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  • Bordalo II poderia ter criado tapete de mais de 100 metros com notas de 500. E das verdadeiras

    Bordalo II poderia ter criado tapete de mais de 100 metros com notas de 500. E das verdadeiras

    O artista indignado com os custos envolvidos na Jornada Mundial da Juventude não se pode queixar da generosidade das entidades públicas. Só em ajustes directos, Bordalo II angariou já 27 contratos públicos, incluindo de 15 municípios, diversas empresas públicas, a Presidência do Conselho de Ministros e até universidades. Só na zona do Parque das Nações, onde ontem desenrolou um tapete de notas falsas, recebeu já duas encomendas públicas por ajuste directo em valores acima de 100 mil euros. Mas isto é uma gota de água. Bordalo II tem facturado freneticamente. Nos últimos três anos, a sua Mundofrenético encaixou mais de 3,4 milhões de euros. O PÁGINA UM foi ver em quanto isso dava em tapete de notas verdadeiras.


    É o protesto do momento: Bordalo II – nome artístico de Artur Bordalo –, disfarçou-se de operário e desenrolou ontem nas escadarias do altar, que será pisado na próxima semana pelo Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, um longo tapete de falsas notas gigantescas de 500 euros.

    “Shame on you”, assim denominou o seu protesto, o artista aproveitou para lançar uma crítica aos milhões gastos para apoiar um encontro que aglomerará previsivelmente mais de um milhão de peregrinos: “Num estado laico, num momento em que muitas pessoas lutam para manter as suas casas, o seu trabalho e a sua dignidade, decide investir-se milhões do dinheiro público para patrocinar a tour da multinacional italiana” E concluía, corrosivo: “Habemus Pasta”.

    Mas milhões é, aliás, coisa que nem é, na verdade, nada estranho a Bordalo II. A sua empresa, a Mundofrenético, tem apresentado um nível de crescimento impressionante de facturação com tão tenra idade, confirmando ser ele um dos artistas mais cotados e solicitados, em grande parte por entidades públicas. Que o contratam sobretudo por ajustes directos, diga-se.

    Criada em 9 de Janeiro de 2018 com um capital social de 1.000 euros, a Mundofrenético começou com um vasto conjunto de objectos possíveis, onde se destacava a “fabricação, criação, comercialização a retalho e via Internet e importação e exportação de obras de arte e de cópias ou impressões das mesmas, incluindo filmes ou outros suportes materiais ou digitais de carácter artístico ou promocional”, além também da “organização e execução de espectáculos, encontros profissionais, seminários, congressos ou outros eventos de natureza artística, publicitária e de formação e demonstração de técnicas artísticas”, e ainda a ”comercialização de matérias-primas e ferramentas e equipamentos utilizados na elaboração de obras de arte” e até “construção e obras públicas, incluindo a incorporação de arte em móveis e equipamentos sociais”.

    O ano de estreia não lhe correu nada mal: descontando o seu próprio salário como gerente, Bordalo II teve logo um encaixe acima dos 456 mil euros e acabou o exercício com um lucro de 306 mil euros. Em 2019, a empresa passou a ser uma sociedade por quotas de 1.500 euros – primeiro com a sua mulher, Mariana Cavaco Duarte Silva, de quem entretanto se divorciou, tendo a quota desta (1/3) passado para Helena Maria Silva Correia – e os negócios continuaram a prosperar.

    A pandemia não afectou em nada o seu desempenho artístico. E muito menos financeiro. Entre 2020 e 2022, os lucros da empresa foram sempre subindo. No primeiro ano deste triénio, a facturação situou-se nos 716.509 euros com lucros de mais de 270 mil euros. Em 2021, Bordalo II ficou a saber, pela primeira vez, o que era um milhão; facturou 1.082.449 euros, e apresentou um resultado líquido de um pouco mais de 455 mil euros.

    Por fim, no ano passado, as facturas contabilizaram 1.605.244 euros, terminando o dia 31 de Dezembro com um lucro acima de 663 mil euros. A empresa respira saúde com lucros acumulados de 981 mil euros, que serviram sobretudo para reforçar os activos.

    Assim, considerando que uma nota real de 500 euros – e não a dezena de notas falsas desenroladas ontem – tem uma dimensão de 160 por 82 milímetros, Bordalo II teria capacidade de compor um lustroso tapete gigantesco se usasse 6.808 notas verdadeiras de 500 euros correspondentes sensivelmente à sua facturação de 3,4 milhões de euros dos últimos três anos. Bastaria dispor lotes de 10 notas de 500 euros, lado a lado, para ter uma largura de 82 centímetros, e depois replicar longitudinalmente. Ficaria com um tapete de quase 110 metros.

    A Freguesia do Parque das Nações pagou 68 mil euros a Bordalo II num ajuste directo para a “aquisição de serviços para a criação artística – Festival de Arte Urbana de Lisboa “MURO LX_2021””. Este é o segundo maior ajuste directo registado no Portal Base feito com o artista.

    Mas se Bordalo II preferisse usar notas de 10 euros – com uma dimensão de 127 por 67 milímetros –, então aí um tapete de cerca de 80 centímetros de largura (formado por 12 notas) estender-se-ia por mais de 3.600 metros.

    Embora muitas obras (e receitas) de Bordalo II – que se tem destacado no uso de materiais recicláveis – constituam encomendas integradas em projectos de maior dimensão, em que ele será subcontratado, ou obtidas através de colectivos de artistas, todos os contratos da Mundofrenético listados no Portal Base foram por ajuste directo.

    Ou seja, o empresário Artur Bordalo, gerente da Mundofrenético, obteve contratos públicos de prestação de serviços por parte do artista Bordalo II sem qualquer concorrência, sem qualquer definição de preço justo. Portanto, o artista foi contratado apenas pela sua (inegável) arte. Ou pela cor dos olhos…

    Segundo dados disponíveis no Portal Base, entre 2018 e Julho deste ano, o escultor ganhou 708,8 mil euros em ajustes directos com entidades públicas, incluindo 15 municípios, a empresas municipais, universidades e outros.

    O município de Estarreja pagou 16.580 euros a Bordalo II numa encomenda feita por ajuste directo em Outubro de 2022.

    Este ano, Bordalo II angariou já quatro contratos por ajuste directo num valor global de 132.860 euros. O contrato mais lucrativo deste ano, no montante de 57.500 euros foi adjudicado pelo Instituto Superior Técnico, a 20 de Fevereiro, para a “produção de uma obra de arte – escultura em pedra”.

    O Município de Vila Nova de Famalicão entregou 38.500 euros a Bordalo II para a “produção de instalação exterior”.

    A Associação de Municípios para a Gestão Sustentável de Resíduos do Grande Porto – LIPOR pagou 36.860 euros ao artista, pela aquisição de esculturas, através de dois contractos por ajuste directo. Aliás, esta não foi a primeira vez que a LIPOR fez ajustes directos a Bordalo II. A entidade entregou ao artista 72.000 euros em 2019 num outro ajuste directo – o contrato com o valor mais alto registado com o escultor no Portal Base.

    No ano passado, o artista facturou 87.180 euros através da adjudicação de três contratos por ajuste directo.

    O conhecido Lince Ibérico, de Bordalo II, instalado no Parque das Nações em 2019. A obra custou 35 mil euros ao Instituto Português do Desporto e Juventude que fez a encomenda ao artista por ajuste directo para a “aquisição de serviços de produção de obra de arte urbana no âmbito da Conferência Mundial de Ministros responsáveis pela Juventude 2019 e Fórum da Juventude Lisboa+21”.

    Mas foi em 2021, em plena crise provocada pelas medidas do Governo impostas na pandemia, que saiu a sorte a Bordalo II, ao ter conseguido a proeza de ter nove contratos por ajuste directo com entidades públicas, que gerou uma facturação de 200.600 euros ao artista.  

    Isto depois de em 2020, primeiro ano da pandemia, Bordalo II ter facturado 110.207 euros em quatro contratos por ajuste directo.

    Em 2019, o artista angariou 149 mil euros em ajustes directos com entidades públicas. Foi nesse ano que Bordalo II conseguiu arrecadar 35 mil euros por ajuste directo para a instalação do seu Lince Ibérico no Parque das Nações, em Lisboa.

    Em 2018, primeiro ano em que surgem contratos adjudicados a Bordalo II no Portal Base, o artista facturou 28.981 euros através de dois ajustes directos. De resto, o primeiro contrato de Bordalo II registado no Portal Base foi adjudicado pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, que rendeu ao escultor 12.000 euros de uma assentada.

    Olhando para os contratos, se a LIPOR entregou o ajuste directo com o valor mais alto, o segundo, no valor de 68.000 euros, foi adjudicado em Junho de 2021, curiosamente, pela Freguesia do Parque das Nações, onde se realiza a Jornada Mundial da Juventude.


    N.D. Foi retirada às 14:07 de 29 de Julho a referência à participação de Bordalo II na Mistaker Maker, que na verdade é uma plataforma de intervenção, e não um colectivo de artistas. A última colaboração entre Bordalo II e a Mistaker Maker data de 2018, ou seja anterior à criação da Mundofrenético.

  • 21 meses depois, Conselho Superior da Magistratura ainda “veste de negro”

    21 meses depois, Conselho Superior da Magistratura ainda “veste de negro”

    Depois de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, o Conselho Superior da Magistratura acabou por permitir a consulta do célebre inquérito à distribuição da Operação Marquês. Mas 638 dias depois do pedido, o CSM insiste agora em não cumprir uma sentença que lhe causará engulho, e expurgou, para já em cópias disponibilizadas ao PÁGINA UM, partes do relatório do inquérito, algo que a sentença não lhe permite. Além disso, o CSM impede agora o PÁGINA UM de fotografar as páginas do processo. A alternativa é pagar mais de 500 euros ao CSM pela fotocópia de cerca de mil páginas do processo, mas sem garantias de virem imaculadas.


    Esta foi a primeira intervenção do FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, e ainda não acabou. Tem sido um longo calvário de 638 dias, exactos 21 meses, hoje com resultados positivos, embora ainda parciais, para a transparência democrática e uma prova da eficácia de um jornalismo independente e persistente: o PÁGINA UM tem, desde hoje, cópia do inquérito final do Conselho Superior da Magistratura (CSM) à distribuição da denominada Operação Marquês, o mega-processo, que ainda aguarda julgamento, que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates.

    Tudo começou em 2 de Novembro de 2021. Perante a sistemática recusa do CSM em divulgar o inquérito de distribuição da Operação Marquês junto da comunicação social, o PÁGINA UM, então ainda em preparativos para a sua abertura, apresentou um requerimento para, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) para acesso e “eventual obtenção de cópia (analógica ou digital), aos documentos administrativos elaborados e/ou apresentados pelo Sr. Inspetor Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. Paulo Fernandes da Silva no Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 4 de Maio p.p., bem como a sua proposta formulada no relatório relativo à denominada Operação Marquês.”

    Sede do Conselho Superior da Magistratura, esta tarde, quando o director do PÁGINA UM se deslocou para consultar um processo pedido há 21 meses, após um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. Mesmo assim, o CSM não quer cumprir a sentença na íntegra, colocando obstáculos ao acesso integral e transparente.

    Iniciava-se, naquele preciso momento, um calvário de 638 dias em busca da transparência.

    Numa primeira fase, o CSM recusou essa pretensão ao PÁGINA UM – como até já fizera inicialmente com Sócrates. Em 21 de Dezembro de 2021, a juíza Ana Sofia Wengorovius – adjunta do CSM – emitiu um parecer alegando que o acesso por um jornalista àqueles documentos violaria ou afectaria “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, salientando que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.

    O PÁGINA UM apresentou então uma queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que em Fevereiro do ano passado concedeu um parecer favorável ao acesso. Mas o CSM reiterou a recusa, recordando que os pareceres daquela entidade “não são vinculativos”, e desafiava “o requerente [director do PÁGINA UM] querendo, intentar respetiva acção especial de acesso a documento administrativo”.

    Primeira página do relatório final do inspector Paulo Fernandes da Silva sobre a legalidade da distribuição do processo da Operação Marquês em 2014. Até o nome desse juiz foi expurgado das cópias disponibilizadas pelo CSM, e em algumas das páginas a mutilação é quase total.

    O PÁGINA UM aceitou o “convite”, depois de exarar o seu público protesto num artigo, publicado em 23 de Março passado, intitulado “Da justiça do Burkina Faso e do Conselho Superior da Magistratura de Portugal“.

    Com o apoio dos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO – este seria o primeiro processo de intimação, conduzido pelo advogado Rui Amores –, a intimação do PÁGINA UM foi bem-sucedida. Em 30 de Junho do ano passado, o juiz Pedro de Almeida Moreira, do Tribunal Administrativo de Lisboa, fez uma sentença a intimar o CSM, “no prazo de 10 dias, facultar-lhe [ao director do PÁGINA UM] o acesso aos documentos por aquele solicitados”.

    Isto sucedeu depois deste juiz ter exigido que o CSM enviasse o relatório da inspecção em envelope selado para averiguar se os seus argumentos relacionados com uma alegada existência de dados nominativos tinham razão de ser.

    Contudo, o juiz Almeida Moreira, após consultar o relatório do inquérito, concluiu que “compulsada a informação remetida pelo Requerido [CSM] em envelope selado, considera este Tribunal, à semelhança do que entendeu o[a] CADA, no douto parecer elaborado, que em causa estão unicamente dados atinentes ‘aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada’ (…), não se identificando, como tal, motivos para cercear a regra geral do livre acesso a documentos administrativos”.

    E acrescentou ainda o juiz que, “e ainda que assim não se entendesse – id est, que os documentos que o Requerente [director do PÁGINA UM] aqui procura obter consubstanciassem documentos nominativos em sentido próprio, porquanto continentes de dados pessoais, nos termos e para os efeitos do RGPD [Regulamento Geral de Protecção de Dados] –, considera este Tribunal, em face da concreta informação ali vertida, que sempre deveria prevalecer o direito de acesso do Requerente aos referidos documentos face à protecção de tais dados, no âmbito de um juízo ponderativo de proporcionalidade.” Ou seja, o direito à informação e o direito de um jornalista informar era mais relevante.

    Porém, nem assim o CSM desistiu e recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul. Mais uma vez – pela terceira vez –, não lhe deram razão.

    No passado dia 29 de Junho, num acórdão demolidor, aprovado por unanimidade por três desembargadores e com o apoio do Ministério Público, deliberaram que a sentença do juiz Almeida Moreira tinha de ser mantida em toda a linha, concluindo que não houve qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação”, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.

    Volumes dos inquéritos ao processo de averiguação, fotografados antes da ordem de não ser permitido continuar a fotografar.

    O acórdão mostrou-se particularmente importante por também clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo, através da recusa de acesso ou à eliminação até do nome de funcionários públicos em documentos administrativos, como se tem observado no Portal Base com os contratos públicos.

    Nessa linha, os desembargadores salientam que essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [o referido nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo CSM, “enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”. E, nessa linha, defenderam os desembargadores, o CSM tinha a obrigação de permitir desde logo o acesso.

    Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”

    Páginas 20 e 21 do relatório final concluído em 3 de Dezembro de 2018 sobre a distribuição do processo da Operação Marquês ao juiz Carlos Alexandre.

    Os desembargadores concluem que o CSM não poderia ter decido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA, até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”

    Mas nem assim o CSM parece ter aprendido. Esta tarde, tendo o director do PÁGINA UM se deslocado à sede do CSM para consultar o processo de averiguação à distribuição da Operação Marquês – constituídos por três volumes com um total de 1.024 páginas – foi confrontado com alguns impedimentos ilegais e com a recusa de cumprimento das determinações da sentença.

    Com efeito, além de o director do PÁGINA UM ter sido impedido, a partir de uma determinada fase da consulta, de obter a reprodução por fotografia das páginas do processo de averiguação – uma prática legal, que tem sido sistematicamente corroborada pela CADA em já, pelo menos, quatro deliberações –, as cópias disponibilizadas do relatório final estão mutiladas a tinta negra, apagando tanto os nomes dos intervenientes como também a discriminação de eventos, como seja número de processos, data de distribuição, o tipo de distribuição ao juiz e o escrivão que interveio em cada processo.

    Antes de ser impedido de continuar a fotografar o processo, o director do PÁGINA UM conseguiu obter o testemunho integral do juiz Carlos Alexandre neste processo.

    Em alguns casos, as rasuras a negro ocupam partes substanciais ou mesmo quase a totalidade das páginas, e nunca estão em causa mais do que nomes ou referências a processos judiciais, Não há, aliás como bem salientava o Tribunal Administrativo de Lisboa, qualquer dado nominativo.

    Por exemplo, no interrogatório que o instrutor do processo de averiguação ao juiz Carlos Alexandre não consta qualquer dado nominativo, e até o endereço indicado foi o profissional, que não é considerado dado nominativo para efeitos de protecção de dados.

    Apesar de essa informação ser acessível no processo original em papel, mas cuja reprodução fotográfica foi impedida, a obtenção dessa informação por meios manuais seria particularmente penosa. Além disso, a obtenção de fotocópias – além de o CSM poder, se não cumprir a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, mutilar as partes que não quer mostrar – teria um custo exorbitante.

    Com efeito, e como o CSM teve o cuidado de avisar o PÁGINA UM com antecedência, de acordo com o Regulamento de Emolumentos, a reprodução por fotocópia simples de cada folha, com anverso e reverso (ou seja, duas páginas), tem o custo de 1/50 unidades de taxação (UT), sendo que cada UT corresponde a um décimo (1/10) do indexante dos apoios sociais (IAS), que este ano está fixado em 480,43 euros.

    Mesmo considerando que as 1.024 páginas de todo o processo de averiguações – que inclui, por exemplo, os depoimentos do juiz Carlos Alexandre – coubessem em 512 páginas, o custo total que o PÁGINA UM teria de suportar ascenderia aos 492 euros.

    Na verdade, deverá superar os 500 euros, uma vez que haverá páginas que, no processo, não têm reverso.

    Foi apresentado de imediato um requerimento à juiz secretária do CSM, que alegadamente deu ordens para que não fosse permitido ao director do PÁGINA UM continuar a fotografar o processo de averiguações que resultou no inquérito à distribuição da Operação Marquês.

    O requerimento do PÁGINA UM foi manuscrito com o que havia à mão: umas simples folhas brancas A5. Legalmente, é válido, e aguarda-se agora a resposta, até para saber se se mostra necessária nova intervenção do Tribunal Administrativo de Lisboa.


    N.D. Os processos de intimação do PÁGINA UM só são possíveis com o apoio dos leitores. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Pandemia foi um maná para contas da Cruz Vermelha Portuguesa fugirem do vermelho

    Pandemia foi um maná para contas da Cruz Vermelha Portuguesa fugirem do vermelho

    O SARS-CoV-2 foi uma “bênção” para a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). Um apoio europeu de 12,6 milhões de euros para vender testes à covid-19 ao preço de mercado e as contínuas “injecções” de subsídios públicos, permitiram à associação humanitária acumular lucros de 26,6 milhões de euros em 2021 e 2022, depois de dois anos de prejuízos no meio de suspeitas e investigações policiais. Para salvar a CVP, o Estado, e sobretudo com transferências dos Ministérios, a CVP encaixou 80 milhões de euros em subsídios e doações apenas entre 2020 e 2022, valor que contrasta com menos de 27 milhões no triénio anterior. Agora, António Saraiva, recém nomeado presidente da CVP, tem um duplo desafio: manter os resultados da instituição à tona de água e esclarecer as muitas dúvidas que se mantêm numa organização cada vez mais dependente dos contribuintes portugueses.


    Os alarmes financeiros soaram em 2020, primeiro ano da pandemia. E eram bem vermelhos. Apesar de um reforço de quase 11,2 milhões de euros de subsídios públicos face ao ano anterior, a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) – uma organização não-governamental de utilidade pública mas financiada fortemente pelo Estado –, acabou o segundo exercício fiscal com resultados negativos.

    A solução foi quase draconiana, como se a instituição tivesse seguido para uma “unidade financeira de cuidados intensivos”: em 2021 e 2022, o Governo injectou ainda mais dinheiro e permitiu-se que a CVP maximizasse – ou seja, comercializasse com bom lucro – um subsídio de 12,6 milhões de euros da União Europeia para a compra de testes para a covid-19. E o “milagre” aconteceu: a CVP passou de dois anos de resultados negativos (2019 e 2020) de quase 1,7 milhões de euros para lucros estonteantes de 18,9 milhões em 2021 e de 7,7 milhões de euros no ano passado.

    O “milagre”, convenhamos, foi alcançado em grande medida à custa dos contribuintes. Com efeito, antes da pandemia, os rendimentos da CVP provinham sobretudo de vendas e serviços prestados – que têm sempre associados custos (mercadorias, serviços externos e gastos administrativos e com pessoal) –, e só muito marginalmente de subsídios, doações e até mesmo heranças. Por exemplo, no quinquénio 2014-2018, os subsídios e similares atingiram uma média anual de 6,6 milhões de euros, representando um pouco menos de 10% dos rendimentos totais.

    Em 2019, já com sinais preocupantes nas contas, a CVP, então gerida por Francisco George, ex-director-geral da Saúde, recebeu um reforço de subsídios públicos, embora insuficiente para colocar os resultados líquidos em terreno positivo. Nesse ano de 2019, só os diversos Ministérios, sobretudo o da Segurança Social, transferiram mais de 4,7 milhões de euros para as contas da CVP, o que confronta com pouco mais de 3 milhões em 2018.

    Mas os subsídios de todas as entidade públicas ainda foram bem superiores: 8,4 milhões de euros no total. Sem esse apoio extraordinário (quase mais 2 milhões de euros do que em 2018), o ano de 2019 teria sido catastrófico, bem pior do que os prejuízos de 931.497 euros então apresentados.

    Com a pandemia, o peso do Estado fez-se sentir ainda mais nas finanças da CVP. Em três anos, entre 2020 e 2022, os subsídios de entidades públicas totalizaram quase 63,2 milhões de euros, ou seja, uma média de 21 milhões por ano. Só o Governo, propriamente dito, através dos Ministérios, canalizou quase 49 milhões nesses três anos. Por exemplo, no ano passado foram transferidos 20 milhões.

    Mas um dos maiores “balões de oxigénio” da CVP acabou por ser, em 2021, também um subsídio da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho no valor de 12,6 milhões. Este subsídio surgiu no âmbito da candidatura da CVP, “em Julho de 2020, a um projeto financiado pela União Europeia com a Direção Geral para a Saúde e Segurança Alimentar (DG Santé)”, e tinha como objectivo concreto “aumentar a capacidade de testagem à covid-19 nos Estados Membros da União Europeia”.

    Deste modo, a CVP pôde montar uma estrutura comercial, fortemente concorrencial, de venda de testes, que, na verdade, não lhe custaram nada. E assim, se em 2020 a CVP apenas realizou cerca de 107 mil testes à covid-19, no ano seguinte, após receber os 12,6 milhões de euros, conseguiu vender 849 mil testes. Esta capacidade de vender com alto lucro teve reflexos imediatos no valor das vendas desse ano: quase 82,6 milhões de euros, que contrasta com os 58,5 milhões no ano anterior. E isso, mais o reforço dos subsídios públicos, explica um desempenho elevado, com lucros de 18,9 milhões de euros.

    Evolução dos subsídios doações e legados à exploração e das vendas e serviços prestados (em euros) pela Cruz Vermelha Portuguesa entre 2014 e 2022. Fonte: CVP (Relatórios e Contas)

    O desempenho do ano passado não foi tão bom – descendo os lucros para 7,7 milhões de euros, apesar do aumento em mais 4 milhões nos subsídios públicos –, deveu-se em parte à redução no número de testes à covid-19. Em 2022, a CVP realizou pouco mais de 100 mil, grande parte dos quais concentrados no primeiro trimestre.

    Com o esvaziar da pandemia, o novo presidente, António Saraiva, que acaba de tomar posse, tem pela frente a “normalidade”, ou seja, um conjunto de problemas estruturais por resolver, cuja identificação tem merecido alertas do Conselho Fiscal e o Revisor de Contas, a que se juntam as investigações, noticiadas em 2018, que lançaram uma sombra nesta organização, nomeadamente uma auditoria do Ministério da Defesa sobre as subvenções, as buscas da Polícia Judiciária por suspeitas de peculato e abuso de poder e um relatório comprometedor da Inspecção-Geral das Finanças.

    O histórico líder da CIP-Confederação Empresarial de Portugal, a que presidiu entre 2010 e Março deste ano, foi nomeado em Junho, mas tomou posse apenas em meados do mês passado, sucedendo a Ana Jorge, antiga ministra da Saúde de dois Governos socialistas, que ocupou a liderança da CVP a partir de Novembro de 2021. António Saraiva é também presidente do Taguspark e administrador da Global Media, empresa de media dona do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF, entre outros órgãos de comunicação social.

    A antiga governante acabou assim por apanhar dois anos muito favoráveis – depois do prejuízo de 2020, onde estão reflectidas perdas pela venda de uma participação na Sociedade Gestora do Hospital da Cruz Vermelha –, mas a descida dos lucros entre 2021 e 2022 dão sinais de que o “balão de oxigénio” trazido pelas receitas da pandemia pode ter-se esvaziado por completo.

    A própria CVP reconhece no seu mais recente Relatório e Contas que “no decorrer do ano de 2022 a atividade (…) teve um decréscimo, apresentando em algumas atividades valores aproximados a pré-pandemia covid-19”.

    Com efeito, analisando as demonstrações de resultados, o lucro bruto (antes de descontados juros, impostos e amortizações), diminuiu 11 milhões de euros em 2021 para 14 milhões de euros em 2022. As receitas totais desceram 18% para 101 milhões de euros. Note-se que em 2021, as receitas tinham aumentado 41% para 123,5 milhões de euros com o aumento de actividade devido à pandemia.

    Evolução dos resultados líquidos (em euros) da Cruz Vermelha Portuguesa entre 2014 e 2022. Fonte: CVP (Relatórios e Contas)

    Segundo a CVP, em 2022, as prestações de serviços desceram 22,7% para 63,3 milhões de euros “face ao ano anterior por via da diminuição de atividade essencialmente na área da saúde”. Por outro lado, os subsídios, doações e legados à exploração recuaram 25% para 25,4 milhões de euros devido a “protocolos específicos atribuídos em 2021 e atenuado pelo registo dos subsídios da Segurança Social nesta rubrica”.

    Na área de “Emergência”, a CVP registou no ano passado um decréscimo superior a 25% na actividade, “justificado pela saída gradual de um contexto pandémico, período em que houve a necessidade de reforçar a capacidade de resposta nos serviços de emergência médica, nomeadamente por via da realização de testes covid e de transportes urgentes”.

    Mas não é só o recuo das receitas e do lucro que provoca apreensão quanto ao futuro. O passivo aumentou 14,5% para 73,4 milhões de euros, o que gerou um alerta do Conselho Fiscal da instituição, indicando que a evolução do passivo deve merecer “uma atenção cuidada”.

    Além disso, há desconforto com a incapacidade de a sociedade revisora de contas auditar as contas que, além da sede, englobam toda a rede de 159 delegações e estruturas locais da CVP.

    António Saraiva com Ana Mendes Godinho, titular do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que tem sido um dos principais financiadores da CVP.

    O facto de as diferentes estruturas e delegações não terem uma contabilidade integrada num aplicativo contabilístico comum “condiciona a abrangência dos procedimentos de auditoria, bem como a validação das práticas de controlo contabilístico ao nível de cada uma das estruturas”, alerta uma nota do Conselho Fiscal no Relatório e Contas da CVP.

    A sociedade revisora de contas, por sua vez, alertou que “o aplicativo contabilístico existente (SAGE ERP X3), abrange até ao momento apenas cerca de 55% do total de unidades que compõem o universo da entidade, sendo a contabilidade das restantes estruturas efetuada com utilização de outros aplicativos, na maioria dos casos com recurso a gabinetes externos de contabilidade, impedindo a integração automática da informação contabilística, a qual apenas é efetuada com referência ao final do ano”.

    Indicou que esta situação “foi ainda agravada no exercício em análise, em que não foi assegurada a integração da totalidade das estruturas locais através do SAGE ERP X3, tendo-se optado, por razões relacionadas com a necessidade de apresentação de demonstrações financeiras dentro dos prazos legais estabelecidos, por proceder à integração da informação relativa a algumas estruturas fora daquele aplicativo informático”.

    O primeiro-ministro, António Costa, com Ana Jorge, anterior presidente da CVP, numa visita.

    O Conselho Fiscal também questionou, por outro lado, a opção de manter em caixa mais de 50 milhões de euros, os quais podiam ser usados para abater dívida ou para beneficiar do aumento das taxas de juro nos bancos.

    Ao PÁGINA UM, a CVP evitou responder às questões mais prementes, preferindo destacar que “pela primeira vez”, a instituição “fechou atempadamente o relatório e contas”, acrescentando que “esta melhoria ao nível da contabilidade deve-se à aposta em reforçar a sua profissionalização, com vista a tornar a instituição mais sólida e eficaz, mas também valorizando o seu capital humano”.

    E diz ainda que “foi precisamente nesse sentido que se assistiu, pela primeira vez na história da CVP, a um ajustamento salarial dos seus colaboradores”, o que, segundo a administração, “procurou equiparar os salários dos colaboradores da instituição aos da Administração Pública, uma vez que eram significativamente inferiores”. Saliente-se, no entanto, mais uma vez, que a CVP é uma instituição humanitária não-governamental, de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos, com autonomia face ao Estado (embora estatutariamente com a obrigação de ser por si apoiada) em obediência aos princípios e recomendações do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.

    Em todo o caso, a “ingerência” governamental é evidente, tanto assim que não se mostra possível a eleição do seu presidente, através de um Conselho Supremo, sem a concordância do Governo, que é quem formalmente nomeia o eleito, através de um despacho.

    Ao PÁGINA UM, a CVP recusou detalhar quantos trabalhadores viram os seus salários serem aumentados ou qual o montante envolvido. Também não quis esclarecer se foram melhorados salários de trabalhadores com cargos de direcção ou gestão. Em todo o caso, os gastos com pessoal aumentaram globalmente quase 9% entre 2021 e 2022, passando de quase 43,4 milhões para 47,2 milhões de euros. Antes da pandemia, em 2019, os gastos com pessoal totalizaram 38 milhões de euros.

    Sobre os alertas apontados pelos auditores, a CVP diz que se devem ao facto de as várias delegações da CVP utilizarem diferentes programas informáticos de contabilidade” e que “a CVP está a uniformizar o sistema informático, que, em breve, será comum a todas as estruturas”.

    Já em relação ao elevado montante disponível em caixa, a CVP justificou ao PÁGINA UM que “as verbas que ficam em caixa destinam-se a programas específicos de apoio, não podendo ser alocadas a outros fins”.

  • Dona da revista Visão com dívida astronómica ao Estado. E Governo esconde

    Dona da revista Visão com dívida astronómica ao Estado. E Governo esconde

    Pode uma pequena ou grande empresa não pagar impostos ou taxas ao Estado anos a fio sem ser incomodada? Em princípio, não. Mas a Trust in News – a empresa de media que detém a Visão, a Exame e o Jornal de Letras, entre outros títulos – parece deter o “Santo Graal dos caloteiros”: com um capital social de apenas 10 mil euros, desde que se criou deixou de pagar grande parte (ou a totalidade) de impostos (e talvez também de contribuições à Segurança Social) e nem sequer consta da lista de devedoras ao Estado. O calote já vai em 11,4 milhões de euros, e só no ano passado subiu 3,2 milhões. O Ministério da Segurança Social cala-se e o Ministério das Finanças escuda-se no sigilo fiscal. A Trust in News mostra-se incontactável, ficando-se assim sem saber, por agora, quais as artes mágicas para um grupo de media funcionar com tamanha dívida ao Estado e com evidentes sinais de contabilidade criativa. Esta é a primeira notícia de um dossier de investigação.

    Nota: Por “alerta” de pessoa com legitimidade, e reconhecendo a eventualidade de o uso de fotografias divulgadas livremente nas redes sociais poder ser considerado uma violação dos direitos autorais mesmo se de figuras públicas, o PÁGINA UM decidiu retirar algumas fotografias e substituí-las por uma imagem alusiva à transparência.


    Na aparência, ninguém se apercebeu no Governo, mas a Trust in News – a empresa proprietária da revista Visão e de outras publicações como a Exame, a Caras e o Jornal de Letras, adquiridas à Impresa no início de 2018 – apresenta já, alegremente, uma dívida de 11,4 milhões ao Estado. A sua cobrança, a atender à situação financeira da empresa, mostra-se cada vez mais complexa, porque anda a subir vertiginosamente nos últimos quatro anos, conforme apontam as demonstrações financeiras analisadas pelo PÁGINA UM.

    Só no ano passado, o calote ao Estado pela Trust in News aumentou 3,2 milhões de euros, o que dá mais de 12 mil euros em cada dia, mas os “esquecimentos” das obrigações fiscais (e eventualmente de contribuições à Segurança Social) da empresa unipessoal de Luís Delgado têm sido contínuos. De acordo com o balanço de 2018, o primeiro ano de actividade editorial, a Trust in News tinha “apenas” uma dívida ao Estado (e a entes públicos) de 942.820 euros, eventualmente ainda uma “herança” do negócio com o Grupo Impresa Pinto Balsemão.

    Luís Delgado (à esquerda) comprou em 2 de Janeiro de 2018 à Impresa um conjunto de títulos, entre as quais a revista Visão, num negócio oficialmente envolvendo o pagamento de 10,2 milhões de euros. As dívidas ao Estado “dispararam” 10,8 milhões de euros desde a venda.

    Em 2019, a dívida ao Estado subiu para quase 1,6 milhões de euros, e a partir de 2020 foi o descalabro. Luís Delgado conseguiu, contudo, o prodígio de não ser incomodado pela quase sempre inflexível máquina coerciva do Estado na cobrança de impostos e taxas, acumulando no último triénio, paulatinamente, mais de 3 milhões de euros em dívidas ao Estado em cada um dos anos.

    O montante da astronómica dívida, que representa já 42% do passivo, não é assumida nem identificada quer pelo Ministério das Finanças quer pelo Ministério da Segurança Social. Este último, liderado por Ana Mendes Godinho, nem sequer respondeu ao PÁGINA UM. Quanto ao Ministério de Fernando Medina, embora tenham sido colocadas diversas questões específicas, o gabinete de imprensa decidiu apenas enviar uma frase, pedindo que deveria ser atribuída apenas à Autoridade Tributária: “A AT não se pronuncia sobre a situação tributária de contribuintes específicos, incluindo a tributação de operações concretas, pois estão protegidas pelo dever de sigilo fiscal, previsto no artigo 64º da Lei Geral Tributária”.

    Mas esse sigilo fiscal não é absoluto. No artigo invocado pelo gabinete de Fernando Medina, refere-se que “não contende com o dever de confidencialidade a divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre regularizada, designadamente listas hierarquizadas em função do montante em dívida, desde que já tenha decorrido qualquer dos prazos legalmente previstos para a prestação de garantia ou tenha sido decidida a sua dispensa”.

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    Mafalda Anjos (primeira à esquerda), directora da Visão, foi também publisher de todos os títulos da Trust in News até Dezembro de 2022.

    Ora, o PÁGINA UM tem consultado as listas de devedores tanto da Autoridade Tributária e Aduaneira como da Segurança Social, não aparecendo aí a Trust in News em nenhum dos escalões. A situação é extremamente estranha sobretudo porque, por exemplo, em 2021 a Trust in News até informou uma entidade pública de ter acabado o exercício fiscal do ano anterior com uma dívida de 5,1 milhões de euros à Autoridade Tributária e Aduaneira.

    Mais estranho ainda é o facto de as publicações da Trust in News, como a revista Visão e o Jornal de Letras, assinarem com regularidade contratos de prestação de serviços ou de publicidade com entidades públicas. Somente com a situação fiscal e de segurança social regularizada se pode legalmente receber pagamentos de uma entidade pública. Recorde-se também que em Maio de 2020, o Governo pagou 406.088,99 euros à Trust in News por serviços de publicidade antecipada no âmbito dos apoios à comunicação social por causa da pandemia da covid-19.

    A eventualidade de existência de um tratamento de favor à Trust in News por parte do Governo não merece qualquer comentário do Ministério das Finanças, mas certo é que a situação económica e financeira da dona da revista Visão – que durante a pandemia foi um dos grandes apoiantes da estratégia oficial – é assustadora.

    Principais indicadores financeiros e económicos da Trust in News desde 2017 (ano de constituição)

    A Trust in News – que tem apenas um capital social de 10 mil euros (semelhante à empresa do PÁGINA UM) – somava já, no final do ano passado, um passivo de quase 27,2 milhões de euros, um aumento de 48% face ao ano de 2018. Essa subida brutal do passivo (cerca de 8,9 milhões de euros) em apenas quatro anos de existência é inferior ao aumento de dívida ao Estado em igual período (cerca de 10,5 milhões), mas, em todo o caso, o endividamento a terceiros é absurdo face aos capitais próprios (pouco mais de 33 mil euros).

    Nas contas de 2022, a dona da Visão diz também ter uma dívida de médio e longo prazo de quase 3,5 milhões de euros ao Novo Banco e uma de curto prazo de 752 mil euros ao Millennium BCP, além de um contrato de factoring com a mesma instituição bancária de quase 1,2 milhões de euros.

    A existência de um passivo elevado não seria necessariamente mau, mas neste caso é por duas razões. Primeiro, porque as dívidas ao Estado não são propriamente “produtivas” – ou seja, não é um empréstimo para suportar activos geradores de receitas. Segundo, porque, do outro lado, o passivo tem, como contraparte, activos de valor real muito duvidoso.

    Com efeito, analisando os balanços da Trust in News desde a sua existência, uma das rubricas mais importantes do activo são os activos intangíveis – ou seja, no caso de uma empresa de media, são sobretudo as marcas –, que a contabilidade de Luís Delgado atribui um valor de quase 11 milhões de euros. Basicamente, têm uma correspondência próxima da venda pela Impresa do portfólio das revistas há cinco ano (10,2 milhões de euros). Mas, na verdade, se o Estado penhorasse esses activos intangíveis para os vender no mercado – ou, pior ainda, se a Trust in News falisse –, o valor real seria praticamente irrelevante. Em termos práticos, os credores não recuperariam quase nada por uma alienação desses activos intangíveis.

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    António Costa, primeiro-ministro, Mafalda Anjos, directora da Visão, e Luís Delgado, proprietário da Trust in News, num evento em Abril de 2018. Nesta altura, a dívida ao Estado da empresa de media era inferior a um milhão de euros. No final de 2022 já ultrapassava os 11,4 milhões de euros. E ninguém no Governo se apercebeu.

    Mais preocupante ainda é o aumento da enigmática rubrica “Outras contas a receber” no balanço da Trust in News, que estão separadas da rubrica de Clientes. Esta rubrica – que basicamente é dinheiro “empatado”, porque em princípio refere-se a serviços facturados mas ainda sem pagamento recebido – tem estado a crescer a olhos vistos. Em 2018 era de apenas 627 mil euros, subiu para 1,7 milhões em 2019, depois para 4,8 milhões no ano seguinte, e em 2021 situava-se já nos 7,6 milhões de euros. No final de 2022, esta rubrica já contabilizava quase 11,5 milhões de euros, ultrapassando os activos intangíveis. Estas duas rubricas – que em caso de falência podem resultar numa mão-cheia de nada – representavam, no final do ano passado, 82% do do total do activo. Em 2018 constituíam 63%.

    Recorde-se que antes de vender o portfolio das revistas a Luís Delgado, oficialmente por 10,2 milhões de euros, a Impresa viu-se obrigada a assumir finalmente imparidades (ou seja, de uma forma simplificada, perdas por uma avaliação anterior excessiva) no valor de 22 milhões de euros. Como resultado, nesse ano (2017) de reconhecimento de imparidades, a Impresa apresentou um prejuízo recorde de quase 21,5 milhões de euros.

    A somar a estes indicadores financeiros – acompanhados de uma redução significativa das vendas das revistas, que desceram de 17,5 milhões de euros em 2018 para 11,8 milhões de euros no ano passado – está o curioso facto de a Trust in News ter tido sempre lucros “à pele” em todos os anos de actividade.

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    Em Dezembro do ano passado, Mafalda Anjos entrevistou António Costa. A Trust in News estava, nessa altura, com uma dívida ao Estado acima dos 11 milhões de euros, mas sem surgir na lista de devedores.

    Exceptuando 2017 – na fase de constituição e antes da formalização da compra das revistas à Impresa –, a empresa de Luís Delgado teve sempre lucros entre 10 mil e 20 mil euros nos anos de 2018, 2019 e 2020, baixou para 27 euros em 2021 e no ano passado apresentou um resultado líquido positivo de 1.061 euros. Em seis anos de exercícios fiscais, desde 2017 até 2022, a Trust in News conta com resultados positivos acumulados de pouco mais de 23 mil euros. Mas tudo isto graças ao brutal calote de 11,4 milhões de euros ao Estado. Como vai pagar – se é que Luís Delgado vai pagar –, ninguém tem, por agora, uma explicação.

    O PÁGINA UM tentou por diversas vezes contactar a Trust in News, mas nunca obteve resposta. No site da empresa – que, ironicamente, controla 17 títulos da imprensa –, o único número de contacto telefónico que ali surge é o de um call center de atendimento a clientes (assinaturas de revistas), que somente após alguma insistência indicou um número da gerência (218705000).

    Desde quinta-feira, o PÁGINA UM tentou esse contacto, sendo invariavelmente atendido por uma gravação com a seguinte mensagem: “Bem-vindo à Trust in News. A sua chamada encontra-se em fila de espera. Por favor, não desligue. Obrigado”. Depois de já ter aguardado, numa das chamadas, até 20 minutos, na última tentativa desligou-se, sem sucesso, ao fim de 10 minutos a ouvir-se a lengalenga com o bem-vindo e o pedido para se manter em linha. Nem sempre as chamadas foram efectuadas com o jornalista sentado.


    N.D. Pelas 02:22 horas de 27 de Julho foi corrigida a referência à situação de Mafalda Anjos como publisher das revistas da Trust in News. Essa função foi desempenhada entre Janeiro de 2018 e Dezembro de 2022. Mafalda Anjos mantém-se agora apenas com directora das revistas Visão, Visão Saúde, Visão Biografia e A Nossa Prima, conforme consta da sua página no LinkedIn.

  • CMTV sem emenda: Esposende é o 11º município a pagar para se mostrar em noticiários

    CMTV sem emenda: Esposende é o 11º município a pagar para se mostrar em noticiários

    Não pára. E afinal havia mais. Anteontem, sexta-feira, houve nova emissão especial de notícias pagas na CMTV, desta vez para cumprir um contrato com a autarquia de Esposende, que desembolsou 19.900 euros, mais IVA. Mas as revelações do PÁGINA UM tornaram a “promoção” mais humilde: ao contrário dos outros 10 contratos, Esposende não teve Francisco Penim e Sofia Piçarra a servirem de mestres-de-cerimónia, mas apenas um jornalista (Manuel Jorge Bento) a falar duas vezes sobre “bolos” deste concelho nortenho. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas continuam sem reagir à mercantilização dos noticiários em Portugal.


    Afinal, as comemorações dos 10 anos de CMTV – o canal por cabo da Cofina, associado ao Correio da Manhã – estão para lavar e durar, ou melhor dizendo, para pagar e durar, porque já não se restringem a 10 municípios portugueses, como inicialmente previsto. Na passada sexta-feira, Esposende foi palco de mais uma emissão especial da CMTV que incluiu reportagens jornalísticas ao longo do dia sobre este município nortenho em forma de “prestação de serviços” num contrato no valor de 19.900 euros, mais IVA.

    Este contrato foi assinado na véspera da emissão, ou seja, na quinta-feira passada, e embora não esteja disponível o caderno de encargos no Portal Base, tudo deveria ter sido similar aos demais municípios onde a CMTV mercadejou jornalistas e notícias: apontamentos de reportagens durante a emissão do programa de entretenimento da CMTV, e depois coberturas noticiosas com reportagens e entrevistas conduzidas pelos jornalistas Francisco Penim e Sofia Piçarra.

    Para aparecer na CMTV, Benjamim Pereira pagou 19.900 euros, mas Esposende acabou por ter uma cobertura mais “humilde” nos noticiários em comparação com outros 10 municípios, e sem a participação de Francisco Penim e Sofia Piçarra como mestres-de-cerimónia.

    Pelo menos, até Esposende, foi assim que sucedeu em todos os 10 anteriores contratos, já revelados pelo PÁGINA UM que culminaram em emissões de reportagens, notícias e entrevistas de promoção de autarcas e dos municípios de Portimão (24 de Abril), Leiria (1 de Maio), Braga (17 de Maio), Beja (25 de Maio), Vila do Conde (mais propriamente em Caxinas, em 31 de Maio), Ourém (20 de Junho), Évora (25 de Junho), Coimbra (4 de Julho), Albufeira (8 de Julho) e Marco de Canavezes (13 de Julho). Em todos terão sido assinados contratos de prestação de serviços com um preço de 20.000 euros, cada, com excepção de Coimbra e de Leiria que pagaram 25.000 euros. Saliente-se, porém, que alguns não foram ainda inseridos no Portal Base.

    Na última semana foi, aliás, colocado finalmente o contrato com a Câmara Municipal de Portimão, o município que inaugurou este ciclo de noticiários pagos com jornalistas a servirem também de mestres-de-cerimónia (MC). E, neste caso, em concreto, não são apenas as cláusulas que comprovam o mercadejar de jornalistas que arrepia; também as ilegalidades ao nível do código dos contratos públicos, que coloca este como ferido de nulidade.

    Assim, apesar da emissão em Portimão ter ocorrido em 24 de Abril, este tem a data de 5 de Julho, ou seja, quase dois meses e meio depois. No documento denominado Convite salienta-se, por sua vez, que “a decisão de contratar [a Cofina] foi tomada por despacho do Sr. Vice-Presidente Álvaro Bila, datada de 10/5/2023”, ou seja, 17 dias depois de tudo feito. Outra evidência de um contrato forjado: a Cofina deveria entregar uma proposta “até às 17h00, do dia 15 de maio de 2023, através da Plataforma Eletrónica www.acingov.pt”, e teria de manter a respectiva proposta pelo prazo de 120 dias.

    Os jornalistas Sofia Piçarra e Francisco Penim foram os mestre-de-cerimónias de 10 emissões pagas por autarquias, elogiando os concelhos e entrevistando autarcas e outras pessoas indicadas pelas Câmaras Municipais, que pagaram os programas de informação, onde ficaram explicitadas as horas dos directos. Já não estiveram presentes em Esposende, por coincidência após as revelações do PÁGINA UM.

    Por fim, neste caderno de encargos assumido pelo município de Portimão salienta-se ainda que o contrato – que, na realidade, se executara no dia 24 de Abril – estaria em vigor até ao final do presente mês de Julho. Aparentemente, a única coisa não-falsa terá sido o pagamento de 25.500 euros pela Câmara Municipal de Portimão à Cofina. No meio de tudo isto, para um toque de Monty Python, a autarquia nomeou, como gestor do contrato, Pedro Poucochinho, chefe de divisão de Informação, Comunicação e Marca deste município algarvio.

    No entanto, após as revelações pelo PÁGINA UM em redor do escandaloso mercadejar de notícias e reportagens pela CMTV, a prestação de serviços para Esposende acabou por se tornar mais “humilde”. Embora no programa de entretenimento da manhã, realizado na praia da Apúlia, tenha sido entrevistado o presidente da edilidade, Benjamim Pereira – que assim usou dinheiros públicos para se promover politicamente –, no resto do dia já não apareceram, desta vez, os jornalistas Francisco Penim e Sofia Piçarra, que sempre estiveram presente a louvar os outros 10 municípios e a entrevistarem autarcas e gentes locais.

    De uma forma muito discreta, Esposende só teve “direito” a quatro pequenos blocos de reportagens conduzidos pelo jornalista Manuel Jorge Bento (CP 3955): duas com entrevistas a um técnico municipal, sobre moinhos e percursos dos Caminhos de Santiago, e duas a promover doçarias de duas pastelarias de Esposende. O autarca Benjamim Pereira vai desembolsar 19.900 euros por isto.

    A cobertura noticiosa da CMTV em Esposende foi, desta vez, “mais bolos”. Duas das quatro aparições do jornalista Manuel Jorge Bento, para cumprir o contrato de prestação de serviços, foi a promover pastelaria naquele concelho nortenho.

    Entretanto, recorde-se que a Cofina tentou, na última semana, apagar “vestígios” da mercantilização de jornalistas nos contratos de prestação de serviços com autarquias. Um longo best of dos noticiários pagos pelos municípios, incluindo as entrevistas a autarcas conduzidas pelos jornalistas Francisco Penim e Sofia Piçarra, que serviram de mestres-de-cerimónia, e que estiveram até à passada semana no canal do YouTube da Cofina Boost Solutions, o departamento comercial desta empresa de media, foi ostensivamente removido.

    No total, a Cofina retirou do seu canal daquela rede social pelo menos 39 vídeos com trechos de diversos blocos informativos, nomeadamente do Jornal Portugal, Grande Jornal, Directo Notícias, Jornal das 6, Jornal das 7 e Grande Jornal, todos com conteúdos pagos produzidos por jornalistas acreditados da CMTV.

    Além de Francisco Penim (CP 7364) – que foi director de programas da SIC e depois também da CMTV e só recentemente se tornou jornalista – e de Sofia Piçarra (CO 6024), já fizeram apontamentos de reportagem sobre os municípios pagantes os jornalistas Ana Inês Baptista (CP 8332), Aureliana Gomes (CP 5357), Mário Freire (CP 3723), José Lameiras (CP 7664), Isabel Jordão (CP 616) e a jornalista estagiária Débora Couceiro (TPE 470). Também surge, como jornalista, Ana Isabel Fonseca, embora não haja registo de possuir actualmente carteira profissional válida. Por norma, estas emissões eram coordenadas em estúdio por outros jornalistas, como foi o caso de Pedro Mourinho, curiosamente com a função de Director Novos Formatos da CMTV. Agora, a este lote, junta-se Manuel Jorge Bento (CP 3955).

    Saliente-se que este último jornalista integrou a lista perdedora nas últimas eleições para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

    Licínia Girão, presidente da CCPJ, ainda não se pronunciou sobre os contratos de prestação de serviços entre a Cofina e 11 municípios que culminou em jornalistas a fazerem reportagens pagas e a servirem de mestres-de-cerimónia.

    Apesar das evidentes transgressões à Lei da Televisão, à Lei da Imprensa e ao Estatuto do Jornalista, nenhuma das entidades com responsabilidade na regulação e ética manifestou qualquer intenção de intervenção. Ou seja, até agora, nada em concreto fizeram a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e o Conselho Deontológico do Sindicato do Jornalista, o que constitui um sinal de impunidade, dando azo a que a Cofina continue a festejar os 10 anos de existência enquanto mercadeja jornalistas a troco de duas dezenas de milhar de euros por emissão.

    Se assim for, aparentemente só haverá um problema: como ainda falta promover 297 dos 308 municípios nacionais, se o ritmo for apenas semanal, a CMTV demorará ainda mais de cinco anos e meio a executar a encomenda. A 20 mil euros por emissão, tem em todo o caso um potencial de encaixe próximo dos seis milhões de euros.

  • Apagão: Cofina limpa registos comprometedores com entrevistas e reportagens na CMTV pagas por autarquias

    Apagão: Cofina limpa registos comprometedores com entrevistas e reportagens na CMTV pagas por autarquias

    Absoluto e intencional. Na última semana foram removidos todos os trechos dos telejornais da CMTV que, no canal do Youtube da Cofina Boost Solutions, mostravam as polémicas emissões especiais dedicadas a 10 municípios que decidiram pagar entre 20 mil e 25 mil euros para “aparecerem” na televisão. Esta foi a forma expedita da empresa de media tentar “limpar” provas da comercialização de reportagem e entrevistas realizadas por jornalistas da CMTV como contrapartida pela “prestação de serviços” em contratos públicos. A Cofina terá recebido 200 mil euros de 10 autarquias, mas transgrediu normas da Lei da Televisão, da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista. Mas, para haver penalidades, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social terá de intervir, algo que, diz o regulador ao PÁGINA UM, não aconteceu, “até ao momento”.


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) não viu ainda motivos para tomar qualquer medidas ou diligência para apurar as gravíssimas violações à Lei da Televisão, à Lei da Imprensa e ao Estatuto do Jornalista na execução dos contratos de prestação de serviços entre 10 municípios e a Cofina que culminou na emissão de programas noticiosos na CMTV onde as autarquias acabaram a definir os alinhamentos de reportagens e de entrevistas. Tudo com a participação de jornalistas.

    Mas, entretanto, um longo best of dos noticiários pagos pelos municípios, incluindo as entrevistas a autarcas conduzidas pelos jornalistas Francisco Penim (CP 7364) e Sofia Piçarra (CP 6024), que serviram de mestres-de-cerimónia, e que estiveram até à passada semana no canal do YouTube da Cofina Boost Solutions, o departamento comercial desta empresa de media, foi ostensivamente removido. No total, a Cofina retirou do seu canal daquela rede social pelo menos 39 vídeos com trechos de diversos blocos informativos, nomeadamente do Jornal Portugal, Grande Jornal, Directo Notícias, Jornal das 6, Jornal das 7 e Grande Jornal, todos com conteúdos pagos produzidos por jornalistas acreditados da CMTV.

    Pedro Mourinho, director de Novos Formatos da CMTV, no passado dia 8 de Julho, passando a emissão para Albufeira, onde Francisco Penim fez de mestre-de-cerimónias durante a prestação de serviços. Este e muitos outros vídeos que estavam na semana passada no canal de Youtube da Cofina Boost Solutions foram removidos.

    Na semana passada, o PÁGINA UM fizera, aliás, um levantamento exaustivo desses noticiários, elencando dia e hora em que nove jornalistas da CMTV exerceram actividade que consubstancia execução de contratos comerciais, incluindo reportagem abonatórias sobre os municípios adjudicantes e entrevistas a autarcas e técnicos municipais. Todos foram removidos e os links indicam agora que “o vídeo já não está disponível”.

    Além de Francisco Penim e Sofia Piçarra, fizeram apontamentos de reportagem sobre os municípios pagantes os jornalistas Ana Inês Baptista (CP 8332), Aureliana Gomes (CP 5357), Mário Freire (CP 3723), José Lameiras (CP 7664), Isabel Jordão (CP 616) e a jornalista estagiária Débora Couceiro (TPE 470). Também surge, como jornalista, Ana Isabel Fonseca, embora não haja registo de possuir actualmente carteira profissional válida. Por norma, estas emissões eram coordenadas em estúdio por outros jornalistas, como foi o caso de Pedro Mourinho, curiosamente com a função de Director Novos Formatos da CMTV.

    Apesar destas evidências, a ERC apenas diz, passada uma semana dos factos revelados pelo PÁGINA UM, “que, até ao momento, não foi aberto procedimento relativamente aos contratos entre a Cofina e as autarquias mencionados”. Não foi adiantado o motivo nem se o caso cairá no esquecimento, tanto mais que a Cofina já apagou essas evidências públicas do canal do Youtube. Em todo o caso, como entidade fiscalizadora, a ERC pode exigir o envio dos noticiários que serviram para cumprir contratos comerciais com autarquias. O trabalho do PÁGINA UM facilitará o trabalho do regulador, se decidir não deixar incólume esta situação, uma vez que se registaram os dias e horas das reportagens e entrevistas feitas no âmbito da prestação de serviços por jornalistas aos 10 municípios.

    Pesquisando hoje no canal da Cofina Boost Solutions confirma-se o “apagão” dos noticiários da emissão de 8 de Julho, que contou com a participação activa de Sofia Piçarra, Francisco Penim e Débora Couceiro. AS ERC pode, contudo, pedir as emissões à CMTV se desejar mesmo ter o papel determinado pela Constituição na regulação dos media.

    Recorde-se que a propósito, ou com a justificação de comemorar os 10 anos de emissão da CMTV, a direcção de marketing da Cofina sondou autarquias pelo país para garantir apoio financeiro para emissões a partir da sede do concelho ou de outro local. A estratégia não é inédita em programas de entretenimento, mas já é proibida em programas de informação, mesmo se patrocinados. Quanto aos jornalistas, está vedado o desempenho de funções de apresentação de mensagens publicitárias, incluindo promoção, bem como funções de marketing, incluindo execução de estratégias comerciais.

    Nos últimos três meses, com um modelo similar, a CMTV realizou emissões especiais de entretenimento e de programas de informação – tendo invariavelmente Francisco Penim e Sofia Piçarra como mestres-de-cerimónia – nos municípios de Portimão (24 de Abril), Leiria (1 de Maio), Braga (17 de Maio), Beja (25 de Maio), Vila do Conde (mais propriamente em Caxinas, em 31 de Maio), Ourém (20 de Junho), Évora (25 de Junho), Coimbra (4 de Julho), Albufeira (8 de Julho) e Marco de Canavezes (13 de Julho) . Em todos terão sido assinados contratos de prestação de serviços com um preço de 20.000 euros, cada, com excepção de Coimbra e de Leiria que pagaram 25.000 euros. Saliente-se, porém, que alguns não foram ainda inseridos no Portal Base. Hoje, o PÁGINA tentou fazer uma actualização, mas o servidor do Portal Base tem estado inoperacional para pesquisas.

    Em todo o caso, entre os contratos já publicados no Portal Base (Marco de Canavezes, Ourém, Coimbra, Beja e Leiria), consultados e gravados pelo PÁGINA UM, ressaltam sobretudos as cláusulas detalhadas nos casos em que também estão publicados os cadernos de encargos. E é aí que deixa de haver margem para dúvidas sobre a promiscuidade e mesmo ilegalidade dos contatos: constam expressamente cláusulas que mostram que informação transmitida pelos noticiários da CMTV foram condicionados, e aceites pela direcção editorial, por uma entidade externa ao canal de televisão a troco de dinheiro. E mesmo que não houvesse dinheiro envolvido. Situações que violam, de forma marcante, a Lei da Imprensa, colocando também a questão se tal se verifica com entidades privadas cujos contratos não são públicos.

    Os jornalistas Sofia Piçarra e Francisco Penim foram os mestre-de-cerimónias das 10 emissões, elogiando os municípios e entrevistando autarcas e outras pessoas indicadas pelas Câmaras Municipais, que pagaram os programas de informação, onde ficaram explicitadas as horas dos directos.

    Por exemplo, no caso da emissão da passada semana em Marco de Canavezes, de acordo com o caderno de encargos, a CMTV comprometeu-se a fazer um alinhamento do programa de entretenimento Manhã CM, entre as 9 horas e as 11 horas, para encaixar “conteúdos dedicados ao território” daquele município. Neste programa foram já emitidas três reportagens, incluindo entrevistas, assinadas pelas jornalistas Ana Inês Baptista e Aureliana Gomes, bem como uma conversa com a presidente da edilidade, Cristina Vieira, que pagou todo o evento.

    Já nos espaços informativos, iniciados às 11 horas, com o Jornal de Portugal, a CMTV comprometeu-se a fazer seis directos, com “pivots sénior” – Francisco Penim, que chegou a ser director de programas da SIC e também da própria CMTV – também no Grande Jornal da Tarde, na Rua Segura, no Directo CM, no Jornal às 7 e no Grande Jornal da Noite. No acordo comercial ficou estabelecido horário em que os jornalistas têm de entrar.

    Nessa emissão, como em outras, conforme o PÁGINA UM já confirmou, o tom dos jornalistas é sempre encomiástico. Por exemplo, na sua entrada no noticiário das 11h30, Francisco Penim falou da “vista espectacular” a partir do Baloiço de Soalhães, na serra da Aboboreira, antes de entrevistar Gorete Babo, uma técnica superior da autarquia. De acordo com o caderno de encargos, a CMTV tinha de fazer um directo entre as 11 e as 13 horas. Depois disso, houve mais directos e entrevistas durante a tarde, incluindo a dois vereadores locais, Nuno Pinto e Pedro Pinto.

    Cerca de duas dezenas de autarcas foram entrevistados em programas de informação das CMTV. Todos tiveram de pagar para “aparecer”. A entrevista com o presidente da autarquia de Albufeira, José Carlos Rolo, que pagou 20 mil euros para também aparecer no noticiário, foi agora apagado do canal de YouTube da Cofina Boost Solutions.

    Pela leitura de outros contratos com cadernos de encargos fica-se também a saber que foram as autarquias que indicaram as pessoas a serem ouvidas pelos programas da CMTV, ou seja, não foram nem o director de programas nem o director de informação. Isso mesmo se observa no caderno de encargos do contrato com a Câmara Municipal de Leiria, onde se refere que “caberá ao Município de Leiria fazer os convites a individualidades/ empresas a fazerem-se representar no programa e proporem à produção.”

    Além disto, as autarquias pagaram e também suportaram a logística das emissões e o sustento (comida e estadia) de 17 profissionais da CMTV, incluindo jornalistas e técnicos, durante dois dias. Em alguns casos, foram concedidas contrapartidas publicitárias, talvez com o intuito de justificar, eventualmente junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que a cobertura noticiosa não foi paga.  

    Em suma, as 10 autarquias substituíram-se à própria CMTV como produtores, a troco de dinheiro.

    Não se diga, porém, que a CMTV tenha sido “forçada” a este tipo de contrato, uma vez que, pela leitura do caderno de encargos com o município de Ourém, terá sido a própria Cofina a seduzir as autarquias acenando-lhes com as benesses. Num e-mail enviado em 31 de Março por João Santana, director comercial da Cofina, ao presidente da autarquia de Ourém, propõe-se, “no seguimento da nossa conversa telefónica”, as condições para se conseguir “uma solução que assegure a prossecução da relação de parceria que entendemos existir entre a CM de Ourém e a Cofina”.

    Mensagem do director da Cofina enviada à autarquia de Ourém combinando as condições contratuais, onde ficou claro que o município interferiria no alinhamento da informação e mesmo das pessoas a serem entrevistadas.

    João Santana, que envia a comunicação com conhecimento de dois operacionais da Cofina Media, diz que a CMTV pretende, a pretexto dos seus 10 anos de existência, “dar visibilidade a 10 concelhos, divulgando localmente o que de melhor se faz nos pilares SOCIAL, AMBIENTAL, ECONOMIA, EDUCAÇÃO, CULTURA, SAÚDE” [sic], acrescentando que “esta é a forma de estar próximo de quem faz e de quem merece o protagonismo”.

    Sobretudo, acrescente-se, também por quem esteja disponível, com dinheiros públicos, a “comparticipar a execução deste dia especial na CMTV”, para o qual o director comercial da Cofina solicita “um apoio de 20.000€, investimento esse que nos permitirá suportar uma parte dos custos das emissões ao longo do dia a partir da cidade de Ourém.”

    O despudor com que os negócios da Cofina Media foram feitos, e depois executados por jornalistas da CMTV ao longo das emissões já transmitidas – com discursos constantemente elogiosos que tornam anúncios publicitários como algo pouco ousado –, é tamanho, que a própria Cofina colocou no seu canal do YouTube uma exaustiva sequência com os “best of” até dos programas de informação no âmbito dos contratos de prestação de serviços

    Assim, a título de exemplos, no dia 25 de Maio, dedicado a Beja, o contato permitiu a emissão de três reportagens do jornalista Francisco Penim – duas das quais envolveram entrevistas com responsáveis da autarquia, incluindo Marisa Saturnino, vereadora da Câmara Municipal de Beja – e uma da jornalista Sofia Piçarra.

    O contrato com o município de Vila do Conde, em 31 de Maio, envolveu sete directos em programas de informação, incluindo reportagens e entrevistas, nomeadamente com o presidente da autarquia, Victor Costa, a vice-presidente, Sara Margarida Lobão, dois vereadores e até a secretária de Estado das Pescas, Teresa Coelho. A cobertura “jornalística” deste “especial” esteve a cargo dos jornalistas Francisco Penim, Sofia Piçarra e Fátima Vilaça.

    No dia 20 de Junho, na emissão especial paga pela autarquia de Ourém, houve direito a 10 peças “informativas”, incluindo entrevistas ao presidente da edilidade, Luís Albuquerque, à vice-presidente, Isabel Costa, a dois vereadores e uma técnica municipal. Além dos dois habituais jornalistas nestas emissões “especiais”, cobriu o evento a jornalista Isabel Jordão.

    Cláusulas técnicas do caderno de encargos do contratos entre a Cofina e o município de Leiria, onde consta que caberia à autarquia fazer os convites a quem seria entrevistado.

    Em Évora, numa emissão exclusiva no dia 25 de Junho, foi mais do mesmo. Foram entrevistados em diferentes “peças”, o presidente da autarquia, Carlos Pinto de Sá, o vice-presidente, Alexandre Varela, um historiador do município, Gustavo Val-Flores, e ainda Elsa Oliveira, técnica municipal da Divisão de Educação e Intervenção Social. Aqui, o jornalista José Lameiras juntou-se à dupla Piçarra-Penim, autênticos mestre-de-cerimónias e relações públicas, na cobertura da emissão em Évora.

    Quanto a Coimbra, “estrela” da emissão especial de 4 de Julho, quase não houve quem não falasse na vereação. Nos oito directos, deu para entrevistar José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal, Francisco Veiga, vice-presidente, mais quatro vereadores e dois representantes de duas divisões da Câmara. O jornalista Mário Freire completou o trio de jornalistas que executou o contrato da emissão especial paga (25.000 euros) pela Câmara Municipal de Coimbra.

    No dia 8 de Julho, na emissão a partir de Albufeira, contam-se no canal do Youtube da Cofina oito directos e reportagens que incluíram uma entrevista ao presidente da autarquia, José Carlos Rôlo, emitida no Grande Jornal, pouco depois das 21 horas. Débora Couceiro foi a jornalista que se juntou à dupla habitual desta emissão para executar o contrato com o município de Albufeira.

    Depois da notícia da passada semana, o PÁGINA UM contactou, além da ERC, o director da CMTV, Carlos Rodrigues, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, presidida por Licínia Girão, e também o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, liderado por João Paulo Meneses. Somente esta última entidade reagiu, mas falando de “cebolas”, quando o PÁGINA UM tinha perguntado por “alhos”.

  • Lei das subvenções: Marcelo vê “zona cinzenta”, mas entidade que fiscaliza contas partidárias diz ser “clara”

    Lei das subvenções: Marcelo vê “zona cinzenta”, mas entidade que fiscaliza contas partidárias diz ser “clara”

    A entidade responsável pela fiscalização e monitorização das contas dos partidos políticos defendeu, em respostas enviadas ao PÁGINA UM, que não fez nem vai fazer nenhuma recomendação sobre o uso de subvenções atribuídas aos grupos parlamentares porque considera que a lei é clara. A posição contraria a declaração do Presidente da República, que já foi presidente do Partido Social Democrata, sobre a existência de uma “zona cinzenta” na lei. A Entidade das Contas e Financiamentos Públicos, que opera no âmbito do Tribunal Constitucional e viu uma alteração legislativa em 2018 retirar-se alguns poderes de fiscalização, remete para a lei que estabelece que as subvenções atribuídas aos grupos parlamentares podem abranger tanto as despesas para representação política como de actividade partidária.


    A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), que fiscaliza as contas dos partidos e das campanhas eleitorais, defende que nunca fez uma recomendação aos partidos sobre o uso das subvenções atribuídas aos grupos parlamentares e deputados porque considera que a lei é clara, não existindo incompatibilidades no uso daquelas verbas para despesas dos seus funcionários ou assessores em actividades de âmbito partidário ou político.

    Em respostas enviadas ao PÁGINA UM, aquela entidade independente, que opera junto do Tribunal Constitucional, declarou que, nunca fez uma recomendação aos partidos sobre a questão da aplicação das verbas por entender que a clareza da lei não o justifica.

    Esta posição contraria as declarações do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, no sentido de que existe uma “zona cinzenta” na legislação e que a lei precisa de ser clarificada.

    white Canon cash register

    A ECFP chegou a ter poderes para “definir, através de regulamento, as regras necessárias à normalização de procedimentos no que se refere à apresentação de despesas pelos partidos políticos e campanhas eleitorais”, mas estas competências foram-lhe retiradas em 2018, com a revogação do artigo 10.º da Lei de organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

    O tema das subvenções, ou apoios estatais, dos grupos parlamentares tem estado debaixo de polémica devido às buscas mediáticas realizadas pelo Ministério Público à casa do ex-presidente do PSD, Rui Rio, e outras figuras do partido, bem como à sede do partido. A polémica operação terá partido de uma denúncia anónima e a investigação centra-se em suspeitas de que alegadamente o PSD pagou salários de funcionários do partido com verbas públicas (subvenções) atribuídas ao grupo parlamentar.

    A operação policial recebeu fortes críticas pela sua mediatização e envolvimento da imprensa na divulgação das ações de busca.

    O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou, citado pela imprensa, que existe uma zona cinzenta na lei, no que toca às subvenções, que é preciso clarificar.

    Maria de Fátima Mata-Mouros, presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos

    Mas, para a ECFP, que é liderada pela magistrada Maria de Fátima Mata-Mouros, a lei relativa ao “Financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais” não deixa margem para dúvidas: os funcionários e assessores que trabalhem em grupos parlamentares podem usar as verbas públicas de apoio aos grupos parlamentares para cobrir despesas de foro político ou partidário.

    O PÁGINA UM questionou a ECFP sobre se alguma vez fez algum alerta ou recomendação aos partidos no sentido de não utilizarem fundos dos grupos parlamentares para o pagamento de despesas e salários nos partidos.

    Na sua resposta, aquela entidade começa por esclarecer que “a ECFP pode emitir recomendações genéricas” nos termos previstos na lei, “com o objetivo de clarificar ou recomendar alguma prática que a lei, por si só, não esclareça”.

    Ou seja, para a ECFP a lei é clara, pelo que “não foi emitida qualquer recomendação concernente à matéria regulada naquele preceito legal”.

    Para a ECFP, “a questão colocada encontra resposta no n.º 4 do artigo 5.º do Lei 19/2003 de 20 de junho, na sua atual redação”, referente ao “Financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais”. O artigo 5.º diz respeito à “Subvenção pública para financiamento dos partidos políticos”.

    Rui Rio, ex-presidente do PSD

    No número 4.º deste artigo pode ler-se: “A cada grupo parlamentar, ao deputado único representante de um partido e ao deputado não inscrito em grupo parlamentar da Assembleia da República é atribuída, anualmente, uma subvenção para encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em que participem e para outras despesas de funcionamento, correspondente a quatro vezes o IAS [Indexante dos Apoios Sociais] anual, mais metade do valor do mesmo, por deputado, a ser paga mensalmente, nos termos do n.º 6”.

    Ao que o PÁGINA UM observou, da análise aprofundada que fez às contas dos grupos parlamentares e dos partidos, dos últimos cinco anos, curiosamente o grupo parlamentar social-democrata até é um dos dois únicos partidos que registam verbas para despesas com pessoal do seu grupo parlamentar. O outro partido é o Bloco de Esquerda.

    Os restantes grupos parlamentares, incluindo o do PS, não registam nenhuma despesa com pessoal mas contabilizam verbas avultadas referentes a pagamentos de “fornecimentos e serviços externos”. No caso do grupo parlamentar do PS, regista o “desvio” de 1,4 milhões de euros para pagamentos de “fornecimentos e serviços externos”, entre 2018 e 2022.

    A ECFP foi criada em Janeiro de 2005 sobretudo para apoiar tecnicamente o Tribunal Constitucional na fiscalização das contas anuais dos partidos políticos e das contas das campanhas eleitorais.

    Em 2018, aquela entidade passou a poder proferir decisões finais sobre as contas dos partidos e das campanhas, bem como a aplicação de coimas e decisões dos processos de contraordenação. Cabe ao Tribunal Constitucional apreciar, em sede de recurso, as decisões da ECFP em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos, nelas incluindo as dos grupos parlamentares.

  • O regresso da Censura: jornais digitais sob risco de terem conteúdos suspensos por decisão administrativa e política

    O regresso da Censura: jornais digitais sob risco de terem conteúdos suspensos por decisão administrativa e política

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social, um órgão criado pela Constituição da República Portuguesa para garantir a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, deseja ter poderes de Censura em pleno século XXI. Pelo menos, essa é a intenção manifestada pelos membros do Conselho Regulador que propõem que a nova lei da Imprensa permita à ERC restringir a circulação de publicações electrónicas da autoria de jornalistas se estas forem consideradas lesivas para a saúde pública, segurança pública ou consumidores, mesmo sem se saber quem define tal. Esse bloqueio far-se-á sem intervenção judicial, a partir dos servidores que alojam os sites noticiosos, e num prazo máximo de 48 horas. Além disso, as publicações censuradas receberão um “rótulo” para alertar os leitores. Esta proposta surge enquanto se debate ainda na união Europeia o polémico Media Freedom Act, que mostra ser afinal um diploma legal que visa condicionar a liberdade de imprensa, actividade que passará a ser supervisionada por instituições cada vez mais afastadas das Constituições dos países.


    Uma proposta de alteração da Lei da Imprensa, feita pela actual liderança da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), prevê a aplicação de censura de índole administrativa e política sobre conteúdos da imprensa digital que alegadamente “lesem ou ameacem” a saúde pública, a segurança pública e os consumidores.

    Através de uma deliberação aprovada no passado dia 12, os actuais três membros do Conselho Regulador – que aguardam a sua substituição por uma nova equipa ainda não totalmente constituída – fazem diversas propostas no sentido de clarificar os critérios que presidem à classificação de publicações jornalísticas e não-jornalísticas, um assunto fundamental sobretudo na era digital.

    censorship, limitations, freedom of expression

    Mas se essa clarificação se mostrava importante – até para evitar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista extravasasse as suas competências, questionando (só) alguns órgãos de comunicação social sobre as suas actividades durante o processo de acreditação de jornalistas –, a proposta da ERC vai muito mais longe. E acaba por instituir um modelo draconiano de censura administrativa e política em publicações jornalísticas digitais sobre determinadas matérias sem qualquer intervenção prévia do poder judicial. Lembra a Censura do Estado Novo.

    De acordo com a deliberação a que o PÁGINA UM teve acesso, o número 7 do artigo 5º-B da proposta de projecto que visa a alteração da Lei de Imprensa – assinada por Francisco Azevedo e Silva, Fátima Resende e João Pedro Figueiredo –, “a ERC pode restringir a circulação de publicações eletrónicas sob jurisdição do Estado português que lesem ou ameacem gravemente qualquer dos valores previstos” na Directiva comunitária sobre comércio electrónico, transposta para a legislação portuguesa em 2004. Nesse diploma, que se aplica apenas ao comércio electrónico prestado à distância – e nada tem a ver com imprensa –, os valores a salvaguardar são a saúde pública, a segurança pública (nomeadamente na vertente da segurança e defesa nacionais) e os consumidores, incluindo os investidores.

    A proposta da ERC vai no sentido de lhe ser concedidos poderes para impor aos prestadores intermediários de serviços, isto é, às empresas que alojem periódicos da imprensa digital, “o bloqueio do acesso às publicações em causa, através de procedimento que assegure que a restrição se limita ao que é necessário e proporcionado”. Os prestadores intermediários têm um “prazo de 48 horas” a partir da notificação pela ERC para simplesmente obedecer. E mais: “os utilizadores são informados do motivo das restrições”, podendo essa determinação apenas ser suspensa através de “recurso judicial”.

    ERC

    Em termos práticos, a avançar esta proposta da ERC, o regulador poderá mandar “apagar”, sem sequer aviso prévio, qualquer conteúdo considerado lesivo, passando um rótulo imediato de “desinformação” ao órgão de comunicação social digital, mesmo se o artigo em causa for escrito por um jornalista. Além de violar gravosamente a Constituição da República Portuguesa quanto ao direito à liberdade de imprensa, que “não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”, esta eventual nova competência do poder da ERC evidencia  questões preocupantes.

    Por um lado, em princípio, concederá ao regulador – ou mesmo ao Governo ou à Assembleia da República, que indica os membros da ERC – o direito de definir uma cartilha (prévia ou arbitrária) sobre os limites e conteúdos em matéria de saúde pública, de segurança e de consumo, condicionando os órgãos de comunicação social e os jornalistas. Ou seja, uma censura prévia, se os jornais digitais incorporarem essas “directrizes”, ou uma censura posterior, se não as acatarem.

    Por outro lado, esta proposta discriminaria os órgãos de comunicação social em função do tipo de suporte comunicacional, uma vez que a possibilidade de censura aplicar-se-ia apenas a publicações electrónicas. Contudo, no limite, mesmo jornais com duplo suporte – como o Expresso ou o Público – poderão ver conteúdos “suspensos” pela ERC na versão digital, embora sem abranger esses mesmos conteúdos se publicados em papel.

    secret, shut, up

    João Palmeiro, presidente da Associação Portuguesa da Impresa (API) – que foi um dos interlocutores da ERC para a elaboração deste projecto de alteração da Lei da Imprensa – não acredita que esta ideia passe, para já, na Assembleia da República, porque obrigaria a alterações na Constituição e nos direitos fundamentais da liberdade da imprensa. Contudo, enquadra esta proposta nas negociações nos corredores burocráticos da União Europeia no âmbito do Media Freedom Act.

    Este polémico documento, como salientava recentemente o Le Monde, foi apresentado como “uma promessa aos jornalistas” para fortalecer a independência editorial, a monitorização da concentração dos media e garantir “fortes salvaguardas contra o uso de spyware contra os media, jornalistas e suas famílias”.

    Porém, nas negociações, os últimos sinais têm mostrado que, afinal, o diploma visa um controlo dos jornalistas, apresentando “sérios riscos aos princípios democráticos fundamentais e aos direitos fundamentais da União Europeia, principalmente a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e a protecção dos jornalistas”, conforme sustenta uma carta aberta divulgada em finais de Junho por diversas individualidades e organizações, entre as quais os Repórteres sem Fronteiras.

    Para João Palmeiro, o objectivo inicial foi limitar que fossem as empresas tecnológicas – como o Google, o YouTube e o Facebook, entre outras – a condicionar a divulgação de diversos conteúdos, mas as negociações desenvolveram-se no sentido da criação de uma entidade reguladora supranacional, ao nível da União Europeia, que depois concederá essa atribuição, em cada país, a um regulador nacional.

    “No caso português, será a ERC, mas isso implicaria a necessidade de uma alteração constitucional, uma vez que a ERC tem funções atribuídas pela Constituição Portuguesa e responde apenas perante a Assembleia da República”, refere o presidente da API, que defende uma melhor clarificação sobre o alcance e a intervenção do Media Freedom Act na actividade jornalística e na imprensa, em geral.

  • Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas não responde se vai dar parecer sobre “noticiários pagos” na CMTV

    Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas não responde se vai dar parecer sobre “noticiários pagos” na CMTV

    Silêncio ensurdecedor e comprometedor. O director da CMTV, Carlos Rodrigues, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) remetem-se ao silêncio sobre os polémicos contratos do canal de televisão da Cofina e 10 autarquias, que envolveram o pagamento de entrevistas e reportagens de promoção dos municípios em noticiários, com jornalistas como Francisco Penim a servirem de mestres-de-cerimónias. Apenas o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas reagiu, acabando por emitir um comunicado. Mas fala em “cebolas”, quando se perguntou por “alhos”.


    À pergunta sobre “alhos”, o Conselho Deontológico dos Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ) deu uma resposta sobre “cebolas”.

    Se em abono da verdade botânica, cebolas e alhos até pertencem à mesma família (Alliaceae) – sendo ambos bulbosos subterrâneos comestíveis –, a resposta da estrutura sindical que aborda as questões éticas dos jornalistas acabou por não responder ao PÁGINA UM sobre se iria debruçar-se sobre os contratos da Cofina com autarquias que resultaram em alinhamentos em programas de informação e com jornalistas a servirem de mestre-de-cerimónias de promoção dos municípios.

    a bunch of different types of onions and onions

    E optou antes, “em resposta às perguntas” do PÁGINA UM, por emitir um comunicado público em que, afinal, se debruça somente nas deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) que identificou 14 jornalistas comerciais e instaurou sete processos de contra-ordenação a empresas de media. Recorde-se que as deliberações da ERC foram divulgadas pelo PÁGINA UM no passado dia 3, ou seja, há mais de duas semanas.

    No decurso da investigação do PÁGINA UM ao contratos entre 10 autarquias e a Cofina – que colocou os municípios a interferirem até nos alinhamentos noticiosos da CMTV, com jornalistas (como Francisco Penim, antigo director de programas da SIC) a publicitarem os concelhos e a entrevistarem autarcas –, foram colocadas questões às três entidades com poderes de regulação: ERC, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e CD-SJ. Somente a estrutura sindical dedicada à deontologia reagiu até agora, mas começou por fazer considerações genéricas sobre os deveres dos jornalistas.

    Convidada ontem a explicitar se, em concreto, no caso dos contratos entre os municípios e a Cofina, “o Conselho Deontológico irá identificar os jornalistas envolvidos e elaborar algum parecer”, o CD-SJ respondeu esta manhã informando que “relativamente à sua pergunta de ontem, o CD vai emitir esta manhã, via site do Sindicato, uma posição, que enviamos desde já em anexo.”

    Os jornalistas Sofia Piçarra e Francisco Penim foram os recorrentes “mestres-de-cerimónia” dos programas de informação da CMTV que executaram contratos de prestação de serviços, onde autarquias indicaram entrevistados e definiram alinhamentos.

    O comunicado, entretanto publicado, é, contudo, completamente omisso em relação aos contratos entre a Cofina e a CMTV, nem se debruça sobre eventuais medidas contra os jornalistas envolvidos na execução de parcerias comerciais que envolveram entrevistas pagas e alinhamentos de telejornais.

    Nesse comentário, sem nomear qualquer órgão de comunicação social e muito menos qualquer jornalista, o CD-SJ remete para as deliberações da ERC, divulgadas há duas semanas pelo PÁGINA UM, questiona-se se “ainda estamos a falar de jornalismo” nas situações em que “os temas das notícias são definidos em primeiro lugar por critérios comerciais” e também se verifica, “como tem sido noticiado, a definição prévia de perguntas e de entrevistados”.

    Na sua posição, o CD-SJ reconhece que a criação de notícias pagas “parece cada vez mais comum em muitas redações”, repudiou a “tendência crescente de as empresas jornalísticas transformarem os jornalistas em produtores de conteúdos, num processo que compromete um modelo de negócio que tem por base a credibilidade dos seus profissionais e da informação que divulgam”.

    ERC e CCPJ mantém-se silenciosos perante um caso de reportagens e entrevistas pagas em noticiário da CMTV.

    O comunicado também “sublinha o papel de diretores e editores de informação”, a quem cabe “em primeira instância a responsabilidade de não permitir que estes tipos de solicitações sejam feitas dentro das redações que dirigem”. No entanto, mostra-se claro que são os próprios directores de diversas publicações que participam activamente em eventos comerciais, não ignorando, pelo contrário, que há cobertura noticiosa sem aviso aos leitores de se tratar afinal de publicidade redigida.

    O tom geral do comunicado do CD-SJ acaba por ser, na verdade, extremamente genérico sobre os perigos do “jornalismo comercial”, a precariedade dos jornalistas e a situação financeira complexa dos órgãos de comunicação social e de recomendações à resistência, salientando que “o jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios suscetíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional”.

    Porém, em termos de acção concreta, para além do inócuo comunicado, nada o CD-SJ adianta. O PÁGINA UM reiterou ao CD-SJ que a pergunta que lhe foi colocada era muito específica e “não foi respondida”, acrescentando que “o vosso comunicado nada tem a ver com a ‘pergunta de ontem’” sobre a Cofina e a CMTV.

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    E, por isso, o PÁGINA UM insistiu, no início desta tarde, na pergunta: “face a esta situação em concreto (contratos da Cofina com autarquias, com alinhamento de noticiário e indicação de entrevistados pelo adjudicante, e sua execução por jornalistas da CMTV), o Conselho Deontológico irá identificar os jornalistas envolvidos e elaborar algum parecer?”. E acrescentava-se que a pergunta era “simples, aceita três tipos de resposta, todas noticiáveis: sim, não e silêncio.”

    Até agora, o silêncio do CD-SJ é a resposta.

  • “Extrême gauche” = “extrema-direita”? Um puxão de orelhas à RTP 3 (que não pediu desculpa)

    “Extrême gauche” = “extrema-direita”? Um puxão de orelhas à RTP 3 (que não pediu desculpa)

    O regulador dos media recebeu 120 queixas de telespectadores por a RTP3 ter emitido no noticiário “3 às 19”, de 25 de Março deste ano, declarações do ministro do Interior francês com legendas erradas, em que traduziu “extrême gauche” por “extrema direita” e “utra gauche” por “ultradireita”. Apesar de o canal ter corrigido as legendas, o regulador condena que o facto de que a pivot não ter corrigido de imediato a óbvia tradução errada que induziu os telespectadores em erro e também o facto de o erro ter sido mantido na emissão da RTP3 e na plataforma online RTP Play. Além disso, a ERC critica a RTP3 por nunca ter pedido desculpas aos telespectadores pelo erro. Apesar de algumas das queixas acusarem a RTP3 de fazer a tradução errada de propósito, a ERC diz não ter provas de que o objectivo fosse induzir em erro a opinião pública para culpar a extrema direita de violência que afinal foi levada a cabo por grupos de extrema esquerda.


    O Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) condenou a actuação da RTP3 por ter emitido uma notícia em que traduziu erradamente declarações do ministro do Interior francês, sem que tenha depois feito a devida correcção adequadamente nem admitido o erro, pedindo desculpas aos seus telespectadores.

    Numa deliberação de 27 de Junho, publicada no seu site, o regulador dos media também ordenou a RTP a corrigir a notícia que mantém a tradução errada na plataforma RTP Play. No entanto, o PÁGINA UM confirmou que a ligação original do programa de informação foi desactivada entretanto, apagando assim o erro.

    Em causa está uma notícia emitida no noticiário “3 às 19” na RTP3, no dia 25 de Março, com declarações do ministro do Interior francês sobre protestos nacionais contra o decreto presidencial que alterou a idade de reforma dos 62 para os 64 anos de idade. Na notícia, o ministro do Interior, Gerald Darmanin, condena os protestos e a violência, que causaram feridos, e nas suas declarações no original em francês, aponta responsabilidades a manifestantes da “extrême gauche“, por duas vezes, e “ultra gauche“. Nas legendas, a RTP3 traduziu as declarações por “extrema direita” e ultradireita”.

    closeup photo of person carrying professional video recorder

    Nas legendas podia ler-se, recorda a ERC: “(…) milhares de pessoas deslocaram-se ao local, mais de 1 milhar das quais extremamente radicalizadas, extremamente violentas; entre as quais do movimento Black Bloc, membros da extrema-direita, da ultradireita, que atacam fisicamente os polícias”.

    Lia-se ainda: “E hoje, perante as imagens de extrema violência que sofrem os agentes policiais da república, quero, evidentemente, transmitir-lhes o meu apoio total e absoluto, dizer-lhes que estamos do seu lado e que esta demonstração de violência é absolutamente indesculpável, organizada claramente, como disse, por grupo de extrema direita”.

    No total, chegaram ao regulador 120 queixas de telespectadores pela tradução errada da RTP3, que se defendeu junto da ERC admitindo o erro e definindo-o como “um a[c]to falhado”.

    A ERC diz, na sua deliberação, que “Não existem elementos disponíveis que sustentem as alegações presentes em algumas das participações de que o erro terá sido intencional e com o propósito de manipular a opinião pública”.

    O regulador refere que, “ainda que padecendo de rigor, a ERC não dispõe de evidências que contrariem a justificação da RTP3”.

    O que é certo é que, apesar de o canal ter indicado à ERC que a sua direcção de informação “dete[c]tou de imediato o erro e solicitou, também de imediato, a sua correção nesse momento”, o regulador sustenta que “a RTP3 não logrou indicar de que forma corrigiu a informação em causa”.

    De facto, a ERC aponta que na plataforma RTP Play do serviço público de televisão, “e à semelhança do que aconteceu na emissão linear da RTP3, as legendas que traduzem as declarações do ministro permanecem incorretas, traduzindo “extrême gauche” por “extrema direita” e “ultra gauche” por “ultradireita””.

    O regulador destaca que “o serviço RTP Play não se constitui, nem assim deve ser visto, como um mero arquivo audiovisual”, estando registado na ERC “como um operador de serviço audiovisual a pedido, com o número de registo 800013”.

    O PÁGINA UM consultou hoje a plataforma RTP Play, e constatou que o vídeo referente à notícia em causa, emitida a 25 de Março, encontra-se visível no catálogo de vídeos disponíveis mas, quando se clica no mesmo, não é possível visualizá-lo.

    A ERC frisa que “por outro lado, até ao fim da emissão do noticiário “3 às 19″ daquele dia, não foi identificada a correção do erro, fosse pela pivô, fosse em peça editada”. “Tal atuação colide, sem margem para dúvidas, com o dever profissional constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista (EJ)3, que dispõe ser dever dos jornalistas “proceder à retificação das incorreções ou imprecisões que lhes sejam imputáveis”, lembra a ERC.

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    O regulador salienta que “a retificação dos erros constitui um importante mecanismo de autorregulação à disposição dos órgãos de comunicação social e uma meritória prática jornalística em prol do dever de informar o público «com rigor e isenção» (alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do EJ”.

    Aponta também que foi “possível identificar no noticiário da RTP3 “24 Horas”, do mesmo dia, disponível na plataforma digital RTP Play, a mesma peça jornalística com as declarações do ministro francês já corrigidas, onde se traduz “extrême-gauche» por «extrema esquerda” e “ultragauche” por “ultraesquerda””.

    Contudo, “apesar de o noticiário “24 Horas” apresentar já a legendagem correta das declarações do ministro – ao contrário do que foi feito no bloco informativo “3 às 19″ -, não existiu, em momento algum, uma admissão do erro por parte da RTP3 perante o seu público”.

    A ERC conclui que “a RTP3 não fez uso do mecanismo de autorregulação à sua disposição, no sentido de corrigir e, sobretudo, admitir perante o público, um erro evidente que, no caso em apreço, induzia a uma leitura desajustada e errónea pelos telespectadores”. Indica que, “assim, a RTP3 insistiu na manutenção do erro, não observando o dever de informar com rigor e isenção, nem o dever de retificação”.

    O regulador deliberou então “instar a RTP a proceder à correção da notícia, que ainda se encontra na plataforma digital RTP Play” e “instar a RTP3 ao escrupuloso respeito pelas exigências de rigor informativo e pelos deveres deontológicos da profissão, bem como à utilização dos mecanismos de autorregulação ao seu dispor, no sentido de corrigir e admitir os erros perante os telespectadores, promovendo a transparência junto dos seus públicos”.