipor – a empresa pública de tratamento de resíduos do Grande Porto, cuja central de incineração é um dos focos mais importantes de emissão de dioxinas em Portugal – e a Sociedade Ponto Verde – uma das empresas gestoras de resíduos de embalagem.
Para garantir a execução do Azul, a direcção editorial do Público – então comandada por Manuel Carvalho – destacou, além de duas experientes jornalistas da área da Ciência, como editoras (Teresa Firmino e Andrea Cunha Freitas), uma equipa de 10 pessoas, das quais seis jornalistas, o que implicaria a impossibilidade de elaboração de conteúdos comerciais ou a subordinação a entidade externas.
Porém, apesar de o Público ter garantido que o Azul seguiria “um modelo de cooperação e mecenato cada vez mais frequente em projectos jornalísticos na Europa e nos Estados Unidos”, e que “os parceiros e o jornal reconhecem que uma condição crítica para o sucesso” deste projecto editorial “passa[ria] pela transparência e pelo respeito integral das regras profissionais e deontológicas do jornalismo consagradas na lei”, a realidade mostra-se bem diferente.
Com efeito, embora ainda sejam desconhecidos os protocolos com três dos alegados mecenas conhecidos do Azul – apesar de solicitados pelo PÁGINA UM à direcção editorial do Público –, sabe-se agora que a Biopolis fez afinal um contrato de prestação de serviços com a administração do jornal, pelo menos no período compreendido entre Março e Agosto deste ano.
Assinado nos primeiros dias de Março passado, este contrato estabelece a entrega pela Biopolis de 90 mil euros, mais IVA, a troco da “aquisição de serviços de divulgação e promoção da cultura científica, através da promoção de conteúdos subordinados aos temas da biosfera, sustentabilidade e crise ambiental”.
A questão polémica nem estará tanto na imposição – como “obrigações gerais do Público”, de acordo com a cláusula 4º do contrato – de o jornal, perante o parceiro (uma entidade externa à linha editorial) ter de identificar temas e elaborar artigos noticiosos temáticos.
Na verdade, o contrato transcende a Lei da Imprensa – o próprio Estatuto do Jornalista – porque considera, como obrigação, “a publicação de 26 (vinte e seis) artigos editoriais, nos termos e condições definidos no Anexo I ao Caderno de Encargos [que não consta no Portal Base nem foi disponibilizado pelo Público]”.
O articulado desta obrigação é, aliás, muito sui generis, pois acrescenta que os 26 artigos obrigatórios, devem resultar “de uma escolha independente e sem qualquer condicionalismo ou ingerência por parte da Biopolis”, mas acrescenta a seguir que essa escolha tem de ser feita “entre os projectos científicos disponibilizados por esta [Biopolis], a fim de lhes ser dado o tratamento e enquadramento jornalístico necessário para posterior divulgação ao público” Ou seja, se a Biopolis indicar ao Público apenas 26 temas para artigos, o jornal assume que a sua escolha é completamente independente.
Mesmo que um editor do Azul até considere que todos os temas propostos pela Biopolis não têm interesse jornalístico, e que seria mais interessante que os jornalistas dedicassem tempo e recursos a outros assuntos, o Público tem sempre a obrigação de pegar em 26 temas indicados pelo consórcio universitário.
Saliente-se que um dos critérios das avaliações de projectos de investigação nas universidade é o impacte mediático e social. Portanto, a independência editorial do Azul logo aqui aparenta ser uma miragem.
O contrato ainda acrescenta que os textos publicados no âmbito deste contrato terão como referência o serem “promovidos pela Biopolis”, mas também aqui se usa uma falácia: um pagamento sob a forma de contrato, estipulando um número pré-definido de artigos, jamais pode ser rotulado como conteúdo “promovido” ou “patrocinado”. E, se assim fosse, existem fortes dúvidas de legalidade sobre se poderá ser escrito e assinado por um jornalista, uma vez que lhe estar vedado por lei a possibilidade de contribuir para a execução de contratos comerciais.
Além disso, o contrato da Biopolis estabelece o cumprimento de prazos – ou seja, se o consórcio universitário desejar que saia publicado determinado artigo em certo dia, tal terá de se verificar – e também a obrigação de o Público “prestar as informações e esclarecimentos solicitados pela Biopolis sempre que esta assim o requeira”. Em suma, fica assumida uma linha aberta entre um jornal e quem lhe paga serviços.
Na semana passada, quando contactada pelo PÁGINA UM, a direcção editorial do Público – então ainda liderada por Manuel Carvalho – garantiu, apesar do exposto, a independência do Azul, acrescentando ainda que a Biopolis é uma rede de cientistas, e que “em causa não está uma empresa vocacionada para finalidades comerciais”. Em todo o caso, saliente-se que a Universidade de Montpellier está associada à Agência Nuclear de Energia – ligada à OCDE – e à Agência Internacional de Energia Atómica, numa altura em que está em crescendo o lobby que apresenta a energia nuclear como “energia limpa” numa perspectiva de descarbonização da Economia.
Manuel Carvalho assegurou também que “nenhum dos outros contratos” com os outros parceiros “incluem qualquer tipo de obrigação”, embora o PÁGINA UM não tenha conseguido, até agora, ter acesso nem constem no site do Azul.
David Pontes, director do Público desde 1 de Junho deste ano.
Mas se este contrato com a Biopolis já é polémico, pior ainda é aquele assinado no passado dia 25 de Maio com a CCDR-N, e detectado na passada sexta-feira pelo PÁGINA UM no Portal Base. Além de ser uma “parceria” com um instituto público sob administração directa do Estado – tutelado pelo Ministério da Coesão Territorial em coordenação com o Ministério da Modernização do Estado –, as cláusulas constantes do caderno de encargos constituem, sem margem para eufemismos, um despudorado atropelo às elementares regras deontológicas e de independência jornalística.
De facto, a troco de 31.000 euros pagos pela CCDR-N no prazo de 60 dias, o Público obriga-se, de acordo com o caderno de encargos, a “produzir uma série de conteúdos editoriais [leia-se, conteúdos jornalísticos e feitos por jornalistas] relativos à temática do crescimento azul do Programa Espaço Atlântico”, de os publicar “nos websites Azul e Publico.pt e no podcast Azul”, mas com uma condição especial: o Público tem de proceder à entrega prévia dos conteúdos para a “respectiva validação” pela CCDR-N.
Aliás, na cláusula 5ª do caderno de encargos, a CCDR-N trata o Público como se fosse um mero departamento burocrático de comunicação, uma vez que exige, como “forma de prestação do serviço”, que “para o acompanhamento da execução do contrato, o Prestador de Serviços [o Público] fica obrigado a manter, sempre que solicitado, reuniões de coordenação com os representantes da Entidade Adjudicante [CCDR-N], das quais deve ser lavrada acta a assinar por todos os intervenientes da reunião”.
Isto para além de o Público ficar “também obrigado a apresentar” à CCDR-N, “sempre que solicitado, um relatório com a evolução de todas as operações objecto dos serviços e com o cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato”. E até há a nota de que todos os relatórios, registos, comunicações, actas e demais documentos “devem ser integralmente redigidos em português”.
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero – que integra o conselho consultivo do Azul, e que, no ano passado, tinha elogiado a independência do projecto do Público, afirmando ser este factor “um elemento a valorizar” – diz-se surpreendido com este tipo de contratos. “Levanta-me dúvidas ver a existência de contrapartidas”, afirma este professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, para quem “se mostra fundamental haver uma clarificação”.
Por sua vez, Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, mostra-se estupefacto tanto com a tipologia dos contratos como com os termos usados. “A nossa prestação, como jornalistas, é para os nossos leitores, e não pode ser para entidades externas, através de prestação de serviços”, diz, acrescentando que “o mecenato é um instrumento fundamental no jornalismo, mas não pode é surgir depois sob a forma de contratos em que se exigem contrapartidas”. Para Luís Simões “há uma necessidade de reflexão sobre este tipo de contratos”.
O PÁGINA UM tentou, especificamente sobre o contrato do Público com a CCDR-N, ouvir David Pontes, o novo director do jornal do Grupo Sonae, desde o início do presente mês, mas não obteve resposta.
Também se expôs à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) os contratos assinados pelo Público, no âmbito do projecto editorial Azul, para obtenção de um comentário, mas apenas foi acusada a “boa recepção da sua mensagem”, com a promessa de ser dado “seguimento coma brevidade possível.”
Recorde-se que em Maio do ano passado, o PÁGINA UM compilou 56 contratos com sinais de promiscuidade e ilegalidades assinados entre grupos de media e entidades públicas mas não existe, até agora, conhecimento da conclusão de diligências.
Esta notícia foi objecto de um direito de resposta publicado a 24 de Outubro de 2023 por determinação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cujo texto pode ser lido aqui.
Por ajuste directo, a Gebalis pagou 19 mil euros por 12 episódios de um podcast da Rádio Observador. Nas conversas, cuja difusão começa está sexta-feira, Carlos Moedas é o primeiro convidado, e para ser ouvido pelo anfitrião Paulo Ferreira, antigo jornalista e actual comentador e colunista, a empresa municipal de Lisboa responsável pelos bairros sociais desembolsou 1.583 euros por cada episódio. A vereadora da Habitação, Filipa Roseta, e o próprio presidente da Gebalis também já garantiram um lugar para serem ouvidos. Apesar de ser uma evidente prestação de serviços, com contrato no Portal Base, o podcast é apresentado como uma parceria.
Carlos Moedas será amanhã o primeiro convidado de um podcast comemorativo dos 30 anos do Programa Especial de Realojamento (PER), anunciou esta semana o Observador. O actual presidente da autarquia de Lisboa estreará as conversas conduzidas pelo radialista, comentador e ex-jornalista Paulo Ferreira, mas, por certo, não se abordará a transferência de 19.000 euros da empresa municipal Gebalis para o Observador como contrapartida pela realização de 12 podcasts temáticos, que contará ainda com a presença de antigos e actuais responsáveis políticos da edilidade.
Com efeito, apesar de a Rádio Observador anunciar que o novo podcast é uma “parceria com a Gebalis”, na verdade trata-se de um simples contrato de prestação de serviços, similar à compra de uma refeição num restaurante: em troca de um prato de lagosta, o cliente paga 100 euros. Neste caso, a “lagosta” são os 12 episódios do podcast, e o pagamento não é de 100 euros, mas sim 19.000 euros. Por ajuste directo, assinado em 23 de março passado.
Imagem de divulgação do podcast com foto da conversa entre Carlos Moedas e o comentador Paulo Ferreira. Cada episódio custou 1.583 euros à empresa municipal Gebalis.
Nas cláusulas do contrato salienta-se que “o contrato tem por objecto a produção, promoção e difusão do podcast que contará as histórias e testemunhos de todos os que fazem parte do PER, desde moradores, representantes da Gebalis e figuras de relevo que potenciaram o PER, de acordo com o estipulado no caderno de encargos”.
Porém, no Portal Base não consta o caderno de encargos – não cumprindo assim com as determinações legais –, embora a empresa municipal lisboeta responsável pela habitação social tenha indicado parte dos convidados dos 12 episódios do podcast.
Além da conversa com Carlos Moedas, já gravada, pelos episódios do podcast – ao custo de 1.583 euros cada – passarão ainda a vereadora da Habitação, Filipa Roseta, o antigo presidente da autarquia alfacinha, João Soares, e o próprio presidente da Gebalis, Fernando Angleu Teixeira, o homem que pagou a conta e que fechará o ciclo de conversas pagas.
Fernando Angleu Teixeira, presidente da Gebalis. Multiplica-se o recurso a supostas parcerias, que são apenas contratos de prestação de serviços que incluem entrevistas e cobertura noticiosa de eventos.
O contrato entre o Observador e a Gebalis foi, porém, assinado por um vogal da empresa municipal. Por parte do Observador, assinaram, como administradores, Rui Ramos e José Manuel Fernandes. O antigo director do Público surge agora na ficha técnica do Observador como publisher – uma designação não reconhecida pela Lei da Imprensa – e apresenta-se ainda como jornalista, apesar de não ter a carteira profissional activa, daí não existir qualquer incompatibilidade por assinar contratos comerciais, ao contrário do que se confirmou recentemente com Domingos de Andrade.
Em todo o caso, José Manuel Fernandes tem sido o rosto principal da campanha do Observador em prol do apoio ao jornalismo independente, tendo como mote a recusa deste jornal de receber, há três anos, ajuda directa do Estado, algo considerado pelo publisher, no sábado passado, como “um momento de reafirmação do nosso compromisso com os leitores, da nossa determinação de permanecermos um jornal independente, um momento que também evidenciou o inquebrantável apoio da nossa comunidade de leitores e assinantes”.
Saliente-se que a produção de podcasts – que é uma plataforma ambígua de informação – pelo Observador, geralmente apresentados como “parcerias” (leia-se, contratos de prestação de serviços) já se revestiu de outras formas pouco ortodoxas de financiamento. Por exemplo, em 2021, a farmacêutica Gilead, além dos encargos de produção e difusão, até pagou a participação de dois médicos (Fernando Maltez e Teresa Castelo Branco) pelas conversas.
José Manuel Fernandes, publisher do Observador, assume-se como jornalista, mas está sem carteira profissional activa. Só assim a sua participação na assinatura do contrato entre Observador e Gebalis não viola o Estatuto do Jornalista.
Apesar dessa prestação de serviços, Fernando Maltez, presente como presidente de Doenças Infecciosas e Microbiologia Clínica, chegou a agradecer por duas vezes o “convite” – assim como se constata durante a emissão –, mesmo tendo recebido 1.230 euros da farmacêutica por 15 minutos de conversa.
Ainda quanto à produção e difusão do podcast sobre os 30 anos do PER, tal insere-se ainda num conjunto de outros eventos, cobertos pelo Observador, um dos quais foi a exposição patente no Palácio Pimenta sobre políticas de habitação em Lisboa desde a Monarquia à Democracia.
Um artigo de uma jornalista do Público promovendo em 2019 uma campanha de saldos em taxas de juros valeu agora uma inédita multa de 2.500 euros. Mesmo não havendo provas de que o Banco Santander tenha pagado para que este artigo em concreto fosse publicado, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social não teve dúvidas sobre a intenção do Público em promover aquela instituição bancária. Mais tarde, em 2021, o Público teve uma parceria paga pelo Santander, que envolveu o pagamento de quatro conteúdos comerciais no Estúdio P.
ESTA NOTÍCIA MERECEU UM DIREITO DE RESPOSTA, PUBLICADO VOLUNTARIAMENTE PELO PÁGINA UM, QUE PODE SER LIDO AQUI.
O jornal Público foi multado em 2.500 euros por uma notícia publicada há quase quatro anos sobre produtos financeiros do Banco Santander, assinada por uma jornalista, considerada como publicidade pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em deliberação de 13 de Abril, mas apenas ontem divulgada. A coima ficou num ponto intermédio do valor máximo previsto para estes casos na Lei da Imprensa.
A decisão do regulador – que reputa a acção do diário da Sonae como “dolosa” e “sem arrependimento” – poderá contribuir para se abrir o fundamental debate em redor da isenção e independência dos media mainstream e sobre influência perniciosa das empresas privadas e entidades públicas na definição das linhas editoriais através de conteúdos que navegam entre o marketing e a informação.
Na origem da coima está um artigo da jornalista Rosa Soares – com uma vasta experiência em jornalismo económico e de mercados – publicado em 27 de Julho de 2019 sob o título “Saldos de taxas de juro? O Santander está a fazer”, que fazia a apologia de uma campanha daquele banco que finalizava naquele dia. Em apenas nove frases, acompanhada de uma imagem promocional da campanha, destacava-se ser a “última oportunidade” de obter um financiamento de 25 mil euros com uma taxa anual nominal (TAN) de 6,99%.
O texto jornalístico dava detalhes sobre simulação para um empréstimo de 7.500 euros, salientando ainda que “o crédito ao consumo tem crescido de forma muito expressiva em Portugal e os ‘saldos’ do Santander são um exemplo da aposta que os bancos fazem, na contratação de empréstimos online”. Porém, nenhuma outra campanha de outro qualquer banco era referenciada. Apesar de não fazer ligação directa ao site do Banco Santander, a imagem que acompanhava o artigo consistia num printscreen onde constava o endereço completo.
O processo de contra-ordenação conduzido pela ERC – e ontem divulgado no seu site – foi o culminar de um procedimento oficioso que, em Junho de 2020, já concluíra que o texto da jornalista Rosa Soares “tem um conteúdo publicitário, no sentido promocional”, e que, segundo a Lei de Imprensa, “devem encontrar-se identificados como tal”.
Prinscreen da campanha do Santander, com o endereço do site, acompanhava a notícia do Público.
Na sua defesa, a direcção editorial do Público referiu que o artigo de Rosa Soares “não corresponde a uma publireportagem, porquanto não se destina a promover e/ou publicitar um produto, uma entidade ou um serviço, mas antes a transmitir, exclusivamente, informação”, alegando ainda que o jornal “não foi remunerad[o] pela publicação do artigo”.
Por outro lado, argumentou o Público que da leitura do artigo “não resulta qualquer promoção da atividade do Banco Santander, mas somente a descrição factual da realidade enquadrada em informação geral sobre o crédito ao consumo”. Saliente-se que apenas as duas últimas frases do artigo de Rosa Soares remetem para informação geral sobre crédito ao consumo, relativo ao ano de 2018, apresentando o Banco de Portugal como fonte.
Embora não tenha conseguido provar que o Público “tenha obtido benefício económico pela publicação da notícia”, mas apenas por “não ter sido produzida qualquer prova suficientemente consistente” – o que, diga-se, só com mandato judicial e análise contabilística –, o regulador diz ter “a convicção firme e segura de que os trabalhadores da Arguida responsáveis pela publicação do artigo em causa [isto é, a jornalista, e editoria e a direcção do Público], bem sabiam que o mesmo carecia da identificação legalmente exigida como sendo um conteúdo publicitário – na medida em que o conhecimento da lei é expectável para quem labora nesta área de atividade especializada há mais de 30 anos – conformando-se com a decisão, bem sabendo que a sua conduta seria ilícita.”
Ou seja, segundo o regulador, aquele artigo somente poderia ser publicado se “identificada através da palavra ‘Publicidade’ ou das letras ‘PUB’, em caixa alta, no início do anúncio contendo ainda, quando tal não for evidente, o nome do anunciante”.
Em todo o caso, saliente-se, que se tal se tivesse verificado, a jornalista Rosa Soares não poderia ser a autora, uma vez que o Estatuto do Jornalista impede o desempenho de mensagens publicitárias e execução de estratégias comerciais, apesar de ser uma prática cada vez mais comum sem qualquer intervenção relevante da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, apesar das sucessivas denúncias do PÁGINA UM ao longo dos últimos dois anos.
O regulador diz também que a “ordenação de elementos [do artigo] é reveladora da hierarquia de importância das matérias tratadas: a maior parte do texto centra-se no destaque do produto do Banco Santander, sendo a referência à tendência setorial de crescimento dos créditos de consumo uma informação de contexto que, apesar de reforçar o valor informativo, não constitui o objeto central do texto.”
Além disso, a ERC assinala que “o artigo foi publicado em dia em que ainda decorria a campanha de marketing do Banco Santander”, e que se o Público, como defendia, “pretendia chamar a atenção para as novas formas de colocar o crédito ao consumo”, não compreendia então como “apenas fez referência a uma única instituição bancária das várias que existem no mercado”.
A ERC diz mesmo que “é por demais evidente” a ilicitude por parte do Público “face aos anos de experiência”. O jornal, recorde-se, foi fundado em 1989, e é desde hoje dirigido por David Pontes. À data da publicação do artigo agora alvo de multa, o director era Manuel Carvalho.
Posteriormente à publicação do artigo de Rosa Soares, o Público estreitou relações com o Santander, sendo parceira (leia-se, recebendo montantes por via de um contrato comercial) na promoção de um produto financeiro complexo denominado Santander Future Wealth. Nesses textos, já classificados como publicidade, foram publicados, entre outros, artigos sobre síndrome de Asperger e sobre bolsas para intercâmbios académicos lançadas por aquele banco.
O PÁGINA UM contactou Rosa Soares, a jornalista do Público que escreveu a notícia considerada publi-reportagem pela ERC, que se escusou a comentar esta decisão do regulador por o processo de contra-ordenação ter sido contra o jornal. Em todo o caso, recomendou a análise ao seu trabalho jornalístico na área da defesa do consumidor, nomeadamente de más práticas dos bancos. Efectivamente, numa análise aos artigos dos últimos anos, Rosa Soares tem-se destacado nestas áreas.
Numa pesquisa às várias centenas de artigos que esta jornalista escreveu no Público desde Janeiro de 2022 até à data, apenas por uma vez incidiu exclusivamente sobre o Banco Santander, mas até foi para noticiar algo desfavorável à instituição: uma multa de 107,8 milhões de libras (perto de 125 milhões de euros) aplicada à filial britânica pela Autoridade para a Conduta Financeira do Reino Unido por falhas no sistema de prevenção de branqueamento de capitais.
De doença banal, com casos clínicos de rara gravidade, e já com imunoprofilaxia existente para bebés de risco, a Sanofi e a AstraZeneca conseguiram, num passe de mágica, que o vírus sincicial respiratório (VSR) ficasse nas bocas do mundo, enquanto aceleravam a aprovação de um novo fármaco. Nos últimos meses, a estratégia é convencer a Direcção-Geral da Saúde e o Infarmed para que a administração do novo fármaco (nirsevimab) abranja todos os bebés (e não apenas os grupos de risco), um negócio que multiplicará em mais de 20 vezes a receita anual do anterior fármaco. Para esse objectivo, as farmacêuticas contam com a “colaboração” da imprensa e também de médicos e da Sociedade Portuguesa de Pediatria, que viu os “cheques” da Sanofi no ano passado superarem o montante recebido nos cinco anos anteriores. Uma investigação do PÁGINA UM aos meandros da promiscuidade entre farmacêuticas, imprensa e médicos.
Esta é a história de mais um novo fármaco – um dos muitos que salvam vidas, evitam sofrimento, concedem melhorias. Mas é também a história de um, mais um, novo fármaco que tem de percorrer a fase seguinte ao sucesso da investigação e ao calvário das aprovações, depois de ensaios clínicos, pelos reguladores. Custe aquilo que custar, muito foi o custo de investigação, e muito dinheiro há para ganhar, não apenas para compensar os encargos dos fracassos de outras investigações, como para gratificar (e bem) os accionistas.
Mas esta é também, na verdade, a história de um novo fármaco no novo mundo da comunicação social onde já campeia, sem escrúpulos, a promiscuidade entre indústria farmacêutica, médicos e sociedades médicas e agora a imprensa, nas barbas do reguladores, que se concertam para um único objectivo: criar um ambiente favorável na opinião pública e convencer os Estados a abrirem os cofres da Fazenda Pública, porque, assim deve aparentar ser, fundamental para a saúde pública ou para a saúde individual dentro de um colectivo, um determinado fármaco, qual Santo Graal.
Esta é, portanto, a história cheia de marketing, de agenda setting, de lobbies, agora com media partners à mistura – esqueçamos o obsoleto advertising, até porque as leis do medicamento proíbem, na generalidade, com poucas excepções, a publicidade.
No corpo da notícia explicava-se que a dita Sociedade Portuguesa de Pediatria defendia “num parecer técnico enviado à Direcção-Geral da Saúde (DGS)” – que, oh! admiração, é “confidencial”, e nem o Público se mostrou interessado em o conhecer, e só depois disso fazer o artigo – que “parecem existir benefícios em introduzir em Portugal um fármaco recentemente aprovado pela Agência Europeia do Medicamento (…) à base de uma nova substância activa que previne a infecção e o desenvolvimento de doenças provocadas” pelo VSR.
Chamada de primeira página do Público da edição de 25 de Maio, anunciando que a Sociedade Portuguesa de Pediatria recomendava junto da DGS a administração universal de um fármaco da AstraZeneca. A notícia omitia então o interesse directo da Sanofi, uma das principais financiadoras daquela sociedade médica, e que tivera um conteúdo pago no Público sobre o vírus sincicial respiratório há cerca de um mês.
E, em seguida, explicitava-se que o dito fármaco é um anticorpo monoclonal denominado nirsevimab, da farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca – aliás, a mesma empresa que já produzia um fármaco semelhante administrado a bebés prematuros ou com comorbilidades muito específicas, o palivizumab, usado em Portugal pelo menos desde 2008, de acordo com contratos consultáveis no Portal Base.
Omissão na notícia publicada originalmente: o nirsevimab não é um fármaco da AstraZeneca, aprovado em finais de Outubro do ano passado pela Agência Europeia do Medicamento, sob a forma comercial de Beyfortus. É um fármaco também da francesa Sanofi e, de uma forma mais marginal, da sueca Sobi.
A omissão no Público pode parecer irrelevante, mas não é. Pelo contrário, como sói dizer-se: o diabo está nos detalhes. Tendo sido intencional ou não – já lá iremos, nesse aspecto –, a falta de referência à Sanofi – que foi entretanto acrescentada pela direcção editorial do Público, após o PÁGINA UM a ter questionado – escondeu mais uma vez, aos olhos dos leitores, as emaranhadas relações de promiscuidade entre farmacêuticas, sociedades médicas, médicos e imprensa com o fito de promover fármacos.
A história do nirsevimab e sobretudo da ascensão do RSV como problema de Saúde Pública susceptível de fazer manchetes é um case study. Sendo case study está muito longe de ser caso único – pelo contrário.
Começa então em Março de 2017, quando a MedImmune – a biotecnológica da AstraZeneca – e a Sanofi Pasteur – a divisão de vacinas da Sanofi – anunciaram um acordo para desenvolver e comercializar um anticorpo monoclonal, então baptizado de MEDI8897. O objectivo era desenvolver um fármaco na mesma linha de um outro anticorpo monoclonal – o palivizumab, comercializado sob a forma de Synagis desde 1998 – para prevenção de doenças do trato respiratório inferior causado pelo VSR.
A empresa com a “massa” para desenvolver o MEDIU8897 era a Sanofi: o acordo de 2017 estabeleceu que esta farmacêutica francesa faria um adiantamento de 120 milhões de euros à AstraZeneca, podendo o pagamento total atingir, em função de objectivos, os 495 milhões de euros. De igual modo, entrou também em jogo a farmacêutica sueca Sobi – especializada em doenças raras – que ficou com os direitos de comercialização do Synagis (o anterior anticorpo monoclonal para prevenir o VSR) nos Estados Unidos, e uma parcela futura nos lucros do MEDI8897. Tudo isto envolveu muitos milhões. Na verdade, à cabeça a AstraZeneca recebeu da Sobi 1,5 mil milhões em dinheiro e acções, e ficaram outros montantes a aguardar novas decisões.
Na altura, o fármaco MEDIU8897 ainda estava na fase IIb dos ensaios clínicos, em bebés prematuros não elegíveis para tomar Synagis. E acrescentava então um comunicado da AstraZeneca que estava previsto na fase III dos ensaios clínicos testar-se o medicamento em bebés saudáveis. Em 2017 já estava plenamente definido que a Sanofi seria a responsável pela comercialização do fármaco, quando fosse aprovado pelos reguladores. Dir-se-ia que o novo anticorpo monoclonal tinha grande chances de sucesso comercial, porque substituiria um produto similar mais antigo, a começar por ser de apenas uma dose, ao contrário do palivizumab.
O marketing para promover mediaticamente o tema do vírus sincicial respiratório começou no final de 2021 com um evento pago pela AstraZeneca ao Público. A partir do ano passado, os eventos, também em outros media (como o Expresso) começaram a ser promovidos pela Sanofi, que tem a área comercial de um novo fármaco (com a AstraZeneca e a Sobi) aprovado na Europa. As notícias sobre o VSR e o novo fármaco aumentaram substancialmente a partir do ano passado na generalidade da imprensa.
Esse update – chamemos-lhes assim – permitiria a criação de um novo monopólio, contornando a perda da patente – e a possibilidade de venda como genérico – do palivizumab, um fármaco com duas décadas de existência.
Contudo, o mercado para os anticorpos monoclonais para o VSR era, em 2017 – como antes, e até 2020 –, bastante reduzido, circunscrevendo-se aos bebés prematuros e com determinadas patologias cardíacas e respiratórias.
Embora causando mortalidade relevante em países subdesenvolvidos – mas aí as simples diarreias mostram-se mortíferas –, o RSV sempre foi sobretudo um problema clínico de nicho nos países mais desenvolvidos, pela quase nula letalidade. Além disso, com o surgimento do palivizumab, mesmo os grupos de risco ficaram substancialmente protegidos.
Os bebés saudáveis têm, por regra, virtualmente uma baixa mortalidade e uma baixíssima morbilidade, ou seja, reduzido grau de hospitalização. Tanto assim que, por regra, antigamente eram raros os exames (testes PCR) para identificar se era o VSR o responsável por casos de bronquiolite, traqueobronquite, pneumonia viral, conjuntivite ou otite, mesmo se se sabia que mais de 90% das crianças até aos dois anos são infectadas por este vírus. A razão de não se fazer testes chamava-se pragmatismo: a identificação do VSR em caso das doenças acima referidas “não vai alterar a terapêutica instituída”, como o próprio site da Direcção-Geral da Saúde admite.
Notícia do Público de 25 de Maio omitia referência ao interesse directo da Sanofi. E incluía a opinião da pediatra Teresa Bandeira, que também emitia opinião num conteúdo pago (pela Sanofi) inserido no Estúdio P, uma secção comercial mas com textos de estilo jornalístico deste diário.
Quando se refere que o VSR era um problema clínico de nicho não significa que fosse negócio despiciendo para as farmacêuticas, e em particular para a AstraZeneca e o seu palivizumab. Muito pelo contrário. As farmacêuticas fazem-se pagar bem por medicamentos destinados a poucos clientes, sobretudo se, para salvar a vida a esses poucos clientes, os custos – leia-se, custos hospitalares, além de mortes – são relevantes.
Por exemplo, nos Estados Unidos estima-se que entre 58 mil e 80 mil crianças com menos de cinco anos sejam internadas em cada ano, até porque virtualmente todas acabam mais tarde ou mais cedo por serem infectadas. Pode parecer um valor muito elevado, mas não é: com menos de 5 anos vivem 22,9 milhões de crianças, naquele país, o que o significa uma taxa de internamento que ronda os 3 em cada 1.000 crianças.
Entre 1% e 2% dos menores de seis meses infectados por VSR acabam por necessitar de hospitalização, e uma pequena minoria pode ainda necessitar de oxigénio, fluidos intravenosos e, em casos mais graves, ventilação mecânica. Mas a mortalidade é, em países desenvolvidos, bastante rara. Aliás, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) nem sequer apontam uma taxa de letalidade e muito menos de mortalidade.
AstraZeneca criou um anticorpo monoclonal em 1998 para imunoprofilaxia de bebés de risco contra o vírus sincicial respiratório. A pandemia da covid-19 “hipersensibilizou” a opinião pública para as infecções respiratórias. Com a investigação de um novo anticorpo monoclonal (niservimab), a AstraZeneca e a sua parceria Sanofi viram na possibilidade de administração universal um negócio fabuloso.
Contactado pelo PÁGINA UM, Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Especialidade da Ordem dos Médicos, recusando debruçar-se sobre a questão das terapêuticas, salienta que as doenças associadas ao VSR são, efectivamente, “muito comuns, embora tenham ocorrido alguns surtos fora de época durante a pandemia” da covid-19. Para este pediatra, tendo em conta que já existe a administração de um anticorpo monoclonal a grupos de risco, o alargamento para o universo dos recém-nascidos terá de ser “uma decisão política”.
Recorde-se que, em entrevista ao PÁGINA UM em Novembro do ano passado, Amil Dias defendia que “o ideal seria que ninguém ficasse doente, e todos gostávamos que nenhum de nós, nem os nossos filhos, ficasse doente, mas isso é simplesmente impossível. Se nós erradicássemos todos os micróbios que causam infecção, provavelmente nós também desaparecíamos. A nossa relação de há milhões de anos com o ambiente em que vivemos, e com os micróbios, foi estabelecendo equilíbrios do sistema imunitário, de convivência e de organização que nos permitiu evoluir. Quando desequilibramos essa relação, acontece o que vemos este ano: com o confinamento nestes últimos dois anos, de repente apareceram doenças que, em algumas crianças, tiveram uma gravidade excessiva. Foi o caso das hepatites.”
Contudo, mesmo causando doenças muito raramente graves, sabe-se que, sobretudo em idades tão tenras, não se olha muito a gastos na hora de pagar facturas às farmacêuticas. Ou melhor, olha-se mas apenas se houver alarme público e os holofotes da imprensa estiverem a pressionarem os poderes políticos. E as farmacêuticas sabem disso – e sabem bem as regras e como devem jogar bem. E definem quase sempre os preços de venda não tanto pelos custos de investigação e de produção, mas pelo estado financeiro do país e pelos custos que supostamente poupam pela eficácia do seu medicamento.
Até agora, a DGS apenas recomenda anticorpos monoclonais em bebés com determinados factores de risco. Sociedade Portuguesa de Pediatria, que recebeu 108 mil euros da Sanofi no ano passado (mais do que nos cinco anos anteriores), considera que a administração deve ser universal a todos os recém-nascidos.
Por mais loas à Humanidade que façam, o objectivo principal de uma farmacêutica é sacar o máximo possível num monopólio antes de se perder a exclusividade da patente ou que surja uma alternativa mais apelativa da concorrência. Resultado: por vezes, o negócio é ruinoso para os Estados sem grandes vantagens em termos de Saúde Pública. Um milhão a salvar uma vida pode significar muitas mais mortes porque não se alocou esse milhão para o tratamento de outra doença com fármacos mais baratos. Não são análises nem decisões fáceis de se fazerem, mas necessárias.
Por exemplo, em 2011, um artigo científico apontava que na Flórida “o custo da imunoprofilaxia com palivizumab excedeu em muito o benefício económico de prevenir hospitalizações, mesmo em lactentes com maior risco de infecção por VSR”. Isto porque o preço por tratamento era extremamente elevado. Por exemplo, em prematuros com menos de seis meses de idades, a imunoprofilaxia com este anticorpo monoclonal da AstraZeneca custava entre 3.092 mil e quase 915 mil euros.
No Canadá, onde o fármaco é comercializado pela AbbVie – devido a um acordo comercial –, o preço de venda atingia há poucos anos os 15.000 dólares por grama, sendo esta farmacêutica acusada de tácticas de vendas agressivas. Segundo uma notícia da CBC, no período de 2015-2016, o Canadá gastou 43,5 milhões de dólares para imunizar 6.392 crianças, o que significa, em média, à cotação actual, um custo de quase 4.700 euros por criança.
Mais de 90% dos bebés são infectados pelo RSV nos seus primeiros anos de vida. Em Portugal, a taxa de letalidade é irrelevante, mesmo havendo algumas centenas de internamentos por ano, porque os grupos de risco já beneficiam de imunoprofilaxia.
Em Maio de 2019, uma revisão sistemática publicada na revista científica Pediatrics, analisando 28 avaliações económicas ao palivizumab, concluiu que os elevados preços e a eficácia do fármaco apenas justificava o seu uso em prematuros – que representam cerca de 8% dos recém-nascidos –, e em lactentes com cardiopatia congénita, displasia broncopulmonar e doença pulmonar crónica. Mesmo que seja aparentemente um lote minoritário de pacientes, os valores são muito significativos.
Por exemplo, nos Estados Unidos, a farmacêutica Sobi – que tem o monopólio do palivizumab nos Estados Unidos, bem como interesses comerciais para o novo anticorpo (nirsevimab) – facturou no ano passado quase 302 milhões de euros apenas para este fármaco, uma subida de 32% face a 2021, de acordo com o seu relatório e contas.
Em Portugal, desconhece-se o número exacto de crianças a quem é administrado o palivizumab nem se sabe o preço médio de cada tratamento, mas a norma da DGS em vigor recomenda o fármaco apenas a bebés com comorbilidades específicas graves. Por agora, o negócio para este medicamento em concreto não é muito chorudo. Pela consulta dos contratos no Portal Base, desde 2008 foram comprados 9,1 milhões de euros deste anticorpo monoclonal, sendo que em 2014 se registou o maior gasto: quase 2,2 milhões de euros. No ano passado despendeu-se 713 mil euros – mesmo se houve supostamente surtos graves – e este ano já se investiu 185 mil euros.
As campanhas de marketing da Sanofi incluem produção de eventos pagos a grupos de media para promoção da prevenção contra o RSV, ou seja, de promoção de um medicamento desta farmacêutica. Os eventos têm cobertura noticiosa (travestida de conteúdo comercial), um deles contando mesmo com a presença do CEO da Impresa.
Mas entretanto, surgiu a pandemia da covid-19 e, embora num a primeira fase a gripe e outras infecções respiratórias tenham ficado em segundo plano por algum tempo – por força de uma menor prevalência dos outros microorganismos, em parte também pelas restrições físicas –, as farmacêuticas viram na hipersensibilização pública uma excelente janela de oportunidades para aumentar o negócio.
Daí que sobretudo a partir de 2021, as infecções causadas pelo VSR tenha sido catapultadas para um patamar de gravidade inimaginável. Assim, sobretudo a partir de finais de 2021 – e também depois de se anunciarem ensaios para vacinas por parte da GlaxoSmithKline, Pfizer e Moderna –, o interesse noticioso pelo VSR aumentou significativamente. E daí até se “falar” da premente necessidade de se fazer imunoprofilaxia a todos os bebés foi um passo.
Para se ter uma melhor percepção dessa mudança, vejam-se as notícias do Público sobre o RSV. Entre os anos de 2010 e 2020 encontram-se apenas três notícias sobre o VSR, sendo que apenas uma aborda especificamente este vírus. No entanto, o foco estava equilibrado: destacava-se um estudo que comprovava ser a síndrome de Down um factor de risco, tal como sucedia “nas crianças potencialmente vulneráveis, isto é, os bebés prematuros ou com doenças crónicas, em especial do foro cardíaco”.
No Expresso, os conteúdos pagos pela Sanofi foram escritos por jornalistas, apesar de ser proibido pelo Estatuto dos Jornalistas. Mas, além do conteúdos pagos, proliferaram, a partir sobretudo do final de 2021, as notícias (com suposta independência editorial) sobre a gravidade do VSR. Uma coincidência.
A esta notícia do longínquo dia 21 de Março de 2010, junta-se outra de 28 de Fevereiro de 2012, sobre as mortes acima do esperado então detectadas. O então director-geral da Saúde, Francisco George garantia, como porta-voz dos “especialistas”, que não havia razões para alarme, informando que, além da estirpe da gripe que estava a circular ser a A (H3N2), mais letal para os idosos e mais vulneráveis, havia ainda outros vírus em circulação, apontando especificamente “o coronavírus [não o SARS-CoV-2, obviamente], o adenovírus, o metapneumovírus e o vírus sincicial respiratório”.
A terceira notícia sobre VSR em 11 anos saiu em 14 de Janeiro de 2020, poucos meses antes do surgimento da covid-19 em Portugal. Porém, o foco era a habitual gripe.
Foi já em finais de 2021, estando a covid-19 ainda omnipresente, mas após um anormal pico fora de época de doenças associadas ao VSR em pleno Verão, disparou uma “epidemia de notícias” sobre o tema na generalidade da imprensa. Por coincidência – ou não – vieram com o surgimento de conteúdos comerciais à boleia de uma conferência na Culturgest, em Lisboa, organizada em 20 de Novembro desse ano pela AstraZeneca sobre, claro, o VSR. Tanto a AstraZeneca como a Sanofi estavam numa corrida contra o tempo para obterem a autorização da Agência Europeia do Medicamento (ENA) antes das vacinas desenvolvidas pela concorrência.
Conteúdo pago pela Sanofi em Abril deste ano, apresentando o VSR como “uma ameaça à saúde dos mais novos”. Não era referido especificamente o niservimab (comercializado pela Sanofi), mas surgia o pediatra Luís Varandas a falar de que “há um novo anticorpo monoclonal, já autorizado pela Agência Europeia de Medicamentos, de administração única, a recém-nascidos e lactentes, no início da estação do VSR”. A Sociedade Portuguesa de Pediatria fez entretanto lobby a favor desse anticorpo monoclonal.
Nos meses seguintes, e ao longo de 2022, a AstraZeneca seria substituída pela sua parceira Sanofi na promoção do debate em redor do VSR, tanto no Público como no Expresso. Esses eventos tiveram sempre a participação de diligentes médicos, membros de sociedades médicas, investigadores e também associações, destacando-se a Associação Portuguesa de Economia da Saúde e a Associação Portuguesa de Apoio ao Bebé Prematuro. Esta segunda associação recebeu no ano passado da AstraZeneca um apoio de 12.000 euros para as suas actividades, conforme se observa no Portal da Transparência do Infarmed.
Em paralelo, a Sanofi criou um think tank com médicos que se destacaram mediaticamente, como é o caso de Ricardo Mexia, antigo presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública e actual presidente da Junta de Freguesia do Lumiar.
O ano de 2022 teve efectivamente um boom de notícias sobre VSR em toda a imprensa portuguesa e mundial. Em Portugal, registam-se 14 no Diário de Notícias, no Observador 12, na CNN Portugal 22, e no Expresso aparecem 25 notícias, se incluirmos os conteúdos comerciais denominados Projetos Expressos – que são escritos por jornalistas isentos de processos disciplinares por esses actos pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.
Aliás, nesses eventos – apresentados como parcerias – nunca se assume que se trata de uma prestação de serviços do Expresso nem se informa os leitores que a Sanofi pagou todo o evento e que existe a obrigação de acompanhamento mediático. A farmacêutica também não coloca o valor que paga por esta operação de marketing – que indirectamente promove um seu medicamento – no Portal da Transparência do Infarmed. Os reguladores – tanto da imprensa (ERC) como das farmacêuticas (Infarmed) fecham os olhos. Aliás, o presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, já participou em eventos do Expresso patrocinados por farmacêuticas. E não foi apenas em um, isolado. Nem em dois. Esteve bem presente, pelo menos, em três.
Numa dessas conferências sobre RSV feitas pelo Expresso, em Novembro do ano passado, coberto para a edição semanal em papel do jornal, diz-se que “o Expresso associou-se à Sanofi para promover um debate sobre os principais vírus respiratórios que afetam as crianças, nomeadamente o vírus sincicial respiratório (RSV), que é responsável por 285 internamentos – desde outubro do ano passado até agora – e que pode causar doença respiratória grave nas crianças”.
Note-se que nessa altura já a AstraZeneca e a Sanofi tinham alcançado a aprovação do niservimab pela Agência Europeia do Medicamento, e o evento, grandioso, contou com a presença do próprio CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão, e a moderação da jornalista da SIC Ana Patrícia Carvalho e até da apresentadora Carolina Patrocínio. A directora-geral da Sanofi prometia então, em declarações ao Expresso, ir “trabalhar com as autoridades portuguesas e com a DGS para que seja possível percebermos a necessidade e a possibilidade de fazermos uma imunização para o RSV”.
Conteúdos comerciais da Sanofi no Público sobre RSV também houve. E também muitas notícias. Só durante o ano passado foram 15 – e para que não se diga que se atirou um número ao calhas, aqui seguem os títulos e ligações:
Helena Freitas, director-geral da Sanofi em Portugal. Eventos pagos a grupos de media têm sido excelentes formas de marketing para estabelecer contactos com a imprensa, médicos e até reguladores, como o Infarmed.
Se considerarmos as notícias que saíram no Público desde a aprovação do niservimab (da AstraZeneca, Sanofi e Sobi) pela Agência Europeia do Medicamento – ou seja, nos últimos sete meses –, contam-se então 19 artigos, considerando os seguintes oito já publicados ao longo dos primeiros cinco meses de 2023:
Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, tem participado em diversos eventos pagos pelas farmacêuticas ao Expresso, como em Maio do ano passado, numa conferência promovida pela GlaxoSmithKline.
Em abono da verdade, a notícia de primeira página do Público da semana passada era a sequência de um take da Lusa de 27 de Março – disseminado, como convém, pela generalidade de imprensa mainstream –, onde se anunciava que “um grupo de especialistas de diversas áreas alertou esta segunda-feira para a elevada carga em Portugal da infeção por Vírus Sincicial Respiratório (RSV), que provoca bronquiolites, defendendo que é preciso definir um método preventivo universal para todas as crianças.”
Toda esta parafernália noticiosa em redor da RSV foi sendo acompanhada pelos famigerados conteúdos comerciais. Discretos mas eficazes. E sem se ficar a saber os valores envolvidos, e sem também se ficar a saber se os contratos dispõem de cláusulas que obrigam os órgãos de comunicação social a fazer notícias para “manter a chama acesa”. Ou se o jornal mantém com notícias a “chama acesa” na esperança de serem contratados mais conteúdos comerciais da farmacêutica.
Conteúdos pagos do Público (e de outros media mainstream) são classificados como notícias pelo Google News.
Em todo o caso, o conteúdo comercial da Sanofi publicado pelo Público em finais de Abril deste ano merece uma análise cuidada. Primeiro, surge identificada como notícia no Google News. Depois, dá largas ao necessário alarmismo, usando o título: “Vírus sincicial respiratório – uma ameaça à saúde dos mais novos”.
No corpo do texto, num estilo completamente jornalístico – que induz a certeza de ter sido escrito por um actual ou antigo jornalista –, trata-se de se expor os supostos perigos críticos das doenças causadas pelo VSR em todos os bebés, e não apenas os prematuros ou com comorbilidades. Grande parte deste conteúdo comercial serviu também para divulgar os benefícios da rede de vigilância do VSR (VigiRSV), que passou a integrar 20 hospitais.
A divulgação por uma empresa farmacêutica da iniciativa de um instituto público (INSA) e de uma sociedade médica (Sociedade Portuguesa de Pediatria) para medir a incidência do RSV é mais do que óbvia: a Sanofi tinha um interesse directo em manter o tema como assunto, e sobretudo quantificando-o para assim ajudar a criar alarme social. Não por acaso, o INSA passou a divulgar, a partir do ano passado, os dados quantitativos da RSV juntamente com os da gripe – como se o grau de gravidade fosse semelhante. Aliás, muitos “especialistas”, alguns deles cronicamente associados a farmacêuticas, foram mesmo entranhando o VSR no contexto da covid-19.
Capa da edição de 4 de Novembro de 2022 do Diário de Notícias. O pneumologista Filipe Froes e outros médicos “colaram” o VSR à covid-19 e à gripe, tornando-o assim, artificialmente, um problema de Saúde Pública. Grande parte destes médicos têm fortes ligações à indústria farmacêutica.
Depois de Filipe Froes ter introduzido em Portugal a possibilidade de “uma pandemia tripla no Inverno” – covid-19, gripe e VSR, o que jamais ocorreu – , outros “opinion makers” da pandemia se juntaram, sempre colocando a VSR num nível de grave problema de Saúde Pública. Por exemplo, numa notícia da CNN Portugal em 29 de Novembro do ano passado, surgem a falar numa “epidemia tripla”, que incluiria o VSR, o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Gustavo Tato Borges, o investigador no Instituto de Medicina Molecular Miguel Castanho, o diretor do Centro Materno Infantil do Norte, Alberto Caldas Afonso, e ainda Bernardo Gomes.
Entre linhas, a publicidade encapotada. A notícia da CNN Portugal, escrita pela jornalista Daniela Costa Teixeira, dizia ainda que “para já, não há nenhum tratamento específico para a doença causada por este vírus, mas a Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla inglesa) deu luz verde à comercialização na União Europeia (UE) do fármaco Beyfortus para a prevenção da doença do trato respiratório inferior causada pelo vírus sincicial respiratório (VSR).”
Além da publicidade por promoção de um fármaco, ainda por cima um erro crasso e grave: a notícia da CNN Portugal omite que o Beyfortus (o nome comercial do nirsevimab, da AstraZeneca, Sanofi e Sobi) não é o primeiro fármaco para prevenir as doenças associadas ao RSV; existe já o Synagis (o nome comercial do palivizumab).
Não é caso único nem se justifica por ignorância do jornalista – a ignorância no jornalismo não é aceitável. As notícias de “promoção” do VSR como problema grave de Saúde Pública e da “promoção” explícita ou implícita do nirsevimab como solução miraculosa e necessária para todos os bebés estão intimamente ligadas. No marketing farmacêutico não há coincidências. Ou então assistimos a dezenas largas de coincidências.
Notícias “favoráveis” associadas a contratos com os media para a realização de conteúdos comerciais e “eventos em parceria” passaram a ser, na verdade, peças fundamentais de marketing mascarado de publicidade. E melhor ainda se essa publicidade encapotada foi feita por médicos. Por exemplo, no texto da Sanofi de Abril passado inserido no Público como conteúdo comercial, consta o seguinte: “Mas, graças à evolução da ciência, é possível que nos cheguem boas notícias em breve, nomeadamente em termos de soluções para prevenir a doença. Segundo Luís Varandas, ‘há um novo anticorpo monoclonal, já autorizado pela Agência Europeia de Medicamentos, de administração única, a recém-nascidos e lactentes, no início da estação do VSR, e prosseguem estudos com vacinas para grávidas, com o objectivo de transmitir anticorpos ao bebé através da placenta, à semelhança do que já acontece com as vacinas contra a tosse convulsa, gripe e a Covid-19’.
Ora, nem mais: uma das “boas notícias em breve” é, segundo o pediatra Luís Varandas, o anticorpo monoclonal da AstraZeneca… e da própria Sanofi – que é quem paga o conteúdo comercial.
Mas até a chamada de primeira página da semana passada do Público sobre a elaboração de um parecer sobre o nirsevimab da Sociedade Portuguesa de Pediatria – enviado para a DGS aceitar a sua administração universal em bebés – tem água no bico.
Manuel Carvalho, director do Público, declarou por escrito ao PÁGINA UM que “o PÚBLICO e os seus jornalistas não se arrogam no direito de determinar se a administração de um medicamento, seja o nirsevimab ou qualquer outro, é cientificamente recomendada ou economicamente viável”, acrescentando que “na notícia em causa, o que se fez foi apenas noticiar que a Sociedade Portuguesa de Pediatria assumiu uma opção sobre essa questão através do envio de um parecer à DGS, no âmbito de um processo de avaliação que está em curso”. E ainda referiu que “a infecção por VSR tem, como é sabido, causado grande debate pelo elevado número de casos e de hospitalizações e, por isso, o facto de a EMA ter aprovado recentemente uma nova substância que previne a infecção, e de existir um processo de avaliação em Portugal garante a maior pertinência jornalística.”
E concluiu: “havendo posições contrárias proveniente de entidades ou personalidades credíveis, trataremos de as divulgar em nome de um debate público aberto e saudável.”
Ora, mas faltou ao Público – que refira-se, novamente, tem recebido dinheiro da Sanofi para promover o RSV como questão premente de Saúde Pública e em consequência o niservimab – informar os leitores sobre as relações comerciais entre a Sociedade Portuguesa de Pediatria e a Sanofi. E acrescentar que se intensificaram muito. E que isso até se vê numa base de dados pública: o Portal da Transparência.
Vejamos então. Em 2017, por diversos eventos, a Sanofi concedeu 21.500 euros à Sociedade Portuguesa de Pediatria, e suas “subsecções”, valor que desceu cerca de 3.000 euros em cada um dos anos de 2018 e 2019. No ano da pandemia aumentou para 23.520 euros e situou-se nos 19.602 euros em 2021. No ano passado – já em pleno funcionamento da rede de vigilância da infecção pelo RSV (VigiRSV), promovida pela Sociedade Portuguesa de Pediatria e o Instituto Nacional de Saúde (INSA), ferramenta vital para manter mediaticamente o tema em ebulição –, o fluxo financeiro da Sanofi para esta sociedade médica subiu para os 108.461 euros, o valor mais elevado de uma farmacêutica num só ano a esta associação presidida pela pediatra Inês Azevedo.
De uma forma directa, nem a Sanofi (nem a AstraZeneca) financiam a VigiRSV – pelo menos nada consta no Portal da Transparência do Infarmed –, mas a farmacêutica francesa decidiu fazer generosos donativos à SPP para os seus congressos: no de 2021 foram 27.382 euros; no de 2022 mais 58.254 euros.
Neste último caso estamos perante o mais elevado patrocínio individual, desde 2013 (ano em que começaram os registos na plataforma do Infarmed), recebido pela Sociedade Portuguesa de Pediatria, que tem como outros importantes financiadores a Pfizer, que este ano já transferiu cerca de 54 mil euros. A AstraZeneca, que não tem ingerência na comercialização do novo fármaco, deu apenas 6.000 euros à Sociedade Portuguesa de Pediatria para ter um stand no congresso do ano passado.
Inês Azevedo, presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria, em Outubro do ano passado, no congresso desta agremiação de médicos. A Sanofi concedeu um patrocínio directo de 58.254 euros. No total, ao longo de 2022, a farmacêutica francesa deu um apoio total superior a 108 mil euros.
Uma coisa é certa: se estas promiscuidades envolvendo imprensa, sociedades médicas (e médicos) sucedem com todo este esplendor – e sem denúncia pela própria comunicação social que dela agora está a beneficiar –, imagine-se noutros países de maior dimensão e poder económico.
No caso específico do niservimab, e de acordo com a Airfinity, garantir a administração deste fármaco a todas as crianças é um negócio verdadeiramente apetecível. Como o preço estimado será de cerca de 280 euros por criança na Europa (e 600 euros nos Estados Unidos), só em Portugal estamos a falar de mais de 22 milhões de euros por ano, considerando o nascimento de cerca de 80 mil bebés anualmente.
A Airfinity previu, aliás, uma receita potencial para a AstraZeneca e a Sanofi da ordem dos 1,1 mil milhões de dólares por conseguir a aprovação da imunoprofilaxia contra o VSR antes da concorrência.
Sanofi e AstraZeneca procuram vantagem de serem os primeiros a tentar convencer Governos a administrarem imunoprofilaxia contra o VSR a todos os recém-nascidos, e não apenas aos grupos de risco como sucedia com o primeiro anticorpo monoclonal.
No comunicado desta consultora, em vésperas da aprovação do nirsevimab pela Agência Europeia do Medicamento, citava-se mesmo um analista em ciências biológicas, Sam Campbell, que informava das vantagens em ser a primeira empresa a entrar no mercado, e que a concorrência, quando apresentasse os seus fármacos, teriam de apresentar já uma “vantagem significativa em termos de preço, logística ou eficácia”.
Por tudo isto se compreende como a imprensa mainstream não parou de falar de RSV enquanto a Sanofi e a Astrazeneca (e, de uma forma secundária, a Sobi) trabalhavam na aprovação do medicamento e implementavam uma forte campanha de marketing, envolvendo médicos e a Sociedade Portuguesa de Pediatria.
O primeiro que se levanta, abre o cofre. Sempre foi este o lema das farmacêuticas. Mas, agora, com as sociedade médicas e sobretudo a imprensa a escovarem as ditas pantufas…
Esta notícia foi objecto de um direito de resposta publicado a 26 de Outubro de 2023 por determinação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cujo texto pode ser lido aqui.
Portugal é um país de mitos, não fosse ter mais de oito séculos. Ainda mais que, por mares nunca dantes navegados, andou a tentar convencer meio-Mundo de que éramos fantásticos, e com essas mentiras, muitos convencemos, e até nos convencemos, a nós próprios, até que, de facto, de tempos em tempos, até fomos fantásticos.
Por exemplo, o mito da saudade, estado de espíritos que os portugueses inculcaram ser apenas deles. Há o mito de D. Sebastião, desaparecido em combate em Alcácer-Quibir, mas que, Encoberto, surgiria por fim, numa madrugada de nevoeiros, para tornar Portugal no V Império, sucessor dos antigos impérios da Babilónia, da Pérsia, da Grécia e de Roma. Ou outro qualquer rei, enfim.
Há o mito que somos um país de brandos costumes, mas matámos e esquartejámos como os demais. E parece que ainda sucede o mesmo, agora, por vezes. Há ainda o mito de de sermos um país de vocação florestal, mas Portugal andou de charneca em charneca durante séculos, só viu crescer floresta desde o final da Monarquia até ao final dos anos 70 do século passado, e tem a partir daí se transformado de pira de lenha em pira de lenha…
E depois, por fim, temos o mito de o Benfica, quando campeão de futebol, catapultar a nossa Economia, arremessar pelos ares o nosso Produto Interno Bruto (PIB).
Bem sabe o PÁGINA UM que, antes de nós, outros almejaram escrutinar esse mito. Por exemplo, em 2019 o Expresso e o Jornal Económico abordaram o mito, e consideraram ser suficiente começar a análise desde o ano de 1994, a partir dos dados do Instituto Nacional de Estatística e do Pordata.
Até podendo haver também o mito de que a imprensa mainstream chega onde os jornais independentes de pequena dimensão nem sonham, deixemos isto para outras núpcias. Foquemo-nos apenas num facto. Pode começar-se por uma série mais longa: mesmo mais longa do que a usada em 2014 pelo site Poupar Melhor – que fez a análise ao mito do Benfica vs. PIB, usando o Banco Mundial.
Ora, pode e deve-se ir mais longe, porque, na verdade, existem dados mais antigos, pelo menos nos relatórios das séries longas do INE e do Banco de Portugal. Com mais tempo, talvez até fosse possível desencantar, dos calhamaços do INE, este indicador económico desde a época de 1934-1935, se considerássemos a prova equivalente à actual Primeira Liga.
E, assim fizemos, “confrontámos” o desempenho do PIB do ano económico – em termos percentuais, calculado a nível per capita, para eliminar variações demográficas – com o vencedor do campeonato à última jornada em cada Primavera.
Confessemos: talvez Expresso e o Jornal Económico não tenham desejado analisar uma série mais longa, entrando pelo Estado Novo adentro e atravessando os primeiros anos da Democracia por laivos de pudor: é que uma coisa é brincar ao mito das vitórias do Benfica servirem para a Economia celebrar, outra é envergonhar o nosso regime com o do Salazar ou do Marcelo Caetano.
Na verdade, esqueçam quem foi campeão a partir de 1954 até ao fim do Estado Novo: aquilo que mais ressalta nesses 20 anos é o triste facto de nos tempos de Salazar e Marcelo, o Caetano, não ter ocorrido um miserável ano em recessão. Todos os anos tiveram crescimentos positivos. E bem positivos, hélas. Ao invés, em 50 anos de Democracia – e contando ser positivo aquele que está curso – já contamos com 11 anos em recessão: logo os três primeiros em Democracia (1974, 1975 e 1976), 1984, 1993, 2003, 2009, mais o triénio 2011-2013 e 2020.
Para piorar – ou melhor, para envergonhar o nosso actual regime (a Democracia, que deveria dar uma “cabazada” ao raio da Ditadura), ou melhor dizendo, os políticos que todos os anos nos pespegam cravos na lapela sem assumirem que Liberdade deveria conjugar com desenvolvimento decente –, também fomos analisar, já agora, quais foram os anos do top 10 económicos.
Enfim, os quatro primeiros foram todos no Estado Novo: 1965 e 1972 (+9,9%, cada), 1962 (+9,4%), 1970 (+8,3%); e só depois surgem dois anos de Democracia: 1987 e 2022 (ambos com 6,8%, sendo que este sucedeu ao ano de pior recessão, o de 2021). Antes dos anos de 1988 (+6,5), 1990 (6,4%) e 1989 (+5,9%), ainda se intromete neste top 10 mais um ano de Ditadura: 1971 (+6,7%).
Escusado se mostraria dizer, por já se ter dito não haver anos de recessão entre 1954 e 1973, que todos os anos de recessão foram em Democracia.
Mas esqueçamos – quer dizer, não deveríamos esquecer; pelo contrário, sem qualquer espécie de saudosismo pelos tempos da Outra Senhora, deveríamos questionar mais os políticos sobre tão fraca performance em Liberdade – os regimes e foquemo-nos no essencial (enfim!) desta análise.
Convém salientar que, como será do conhecimento quase geral, sobretudo o Benfica dominou o futebol na parte final do Estado Novo: nos 20 últimos anos (épocas futebolísticas), as águias – que venceram até duas Taças dos Campeões Europeus e perderam outras tantas finais – conquistaram 13 campeonatos nacionais, restando cinco para o Sporting e dois para o Porto.
Crescimento anual (%) do PIB per capita desde 1954 (até 2022, assumindo-se que 2023 será positivo) com indicação do clube que venceu a época no ano. Vermelho: Benfica; Azul: Porto; Verde: Sporting: Negro: Boavista. Fonte: Liga Portuguesa de Futebol Profissional (vencedores dos campeonatos); INE e Banco de Portugal (dados do PIB).
Em todo o caso, em termos relativos, o Sporting ”conseguiu” dois campeonatos em dois dos melhores anos de crescimento do PIB (1962, com 9,4%; e 8,3%, em 1970). Já o Benfica, teve um “desempenho” muito diversificado: tanto ganhou campeonatos em anos de extraordinário crescimento do PIB (1965 e 1972, ambos com 9,9%) como venceu, no período em análise, naquele que foi o ano de menor desempenho do Estado Novo (1963, com apenas +1,1%).
Quanto ao Porto, no período do Estado Novo, as suas vitórias ocorreram num clima económico sem grande fulgor: em 1956, com o PIB a crescer 3,4%, e em 1959, com 2,9%.
Como também se sabe, o Porto acabou a dominar o futebol português a partir de finais dos anos 70. Entre 1978 e 2013, o clube nortenho venceu 22 campeonatos em 36 possíveis, restando nove ao Benfica, quatro ao Sporting e um ao Boavista. Depois de 2013, o Benfica tem sobressaído novamente, com seis campeonatos em 10 possíveis.
Obviamente que seria ridículo associar as vitórias do Porto ao fulgor económico do país, mas pode-se sempre dizer que o clube de Pinto da Costa – na verdade, o actual presidente dirige os seus destinos desde 1982 – acaba associado às crises.
As estatísticas são o que são, e contra esses “factos”, enfim, só se podem apresentar – e relativizar, claro.
De facto, se considerarmos o período da Democracia, o Porto venceu 18 campeonatos com o PIB a crescer nesse ano, e ergueu a taça sete vezes com o PIB a decrescer. Contas feitas, 72% das vitórias em ano de, digamos assim, vacas a engordar.
Este desempenho confronta com desempenhos bem mais favoráveis – e coincidentemente semelhantes – do Benfica e do Sporting, pois ambos conquistaram 83% dos seus campeonatos em regime democrático com o PIB a subir. No caso do clube da Luz foram 15 campeonatos em “alta” económica (assumindo já o PIB positivo em 2023) e apenas três em anos de recessão, enquanto os sportinguistas apenas tiveram um dos seus cinco campeonatos em regime democrático em ano de descida do PIB. Já agora, no ano em que o Boavista foi campeão, em 2001, o PIB aumentou em 1,2% – pouco, mas positivo.
Se considerarmos todo o período em análise (desde 1954), verifica-se que, qualquer que seja a causa, incluindo ser um acaso, o ano económico tem uma “probabilidade” de ser menos favorável quando o Porto é campeão. De facto, em 27 campeonatos conquistados neste período (70 anos), sete ocorreram em recessão, ou seja, 16%.
Quanto ao Benfica, em 28 campeonatos apenas registou três com queda do PIB,o que representa praticamente 10%.
Analisando um passado mais recente, observa-se também que os anos económicos melhorzinhos estão mais associados ao Benfica campeão: os últimos sete campeonatos vitoriosos do clube da Luz (2010, 2014, 2015, 2016, 2017, 2019 e 2023) coincidiram com anos de PIB positivo. Ao invés, nos últimos sete campeonatos do Porto (2009, 2011, 2012, 2013, 2018, 2020 e 2022), apenas dois (2018 e 2022) coincidiram com anos de PIB a crescer.
Isto poderia significar que, então sim, o Benfica faz crescer mais o PIB do que o Porto. Se assim fosse – e se houvesse uma correlação sem ser espúria –, então melhor ainda seria o Sporting ser mais vezes campeão, porque em 11 campeonatos ganhos desde 1954, apenas em um ano houve recessão: por ironia, no primeiro ano da nossa Democracia, em 1974.
N.D. Como salientado desde a fundação do PÁGINA UM, constando no Código de Transparência, assumo-me como adepto e sócio do Benfica, desde 2000. Nunca essa apetência clubística “cegou” a minha objectividade, e “pelo-me” pelo dia em que me apresentem provas concretas para poder escrever algo desfavorável (desde que verídico, obviamente) para o clube ou a administração da SAD. Pedro Almeida Vieira
Por um dia, pelo menos por um dia (vamos ver se não me habituo mal) vale bem a pena ser jornalista desportivo, sabendo-se que, para minha felicidade, sou o director do periódico para onde trabalho (PÁGINA UM), e não me impus nenhum planeamento nem horário de publicação.
Ademais, sabendo não ser o futebol o nosso core business – por muitas caneladas que ande a apanhar, por muitos golos que marque nas balizas adversárias, por muito que seja o entusiasmo das minhas hostes (leia-se leitores) para enfrentar manobras de bastidores e golpes de secretaria. Tudo isto com um único doping: os apoios dos leitores.
Enfim, primeira vantagem de se ser jornalista desportivo: não tive de ir apanhar filas nem acordar pela manhã da terça-feira da passada semana para tentar, como sócio, comprar um bilhete no site do clube. Para felicidade, tive a ideia de escrever uma crónica em pleno Estádio da Luz, solicitando acreditação, fazendo assim “passar” por jornalista desportivo – sonho de criança apanhado quando, pela rádio, ouvia os relatos de Artur Agostinho e Ribeiro Cristóvão, para assim imaginar como teriam sido os golos antes de ver, muito mais tarde, os resumos na televisão sob a batuta do Mário Zambujal.
(onde já vão os tempos do Artur Agostinho, do Ribeiro Cristóvão e do Mário Zambujal [e já agora do saudoso Rui Tovar, que tem um filho que agora ainda é mais refinado no saber, e também do inigualável Gabriel Alves… estou a ficar velho]… ah, e se a memória não me falha, o sonho de relatador desvaneceu-se no tempo das rádios piratas, após testar os meus dotes: um desastre – nunca fixo bem nomes, a voz nunca se mostrou muito sincronizada para as ondas hertzianas radiofónicas e a eloquência ritmada, por força da juvenil timidez, também não serviu de alento)
Corrijo-me (que não é apenas o António Costa a corrigir-se): é errado, e até deontologicamente censurável, eu dizer que me fiz passar por jornalista desportivo, pois pode soar a (des)qualificativo. Todo o cuidado é pouco, e declaro aqui haver somente dois tipos de jornalistas – os bons e os maus. Além disso, não quero aqui usurpar funções nem escrever nada que possa ser interpretado como depreciativo, e vai daí lá tenho o senhor juiz da ERC a chatear-me, a senhora jurista “de mérito” da CCPJ a azucrinar-me e os anónimos senhores do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas a quererem tramar-me.
(entretanto, Gonçalo Ramos marca aos 7 minutos, de cabeça, ao segundo poste, num cruzamento clássico de Bah pela direita. Euforia nas bancadas. Não sei se ainda cheguei a levantar o braço esquerdo, como acto involuntário (deontologia obligé); talvez não: estava a escrever esta crónica)
Enfim, recebida a acreditação, o habitual: apanhar metro na Baixa-Chiado, com as escadas habitualmente avariadas (incrível como a administração do Metropolitano de Lisboa insiste, qualquer que seja a equipa, pensa que nos convence das suas capacidades de gestão de um meio de transporte quando nem o raio de umas escadas rolantes mete a rolar sem interrupções constantes), e sair no Alto dos Moinhos. Um mar de gente – soa a lugar-comum, bem sei. Muito vermelho, como convém e se esperava. Até aqui nada surpreendente para um adepto – pouco assíduo desde os tempos de pandemia.
Apesar da turba encarnada, mas ordeira por serem do mesmo “rebanho” (que o Estádio da Luz costuma ser um bom redil, este é dos bons, apesar de por cá já terem passado pessoas que bem mereciam estar atrás de grades), atravessar a ponte de acesso ao recinto, através do Alto do Moinhos, deu logo para perceber que seria dramático que houvesse uma surpresa: a derrota do Benfica contra o último (e já condenado à despromoção), o Santa Clara, que também anda de águia no emblema. Alguém perguntar a um daqueles vestidos a rigor (eu não estive assim) se temia alguma surpresa seria, para um jornalista, acto tão ridiculamente idiota como questionar um desafortunado sobre o que sente depois de um tsunami lhe levar a casa.
Acreditação recolhida, o rookie do jornalismo desportivo andou um pouco às aranhas, e teve de perguntar a um assistente por onde raio andava o elevador para subir do piso -2 para o terceiro na porta 30. Pior ainda quando, já no piso correcto de acesso à bancada central, um steward lhe entrega uma senha de refeição para ir levantar, que a fome pode apertar. Quer dizer, para sacar um pequeno farnel. Não sabia eu que havia e que se recolhia no bar.
O melhor, nestas coisas, quando se é rookie é ser uma “Maria vai com as outras”: segue-se um tipo com uma acreditação de jornalista e faz-se o que ele faz. Enfim, foi assim que aprendi a ser jornalista nos anos 90, vindo de um curso, Engenharia, onde se fica com a fama, e amiúde o proveito, de escrever mal. Da próxima já sei como se faz e até ajudo quem não saiba.
Mesmo depois disto, não soube ao certo ainda onde era a tribuna da imprensa. Quem tem boca chega a Roma, e lá cheguei, às tribunas, não a Roma, quase ao nível do Terceiro Anel do antigo estádio, mas neste, mesmo no topo, fica-se com uma visão fenomenal.
Ainda bem que vim cedo. Aconcheguei-me numa das vastas mesas corridas, muito espaço, puxei computador, e o lanchezinho, a saber: um Compal de laranja do Algarve, uma maçã, uma barrinha de cereais e uma baguete de cereais com paio, queijo cheddar e espinafres; nada mau, embora fosse preferível uma cerveja preta e uns tremoços ali no Café da D. Lina.
(aos 28 minutos, Rafa marca, em contra-ataque, com a sua habitual mas eficaz sorte; o remate ressalta num defesa; se assim não fosse o guarda-redes do Santa Clara apanharia a bola, pois o chuto saiu atabalhoado).
Enquanto escrevo a crónica – ou o que se quiser chamar a isto que vos apresento –, fico a pensar que, se calhar, ser jornalista desportivo somente será interessante para quem, na verdade, não o é. Ponho-me aqui a cogitar, em simultâneo a um jogo que ali em baixo decorre molemente, que, de facto, se me enviassem aqui para escrever mesmo sobre as incidências do jogo, eu estava feito. Não conheço nem um dos jogadores do Santa Clara. Não sei sequer o nome do guarda-redes (agora já sei, chama-se Gabriel Batista, brasileiro de 24 anos, fui ali ao site do Record), e além disso, daqui de onde escrevinho, por força (ou impedimento; não no sentido de fora-de-jogo do português do Brasil) da minha miopia e astigmatismo, tenho até dificuldades de reconhecer os números das camisolas dos jogadores.
(Um relato de futebol feito por um míope arrisca a ser uma ficção… Lá teria eu a CCPJ, a ERC e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas à perna, ou a morderem-me as canelas)
Além de todas estas lacunas, físicas e talvez de outra índole, não tenho conhecimentos suficientes da Ciência Ludopédica para dissertar sobre os esquemas tácticos do Roger Schmidt, e já é uma sorte saber pronunciar o nome do Odisseas Vlachodimos (porque já está por aqui há uns anos, embora ainda não saiba falar português, porque parece que, para ele, o português é pior do que grego), e nem sequer sei muito bem soletrar a nominata do Aursnes, compatriota do secretário-geral da NATO, quanto mais opinar sobre a sua polivalência.
(entretanto, a primeira parte terminou, seguiu-se o intervalo, e já o Grimaldo marcou o seu penalti aos 60 minutos, depois do VAR assinalar mão na bola de um jogador do Santa Clara, não me perguntem quem, pois teria de ir ver. Aviso já que vi o penalti ser concretizado seis segundos antes de vocês verem a bola entrar na baliza, pela televisão; vantagens de se estar no estádio)
Na segunda parte, não se joga nem nada se vê de bola; só se faz festa rija, com petardos, luzes e cânticos. Talvez desde o primeiro golo do Gonçalo Ramos se sente um clima de festa, eliminados em definitivo os fantasmas que sobrevoaram um campeonato que pareceu, em certa fase da época, um passeio, mas que teve ali umas jornadas em que se andou a chamar pelo tio…
Na tribuna da imprensa, tudo calmo. Não conheço ninguém, a bem dizer. Há uns que serão de rádio – embora as transmissões e relatos sejam feitas noutro nível. Outros da imprensa, mas alguns não estão a escrever nada. Sinto-me, a bem dizer, um ET, o que acho a melhor forma de se ser jornalista, porque me foco apenas na observação.
(última substituição, com a entrada de Samuel Soares, um jovem guarda-redes negro de 20 anos; pelas ovações que recebeu, e sempre que tocou na bola, espera-se que seja mais acarinhado do que Neno e sobretudo Bruno Varela)
Apito final.
Canta-se e dança-se ao ritmo de música techno, enquanto, em baixo, jogadores, equipa técnica e dirigentes celebram. Posso garantir-vos que a estrutura do Estádio da Luz foi bem pensada, e feita para aguentar um terramoto: abana mas não cai. E “o campeão voltou”, grita-se em uníssono.
Mais de meia hora depois do apito final, poucos arredaram os pés das bancadas, aguardando ainda pelo regresso dos jogadores para mais festejos. Já passam das 21 horas e prepara-se o relvado para nova recepção depois do banho tomado.
Estiveram aqui, segundo informações do speaker, 64.012 pessoas. Não sei se contaram comigo; talvez não, porque não sou adepto, porque supostamente estou aqui como jornalista imparcial e independente, bastando-me o disclaimer.
(se calhar, para demonstrar verdadeira independência, teria de ter conhecimento de algum escândalo do Benfica para depois noticiar… assim é que se prova a independência; não é com declarações e bateres no peito)
Depois de tudo isto, segue-se o Marquês de Pombal, onde a Feira do Livro teve, enfim, de fechar portas mais cedo por causa dos festejos dos benfiquistas.
(estou agora a recordar que, em 2010, tive de adiar o lançamento do meu romance “Corja Maldita”, por razões ponderosas: o Benfica jogava o seu derradeiro jogo também no Estádio da Luz contra o Rio Ave; de quando em vez, a Cultura pode esperar, mas não demasiado).
Por mim, bastou por agora a experiência. Fico-me por casa, a descansar e a divertir-me em família, enquanto também penso como ultimar uma reportagem sobre os meandros da promiscuidade entre a indústria farmacêutica, certas sociedades médicas (e médicos) e a imprensa.
(às 20h34, o Rui Costa, presidente do Benfica, compromete-me a isenção, enviando-me o seguinte SMS: “Parabéns Pedro! Somos Campeões! Esta conquista é dos Sócios. Obrigado por fazeres parte desta grande família. Parabéns a todos nós! Viva o SL Benfica!”… Ó Rui, ó pá, não me lixes com estas intimidades… olha que já tenho os reguladores à perna por menos)