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  • Gastos da pandemia: ‘Truque jurídico’ e completo descontrolo escondem compras milionárias (e algumas ilegais)

    Gastos da pandemia: ‘Truque jurídico’ e completo descontrolo escondem compras milionárias (e algumas ilegais)

    Durante a pandemia, para agilizar procedimentos – e ‘salvar vidas’ – foi criado um regime de excepção para as compras urgentes por entidades públicas no sector da Saúde: bastava uma factura e pagava-se sem haver um tecto. Ficou, porém, prometida a publicação de todos os contratos no Portal Base – algo que não é garantido ter acontecido – e a realização de um relatório a publicar no site da empresa pública Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Mas o relatório acabou por não ser feito, até agora, graças a um ‘truque jurídico’. Apesar de a SPMS prometer que o vai fazer, adianta já que só tem conhecimento de um ajuste directo em regime simplificado… Um caso anedótico, se não fosse grave, pois, na verdade, um levantamento do PÁGINA UM aos contratos em regime de excepção inscritos no Portal Base revelam – e podem faltar muitos – largos milhares de compras por ajuste directo em regime simplificado, totalizando mais de 90 milhões de euros. Só em quase mil ventiladores comprados gastou-se cerca de 27 milhões de euros. Alguns destes contratos estão feridos de evidentes ilegalidades, incluindo o maior: quase 20 milhões de euros do polémico antiviral Paxlovid foram comprados pela Direcção-Geral da Saúde à Pfizer quando este regime de excepção já não podia ser usado por o Governo o ter revogado há três meses. Esse contrato esteve escondido do Portal Base durante cerca de 11 meses. Mas há mais… para daqui a uns tempos o Tribunal de Contas se entreter depois a fazer um relatório crítico que dará em nada.


    Milhões e milhões de euros gastos sem controlo. Ou descontrolo absoluto. Quase um ano depois da declaração sobre o fim da pandemia (como emergência global) pela Organização Mundial da Saúde, em Portugal ninguém sabe quanto se gastou e quem gastou em aquisições de bens e serviços usando um regime simplificado de ajuste directo, porque nunca foi elaborado e publicado um relatório conjunto a ser elaborado por entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde por via de um ‘truque legislativo’.

    A obrigação deste relatório estava consignada num diploma inicialmente publicado em Março de 2020 – e sistematicamente alterado nos meses seguintes – que possibilitava a aquisição de ajuste directos independentemente do montante sem necessidade de quaisquer procedimentos formais, ou seja, sem contrato escrito e com uma simples factura e ordem de pagamento, sem sequer especificar em concreto, em diversos casos, os bens e serviços adquiridos. E sobretudo sem fiscalização prévia do Tribunal de Contas. Foi enquadrado nesta simplificação que se compraram, sobretudo nas primeiras fases da pandemia, os famigerados ventiladores a empresas chinesas – alguns que nunca funcionaram –, e também muito equipamentos de protecção individual e alguns fármacos.

    woman in black jacket holding white paper

    Independentemente da obrigação de colocar estas compras no Portal Base, as entidades autorizadas a fazerem estas compras – entre as quais a Direção-Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e a Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) – tinham também de comunicar estas adjudicações aos ministros das Finanças e da Saúde. E mais: ficou expressamente estabelecido que estas entidades deveriam elaborar um relatório conjunto a ser publicado no prazo de 60 dias após o período de vigência do decreto-lei.

    E é aqui que começa o imbróglio legislativo que, na verdade, implica, na interpretação da SPMS, a desobrigação legal de elaboração e conhecimento público cabal destes gastos sem controlo.

    Com efeito, apesar de 83 dos 91 artigos desse diploma terem sido revogados, grande parte dos quais a partir de Setembro de 2022, significa assim que algumas normas de pormenor ainda o colocam como estando em vigor. De entre os poucos artigos que ainda se aplicam está a prorrogação dos vistos de permanência em território nacional que tenham perdido a validade desde Março de 20200, que se genericamente se manterá até 30 de Junho deste ano. Ou seja, em concreto, estando-se em Abril de 2024, não se poderia sequer dizer que havia legalmente um atraso na elaboração do relatório e a sua publicação no site da SPMS, como previsto na primeira metade de 2020.

    Porém, houve um ‘truque jurídico’ cometido pelo anterior Governo, e mesmo que entretanto o Governo Montenegro ‘encerre’ a vigência da totalidade do diploma – ou seja, que o revogue na íntegra –, a exigência da elaboração do relatório deixou de ter cabimento legal, porque o artigo que o previa foi primeiro, deixando de estar em vigor desde 1 de Outubro de 2022. Ou seja, a norma que exigia a elaboração do relatório já não existe quando o diploma onde essa norma esteve inicialmente integrada for ‘eliminado’. Uma ‘eficácia jurídica’ absoluta.

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    Esta é, aliás, a interpretação da presidente da SPMS, Sandra Cavaca, que em resposta a um pedido de documentação administrativa pelo PAGINA UM diz que “a elaboração e a publicação daquele relatório conjunto inicia a sua contagem apenas após o período de vigência do decreto-Lei nº 10-A/2020”, mas tal prazo ainda não se aplica porque “o diploma globalmente considerado permanece vigente”. Mas acrescenta que como o artigo 2º-A, aquele que previa o relatório, foi expressamente revogado, “verdadeiramente não se mantém essa obrigação”.

    Em todo o caso, Sandra Cavaca diz que a SPMS “encetou antecipadamente  diligências no sentido da elaboração do relatório em questão, cuja preparação já se encontra em curso”, não revelando a datada sua conclusão. Porém, esta responsável adianta, desde já, que se “apurou apenas uma adjudicação ao abrigo do procedimento de ajuste directo simplificado”.

    Ora, é aqui que surge mais uma estranheza – ou estupefacção – neste processo de ‘compras à Lagardère’, porque no Portal Base encontram-se alguns milhares de contratos por ajuste directo simplificado celebrados ao abrigo do diploma de excepção – e podem estar muitos casos em falta. Num rápido levantamento do PÁGINA UM, contabilizam-se 1.436 contratos desta natureza com valor superior a 18.000 euros. Note-se que, em situações normais, o regime simplificado para aquisição de bens e serviços só é possível em aquisições até 5.000 euros.

    Sandra Cavaca, presidente da Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS).

    De acordo com este levantamento, o montante destas compras durante a pandemia acima de 18.000 euros totalizam mais de 91 milhões de euros, destacando-se nove compras acima de um milhão de euros e mais 15 ajustes directos em regime simplificado com montantes entre 250 mil e um milhão de euros.

    No topo dos contratos está, na verdade, um contrato ferido de ilegalidade, já desvendado pelo PÁGINA UM em Novembro passado: a Direcção-Geral da Saúde celebrou um contrato no valor de 19,95 milhões de euros do antiviral Paxlovid em 31 de Dezembro de 2022, ou seja, quase três meses após a revogação da possibilidade de fazer uma compra desta ordem de grandeza através de regime simplificado. Ainda por cima, a DGS escondeu esse contrato do Portal Base durante cerca de 11 meses. O Tribunal de Contas ainda não se pronunciou sobre esta evidente ilegalidade.

    Outra compra polémica no sector da farmacologia, feita ao abrigo deste regime de excepção, beneficiou a farmacêutica Merck Sharpe & Dohme que conseguiu convencer a Direcção-Geral da Saúde gastar 3,05 milhões de euros de mulnopiravir em 22 de Setembro de 2022, poucos dias antes da revogação da norma que permitia ajustes directos em regime simplificado, daí que nem sequer se saiba o número de unidades adquiridas. Relembre-se que o molnupiravir, sob a marca comercial Lagevrio, obteve autorização em finais de 2021 na Europa e foi logo bastante elogiado por vários especialistas, estando à cabeça, em Portugal, o actual bastonário da Ordem do Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, e o pneumologista Filipe Froes, um médico do SNS, consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos mais promíscuos consultores de farmacêuticas.

    Porém, o molnupiravir acabou ingloriamente os seus dias em Julho do ano passado, depois de evidência da sua completa ineficácia. Mas antes da retirada do mercado, confirmada pelo Infarmed em 17 de Julho, a Merck embolsou com este “embuste”, e com a conivência de reguladores e o apoio de influencers de Medicina, um total de 5,7 mil milhões de dólares em receitas só em 2022. Recentemente, este fármaco foi mesmo considerado, num artigo científico, como promotor de mutações do SARS-CoV-2

    O segundo maior contrato por ajuste directo simplificado ultrapassou os 10,8 milhões de euros para aquisição de 243 ventiladores à empresa chinesa Guangdong H&P. Comprados em Agosto de 2020, casa unidade ficou a 44.500 euros. O terceiro maior foi também para comprar mais ventiladores: neste caso em Maio de 2020 à empresa chinesa WinWin Machinery no valor de quase 5,2 milhõe4s de euros. Como a compra foi de 300 unidades, o custo unitário pouco ultrapassou os 17 mil euros. Os preços especulativos dos ventiladores foram uma imagem de marca nos primórdios da pandemia: houve um contrato de Março de 2020 com um preço unitário de apenas 10 mil euros.

    Os ventiladores foram, na verdade, os itens mais ‘valiosos’: de entre os 25 maiores contratos por ajuste directo em regime simplificado, 11 estão associados a ventiladores. Somando os contratos que discriminam o número de ventiladores, Portugal terá adquirido através de uma simples factura pelo menos 976 ventiladores que custaram quase 27 milhões de euros, com um preço médio unitário de cerca de 27.570 euros.

    doctor and nurses inside operating room

    Nesta análise preliminar do PÁGINA UM também se mostra evidente que houve abusos no uso do regime de excepção, não controlados sequer pelo Tribunal de Contas. Com efeito, este procedimento “só pode[ria] ser promovido pela Direção-Geral da Saúde, pela Administração Central do Sistema de Saúde, I. P., pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, I. P., e pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E. P. E. (SPMS, E. P. E.), relativamente a bens que se destinem a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde”.

    No entanto, houve outras entidades de âmbito público que o usaram sem sequer deterem competências específicas no sector da saúde. Por exemplo, em Agosto de 2020 o município de Cascais vendeu ao município de Mafra “equipamento (vestuário) de protecção, no âmbito do COVID [sic]” no valor de 400.842 euros. Não existe informação sobre qual o equipamento e quantas unidades.

    Mais estranho ainda foi o contrato por ajuste directo em regime simplificado no valor de 158.800 euros entre a Leque – Associação de Pais e Amigos com Necessidades Especiais e a Casa da Música. Sem prejuízo de se poder considerar necessária, durante a pandemia, a “aquisição de serviços de componente artística de inclusão social”, não se consegue entender como este contrato pôde beneficiar de uma norma de um diploma de Março de 2020 quando, de acordo com a informação no Portal Base, foi celebrado em 5 de Setembro de 2019, ou seja, seis meses antes da chegada oficial do SARS-CoV-2 em território português. Note-se que este contrato irregular seria divulgado apenas em Setembro de 2021, isto é, dois anos após a data do contrato. Como se está perante um ajuste directo em regime simplificado nem sequer se sabe qual foi o prazo de execução.

    Ofício da presidente da SPMS adianta ter conhecimento de apenas “uma adjudicação ao abrigo do procedimento de ajuste directo simplificado” previsto no Decreto-Lei nº 10-A/2020. Numa consulta no Portal Base, podendo faltar muitos, listam-se vários milhares.

    Há ainda outros dois contratos em regime simplificado um pouco acima dos 100 mil euros, ambos a beneficiarem a MEO, que foram celebrados por entidades não ligadas ao sector da saúde: a autarquia de Odivelas e a Autoridade para as Condições do Trabalho. Neste caso, o abuso é duplo, porque estas duas entidades recorreram ao regime de excepção para a aquisição de computadores.

    Ora, o diploma, saliente-se, somente era permitido para a “aquisição de equipamentos, bens e serviços necessários à prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, ou com estas relacionados, designadamente equipamentos de proteção individual; bens necessários à realização de testes à covid-19; equipamentos e material para unidades de cuidados intensivos; medicamentos, incluindo gases medicinais; outros dispositivos médicos; [e] serviços de logística e transporte, incluindo aéreo, relacionados com as aquisições, a título oneroso ou gratuito, dos bens referidos” anteriormente, “bem como com a sua distribuição a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde ou a outras entidades públicas ou de interesse público às quais se destinem”.


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  • O veneno nosso de cada dia

    O veneno nosso de cada dia


    A segurança alimentar é uma preocupação actual e legítima. As substâncias químicas invadiram a nossa alimentação e estão na origem de muitas das doenças mais comuns dos dias de hoje. A comida que consumimos contém inúmeros ingredientes perigosos para a saúde.

    Em 2011, Rui Araújo e a sua equipa de reportagem da TVI foram ver o que se passa com os alimentos, nas hortas à beira das estradas, na agricultura intensiva, nas mercearias de bairro e nos hipermercados.

    Mandaram analisar dezenas de produtos alimentares e os resultados são surpreendentes.


    O cenário é bucólico, mas, lá ao fundo, do outro lado do prado verdejante, está o IC-19, uma das vias mais movimentadas da Europa. Liga Sintra a Lisboa.

    À beira da estrada, as hortas ilegais ocupam os taludes. Os remediados e os pobres do império — os mesmos de sempre — cultivam, aqui, tudo e mais alguma coisa.

    Tenho couve, tenho ervilha, tenho um bocadinho de cebola, tenho… — diz Manuel Semedo, horticultor improvisado.

    A prioridade é satisfazer as necessidades primárias.

    É bom para comer. É muito bom para comer. É… Isto é uma ajuda importante porque em vez de a gente andar a comprar e tendo no campo, dá para comer. Dá para o consumo da casa…

    Para muitos a sociedade de consumo é, no fim de contas, mais uma miragem do que outra coisa. As hortas de estrada contrastam com a aparência de prosperidade e de abundância generalizadas.

     — Uns, é para comer, que as reformas são poucas. Outros, é para vender. E outros são os que vêm roubar aquilo que os outros estão a cultivar. É isso que se passa, mas não é de agora. É de há muito tempo… — explica-me Álvaro Campos, morador, aqui, da área.

    Mas o engenho acarreta perigos. As couves galegas do IC-19, mas também as da Segunda Circular, da A-1 e da A-8 são perigosas para a saúde. Contêm teores elevados de chumbo e de cádmio..

    Os metais pesados — um dos principais problemas de poluição ambiental na cidade de Lisboa — são inalados e entram, por outro lado, na cadeia alimentar já que são absorvidos pelas plantas através das folhas e das raízes.

    A situação de metais pesados nas hortas urbanas é preocupante. Verificámos teores nos solos de metais como o crómio e o níquel, chumbo e cádmio elevados e prejudiciais para a saúde pública. — considera Hugo Silva, investigador do ISEL.

    O Instituto Superior de Engenharia de Lisboa monitoriza desde 1998 a presença de metais pesados em cinco pontos da capital.

    O choupo, uma árvore de folha caduca particularmente resistente, foi o primeiro bio-indicador da poluição na capital.

    Em 2006 achámos interessante estender este estudo a folhas de couve de hortas de beira de estrada. Posso dizer, em termos concretos, que determinámos teores de chumbo entre quatro a 10 vezes superiores àqueles previstos nas recomendações legais. — afirma Nelson Silva, investigador do ISEL.

    Os resultados das análises do ISEL são assustadores. Os valores legais são largamente ultrapassados, designadamente no IC-19 com um excesso de chumbo de 390%. Na Segunda Circular, o panorama é ainda mais preocupante: 1.025% a mais.

    A horta mais contaminada da capital é esta. Fica em Pedrouços, junto à Marginal e à bomba de gasolina. Os teores de chumbo e de outros metais pesados rebentam com as escalas.

    Há então, que regular um bocadinho essa prática de hortas urbanas, garantindo que são realizadas em locais que não apresentam perigos para a população. Ou seja: que as pessoas possam cultivar aí os seus legumes, o que é uma prática sustentável e muito louvável, mas também os possam comer em segurança. Portanto, sem correrem riscos de saúde. — declara Manuel Matos, outro investigador do ISEL.

    O problema é justamente esse. E as surpresas continuam à medida dos estudos. O ISEL comparou as couves galegas das hortas urbanas às da agricultura biológica vendidas nos supermercados. Os resultados das análises das couves biológicas do comércio são surpreendentes. Os metais pesados excedem em 153% os valores autorizados. Apenas garantem a ausência de pesticidas…

    «Não evitam a presença de poluentes transportados atmosfericamente nem a absorção pelas plantas de poluentes presentes nos solos como é o caso dos metais pesados.»

    As conclusões são do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa.

    A indústria agro-alimentar e os grandes supermercados são, hoje, os principais responsáveis da comida contaminada que ingerimos. A variedade e a profusão actuais deixaram de significar qualidade. E muito menos saúde e bem-estar. Mandámos analisar dezenas de alimentos, aqueles que consumimos diariamente. As conclusões do laboratório são melindrosas, mas já lá iremos.

    Nós passámos de hábitos alimentares, que eram determinados sobretudo por aquilo que são os ciclos da natureza. Havia a época do tomate, a época da ervilha, a época de cada fruta, e isso condicionava e determinava as nossas escolhas alimentares. Hoje, não. Hoje, as crianças já não descascam ervilhas na casa dos avós. Hoje, as ervilhas é algo que se tira de um pacote do congelador e que se come. E, portanto, esta abundância de alimentos, esta disponibilidade o ano inteiro — alimentos de todas as partes do mundo —, fez com que o nosso padrão alimentar se alterasse. Nós temos acesso a todos os alimentos a preços cada vez mais acessíveis e isso, como é óbvio, não só modificou as nossas escolhas mas a forma de produzir esses alimentos. — diz o nutricionista Rodrigo Abreu.

    Telheiras, Lisboa.

    Mais uma sessão de esclarecimento no atelier de nutrição. O exercício proposto, aqui, é comporem uma refeição equilibrada e saborosa.

    Rodrigo Abreu, nutricionista.

    O que é que nós já estamos a ver? Que alimentos do mesmo grupo, vamos evitar misturar. Vamos evitar misturar o arroz com as batatas ou as batatas com a massa… O célebre bitoque com o ovo também vamos evitar misturar. O ideal seria nestes grupos escolhermos uma opção de cada… — aconselha o nutricionista.

    A preocupação desta gente é justificada. Uma alimentação saudável e equilibrada é essencial — comer bem para viver melhor, mas não chega.

    A resposta que se encontrou até agora, que a nossa civilização encontrou até agora, foi aquilo que chamamos os regimes intensivos, que recorrem a adubos, a químícos, mas também discute-se muito hoje a manipulação genética e outras formas de conseguir produzir mais alimento com menos recursos. Esse foi o caminho que nós seguimos até agora. Claro que chegados a este ponto e com muita da informação que nós temos acesso, hoje em dia, é legítimo questionarmos se este é um caminho a seguir, que outras alternativas é que há e que vias é que nós, enquanto consumidores, poderemos exigir quer à indústria, quer aos governos, quer à agricultura… — conclui o nutricionista Rodrigo Abreu.

    A produção agro-alimentar e não só coloca questões sérias de saúde pública. No espaço de 20 anos o número de cancros em Portugal aumentou 735%. Os dados são do Instituto Nacional de Estatística (INE).

    Os cancros estão a aumentar em todo o Mundo. Em Portugal também, é evidente. Nós temos várias razões. A primeira: aumentou muito a esperança de vida, isto é, as pessoas ficam cada vez mais velhas. O cancro, apesar de tudo, é uma doença das pessoas idosas. Melhorámos muito a nossa capacidade de diagnosticar cancros e, portanto, hoje em dia identificamos cancros que há aqui 15, 20 anos passavam desapercebidos. E depois, estamos convencidos que houve de facto uma modificação dos factores ambientais não genéticos. Isto é: nós, geneticamente somos o que éramos. Não mudámos nos últimos 50 anos. Houve factores ambientais que mudaram o Mundo. Mudou, por exemplo, a exposição ao Sol. E o Sol é muito bom, mas o cancro da pele aumentou extraordinariamente em todos os países desenvolvidos porque as pessoas se expõem mais ao Sol. Aumentou a obesidade e a obesidade é um factor associado à alimentação e, no fundo, a bebidas calóricas, etc. Aumentou porque nós, hoje, utilizamos muitos produtos quer na agricultura quer, por exemplo, nos cosméticos que são produtos que modificam as hormonas e que são, directa ou indirectamente, causadores de cancro. — considera o médico Manuel Sobrinho Simões.

    Manuel Sobrinho Simões, médico.

    A prevalência da pré-obesidade, do excesso de peso nas crianças portuguesas que atinge uma em cada três, é, hoje, uma das mais elevadas da Europa. A informação é da Plataforma Contra a Obesidade da Direcção-Geral da Saúde. Principais causas apontadas: níveis reduzidos de actividade física e padrões alimentares inadequados. A alimentação está na origem do desenvolvimento de muitas maleitas.  

    A alimentação das mulheres grávidas é muito importante para a formação dos bebés, nomeadamente os embriões e os fetos, que são extraordinariamente frágeis, em que as estruturas se formam em determinadas idade-chave, e se a mãe ingerir certos químicos que passam através da barreira feto-placentária, sobretudo aqueles que têm efeitos semelhantes aos das hormonas, essas alterações podem-se tornar definitivas. Podem, inclusivamente, dar origem a cancros, podem dar origem a malformações sexuais, podem dar origem a obesidade, podem dar origem a diabetes, podem dar origem àquilo que agora está na moda, que são a hiperactividade e o défice de atenção das crianças… — acrescenta Maria José Janeiro, médica pediatra.

    Os químicos também estão associados à diabetes, doença de Parkinson e de Charcot.

    «E aqui está: às sementes seleccionadas se ficam a dever muitas das searas magníficas espalhadas por esta terra de Santa Maria, que constituem um regalo para os olhos, aumentam as colheitas dos agricultores e são bons produtos de abastança para o povo português.»  

    In Documento cinematográfico do tempo de Salazar

    A lavoura já não é o que era. E os agricultores são as primeiras vítimas.

    Idalécia Ferreira era operária numa exploração de São Teotónio, Brejão. Era, porque foi obrigada a reformar-se aos 35 anos de idade por causa dos químicos. Foi em 1986.

    Idalécia Ferreira

    Trabalhei nos morangos, no tomate, no melão. Depois fiquei doente por motivos das químicas, que andaram com o helicóptero a dar as químicas por cima de nós. Eles diziam para nós fugirmos, mas quando diziam já não dava tempo porque o avião era mais rápido. E quando a gente sabia, já estávamos a ser atingidos. Depois começávamos com dores de cabeça fortes. Sentir mal. Tínhamos que acabar por ir lá para uma casinha que eles lá tinham, não é? Outras vezes para o hospital. E pronto. A partir daí nunca mais tive um dia de saúde. Tive que ir para Lisboa. Fiz vários exames em Lisboa. Foi-me detectado que era das químicas. Só respiro de um pulmão. E também tenho problemas de fígado. — lamenta-se a mulher.

    Idalécia Ferreira  não é um caso isolado. Há explorações que contaminam impunemente os solos e as águas e dão cabo da saúde das pessoas com fitofarmacêuticos, incluindo produtos químicos proibidos há décadas. E não estamos a falar de empresas de vão de escada. Uma multinacional aplicou em meados de 1997, pelo menos, um produto ilegal numa exploração de agricultura intensiva do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.  

    Tive acesso aos documentos confidenciais do crime ecológico. E não só…

    «Confirmamos a aplicação de formalina no nosso campo perto de Azenha do Mar. Semelhante produto é susceptível de provocar graves problemas para a saúde pública, bem como efeitos muito nocivos na qualidade das condições ambientais.»

    Um autarca de Aljezur, que solicitou o anonimato, entregou-nos esta folha dactilografada. Denuncia crimes ecológicos, fraudes e compadrio, passados e actuais.

    «UTILIZAÇÃO DE PRODUTOS PROIBIDOS EM PORTUGAL PARA DESINFECÇÃO QUÍMICA DOS SOLOS.»

    «COLAGEM DE RÓTULOS SOBRE OS RÓTULOS DE ORIGEM NAS EMBALAGENS DE PRODUTOS QUÍMICOS.»

    «QUANDO ALGUMAS EMPRESAS SÃO FISCALIZADAS PELOS COMPRADORES ESTRANGEIROS HÁ PRODUTOS QUE ANTECIPADAMENTE SÃO DESLOCADOS PARA FORA DA ÁREA DA EMPRESA.»

    «CRIAÇÃO DE EMPRESAS SÓ COM FUNCIONÁRIOS ADMINISTRATIVOS SÓ PARA OBTER FUNDOS COMUNITÁRIOS.»

    Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. O lixo amontoado, os mamarrachos very-típicos e a agricultura intensiva poluem impunemente a paisagem e o resto. O novo plano do Parque é controverso.

    Isto é um plano de eco-palpites. É um plano de eco-patetices. E, na verdade, é. O que se espera também de um plano do Parque Natural é que corrija alguns problemas ambientais que o próprio Parque tem: a agricultura intensiva. O relatório ambiental do plano do Parque diz que a agricultura intensiva é desastrosa para a protecção dos valores naturais. Curiosamente, este plano vem incentivar mais a agricultura intensiva. — afirma Manuel Marreiros, presidente da Assembleia Municipal de Aljezur.

    As explorações agrícolas, aqui, proliferam à medida dos investimentos financeiros e do aumento da mão-de-obra escrava também ela de fora, mas o mais preocupante neste cenário terceiro-mundista em pleno Parque Natural é a saúde pública.

    As pessoas, é assim, vão morrendo aos poucachinhos, que não notam. É a falta… aquela pressão que nos encontra dentro. Não é aquele ar que a gente respirava antes. Eu acho que é isto que nos sente. Nós sentimos o que não sentíamos antes: aquele ar que a gente tomava e que, hoje, não existe… — testemunha António Dias, um reformado da região.

    Manuel Marreiros, presidente da Assembleia Municipal de Aljezur.

    Estes documentos confidenciais do ministério português da agricultura ilustram a deriva da agro-pecuária, ontem como hoje.

    Documento da Direcção Geral de Veterinária – Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

    «FOI REALIZADA UMA COLHEITA DE FÍGADO DE BOVINO NO MATADOURO XXX EM TOMAR.»

    «OS MESMOS TÉCNICOS DESLOCARAM-SE AO MATADOURO XXX EM LEIRIA, ONDE RECOLHERAM A OUTRO BOVINO UMA AMOSTRA DE URINA PARA IDENTIFICAÇÃO.»

    «AS AMOSTRAS REVELARAM RESULTADO POSITIVO A CLEMBUTEROL NA PESQUISA A RESÍDUOS DE AGOSNISTAS BETA-ADRENÉRGICOS.»

    «A DETENÇÃO DE ANIMAIS PORTADORES DESSAS SUBSTÂNCIAS ESTÁ INTERDITA.»

    O Clembuterol é um estimulante poderoso do crescimento muscular, dá mais carne, retém quantidades anómalas de água. Dá, portanto, mais rendimento. É proibido dar esta substância a animais para consumo humano. Tolerância Zero. E entende-se. É perigoso para as pessoas. Provoca taquicardia, dores de cabeça, náuseas, dores musculares e pode matar: tromboses, ataques do coração e cancro, sobretudo dos órgãos genitais.

    Em Portugal, as primeiras intoxicações ocorreram em finais da década de 90, em Ourém.

    Dez pessoas internadas por causa da carne de borrego.

    Depois, foi em Aveiro. Uma família inteira intoxicada com fígado contaminado (com uma concentração de clembuterol “verdadeiramente preocupante) e mais tarde em Coimbra. Pai e filha deram entrada nos serviços de urgência dos Hospitais da Universidade. Tinham ingerido iscas de vitela com clembuterol.

    O processo corre termos no Tribunal Judicial das Caldas da Rainha.

    Mas há mais: O proprietário de uma exploração do concelho de Borba administra ilegalmente nitrofuranos – furaltadona aos coelhos que cria e engorda antes de os vender. Esta substância foi proibida na Europa já lá vão 10 anos!

    A Agência Internacional para a Investigação do Cancro (IARC) considera que é um agente potencialmente carcinogénico para humanos.

    Punição: uma simples coima.

    A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) descobre numa sociedade agrícola da Rexaldia (Torres Novas) bovinos com substâncias beta-agonistas ou, por outras palavras, com anabolizantes. É criminoso administrar anabolizantes a animais de exploração, incluindo para aumentar  a massa muscular e diminuir a gordura.

    Mas nos químicos é que está o ganho. Mais coimas em perspectiva…

    Uma inspectora (médica veterinária) da Direcção-Geral de Veterinária identifica num matadouro da Trofa porcos acabados de chegar de Montemor-o-Novo com anabolizantes, obviamente proibidos.

    Em causa, um crime contra a saúde pública, um crime doloso contra economia e ainda um crime de fraude sobre mercadorias.

    Mais uma coima…

    A ameaça é real. Mesmo assim, o consumo de carne de suíno continua a aumentar, em detrimento da de bovino, mais cara. A ausência de escrúpulos e o sentimento de impunidade caracterizam a produção de carne em Portugal. A ausência de maturidade e de sentido crítico dos consumidores agravam a dimensão do problema.

    A Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto efectua há mais de três décadas trabalhos de investigação na área alimentar.

    Para analisar a composição de 15 alheiras de caça comercializadas o laboratório recorreu à PCR — a reacção em cadeia da polimerase —, uma técnica revolucionária de biologia que permite replicar segmentos específicos de ADN. Os resultados são peremptórios: 100% de adulterações.

    A Faculdade de Farmácia do Porto não descobriu uma única alheira de caça com um rótulo correcto e uma nem sequer rótulo tem.

    Duas etiquetas indicam alheiras com faisão. É falso.

    Um rótulo refere a presença de lebre. É mentira.

    Cinco mencionam a presença de perdiz, mas isso só é verdade num caso.

    Sete rótulos referem a existência de pato, mas em três pato nem cheirá-lo. Em contrapartida, todas as alheiras de caça têm carne de porco, mas nem todas o referem.

    Fomos, portanto, às compras. Ver para crer…

    Escolhemos um cabaz com parte daquilo que os portugueses consomem diariamente.

    É o primeiro retrato jamais realizado no país da exposição alimentar às substâncias químicas.

    Mandámos analisar a presença de metais pesados, de pesticidas e de micotoxinas no pão, queijo, arroz, atum, salmão, alface, tomate, alhos, pimentos, nabos, maçãs, peras, morangos e azeite num laboratório acreditado pelo Instituto Português de Acreditação (IPAC), que usa tecnologia de ponta.

    Os resultados dos ensaios — dois tipos de cada produto — revelam que um pão de cereais e maçãs da Grande Distribuição ultrapassam os limites impostos pela lei. A sua venda é proibida. Os pesticidas abundam.

    Estes compostos —Cimoxanil, Ciproconazol, Ciprodinil, Ciromazina, Clofentezina, Clorfenvinfos, Clorpirifos, Clorpirifos-metilo, Clortolurão, Diazinão, Diclorvos, Difenoconazol, Diflufenicão, Dimetoato, Dimetomorfe, Diurão, Epoxiconazol, Espinosade, Espirodiclofena, Fluquinconazol, Flusilazol, Fonofos, Fosalona, Fosfamidão, Fosmete, Heptenofos, Hexaconazol, Hexitiazox, Imazalil, Imidaclopride, Indoxacarbe, Iprodiona, Iprovalicarbe, Isoproturão, Linurão, Malatião, Mecarbame, Mepanipirime, Metacrifos, Metalaxil-M, Metamidofos,… — são desreguladores endócrinos e nefrotóxicos. Atacam os rins e provocam cancro…

    Mas vamos por partes.

    Os teores de Pirimifos – Metilo são, portanto, 500% superiores ao limite legal permitido para as sementes de linho.

    É ilegal vender este pão.

    Estas maçãs de origem nacional que comprámos no mesmo hipermercado contêm metais pesados, insecticidas, fungicidas e sobretudo Carbendazime.

    CARBENDAZIME NAS MAÇÃS:

    0,30 mg/Kg — ultrapassa em 150% o limite máximo permitido por lei.

    É ilegal vender esta fruta.

    O ATUM:

    O SALMÃO:

    O salmão contém quatro metais pesados e apresenta vestígios de DDT, um pesticida proibido em Portugal desde 1988. Pode provocar cancro!

    DDE (um derivado cancerígeno do DDT), Terbutilazina (um herbicida) e HCB (um fungicida).

    Não procurámos PCB e dioxinas, mas este estudo da rede internacional Health and Environment Alliance, divulgado há escassos meses confirma a sua presença no salmão.

    A lista dá para pensar…

    ARROZ BASMATI:

    No arroz basmati encontrámos Micotoxinas e Triciclazol — um fungicida proibido em Portugal e no resto da União Europeia.

    AZEITE:

    Nas duas garrafas de azeite de marcas diferentes detectámos Oxifluorfena, um herbicida.

    PERAS:

    MORANGOS:

    Aquilo que está aqui em causa não é a quantidade de químicos na cadeia alimentar (metais pesados, pesticidas, herbicidas, dioxinas, fungicidas e aditivos como o antioxidante BHA ou os corantes desnecessários), sem contar com os outros contaminantes (PCV, Bisfenol A —BPA —, compostos PVDF, PVC, Micotoxinas, etc.).

    O perigo é o cocktail de moléculas, o impacto da exposição permanente a substâncias quase indetectáveis de diversas origens.

    É a combinação insidiosa de venenos, mesmo em doses homeopáticas. A toxicidade aumenta com a interacção.

    É inevitável ingerir venenos, mas podemos resolver o problema. Dar uma volta e variar a nossa alimentação. E assim variamos os venenos e damos tempo ao nosso organismo de se libertar deles. Outra situação: muitas vezes não é necessário grande poder económico. É usar os peixes da nossa costa: sardinha, carapau, cavala. Os estudos feitos na nossa faculdade indicam-nos que é um produto que não está contaminado com metais pesados. Também não tem indicadores de contaminação como os PAH (hidrocarbonetos aromáticos policíclicos) e são um tipo de alimento económico e agradável e saudável por causa das gorduras Omega 3. — sugere Beatriz Oliveira, investigadora da Universidade do Porto.

    Diversificar os alimentos para reduzir os perigos sanitários é a solução para quem pode. Compete ao Estado emitir recomendações, designadamente, para proteger os mais vulneráveis e incitar, por outro lado, os produtores a alterarem radicalmente as suas práticas. Viver mata, mas é possível reduzir os riscos em matéria de alimentação. Pelo menos, podemos tentar…

    (As fotos que ilustram esta reportagem foram obtidas por captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI – 2011)


    Reportagem originalmente emitida no programa “Repórter TVI” a 12 de Setembro de 2011.

    Imagem de Rui Pereira e montagem de Carlos Lopes.

    Nota: Os dois links que a TVI disponibiliza com esta reportagem não permitem o seu visionamento, aparecendo, em vez da reportagem que passou na TVI, uma mensagem de erro em ambos os links.


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  • Em tempos de crise, Global Media paga luxos e usa ‘expedientes’ para beneficiar administradores

    Em tempos de crise, Global Media paga luxos e usa ‘expedientes’ para beneficiar administradores

    Apesar de ainda há poucas semanas ter havido ordenados em falta e com as contas anuais a baterem bem no vermelho (serão mais 7,2 milhões de euros de prejuízos em 2023), e sem se vislumbrar futuro para alguns dos seus títulos da imprensa, a Global Media vai fazendo ‘vida de rica’. Para pagar ordenados de 14.700 euros aos membros da sua Comissão Executiva, o grupo de media concedeu que aqueles usassem as respectivas empresas, de modo a não pagar directamente IRS e Segurança Social. A empresa do CEO, Vítor Coutinho – ex-vice-reitor do Santuário de Fátima – foi criada em Julho do ano passado sobretudo para comercializar produtos não-alimentares e alimentares, incluindo compotas, e outros artigos, como loiças de porcelana. Também polémicas, por se estar em tempos de ‘vacas magras’ – que já duram mais do que os bíblicos sete anos neste grupo de media –, têm sido algumas despesas pessoais assumidas pela empresa em nome dos accionistas. Um dos casos é o pagamento de quase 11 mil euros de uma longa estadia em hotel de luxo em Lisboa e de uma viagem ao Dubai a um dos accionistas e agora administrador, José Pedro Soeiro.


    Os três membros da Comissão Executiva da Global Media, o topo do Conselho de Administração deste grupo de media, estão afinal a ser pagos como consultores através das suas próprias empresas. O expediente, embora legal, permite assim poupanças fiscais em IRS e no pagamento de taxas à Segurança Social, mas também um regime mais flexível em caso de dispensa de funções desses administradores por parte dos accionistas. Como prestadores de serviço, à factura mensal, não haverá indemnizações em caso de serem demitidos.

    De acordo com facturas de pagamento a que o PÁGINA UM teve acesso, cada um destes membros da Comissão Executiva está a cobrar por mês 14.760 euros, um valor substancialmente superior ao que era praticado nas anteriores administrações, incluindo a de José Paulo Fafe durante o curto controlo da Global Media pela World Opportunity Fund. Contas feitas, a Comissão Executiva custará cerca de meio milhão de euros por ano, numa empresa que apresentará um prejuízo de 7,2 milhões de euros em 2023. No entanto, por via de se optar por pagamentos de consultoria, a ‘factura’ para a Global Media reduzir-se-á, em princípio, em cerca de 100 mil euros, a verba de IVA que poderá ser deduzida.

    Global Media: depois da crise supostamente causada por um fundo das Bahmas, regressam as mordomias da administração, apesar dos prejuízos de 7,2 milhões de euros em 2023.

    O caso dos pagamentos ao presidente da Comissão Executiva, Vítor Coutinho, é muito sui generis. Antigo vice-reitor do Santuário de Fátima, Coutinho pediu a dispensa das obrigações do estado clerical e do celibato que lhe foi concedido em 19 de Março de 2021. Entretanto, casou com Aline Jorge Venâncio, com quem criou, em Julho do ano passado, a empresa Sunbow, com divisão de quotas. É através desta empresa que Vítor Coutinho está a ser pago. De início, a Sunbow tinha no seu objecto social previstas “actividades de consultoria para os negócios e a gestão” e também “actividades de relações públicas e comunicação”, mas estas partes encontravam-se no fim de uma vasta lista.

    No topo das actividades do objecto social da empresa sedeada em Leiria estava o comércio a retalho por correspondência, via internet ou em banca de bebidas, tabaco e produtos não-alimentares e alimentares, entre os quais, explicitamente, “conservas, mel, doces, compotas, sobremesas, chocolates, pastelaria, queijo, produtos preparados à base de carne, temperos e condimentos, chá, café, pão, fruta e produtos hortícolas, frescos e conservados”, bem como “suplementos alimentares e outros produtos naturais e dietéticos com fins alimentares”, não esquecendo também “ artigos em louça em porcelana, barro, vidro, metal e outros artigos para uso doméstico”. Também está prevista a venda a “retalho de produtos cosméticos e de higiene”, e a gestão de livrarias, cafés, pastelarias e casas de chá.

    Somente numa alteração ao contrato de sociedade em Outubro do ano passado se mudou completamente o foco da Sunbow, passando a dar destaque à “consultoria, orientação e assistência operacional a empresas, a organismos ou pessoas em matérias muito diversas, tais como: planeamento, organização, controlo, informação e gestão; reorganização de empresas e instituições; gestão documental; documentação de conformidade (políticas, normas, procedimentos); gestão de recursos humanos; relações públicas; comunicação e assessoria de imprensa”, além de “consultoria científica na área das ciências humanas, nomeadamente em bioética, ética empresarial e diversos âmbitos da ética aplicada”, entre outras actividades congéneres. A parte do comércio a retalho por internet, correspondência ou outros meios não físicos passou para uma parte secundária. Por ser bastante recente, ignora-se ainda a sua facturação, sendo que o seu capital social é de apenas 2.000 euros.

    O ex-reitor do Santuário de Fátima, Vítor Coutinho, actual CEO da Global Media, pensou em Julho entrar no negócio de venda de produtos alimentares e não-alimentares, e criou com a mulher a Sunbow. Agora, usa esta empresa para receber como mero consultor, cobrando 12 mil euros mais IVA.

    Em relação a Diogo Queiroz de Andrade – que mantém a sua carteira profissional de jornalista activa, apesar de exercer exclusivamente funções de administração –, as facturas como administrador da Global Media estão a ser passada em nome da sua empresa Vitri Unipessoal, criada em 2009. Neste caso, o objecto social é a   “prestação de serviços, consultoria, produção de informação e entretenimento na área da comunicação social; conteúdos multimédia portais web e produção televisiva”. Queiroz de Andrade, que chegou a ser director-adjunto do Público – e demitido em 2018 pela administração, o que fez cair o então director David Dinis – ocupava, antes da sua ascensão à Comissão Executiva da Global Media, o cargo de director de inovação, facturando também, segundo documento consultado pelo PÁGINA UM, através da Vitri Unipessoal, mas o valor era substancialmente inferior (6.150 euros com IVA). Agora, Queiroz de Andrade mais que duplicou o seu salário.

    Por fim, a factura mensal também de 14.760 euros (com IVA) para pagamento ao terceiro membro da Comissão Executiva, Rui Rodrigues, tem sido passada pela empresa Add On – Digital Media. Com a Mol 2 – que recentemente viu a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa conceder-lhe um contrato de 600 mil euros –, a Add On teve origem numa sociedade em que Rui Rodrigues entrou como sócio em parceria com uma empresa por ele detida que entretanto foi encerrada e se dissolveu. No caso da Mol 2, a empresa extinta era a Mol. No caso da Add On, a empresa extinta era a Mobbit Systems.

    Além deste expediente de pagamento à Comissão Executiva da Global Media em época de grande crise – e num grupo de media com mais de 8 milhões de euros ao Estado –, também questionáveis têm sido alguns dos gastos dos accionistas e dos administradores na época pós-fundo das Bahamas.

    Incerteza quanto ao futuro de alguns dos títulos da Global Media mantém-se.

    Um dos exemplos mais flagrantes foi o pagamento por parte da Global Media de uma longa estadia do accionista José Pedro Soeiro num hotel de luxo no centro de Lisboa, para além de uma passagem aérea de ida e volta para o Dubai. Com ligações e residência a Angola, José Pedro Soeiro tem 20,4% do capital social da Global Media – que acumula prejuízos de quase 50 milhões de euros desde 2017 – e decidiu que a sua permanência no Hotel Martinhal Lisboa entre 22 de Janeiro e 28 de Fevereiro desta ano fosse integralmente paga pela empresa de media.

    Não foram meia dúzia de tostões que custou esta estadia em pleno Chiado com vista para o Tejo: pelas 37 noites no hotel de 5 estrelas, a Global Media desembolsou 9.259,73 euros, ou seja, tendo a factura subido para quase 11 mil euros por via da viagem ao Dubai que custou quase 1.700 euros. O PÁGINA UM sabe que havia uma opção mais em conta, uma vez que, segundo se apurou, existe uma parceria entre este grupo de media e os hotéis Vila Galé. A aprovação para este pagamento da conta de José Pedro Soeiro foi feita depois de este accionista ter reocupado o cargo de administrador da Global Media em 19 de Fevereiro.


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  • Cascais: Carlos Carreiras vai ter de provar que refeições de 233 mil euros foram entregues aos refugiados ucranianos

    Cascais: Carlos Carreiras vai ter de provar que refeições de 233 mil euros foram entregues aos refugiados ucranianos

    Mais uma recusa, mais um processo em tribunal administrativo, mais uma vitória. Após a recusa da autarquia de Cascais em facultar detalhes sobre o fornecimento de refeições aos centros de refugiados, numa altura em que já quase estava inactivo, o PÁGINA UM recorreu ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra. No processo, o município liderado por Carlos Carreiras acabou por enviar uma única factura sem referência ao número de refeições, adensando ainda mais suspeitas num pagamento a uma empresa de 233 mil euros. A sentença do Tribunal, agora revelada, determina à Câmara a entrega de toda a documentação ou a assumpção da sua inexistência. Neste último caso, se não houver provas, revelar-se-á então uma situação de ainda maior gravidade: a possibilidade de fazer ajustes directos de centenas de milhares de euros em alimentação sem guardar qualquer prova da sua entrega e consumo.


    A Câmara Municipal de Cascais foi intimada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a entregar ao PÁGINA UM as cópias de todas as requisições e provas diárias de entrega de alimentos fornecidos pela empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar nos centros de refugiados ucranianos no último trimestre do ano passado.

    A sentença da juíza Mafalda Andrade concede um prazo de 10 dias para o cumprimento dessa obrigação. Esta é mais uma vitória do PÁGINA UM em prol da transparência da Administração Pública, uma das bandeira do jornal desde a sua criação, contando com o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO.

    a pile of fish sitting on top of a pile of ice

    Em causa está os moldes de execução e um contrato por ajuste directo no valor de 250 mil euros – o terceiro em dois anos para o mesmo fim – que a autarquia de Cascais sempre recusou dar informações ao PÁGINA UM, obrigando assim a mais uma intervenção junto dos tribunais administrativos para quebrar o manto de obscurantismo.

    Durante o processo de intimação, e por pressão do Tribunal a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras acabou por enviar ao PÁGINA UM apenas uma única factura e ordem de pagamento respectivo que mais adensa ainda as suspeitas sobre o efectivo cumprimento do contrato, ou seja, se houve ou não entrega de alimentos nos centros de refugiados ucranianos, que estavam, soube o PÁGINA UM, praticamente desactivados.

    Com efeito, ao invés daquilo que seria expectável num contrato deste género – e contrariando o clausulado que impedia pagamentos antecipados –, a Câmara de Cascais aceitou da ICA, com que já teve outras relações comerciais, uma factura com o valor contratual quase na íntegra  apenas dois dias após o ajuste directo, tendo o pagamento sido concretizado ainda no prazo de vigência.

    green trees under white clouds and blue sky during daytime

    A factura tinha um valor total de 232.799,69 euros, mas sem explicitar o número de refeições nem a sua tipologia nem o número de beneficiários nem as condições de entrega. Na referida factura surge apenas a referência “Serviço Refeição – Almoços aos Refugiados” com a quantidade de “1 UN” [uma unidade], com um “Preço Unitário” de 189.268,04 euros, a que acresceu IVA a 23%. Se foram apenas almoços a serem fornecidos, e se se estipulasse um preço unitário de 10 euros, estaríamos perante mais de 23.000 refeições, o que, distribuídas pelo prazo do contrato, daria quase 260 refeições por dia.

    Relembre-se que numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro do ano passado , Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento em Cascais, então existentes, estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”. Ou seja, perante a postura da Câmara de Cascais ignora-se quem comeu, e sobretudo quantas pessoas comeram refeições no valor de 232.799,69 euros supostamente entregues pela ICA entre 26 de Setembro e 26 de Dezembro de 2023. E ignora-se sobretudo quem entregou e quem recebeu, porque a autarquia não quer revelar guias de remessa e de recepção, e quis mesmo que o Tribunal Administrativo de Sintra não a obrigasse a revelar dando por encerrada a lide com a simples entrega de uma factura e de uma ordem de pagamento.

    Porém, como a inexistência de guias de remessa ou outros documentos que provem a entrega diária constituiria uma violação grave na gestão autárquica, o PÁGINA UM insistiu no desejo de ter acesso a esses documentos, bem como todas as comunicações de situações imprevistas e de todas as intervenções do gestor do contrato, direito que foi assegurado na sentença.

    A juíza esclarece também que se algum dos documentos efectivamente não existir, a autarquia de Carlos Carreiras terá de explicitar esse facto, o que a ocorrer levantaria questões legais de enorme gravidade: o pagamento de uma prestação de serviços sem quaisquer provas da execução.

    Note-se que, no âmbito desta intimação, o PÁGINA UM também pedira elementos sobre um contrato entre a Câmara de Cascais e o Modelo Continente também para o fornecimento de alimentos e de bens de higiene para os centros de refugiados, cujos preços no caderno de encargos estavam hiperinflacionados, ou seja, o contrato previa a compra de produtos no valor de 180 mil euros mas que custavam, de facto, apenas 14 mil. Neste caso, e na sequência de uma notícia do PÁGINA UM em Outubro do ano passado, a autarquia admitiu no Tribunal Administrativo de Sintra que afinal nunca houve qualquer compra.


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  • Chuva de milhões em publicidade: ‘Isto é a Santa Casa da Misericórdia’ (de Lisboa)

    Chuva de milhões em publicidade: ‘Isto é a Santa Casa da Misericórdia’ (de Lisboa)

    Envolta em polémicas com investimentos ruinosos no Brasil, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pode, ironicamente, servir para livrar da ruína algumas empresas de media em Portugal. Nas últimas semanas, o PÁGINA UM detectou 19 contratos (inéditos no Portal Base) com empresas de media e de marketing digital que totalizam, por agora, mais de 5,5 milhões de euros. Quem, por agora, mais festeja é a Global Media, que vai receber 820 mil euros em publicidade até ao final do ano. E um dos seus administradores, Rui Rodrigues (conhecido por ‘Piratinha do Ar’), encaixará mais 600 mil euros por via de uma empresa de marketing que detém. A SCML não respondeu às questões do PÁGINA UM, ignorando-se assim os critérios para a definição dos montantes e sobretudo das empresas escolhidas, entre as quais está una rádio de Luís Montez, que integra a Música no Coração, sem contas apresentadas em 2022 e que no ano anterior estava em falência técnica com capitais próprios negativos de 6,2 milhões de euros. Para a imprensa, este ano a SCML vai mesmo ser ‘a santa casa da misericórdia’.


    No meio de convulsões relacionadas com o fiasco do projecto de internacionalização de jogos no Brasil – com prejuízos que podem ultrapassar os 50 milhões de euros –, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) decidiu dar uma «mãozinha” um restrito número de grupos de empresas de media e de comunicação, garantindo-lhes receitas publicitárias de mais de 5,5 milhões de euros em campanhas a desenvolver durante este ano. De acordo com o Portal Base, a plataforma da contratação pública, é a primeira vez que esta instituição usa este modelo.

    Embora a provedoria da SCML, liderada por Ana Jorge, não tenha respondido a um conjunto de questões do PÁGINA UM, no último mês foram celebrados 19 contratos de serviços de publicidade no valor totak de 4.496.400 euros, o que incluindo IVA faz disparar a factura para cima dos 5,5 milhões de euros. De entre as empresas beneficiadas, encontram-se oito empresas que trabalham sobretudo em marketing digital, sendo que a Mol 2 será a que mais receberá (600 mil euros). Esta empresa de publicidade e marketing é detida por Rui Manuel da Costa Rodrigues, actual administrador da Global Media (dona do Diário de Notícias e Jornal de Notícias), que ficou conhecido como ‘Piratinha do Ar’, depois de em 1980, aos 16 anos, ter desviado um avião da TAP para Madrid.

    Ana Jorge, ao centro, provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

    Com um pouco menos vão ficar a Quinta Avenida (525 mil euros). As restantes empresas de marketing beneficiadas pela SCML – ignorando-se porque foram estas estas as escolhidas e não outras – são a Netscreen (250 mil euros), a Kwanko (130 mil euros), a Filomena Moreira Lda. e a ADF Network (100 mil euros, cada), a Clickprofit (60 mil euros) e a Azerion Portugal (50 mil euros)

    Quantas às empresas de media, sem se conhecer também as razões da escolha e sobretudo os montantes, a principal beneficiada é a sucursal portuguesa do grupo alemão Bauer Media, dona da Rádio Comercial, M80, Cidade FM, Smooth FM e Batida FM. Prometidas estão, desde já, 766 mil euros em publicidade aos jogos da SCML.

    Contudo, em termos de grupo de media é a Global Media que pode ‘gritar bingo’. Directamente para o grupo liderado por Marco Galinha, que vive uma situação financeira catastrófica, a SCML vai entregar publicidade no valor de 560 mil, mas pode também incluir mais 260 mil euros a receber da sua subsidiária Rádio Notícias, que gere a TSF. Deste modo, a Global Media encaixará da instituição liderada pela antiga ministra socialista da Saúde um total de 820 mil euros. E então o seu administrador Rui Manuel da Costa Rodrigues só pode tecer loas, por via das verbas a receber da Mol 2.

    A distribuição da maior fatia à Global Media não deixa de surpreender ainda mais tendo em conta também a circulação dos seus principais diários, mesmo incluindo a componente digital. Por exemplo, a Impresa ‘só’ vai receber 350 mil euros. Este montante incluirá, em princípio, apenas os títulos da imprensa escrita, uma vez que a SIC é gerida por uma empresa própria. Como a SCML não quis revelar se houve mais contratos ainda não publicados no Portal Base, ignora-se se o grupo de media fundado por Pinto Balsemão terá mais razões para agradecer a bondade da SCML.

    Também por agora não se sabe se a componente de publicidade televisiva irá beneficiar os canais da Media Capital, designadamente a TVI e a CNN Portugal. O único contrato já celebrado entre a SCML e o grupo liderado por Mário Ferreira envolve a Media Capital Digital, que é proprietária da TVI Player (serviço audiovisual a pedido) e os sites noticiosos MaisFutebol, Away Magazine e V Versa por outro lado. Daqui já ficam garantidos até ao fim do ano 300 mil euros.

    De modo algo surpreendente, sobretudo pelo fraco alcance da rádio em questão e por envolver indirectamente uma empresa com dívidas ao Estado, é o contrato para publicidade que a SCML celebrou com a empresa da Rádio Amália, que envolve o pagamento de 176.800 euros, que representa 40% dos rendimentos que obteve em 2022. Esta empresa – a Rádio Nova Loures – pertence a Luís Montez, através da Música no Coração que, como o PÁGINA UM já revelou, nem apresentou contas em 2022, estando no ano anterior com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros.

    Luís Montez saiu-se duplamente beneficiado neste selecto grupo de adjudicatários para prestação de serviços de publicidade á SCML. Com efeito, a SIRS – a empresa que detém a Rádio Nova, onde ele possui 25% do capital, sendo que outro tanto é de Álvaro Covões e 50% pertence ao Público – vai receber até ao final do ano por serviços de publicidade um total de 62.400 euros.

    Marco Galinha, chairman da Global Media. Para a empresa em dificuldades económicas, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa vai mesmo ser ‘a santa casa da misericórdia’ entregando 820 mil euros em publicidade até ao final de 2024.

    Quem também não se pode queixar é a Observador on Time, dona do jornal digital Observador e da Rádio Observador, que conseguiu um contrato de publicidade no valor de 151.200 euros. Qual a razão para os contratos destas duas últimas empresas não estarem arredondados aos milhares de euros é uma incógnita, tal como se ignora a formação de preços. E também a escolha dos outros órgãos de comunicação social que ficaram, porém, apenas com migalhas.

    Assim, a Time Out só vai ver 20 mil euros em publicidade da SCML, enquanto a Newsplex (proprietária do i e do Sol) e a Parem as Máquinas (proprietária do Tal&Qual) se terão de contentar com 15 mil euros, cada, mesmo assim mais do que a Multipublicações – proprietária da Marketeer e da Executive Digest, entre outros títulos –, a quem se destinou 5.000 euros. O PÁGINA UM vai continuar a acompanhar este assunto, até para confirmar se as empresas de televisão e a Medialivre (dona do Correio da Manhã e da CMTV) foram excluídas deste pacote, bem como os órgãos de comunicação social regional. Saliente-se que a Lei da Publicidade Institucional do Estado prevê que as entidades devem investir em “órgãos de comunicação social regionais e locais uma percentagem não inferior a 25% do custo global previsto de cada campanha de publicidade institucional do Estado de valor unitário igual ou superior a 5.000 euros”.


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  • Jornal Público aceita truque contratual para financiar notícias de ambiente ‘prêt-à-porter’

    Jornal Público aceita truque contratual para financiar notícias de ambiente ‘prêt-à-porter’

    A troco de mais 90 mil euros, o jornal Público repetiu a dose: disponibiliza-se, pelo segundo ano consecutivo, a fazer obrigatoriamente 26 artigos jornalísticos na secção ambiental Azul sobre as actividades da Biopolis, um consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier. Apesar de o Público jurar independência, nos contratos ainda é usado um truque de legalidade duvidosa. Como a Biopolis está abrangida pelo Código dos Contratos Públicos, e não poderia entregar 90 mil euros ‘à Lagarère’, tem-se usado uma norma de excepção para fundamentar ajustes directos alegando-se estarem em causa direitos de propriedade intelectual apenas detidos pelo Público. Ora, muito estranhos serão esses “direitos intelectuais”, uma vez que os artigos nem sequer foram ainda escritos.


    Pelo segundo ano consecutivo, o jornal Público celebrou um contrato de prestação de serviços com a Associação Biopolis com a obrigação de publicar “26 (vinte e seis) artigos editoriais” sobre projectos na área do ambiente e sustentabilidade deste consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier.

    A troco de 90 mil euros, o Público tem também a obrigação de formar um cientista, contratualmente ligado á Biopolis, “no domínio da actividade jornalística, através da sua integração na equipa editorial do AZUL”, a secção de ambiente deste jornal, “na qualidade de jornalista estagiário”. Tal como no ano passado, onde também recebeu 90 mil euros, o contrato garante a independência editorial, apesar da gestão do contrato ser seguida, no Público, pelo responsável da Área Financeira e Circulação.

    man in red and black outfit air diving

    Além das questões deontológicas na criação de um ‘pronto-a-vestir noticioso” – onde entidades externas têm, pelo menos, o poder expresso de indicar o número mínimo de notícias sobre determinados temas que disponibilizam numa espécie de menu, obrigando contratualmente o jornal a publicar –, o contrato celebrado entre as partes por ajuste directo fundamenta-se numa norma do Código dos Contratos Públicos que merece muitas dúvidas legais.

    Com efeito, mesmo sendo uma associação científica de direito privado, a Biopolis está abrangida pelas normas da contratação pública, pelo que para um contrato desta natureza e para este montante (90 mil euros) seria necessário abrir um concurso ou então encontrar uma excepção no Código dos Contratos Públicos. Ora, sucede que o Público – que integra o universo da imprensa que tem como funções detectar ‘truques’ nas contratações públicas – aceitou que o ajuste directo se fundamentasse numa excepção que dificilmente se encaixa nos serviços que os seus jornalistas serão obrigados a prestar para cumprir o contrato pecuniário com a Biopolis.

    Para a escolha do ajuste directo, a Biopolis e a empresa gestora do Público – a Público Comunicações, do Grupo Sonae – consideraram que os serviços em causa (publicar 26 artigos jornalísticos, ainda não escritos, e formar um jornalista – “só podiam ser confiad[o]s” ao Público, uma vez que se seria “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”. Esta norma de aplicabilidade absurda neste tipo de serviços – não apenas por haver mais entidades capazes de escrever 26 artigos jornalísticos como por não se poder considerar a existência de “propriedade intelectual” para textos ainda não escritos – já havia sido usada no ano passado para mais um contrato similar de 90 mil euros.

    David Pontes, director do Público.

    Estes dois contratos servem, na verdade, para enquadrar, de forma pouco ortodoxa, o desejo de a Biopolis apoiar o AZUL, projecto editorial do Público nascido em Abril de 2022 apresentado então como modelo de jornalismo independente dedicado em exclusivo ao Ambiente. Como não pode, como sucede com uma empresa privada, fazer um patrocínio directo, enquadrar tudo num contrato de prestação de serviços com um objecto concreto (destacando-se os 26 artigos) foi o ‘truque’ escolhido.

    Desde a sua fundação, integrado na edição digital do Público, os responsáveis do Azul diziam, no respectivo estatuto editorial, ser um projecto de jornalismo de causas ambientais – com a biodiversidade, a sustentabilidade e a crise climática como bandeiras –, e que, estando aberto à sociedade civil, contava “com o apoio de parceiros comprometidos com agenda do ambiente para financiar a sua equipa e a sua operação”.

    Na linha da frente, como parceiros, foram então destacadas quatro entidades: a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biopolis , a Lipor – a empresa pública de tratamento de resíduos do Grande Porto, cuja central de incineração é um dos focos mais importantes de emissão de dioxinas em Portugal – e a Sociedade Ponto Verde – uma das empresas gestoras de resíduos de embalagem.

    Para garantir a execução do Azul, a direcção editorial do Público – então comandada por Manuel Carvalho – destacou, além de duas experientes jornalistas da área da Ciência, como editoras (Teresa Firmino e Andrea Cunha Freitas), uma equipa de 10 pessoas, das quais seis jornalistas, o que implicaria a impossibilidade de elaboração de conteúdos comerciais ou a subordinação a entidade externas.

    Porém, apesar de o Público ter garantido que o Azul seguiria “um modelo de cooperação e mecenato cada vez mais frequente em projectos jornalísticos na Europa e nos Estados Unidos”, e que “os parceiros e o jornal reconhecem que uma condição crítica para o sucesso” deste projecto editorial “passa[ria] pela transparência e pelo respeito integral das regras profissionais e deontológicas do jornalismo consagradas na lei”, a realidade mostra-se bem diferente.

    Em Outubro do ano passado, numa missiva de direito de resposta, ao abrigo da Lei da Imprensa, em sequência de anterior artigo do PÁGINA UM, o director do Público, David Pontes, garantia que a secção Azul e o seu jornal “pautam-se pela total transparência na relação com os seus parceiros, não tendo qualquer problema em revelar os contratos que firmam com eles, o que irão fazer muito em breve em local próprio”. O “muito em breve” prolonga-se até agora, e pelo menos no local próprio – a secção do AZUL – não há o mínimo sinal dos termos das parcerias nem de valores de patrocínios das outras três entidades assumidamente identificadas: Fundação Calouste Gulbenkian, Lipor e Sociedade Ponto Verde.

    white spoon

    Com efeito, embora ainda sejam desconhecidos os protocolos com três dos alegados mecenas conhecidos do Azul – apesar de solicitados pelo PÁGINA UM à direcção editorial do Público –, sabe-se agora que a Biopolis fez afinal um contrato de prestação de serviços com a administração do jornal, pelo menos no período compreendido entre Março e Agosto deste ano.

    Tal como referia o contrato do ano passado, este agora assinado na passada terça-feira também garante total independência jornalística e salienta que os textos alvo da prestação de serviços serão identificados com a referência “promovido por BIOPOLIS”. Mas se for como o contrato de 2023, esta promessa no contrato deste ano será ‘para inglês ver’: se se pesquisar no Google por essa expressão o único resultado é a notícia do PÁGINA UM de Junho do ano passado que explicitava essa ‘promessa’ contratual, o que coloca em causa a própria concretização de um contrato público.


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  • Global Media está à beira do colapso

    Global Media está à beira do colapso

    O PÁGINA UM teve acesso às contas preliminares do ano passado da Global Media, apresentadas ao accionistas em Fevereiro passado, e o cenário é mais do que negro: prejuízos de 7,2 milhões de euros, quebra de receitas de quase 10% e uma contínua ‘vampirização’ dos activos que continuam a minguar sem parança, estando suportados numa perigosa engenharia financeira, que agora usa o goodwill como principal valor. O grupo de media, que se prepara para ‘transferir’, sem se saber em que condições, o Jornal de Notícias e a TSF para uma empresa recém-criada por empresários do Norte, já nem crédito na banca tem e sobrevive com ‘calotes’ aos fornecedores, dívidas ao Estado e empréstimos das suas subsidiárias e dos accionistas. A culpa está longe de ser do World Opportunity Fund, embora a instabilidade nos três meses que durou o ‘mandato’ de José Paulo Fafe como CEO do grupo de media não ajudou nada.


    A Global Media está à beira do colapso. As contas preliminares de 2023 deste grupo de media, que foram apresentadas aos accionistas activos do grupo (Marcos Galinha, Kevin Ho e José Pedro Soeiro) na Assembleia Geral em 19 de Fevereiro, a que o PÁGINA UM teve acesso, mostram um cenário económico aterrador e revelam também algumas práticas de ‘engenharia financeira’ em anos anteriores. E permitem também concluir que o agravamento da situação financeira, já bastante visível nos meses anteriores ao breve controlo da Global Media pelo World Opportunity Fund (que se iniciou em Setembro de 2023), ainda se intensificou com a suspensão da conta caucionada pelo Banco Atlântico que causou um colapso de tesouraria, atrasando o pagamento de salários e subsídio de Natal aos trabalhadores. Só este estranho ‘episódio’ – ademais sabendo-se que o presidente da Assembleia Geral da Global Media e do Banco Atlântico é a mesma pessoa – provocou um impacto negativo de 588 mil euros.   

    Mas não foi essa, obviamente, a causa do descalabro de um grupo de media que soma agora, desde 2017, prejuízos acumulados de 50 milhões de euros. O ano passado contribui com mais 7,2 milhões de euros, o pior ano desde a era Galinha.

    Marco Galinha, chairman da Global Media, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa.

    Os rendimentos, sobretudo vendas e serviços prestados, deste grupo de media – que tem o Jornal de Notícias, Diário de Notícias, O Jogo e a TSF como principais órgãos de comunicação social – decaíram 9% face a 2022, tendo-se situado nos 28,5 milhões de euros. Porém, comparando com 2019 – ano anterior à entrada do empresário Marco Galinha, que se mantém como chairman do grupo –, os rendimentos de 2022 registam uma queda de quase 24%.

    Em contraste, ou em consequência, o processo de ‘vampirização’ da Global Media continua, com os activos a minguarem. Confrontando também com 2019 – antes de Marco Galinha ter comprado por 4 milhões de euros as participações então detidas pelo BCP e Novo Banco –, a Global Media viu perder 23,5 milhões de euros em activos, com a agravante de grande parte desse montante (quase 30,5 milhões de euros) ser de valor real duvidoso por ser ‘goodwill’.

    Só no ano passado, face a 2023, os activos diminuíram 7,3 milhões de euros, dos quais 6,7 milhões desde a entrada do World Opportunity Fund no controlo do grupo de media. Mas em abono da verdade esse descalabro não se pode atribuir ao polémico e curto ‘mandato’ de José Paulo Fafe. Cerca de 1,7 milhões de perda de activos resultou da assumpção das perdas de negócios ruinosos ainda do tempo de Joaquim Oliveira. A Global Media, no relatório preliminar, diz que “a diminuição verificada de 1,966 M€ [milhões de euros] deve-se ao write off [redução do valor reconhecido] das participações acessórias na GM Macau (1,245 M€) e Tagus Media (721 K€), acrescentando que “foram também reconhecidas perdas de imparidade referentes aos valores a receber destas entidades no valor total de 734 K€”. Ou seja, tudo somado, este negócio na área do jogo online causou um impacto total negativo de 2,7 milhões de euros. Acrescem também perdas assumidas na participação na Açormedia – que publica o Açoriano Ocidental – de 747 mil euros.

    José Paulo Fafe foi CEO da Global Media entre Setembro do ano passado e finais de Janeiro deste ano.

    Por outro lado, a Global Media vendeu também a sede do antigo jornal Ocasião por 900 mil euros, que até originou uma mais valia contabilística de 430 mil euros, mas, sabe o PÁGINA UM, este terá sido um negócio onde foi Marco Galinha a entrar com o investimento, pelo que servirá, em princípio, para amortizar os empréstimo que o dono do Grupo Bel tem concedido ao grupo de media.

    Um outro impacto desfavorável no balanço de 2023 tem a ver com um ‘truque contabilístico’ usado no ano anterior. A gestão de Marco Galinha decidiu colocar cerca de 2 milhões de euros no balanço de 2022 como “activos por impostos diferidos”, que basicamente são as quantias de impostos sobre o rendimento recuperáveis em períodos futuros, designadamente reporte de perdas fiscais não utilizadas. Porém, contabilisticamente, essa valorização apenas se pode assumir se os prejuízos de um determinado ano forem conjunturais, o que está longe de ser o caso da Global Media.

    Assim, no relatório preliminar diz-se que “foram desreconhecidos os activos por impostos diferidos relacionados com o reporte de prejuízos por não se encontrarem reunidas as condições previstas no normativo contabilístico para o seu reconhecimento, nomeadamente a ausência de um plano de negócios que preveja a existência de lucros tributáveis futuros que possam ser compensados com esses prejuízos”. Ou seja, a própria Global Media admite que os prejuízos são para continuar.

    Práticas de ‘engenharia financeira’ escondem situação de colapso da Global Media, que pode ainda acelerar se ‘venda’ do Jornal de Notícias e de outros títulos mantiverem o actual passivo.

    Porém, até é pelo lado do passivo que se mostra que a Global Media está presa por arames, e também uma parte do dinheiro dos accionistas. De acordo com a lista discriminada dos detentores do passivo, o Estado surge em destaque com um crédito de 8,3 milhões de euros. A Global Media está abrangida por um regime excepcional de regularização tributária (RERT), mas ignora-se ainda os critérios da sua aplicação, sendo certo que a dívida ao Estado diminuiu quase 2 milhões de euros no ano passado quando em 2022 tinha aumentado cerca de 7 milhões.

    Não é apenas o Estado que tem a perder com o descalabro da Global Media. Além do investimento no capital próprio, os accionistas fizeram empréstimos que já totalizam 11,6 milhões de euros, sendo que 1,5 milhões vieram de Kevin Ho, um pouco mais de 1,6 milhões de José Pedro Soeiro e 8,5 milhões da Páginas Civilizadas, onde se insere o investimento do World Opportunity Fund. O fundo das Bahamas terá feito um empréstimo à Global Media a partir de Setembro do ano passado de cerca de 2,3 milhões de euros, e esta será uma das questões que está a dificultar a sua saída do negócios dos media em Portugal, após a suspensão dos direitos decretada no mês passado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Além dos empréstimos dos accionistas, uma empresa subsidiária, a Naveprinter, viu-se na contingência de emprestar dinheiro à ‘mãe’. A dívida da Global Media á Naveprinter totalizava no final do ano passado quase 6,7 milhões de euros, um crédito que, a não ser pago, colocará a empresa de impressão de jornais em maus lençóis. A Naveprinter – que em 2022 e 2023 acumulou prejuízos de 1,2 milhões de euros – tem mais de metade do seu activo ‘empatado’ com o empréstimo à Global Media. Ou seja, se a ‘mãe’ cair, logo a seguir cai a ‘filha’.

    Naveprinter: gráfica da Global Media tem metade do seu activo como empréstimo à ‘mãe’.

    Também outra pequena empresa do grupo de media, a Notícias Direct, teve também de emprestar dinheiro, cerca de um milhão de euros, sendo bem demonstrativo das dificuldades que a Global Media tem em aceder ao crédito bancário, que neste momento é de apenas 312 mil euros, ou seja, 0,7% de todo o passivo.

    Quanto a dívidas ao fornecedores, o montante ultrapassava no final de Dezembro os 7,2 milhões de euros, a que acresciam mais 6,5 milhões de euros na rubrica ‘outras contas a pagar’. Uma outra rubrica relevante no passivo referem-se a contratos de locação cuja dívida ultrapassa os 1,9 milhões de euros.

    Neste contexto, maiores sombras se colocam na própria existência da Global Media caso se avance, sem contemplar a assumpção do passivo, com a venda dos títulos ainda lucrativos do grupo, tal como o Jornal de Notícias, porque tal vai representar uma saída de receitas significativas.

    O PÁGINA UM tentou obter um comentário da actual administração da Global Media, sem sucesso.


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  • Crime sem castigo

    Crime sem castigo


    Três anos depois de um fogo em 1986 que vitimou 13 bombeiros e três civis — ainda hoje uma das piores tragédias causadas pelos incêndios rurais —, dois jornalistas do semanário O Jornal acompanharam as acções de combate na região Centro.


    Começa o Verão e o fogo desatina a doer.

    Rui Araújo atirou-se às chamas, e às causas delas. Aos meios de prevenção, existentes ou não. Esquadrinhou o cartório, à procura das culpas.

    Não há Verão sem que os fogos devastem hectares e mais hectares de floresta. E surge, irremediavelmente, a polémica de sempre: quem, afinal, tem a culpa? O facto é que as soluções para reduzir a dimensão da guerra do fogo existem. E não se limitam a uma questão de meios… ou de acusações inconsistentes.


    «É uma época estival fértil em fogos florestais». Esta, é a lacónica expressão dos técnicos. Já lá vai o tempo das longas metáforas sobre o penoso — e banal — psicodrama do fogo ou, mais prosaicamente, da guerra do fogo. É sempre a mesma coisa: condições climatéricas desfavoráveis, baixa humidade dos solos e alguma inconsciência das pessoas é quanto basta para que se desenhe o cenário rubro dos «rotativos», da desolação fumegante, imensa, dos olhares resignados. É o ritual do fogo.

    Capa da reportagem de Rui Araújo (texto) e Sofia Pinto Coelho (fotos)

    10 de Julho (de 1989) — Águeda, Região Centro.

    23:10.

    O bombeiro Raúl Fradique engata a «terceira». Desliga a sirene. Olha de soslaio para o comandante António Neves dos Santos — o chefe operacional da zona Centro — como que a confirmar implicitamente a iniciativa e prega os olhos na estrada de Sever do Vouga. O volume das comunicações rádio aumenta.

    — Não consigo vislumbrar o clarão! Mas vamos tentar apagar isto…

    — Isto é uma baralhada, pá. Vou passar a canal 3.

    O 2 está na mesma! Machado, estás à escuta? É para dizeres ao comandante de Sever do Vouga para estar aí no quartel para fazermos o ponto da situação

    A corrida continua. Veloz. Meia dúzia de casas do lado esquerdo da estrada. Mais à frente o café «Progresso» de portas trancadas.

    O painel «Carvoeiro». E o breu da noite, entrecortado por «flashes» azulados do «rotativo». O comandante Neves dos Santos baixa ligeiramente o som do rádio e mete conversa.

    — Ainda ontem tive dois fogos ocasionados por queimadas, que são proibidas. Mas demos cabo deles num instante…

    — E este fogo aqui na serra. Acidental ou criminoso?

    — É difícil saber se é criminoso ou não… A única certeza é que em mais de 90% dos fogos há intervenção humana…

    O rádio crepita. Há mais uma chamada. Urgente. As corporações de Vale de Cambra, Aveiro Novos, Aveiro Velhos, Vagos, Ílhavo, Oliveira do Bairro e Sever do Vouga já concentraram homens e material lá para as bandas do Lugar do Coval, Mouta, Campo de Arca e até Agros. O fogo está a avançar — e depressa — para a Serra do Arestal. A coluna de Águeda acelera.

    Início da reportagem de Rui Araújo publicada n’O Jornal Ilustrado. Foto: ©Sofia Pinto Coelho

    1986 nunca mais!

    O comandante Neves dos Santos controla quatro concelhos — 25% da área florestal com árvores de crescimento rápido — da Região Centro. Uma das regiões mais problemáticas do País.

    «Na noite de 13 de Junho do ano de 1986, sensivelmente pelas 22:00 declarou-se um foco de incêndio florestal próximo de São João do Monte, concelho de Tondela. Era o anunciar de mais um Verão em nada diferente dos anteriores. Mas não era simplesmente outro fogo florestal que desceria as encostas encrespadas na Serra do Caramulo para se extinguir às proximidades de Águeda». Uma área de 6.078 hectares foi rapidamente consumida pelas chamas e a calamidade tinha-se transformado em catástrofe: 16 bombeiros voluntários e civis tinham perecido. Resultado: a Câmara de Águeda elaborou a «anatomia da tragédia», efectuou um pedido de auxílio extraordinário à CEE e desenvolveu um sistema de prevenção ou de «Defesa Florestal Contra Incêndios». Um projecto piloto que está a ser aplicado unicamente na freguesia de Castanheira do Vouga. Dada a sua limitação, novos fogos eclodiram numa serra propícia à devastação das chamas.

    Intenso parcelamento da propriedade. Abandono das culturas tradicionais. Florestação intensiva — pinheiro, mas sobretudo Eucaliptus globulus, explorados em talhadia ou, por outras palavras, em períodos entre 8 e 10 anos. Êxodo e envelhecimento da população. Uma situação deveras vulgar.

    Existem em Portugal condições naturais propícias à deflagração de incêndios florestais. Uma realidade tanto mais preocupante quanto infraestruturas de acesso à floresta, meios de prevenção, detecção e combate a incêndios ainda são em muitos casos um mito. Toda a gente o reconhece. População, bombeiros e Governo. Um extenso relatório elaborado há dois anos pelo «Grupo de Trabalho Interministerial para a Preservação da Floresta» aponta os pontos mais significativos de toda esta problemática: «Os meios de detecção não são, nem em número nem em qualidade, os necessários para uma localização rápida e precisa do foco de incêndio. Os patrulhamentos e a fiscalização das matas, por falta de meios humanos e materiais, igualmente têm deficiências e estão aquém das necessidades. O ataque aos fogos ainda está longe de, devido a carências de meios humanos e de equipamento actualizado, ter aquela prontidão e eficiência exigível para este tipo de calamidade. São várias as entidades a intervir no processo de Prevenção, Detecção e Combate aos Incêndios (…), também se verifica que a legislação (…) está necessitada de uma revisão.» (1)

    — A falta de ordenamento florestal é a principal causa dos incêndios em Portugal! Uma riqueza que levou anos a construir desaparece em meia dúzia de horas. É dramático. Talvez fosse interessante calcular qual a percentagem de terra que ardeu substituída por eucalipto… — considera Arménio de Figueiredo, um engenheiro do partido Os Verdes. 

    Um outro engenheiro, João Soares, director-geral das Florestas, contesta. «O ordenamento florestal só será conseguido se à medida que se forem definindo normas técnicas aconselháveis for possível oferecer aos produtores florestais incentivos financeiros e significativos que paguem efectivamente o diferencial financeiro hoje existente entre as culturas florestais ecologicamente pobres e financeiramente ricas e as culturas ecologicamente ricas e financeiramente pobres».

    Se o papel do Estado é, teoricamente, importante o aspecto financeiro é uma realidade essencial. Mesmo se os fogos não são provocados por quel deles beneficia. Pelo menos, é a opinião do Governo. «Não está demonstrada a existência de organizações movidas por interesses económicos marginais, que através de interpostos indivíduos lancem o fogo às matas. Todavia, verifica-se que há fogos de origem criminosa, que têm motivações de interesse económico, tais como a obtenção de madeiras mais baratas, obtenção de áreas de/para plantio de eucalipto, interesses urbanísticos, etc. Outros fogos de origem criminosa derivam da intenção de obter pastagens, de acções de vingança, do gosto de ver arder, etc.»

    Incendiário: sem rosto mas com perfil

    Uma coisa é certa, porém: praticamente todos os fogos têm origem no homem. E também não é menos verdade que 10.000 fogos por ano é demais para ser atribuído a uma rede organizada. O lucro (negócio ou seguro), a doença psíquica (crime gratuito), o descuido ou a vingança seriam as principais causas. A Polícia Judiciária — de resto bastante activa em todo este processo — até já retratou num estudo sobre «Fogo Posto Florestal» o perfil do criminoso: «É homem, relativamente jovem, solteiro e sem encargos familiares, de baixo estrato social e económico, tem um nível de instrução rudimentar, é natural e residente da área onde comete o crime, actua só aos fins-de-semana, durante o dia, utiliza meios banais, confessa o delito e o modus operandi e não tem antecedentes criminais!»

    Quem incendiar florestas. matas ou arvoredos é punido com prisão de 3 a 10 anos. É a sanção prevista na Lei 19/86 de 19 de Julho. Se resultar perigo para a vida ou integridade física de outra pessoa a pena aplicável será de 4 a 12 anos. A morte de uma ou mais pessoas é punida com 5 a 15 anos de cadeia. Mas são raros os incendiários capturados… (2)

    Mouta.

    00:47. 

    A aldeia — umas 20 e tal almas — ainda está mais em polvorosa. Agora que o comandante Neves dos Santos — acompanhado do responsável da Protecção Civil — e a coluna de bombeiros invadiram a aldeia. Um imenso clarão avermelhado quebra a monotonia de uma serra de contornos indefinidos.

    — Há 13 anos houve aqui um fogo. Fez a mesma ronda que agora este. Levou milho, carqueira e tudo. As casas ficaram graças a nós e aos bombeiros. O fogo não demorou meia hora do Coval até aqui… — conta a correr, mas sem papas na língua Maria Custódia Sabino.

    — E sabe como apareceu o fogo?

    — Então, não sei! Foi ateado em Campo de Arca.

    — E este agora também foi fogo posto! O local é monte. Não há lá ninguém… Foi fogo posto. — grita o ancião Manuel Joaquim Dias. Um homem simples que moureja de Sol a Sol. E que ousa chamar as coisas pelo seu nome.

    — Provas, não as há?

    O velhote de Mouta desanda. Já falou de mais. Uma mulher balbucia palavras que não entendo. Um bombeiro voluntário de Sever do Vouga aproveita a pausa, aproxima-se e mete conversa. A barafunda é tal que ainda nem jantou.

    O fotogénico «rotativo» do Toyota 4X4 do Comandante Operacional começa a girar. Há novidade. O motor arranca. O probela está, aparentemente, resolvido em Mouta. Já Torgueira é outra história. A aldeia tem uma casa, uma família. E as chamas cada vez mais perto. Se ainda lá não chegaram…

    O cansaço da impotência… Foto: ©Sofia Pinto Coelho

    «Eles querem acabar com a floresta…»

    Curvas e mais curvas. Arvoredo. E um jipe da GNR estacionado à beira da estrada. Matrícula: J 380. Ou J 390. Pouco importa. A velocidade não permite apreender tanto detalhe. O objectivo é alcançar o mais rapidamente possível Torgueira. Cortamos à direita. Um caminho de terra serve de estrada que não há. Acabamos por avistar uma casa com uma motorizada ao lado da entrada, uns quilómetros mais adiante. Luzes apagadas. O único sinal da vida que por ali corre é um cão que ladra. E é bem capaz de morder.

    A sirene toca. Uma mulher aproxima-se, lentamente, da patrulha. É nova e bonita. O penteado desfeito e os brincos vistosos dão-lhe um ar de Madonna. A rapariga dá as boas noites. Fátima. É Fátima e mais nada. E sorri. Aconchega-se no casaco de malha azul às riscas. E olha para o monte da desolação. Mora ali, longe de tudo e de todos a pensar na aldeia. Em casa, tem os tios, o filho, cinco vacas leiteiras e três cachorros — mais o pequenino. A família está com o resto do povo da serra uma meia légua mais acima. Estão todos a combater o fogo. É o costume. Os bombeiros chegam quando chegam. E, às vezes, aparecem tarde e a más horas… Fátima quedou-se com o filho.

    — Mas, então, para onde é que eu hei-de ir? O que é que vale eu ter medo? Por acaso até tenho, não pudera ter. O fogo não está assim tão longe. É mais outro fogo posto.

    — Porquê?

    — Começou assim sem mais nem menos. E de noite. Eles querem é acabar com a floresta…

    O caminho até ao fogo está semeado de espinheiras. E de pinheiros bravos. Ainda mal se vê o clarão por causa da encosta. O carreiro é escuro. Os isqueiros acendem-se e apagam-se. Pirilampos. Entre árvores, arbustos e alguma urze. É sempre a subir. Até mergulharmos, subitamente, no espectáculo do fogo. A primeira imagem: os contornos de dois homens a bater na erva incandescente com ramos de pinheiro. Ao lado, uns 10 aldeões assistem, sentados, ao movimento dos homens. Olhares mais exaustos do que angustiados.

    Há um dia que estão ali. O fogo não passa, mas mete-se pela colina abaixo. E desliza ruidosamente até ao rio.

    — Ardeu mais do que da última vez e ainda não se sabe o que é que vai arder mais. — conta Jaime Coutinho. 

    Um dos muitos pequenos rendeiros destas bandas conformado com as agruras da terra. E o povo acena que sim quando o sujeito afiança que logo que as chamas «passarem para o terreno lá mais abaixo, podem ser dominadas».

    — Isto, aqui, até ardia mesmo com a gente cá. Só não arde porque não tem brenha.

    — Está roçado. — diz uma mulher pouco afeita a palavras inúteis.

    — Ali à frente é que não há quem pare o fogo. Tem muita caruma. O fogo agarra-se àquilo e arde… — completa uma vizinha da matrona.

    — A gente desconfia, mas não temos a certeza de quem fez isto. Foi só para fazer mal: inveja e madeira barata… — o comandante Neves dos Santos confirma a banalidade da situação embora a venda de madeira queimada seja mais comum com o eucalipto.

    E voltamos para o jipe. Entre duas comunicações rádio «ataco» o operacional.

    — Isto era inevitável?

    — Este Inverno foi o mais seco dos últimos 60 anos. Tenho povoações no meu concelho sem água. O abastecimento é feito por nós. Este ano vai ser mau. E este fogo é dos piores que há. É impossível atacá-lo. Se não dermos cabo dele no rio Gresso só nos resta esperar.

    O Toyota desgalga a serra. É preciso encontrar um atalho que vá dar ao riacho. Se o fogo passar para a outra margem uma boa parte da serra poderá ser consumida pelas chamas. Seja como for, a situação é problemática.

    — Os fogos não se apagam. Sem que tal represente qualquer menosprezo pela excelente acção da maioria dos bombeiros continuo a sustentar que os fogos florestais não se apagam. Ou se evitam  e considero evitar ser capaz de acorrer nos primeiros 10 minutos depois da eclosão do sinistro ou se circunscrevem. — afiança o engenheiro João Soares, director-geral das Florestas.

    Os soldados da paz confirmam esta tese. E vão mais longe. Os fogos florestais têm tido nos últimos 16 anos um impacto negativo na floresta portuguesa consumindo uma área média por ano superior à que se regenera naturalmente somada com a que é plantada e semeada. O que muita gente não sabe é que a maioria dos grandes fogos tem origem em reacendimentos. Finda a «gigantesca» tarefa da extinção importa ter no local um pequeno dispositivo de bombeiros e um elevado número de pessoas civil (ou militar) fresco.

     Ao fim de sete horas de fogo devíamos mudar os homens todos. E não mudamos. Não temos nunca gente suficiente para acudir…  confessa o comandante Neves dos Santos enquanto o motorista aplica a tracção às quatro rodas.

    O carreiro é íngreme. Há troços onde o jipe mal consegue passar. Os calhaus são muitos. Os troncos baixos. Por debaixo de um pinheiro esquelético perdemos a antena. E a ligação com o exterior. Continuamos. A viagem termina uns metros mais à frente num milheiral. O riacho ainda está bem longe. O fogo vai avançar.

    A «trágica» média do ano é de 86 fogos por dia. A região do país mais afectada é a do Norte com mais de um milhar de incêndios. E 1.300 hectares devastados. Uma área apesar de tudo bem superior à do ano passado. É certo que 1988 foi por diversas razões um ano excepcional.

    Evolução do número de incêndios e da área ardida entre 1983 e 1989 (até Junho)

    Optimismos

    O combate aos incêndios florestais compete às 440 corporações de bombeiros dispersas pelo Continente mais 17 nos Açores, 4 na Madeira e 1 em Macau. Ao todo serão uns 30 mil homens dos quais apenas 2 mil são profissionais (3). Os bombeiros dispõem de 3.650 viaturas de combate a fogos (auto-tanques, auto-escadas, etc.), 2.100 ambulâncias e ainda 500 veículos de socorro. Também existem alguns meios aéreos: dois helicópteros AL III, mas sobretudo um avião C-130 Hercules da Esquadrilha 501, cuja missão é o lançamento de produtos químicos (Phos-chek) retardantes de combustão. As missões são accionadas após solicitação do Centro Coordenador da Lousã para o Comando Operacional da Força Aérea (4).

    Os planos e perspectivas governamentais apontam para um reforço substancial dos meios de combate nos próximos anos. Resta, agora, saber se este optimismo é partilhado pelos homens no terreno…

    Campo dos Mártires da Pátria, Lisboa. 

    A morada do Serviço Nacional de Bombeiros (SNB) é tão somente uma ironia do Destino. A sede do SNB é um local alegre. Um palacete antigo com jardim. Ao cimo da escadaria que dá para o primeiro andar, uma porta de vidro «pintado» reza que S. Marçal é o «advogado dos incêndios». O engenheiro José António Laranjeira — presidente do SNB — confirma. E começa a entrevista.

    — Contesta todo este optimismo oficial apesar de estar na dependência directa do MAI?

    — Os meios humanos de que dispomos são suficientes… Agora, até temos a funcionar 24 horas por dia 287 Grupos Especiais de Primeira Intervenção. Cada um desses grupos é constituído por cinco bombeiros, que dispõem de uma viatura ligeira «todo-o-terreno» com 500 ou 600 litros de água e meios rádio. As brigadas móveis da Direcção-Geral das Florestas e da Guarda Nacional Republicana (GNR)completam este movimento. O SNB é a entidade tutelar dos corpos de bombeiros com atribuições de orientação, coordenação e fiscalização técnica. A elaboração e análise dos riscos é uma das tarefas.

    — Alguém é directamente responsável por esta calamidade que são os fogos?

    — A negligência continua a provocar a maioria dos fogos de florestas. E mais: 50% das saídas dos bombeiros durante 1988 tiveram lugar nos distritos de Braga, Porto, Aveiro e Lisboa. A minha conclusão é que onde há muita gente há muitos fogos. O grande apelo é pedir aos portugueses que aprendam a viver e a respeitar a floresta que ainda temos…

    O engenheiro Laranjeira sabe do que está a falar. Está em contacto com os corpos de bombeiros, o sistema nacional de Protecção Civil, a Direcção-Geral das Florestas e a Comissão Nacional Especializada em Fogos Florestais — onde de resto está representado. A questão dos fogos passa, essencialmente, por estas entidades.

    Uma guerra sem tréguas apesar da escassez de meios… Foto: ©Sofia Pinto Coelho

    Sever do Vouga. 

    02:29. 

    Damos com uma coluna. Três ligeiros e um auto-tanque de Oliveira do Bairro.

    — Isto já está a arder há seis dias. Esta noite ardeu uma área muito grande. Até tivemos helicópteros durante três dias, mas não… O rescaldo é uma coisa danada!

    — Uma viatura está sem gasóleo… e em Montemor uma fábrica de resina está a arder… Comandante Machado chama carro de Comando Operacional…

    — Não é mesmo possível meter um contra-fogo no rio?

    — E chegar lá a baixo? Já andámos por tudo quanto é sítio e não há passagem.

    Os dois homens ainda hesitam em atacar as chamas quando elas atravessarem a estrada, mas abandonam o projecto. A via é estreita e o fogo vem lá de baixo. É dos mais perigosos. Optam por um pedido de apoio aéreo logo que o dia nasça. Vale de Cambra não está longe. E os aero-tanques da Lousã ou da Covilhã também não demoram muito a chegar. Pouco ou nada se pode fazer agora. E os homens estão exaustos.

    — O Comandante de Sever do Vouga é Tesoureiro da Fazenda Pública. Tem mesmo de abrir a «loja«. E eu, daqui, quase vou directamente para a fábrica de confecções onde labuto…

    — Então, voltamos mesmo para Águeda?

    — Voltamos. E já não é sem tempo…

    E se preveníssemos?

    Lá para as bandas de Lamas ou de Macinhata o rádio despertou. Duas casas atingidas em São Joaninho. Uma voz rouca entra no canal 2.

    — Isto é uma coisa louca! Mandem já apoio para aqui…

    Silêncio. O campo corre veloz. O calor da serra ainda arde na pele. E aquelas brasas não param de bailar. As caras negras de pó a afogar a desolação no riacho. Soluções?

    — O fogo deve ser ecologicamente utilizado. Só que as perspectivas são sombrias. As empresas de celulose estão a tomar conta da área florestal. — garante o engenheiro Arménio de Figueiredo (Os Verdes), antes de apontar algumas soluções concretas como o associativismo que «é importante promover» como forma de dinamização das explorações porque «a prevenção também passa por aí».

    — Está por fazer a educação do público em geral, e dos incendiários acidentais em particular. E também é verdade que a prevenção ainda não tem clara supremacia sobre o combate… — afirma o engenheiro João Soares da DGF.

    As perspectivas também são, na sua opinião, sombrias. «Enquanto os fogos em 1988 se propagaram devagar, este ano — com as actuais condições climatéricas — vão correr. Em vez de meia hora, vamos talvez dispor de 15 minutos. É rezar…»

    — Mesmo com condições climáticas normais, 1989 pode ser um ano francamente mau: há poucas reservas de água no solo e a vegetação rasteira do ano passado está por queimar. — palavras do professor Xavier Viegas, um universitário pioneiro dos estudos dos fogos florestais.

    O pessimismo generalizado contrasta com a opinião oficial ou a inexistência de estratégias e acção no terreno. A prioridade para alguns departamentos oficiais parece continuar a ser sobretudo o combate. O Plano a médio prazo do Ministério do Planeamento e da Administração do Território — coordenação de acções de fogos florestais — prevê para 1989 mais de 1.417 mil contos para o combate enquanto a verba para a prevenção não ultrapassa 719 mil contos. É pouco. Para instalar, tratar e conduzir povoamentos florestais, criar redes de acesso e barreiras divisionais; instalar sistemas de vigilância e informar o público (desde as escolas, como sugere o «Projecto de Prevenção para a Escola Primária» da Universidade de Coimbra, mas ainda por aplicar até à RTP onde não houve qualquer campanha este ano). A legislação adequada é outra lacuna.

    — A solução não está no desenvolvimento crescente dos meios de luta, mas reside na prevenção. É preciso desmatar e limpar a floresta e repovoá-la, dando apoios aos que desejariam aí trabalhar e viver. E responsabilizar as pessoas.

    O silvicultor Manuel Ferreirinha é capaz de ter razão. O fogo não é uma metáfora. Quem é que disse que mais vale prevenir do que remediar?


    (1) – O Governo tomou, entretanto, algumas iniciativas. A Portaria 528/89 de 11 de Julho: depois de anunciar que tendo surgido algumas dúvidas acerca do Decreto-lei 175/88, que estabeleceu pela primeira vez em Portugal «condicionamentos vastos e efectivos» (sic) à arborização e rearborização com recurso a espécies florestais de rápido crescimento (como o eucalipto) e da ulterior publicação do Decreto-Lei 139/89, cujo objectivo era «clarificar» (sic) a intervenção das Câmaras Municipais, o legislador acaba por indicar que a portaria ora aprovada «condiciona» (sic) a florestação e reflorestação com as tais espécies de rápido crescimento… A última medida «preventiva» data de 13 de Julho. O Ministério da Administração Interna (MAI) proíbe a realização de qualquer actividade que utilize o fogo em todas as zonas florestais do país entre 15 de Julho e 15 de Outubro (queimadas, fazer fogo — incluindo fumar, lançar foguetes e balões com mecha acesa, queimar lixos, etc.).

    (2) – A Faculdade de Psicologia e de Ciências da Universidade de Coimbra está a preparar um estudo sobre a personalidade de incendiários detidos.

    (3) – Entre Junho e Outubro constituem-se Grupos Especiais de Intervenção.

    (4) – A FAP colabora no combate aos fogos juntamente com o Serviço Nacional de Protecção Civil. Em 1983, começou a operar o «Modular Airborne Fire Fighting System» (MAFFS). Em 1983, foram efectuadas oito missões. Em 1985, o número subiu para 15. Em 1988, realizaram-se apenas oito missões — todas elas na Região Centro.

    A FLORESTA QUE TEMOS

    «A floresta portuguesa está distribuída por grandes áreas, especialmente situadas no interior do território, com reduzidas infraestruturas de acesso e de protecção de incêndios.

    É na sua maior parte propriedade privada, cerca de 80%, e é pertença de cerca de 600 mil proprietários. É quase toda minifúndio.

    É constituída, na parte mais sensível aos fogos, pelo pinheiro, somente, ou pinheiro e eucalipto em grandes manchas de monocultura.

    As grandes manchas de pinheiro e também de eucalipto, situam-se em zonas interiores de Verões quentes, secos e com ventos de NE, que no Verão sopram com intensidade e transportam ar extremamente seco.

    As matas florestais, na sua grande maioria, deixaram de ser limpas e o subcoberto arbustivo existente funciona de rastilho para a propagação do fogo. As razões principais da sua não limpeza são a emigração da população válida, a melhoria do nível de vida, a diminuição da pastorícia.

    Há falta de informação e de formação das populações locais, que não têm conhecimento real do valor da floresta e que, por incúria, são responsáveis pelo ateamento de incêndio.»

    O mesmo acontece com a gente estranha à floresta.

    Fonte: Grupo de Trabalho Interministerial para a Preservação da Floresta – 1987.


    Reportagem originalmente publicada n’O Jornal Ilustrado (suplemento ao nº 752 de O Jornal), na edição de 21 a 27 de Julho de 1989, da autoria de Rui Araújo e com foto de Sofia Pinto Coelho, aos quais o PÁGINA UM agradece a autorização de republicação.


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  • 15 jornalistas quiseram ser ‘salvos’ pelo Papa Francisco

    15 jornalistas quiseram ser ‘salvos’ pelo Papa Francisco

    Se a coragem e responsabilidade são apanágios da profissão de jornalista, recentemente houve 15 profissionais com esta carteira que preferiram jogar pelo seguro e ‘escapar’ de responsabilidades ou dos incómodos de uma defesa contra acusações injustas. E assim aproveitaram a visita do Papa Francisco para se livrarem de processos disciplinares, através da Lei da Amnistia. Quem são, não se sabe, porque a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), que revelou sempre os nomes dos visados, mesmo quando foram ilibados, os mantém agora em segredo. No entanto, na lista de potenciais beneficiados pela ‘benção papal’ terá havido quatro jornalistas alvo de processos disciplinares que recusaram receber qualquer benesse, mantendo a sua defesa. Um desses processos, ainda em curso, visa o director do PÁGINA UM por um queixa accionada pelo almirante Gouveia e Melo.


    Quinze jornalistas portugueses decidiram aproveitar a amnistia papal para se livrarem de processos disciplinares, mas os seus nomes estão a ser intencionalmente escondidos pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), liderada por Licínia Girão. É a primeira vez que esta entidade com funções disciplinares não revela a identidade dos visados em processos concluídos, mesmo quando estes acabam arquivados por se provar não ter havido qualquer violação ao Estatuto do Jornalista.

    Recorde-se que no âmbito da visita do Papa Francisco a Portugal para a Jornada Mundial da Juventude, no Verão passado, a Assembleia da República concedeu amnistias  para as “sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que [tivessem] entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, com excepções em função da tipologia do crime, bem como as sanções acessórias relativas a contraordenações e infracções disciplinares  civis e militares até àquela data, desde que, nestes últimos casos, não houvesse ilícitos penais em causa.

    person wearing white cap looking down under cloudy sky during daytime

    Contudo, a amnistia não era automática, podendo o arguido recusar que essa benesse lhe fosse aplicada, de modo a evitar que ficasse a dúvida sobre uma eventual conduta que apenas não acabara a uma sanção por via desse ‘perdão’. Aliás, o director do PÁGINA UM – alvo de um processo disciplinar, por queixa do almirante Gouveia e Melo, que decorre desde Maio do ano passado sem sequer ser deduzida acusação – foi ‘convidado’ a aceitar a amnistia papal em Dezembro passado, mas informou a secção disciplinar da CCPJ que se opunha. E salientava que “como não necessito de amnistias para defender, como jornalista, o meu trabalho que, ainda mais neste caso em concreto, reputo de rigoroso e pertinente, não poderia jamais aceitar que a CCPJ pudesse deixar no ar qualquer dúvida sobre essa matéria, pelo que aguardava com interesse a finalização da instrução do processo disciplinar”. Saliente-se que as notícias do PÁGINA UM que visaram o actual Chefe de Estado-Maior da Armada estão ainda a ser investigadas pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.

    Distinta opção tiveram outros 15 jornalistas, que jogaram pelo seguro, aceitando a amnistia – que não é uma absolvição, pois simplesmente anula a existência do acto suspeito de ser ilícito. De acordo com uma listagem no site da CCPJ, relativamente a alegadas infracções do ano de 2022 foram amnistiados os processos disciplinares 5/2022, 6/2022, 7/2022, 8/2022/9/2022, 10/2022 e 11/2022, enquanto para o ano de 2023 receberam ‘perdão’ os processos 2/2023, 3/2023, 4/2023, 5/2023, 6/2023, 7/2023, 8/2023 e 10/2023. Tendo em conta que tinham sido decididos entretanto dois processos abertos em 2022 (processo 1/2022 e 2/2022), em princípio cinco jornalistas terão recusado receber amnistia.

    Ao contrário da norma aplicada por todas as entidades abrangidas pelo Código do Processo Administrativo, o organismo que gere os títulos e a disciplina dos jornalistas tem pautado a sua conduta pela falta de transparência. Por esse motivo, ignora-se quem foram os jornalistas que, sendo alvo de processos disciplinares, preferiram não assumir as consequências ou não se quiseram dar ao incómodo de se defenderem condigna e corajosamente de acusações injustas.

    Com efeito, apesar de em todos os anos anteriores surgir a listagem dos processos disciplinares concluídos com a respectiva decisão – que, em muitos casos, é o arquivamento –, pela primeira vez a CCPJ, presidida por Licínia Girão, decidiu esconder os nomes ‘benzidos’ pela amnistia do Papa Francisco. Em todo os processos apenas é indicado o número, o objecto – ou seja, a alegada violação do Estatuto do Jornalista – e a seguinte frase: “A SD [Secção Disciplinar] deliberou, por unanimidade, declarar extinta, por amnistia, o processo disciplinar [número] e, em consequência determinar o arquivamento dos presentes autos (Lei de Perdão de Penas e Amnistia de Infrações, Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto)”.

    O PÁGINA UM pediu esclarecimentos à CCPJ e à sua presidente, Licínia Girão, sobre as razões para esconder o nome dos beneficiados pela amnistia, e para confirmar o número exacto de jornalistas que a recusaram. Não foi dada qualquer resposta. O PÁGINA UM pondera recorrer à Lei do Acesso aos Documentos Administrativos para aceder aos processos concluídos por via da aplicação da amnistia, mesmo se se mostra absurdo de ter usar esse método contra o obscurantismo numa entidade pública que, na verdade, integra oito jornalistas.


    N.D. Jamais concebi, como jornalista, beneficiar de qualquer amnistia para ‘apagar’ qualquer erro que possa cometer no exercício das minhas funções profissionais, nem aceitaria que ficassem quaisquer dúvidas sobre a minha conduta que me impossibilitasse a cabal defesa do meu trabalho. Cada um é como é, mas há uma ética no jornalismo que não está sequer escrito no Estatuto do Jornalista nem nas ‘linhas orientadoras’ corporativistas da CCPJ. Aliás, a CCPJ acabou de arquivar – e bem, até por não lhe restar outra alternativa – um processo disciplinar contra mim (por iniciativa da sua presidente coadjuvada por outros dois membros do Secretariado) no decurso de uma iniciativa da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Escrevi sobre essa matéria quando me abriram o processo, agora arquivado. Também convidei a CCPJ a abrir-me um processo disciplinar depois de a sua presidente Licínia Girão ter conseguido um ‘parecer de favor’ do lastimável Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas por causa de artigos que escrevi sobre ela. A senhora presidente da CCPJ não teve sequer coragem de abrir-me um processo para tirar tudo a limpo, e o mais caricato é terem andado meses a ‘fugir’ de uma resposta até alegarem a Lei da Amnistia para não abrirem o processo. Obviamente, uma patetice, porque só arquivamento somente seria possível se houvesse processo aberto e não houvesse oposição para amnistiar. Quanto à não divulgação dos nomes dos 15 amnistiados: enfim, a questão da falta de transparência em Portugal é algo que está enraizado até no jornalismo, por isso se anda a cultivar tanto esse predicado.

    Pedro Almeida Vieira


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  • Pandemia em Cascais: Conheça os felizes contemplados com o ‘rico bodo’ de 24,6 milhões de euros

    Pandemia em Cascais: Conheça os felizes contemplados com o ‘rico bodo’ de 24,6 milhões de euros

    Durante a pandemia, a Câmara de Cascais não fez apenas estranhos negócios com uma empresária chinesa que envolveu a produção de máscaras e transação de propriedades. Destacou-se também como a autarquia que mais contratos celebrou para comprar máscaras e testes, pagar pessoal de enfermagem e reabilitar edifícios e o mais que houvesse associado à pandemia. Dinheiro não faltou e 58 empresas esfregaram as mãos com a distribuição de mais de 24,6 milhões de euros, sobretudo uma, a Enerre, cujo dono lucrou tanto com a pandemia que até foi correr o Rally Dakar. No meio deste ‘bodo’, mas para ricos, até uma cidadã da Letónia conseguiu impingir equipamento para alegadamente eliminar o SARS-CoV-2 por 277 mil euros, através de uma empresa criada poucos meses antes e que se ‘esfumou’ entretanto.


    Além de ter encetado um estranho negócio para a produção de máscaras de protecção facial – que também envolveu transação de propriedades, alvo ontem de buscas pela Polícia Judiciária –, a autarquia de Cascais destacou-se durante a pandemia a nunca olha a custos. Quase sempre através de ajustes directos.

    De acordo com um levantamento exaustivo do PÁGINA UM no Portal Base, a Câmara Municipal de Cascais, liderada por Carlos Carreira – que era ‘coadjuvado’ por Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruturas –, gastou em pouco mais de dois anos cerca de 24,6 milhões de euros em equipamentos e serviços associados ao combate à pandemia, envolvendo um total de 98 contratos que beneficiaram 58 empresas. Apenas cinco contratos, de pequena dimensão, foram realizados após consulta prévia. A autarquia usou e abusou da faculdade de escolher a dedo os fornecedores.

    E há uma em especial que não se pode jamais queixar: a Enerre. Para esta empresa lisboeta, que antes da pandemia fazia brindes e estampagem de t-shirts, a covid-19 foi a sorte grande. Tanto assim que o seu proprietário deu-se logo em finais de 2020 em fazer o Rally Dakar. Pudera: nesse ano registou lucros de quase 18,2 milhões de euros, cerca de 60 vezes mais do que no ano anterior à pandemia.

    Carlos Carreiras tornou-se, como edil de Cascais, o principal ‘cliente pandémico’ da Enerre, que ainda criaria em 2021 a Enerre Pharma. Antes do surgimento do SARS-CoV-2, a Enerre apenas tivera um contrato com a autarquia cascalense de cerca de 59 mil euros em 2019 para a produção de brindes. Mas depois, foi um fartote. Incluindo a sua subsidiária, a Enerre facturou mais de 14,8 milhões de euros, dos quais quase 12 milhões logo no primeiro da pandemia. Sempre sem competição.

    Os cinco maiores contratos associados à pandemia celebrados por Carlos Carreiras foram todos para a Enerre, sendo que o maior foi assinado em 7 de Abril de 2020. Pela ‘módica quantia’ de 4.857.500 euros foram adquiridas 1,2 milhões de luvas, 2 milhões de máscaras cirúrgicas, 250 mil máscaras FFP2, 200 mil batas e 50 mil viseiras. No caderno de encargos não foi sequer discriminado o preço unitário, sendo certo que o preço médio por cada item adquirido chega a quase 1,3 euros. Foi o tempo da especulação. Mas esse contrato até foi apenas um ‘reforço’ de um outro ajuste directo em 20 de Março, pelo preço de quase 1,2 milhões de euros para adquirir 1,7 milhões de máscaras cirúrgicas, 50 termómetros, dois mil viseiras e dois fatos macacos.

    Não foi apenas a vender equipamentos de protecção individual que a Enerre ganhou dinheiro. De entre os contratos desta empresa, dos quais 12 acima dos 400 mil euros (ou de valor igual), sempre por ajuste directo, estão também vendas de testes e de máquinas dispensadoras de máscaras, bem como de consumíveis para a produção de máscaras. Os dispensadores de máscaras, que acabaram vandalizados, custaram 800 mil euros.

    Carlos Carreiras, edil de Cascais, ostentando um galardão entregue pelo ISCTE como reconhecimento pelo Programa Máscaras Acessíveis e Fábrica de Máscaras em Novembro de 2020.

    Bastante afastada da Enerre, o segundo maior beneficiário das compras de Carlos Carreiras foi uma empresa de segurança, a PSG. Entre 2020 e 2022, esta empresa obteve sete ajustes directos no valor total de mais de 1,4 milhões de euros, o primeiro dos quais em Abril de 2020. O grosso da facturação foi para vigilância dos centros de rastreio e de apoio à vacinação. O último foi assinado em Setembro de 2022, no valor de 212 mil euros, embora fosse também para vigilância de centros de acolhimento.

    Também com facturação acima de um milhão de euros associados à pandemia encontram-se mais duas empresas, a Briticasa (com quase 1,2 milhões de euros) e a Blue Ocean Medical (com 1,15 milhões de euros). A primeira empresa foi escolhida por Carreiras para quatro empreitadas por ajuste directa. Em Junho de 2020 pelas obras de reconversão de um armazém pagou-se mais de 342 mil euros; depois em Janeiro do ano seguinte foi mais uma empreitada para criação de sete gabinetes médicos no Centro de Congressos do Estoril (com um custo de 72 mil euros) e até ao meio de 2021 dois ajustes directos para empreitadas de reabilitação destinadas a centros de vacinação, que totalizaram 780 mil euros.

    Quanto à segunda empresa, trata-se de uma prestadora de trabalho temporária, neste caso de pessoal de enfermagem para os centros de vacinação. Por quatro ajustes directos, a autarquia de Cascais celebrou sem pestanejar – ou seja, nem sequer fez consulta de mercado – quatro contratos por ajuste directo entre Março de 2021 e Março de 2022. O primeiro contrato, no valor de 150 mil euros, celebrado em Março de 2021 deveria ter tido uma duração de 304 dias, mas acabaria por ser ‘reforçado’ por mais três, dois de 350 mil euros e outro de 300 mil.

    A pandemia permitiu ao dono da Enerre, Lourenço Rosa, aumentar em 60 vezes o lucro de 2020 face ao ano anterior. Como ‘prémio pessoal’, foi participar no Rally Dakar. A autarquia de Cascais foi o seu melhor cliente, facturando 14,8 milhões de euros.

    Excluindo um ‘contrato interno’ – em Julho de 2020, a autarquia pagou 540 mil euros à sua empresa municipal Cascais Dinâmica pelo aluguer de 60 dias do Centro de Congressos do Estoril –, também se destaca nesta distribuição de dinheiros públicos a celebração de dois contratos no valor de um milhão de euros com dois importantes laboratórios de análises: os de Joaquim Chaves e os de Germano de Sousa. O primeiro contrato, porém, só resultou no pagamento de pouco mais de 28 mil euros, enquanto o segundo acabou por dar uma despesa de pouco mais de 65 mil euros. Estes testes serviam para detectar a presença de anticorpos após a infecção pelo SARS-CoV-2, mas a autarquia não se mostrou interessada em monitorizar a eficácia protectora da vacina e da imunidade natural.

    No meio dos contratos com valor mais elevado destaca-se ainda um completamente estapafúrdio. A empresa municipal Cascais Próxima decidiu comprar a uma empresária da Letónia, a morar no Porto, de seu nome Liene Strode, um “equipamento de purificação e desinfecção de ar com eficácia contra o SARS-COVID 19 [sic], incluindo o transporte, descarga e entrega”. O caderno de encargos está ausente no Portal Base, sabendo-se apenas que foi pago 277.200 euros em Fevereiro de 2021.

    A empresa, denominada Real Amplitude, foi criada apenas em 2 de Junho de 2020, mas só conseguiu convencer mais uma entidade pública dos seus ‘magníficos’ equipamentos, que a Agência de Protecção Ambiental norte-americana (EPA) diz “não ser suficiente para proteger as pessoas da covid-19” –, tendo vendido em Março de 2021 por 4.466 euros um outro equipamento de purificação e desinfecção para a covid-19 ao município de Torre de Moncorvo. Como foi celebrado por ajuste directo simplificado nem sequer houve contrato escrito.

    Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruras e Habitação, ocupou até Janeiro deste ano a vice-presidência da autarquia de Cascais.

    A empresa da cidadã letã não apresentou contas em 2022 e não tem sequer um site se encontra qualquer site, o que é estranho para quem, no objecto social, se apresenta como “agentes do comércio por grosso de máquinas, equipamento industrial, embarcações e aeronaves; agentes do comércio por grosso misto sem predominância como por exemplo, produtos médicos e de higiene; comércio por grosso de produtos químicos; comércio por grosso de outros bens intermédios”.

    Mas, afinal, a venda deste ‘equipamento’ a Cascais só custou 277.200 euros, pouco mais de 1% daquilo que o município de Carlos Carreiras distribuiu a dezenas de empresas sem qualquer controlo.

    Saliente-se ainda que, ao contrário do que disse Carlos Carreiras, o actual ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, não esteve alheado dos contratos associados à pandemia. Foi ele que em Junho de 2020 se destacou na promoção da unidade de produção de máscaras na tal unidade com equipamentos vindos da China, e que prometiam tornar o município auto-suficiente e até vender para outras autarquias. Acabou tudo em logro, até porque a sua maquinaria rapidamente avariou.


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