Etiqueta: Da Varanda da Luz

  • Arouca 2.2

    Arouca 2.2


    Perguntou-me o director do PÁGINA UM se eu estaria interessado em começar a escrever crónicas a cada jogo do Benfica. Depois de chatear activamente os leitores da Extrema-direita, Pedro Almeida Vieira escolhe agora aborrecer os adeptos dos outros clubes.

    Vamos partir deste princípio basilar nesta que será a minha primeira crónica. Eu não sou jornalista, sou adepto benfiquista, gosto de futebol e, portanto, tudo o que podem esperar ler aqui é a minha opinião. Com alguma sorte teremos momentos de triângulos invertidos e basculação no meio-campo.

    Ainda a bola não tinha começado a rolar e já os adeptos da minha cor me envergonhavam. Sim, eu sou benfiquista, mas não sou cego. Durante o minuto de homenagem a Aurélio Pereira, uma figura ímpar do desporto português, um conjunto de acéfalos resolveu imitar o fatídico som do very light que matou um adepto sportinguista na final do Jamor. Um dia alguém me explicará como é que há um benfiquista — seja ele quem for — orgulhoso com um dos momentos mais negros da nossa centenária história.

    Quando entramos na recta final do campeonato, tudo o que não nos interessa é ver um Benfica-Arouca. São jogos que me fazem lembrar as derrocadas finais nos tempos de Jorge Jesus. A vitória é certa no papel, a equipa acredita que a bola, cedo ou tarde, entrará, e o pouco espectáculo arrasta-se penosamente por longos noventa minutos. O Arouca é uma equipa cuja classificação não reflecte o futebol jogado. Não se limitam ao clássico bloco baixo esperando um contra-ataque milagroso, sabem ter a bola no pé e apresentam um plantel com jogadores interessantes.

    A primeira parte teve quase sentido único, com o Benfica, no seu onze habitual, a dominar o meio-campo e a controlar as operações. Ainda assim, essa posse de bola não se reflectiu em oportunidades de golo. As poucas que aconteceram foram quase sempre cortadas por defesas em lugar do guarda-redes. O Estádio da Luz, cheio como é habitual, demonstrava algum nervosismo com a ineficácia e o ritmo baixo.

    A asa esquerda do Benfica foi, como de costume, o abono de família do ataque, com Carreras, especialmente, em bom plano. Do outro lado, Tomás Araújo continuou preso por arames, a fazer o que pode. Di María, ou GOAT, como é conhecido cá em casa, insistiu nos lances individuais que já não consegue fazer, deixando as recuperações para o norueguês amigo. Ainda assim, há sempre aquele momento em que descobre uma linha de passe que mais ninguém vê e obriga qualquer comentador de sofá, como eu, a meter a viola no saco.

    É estranho pensar na profundidade do plantel do Benfica para disputar um jogo com o Arouca. Mas foi exactamente isso que fiz ao intervalo.

    Rezei para que Bruno Lage pedisse autorização ao Di María para o deixar no balneário, na companhia de Tomás Araújo. A minha expectativa era que a ala direita carregasse jogo com mais eficácia na segunda parte. Opções no banco parecem não faltar.
    A segunda parte começou com um três para três na área do Benfica, sacudido por Trubin, seguido de mais um ataque desperdiçado por Di María. Bruno Lage não viu nada de errado na primeira parte e apostou, tal Marcello Caetano, na transição da continuidade. Aos cinquenta minutos de jogo, já eu fazia contas à vida depois do Arouca ter chegado com perigo à baliza do Benfica.

    Passava a hora de jogo quando comecei a ver nuvens negras e a lembrar-me de um campeonato perdido contra o Estoril. Por esta altura, até um penálti à Diomandé se aceitava. Carreras percebeu o sofrimento da classe operária, que precisa de motivação para trabalhar amanhã, e desatou a ultrapassar gente pelo lado esquerdo. A bola desaguou no pé direito de Kokçu e o turco fez arte, colocando a dita onde a coruja faz o ninho.

    Di María, logo de seguida, falhou um golo cantado e Jason, o melhor jogador do Arouca, tentou trazer um Geny para o Estádio da Luz. O mergulho foi bom, a entrada na água fez pouco espalhafato e o VAR fez o que se espera dele em Portugal: marcou.

    Há uma tendência neste final de época para se ver a mais nalgumas latitudes e fechar os olhos noutras. Dizem-me que é azar. Do Benfica, obviamente. Azar esse que se prolongou do VAR para a inoperância de Bruno Lage que, aos 75 minutos, ainda não tinha visto necessidade de mudar fosse o que fosse.

    Quando Belotti e Schjelderup entraram, já o Arouca estava na opção do bloco baixo e o espaço para jogar se reduzira a um T1 de meio milhão em Arroios. Esperava-se que o norueguês ganhasse os duelos que Di María não conseguiu.

    As substituições, tardias, tiveram efeito quase imediato. Kokçu, o tal rapaz com um pé direito que daria jeito ao Florentino, descobriu Pavlidis sozinho, enquanto Belotti arrastava os centrais. São aquelas dinâmicas, como lhes chamam os entendidos da bola, que acontecem quando dois rapazes, com a mesma camisola, estacionam permanentemente na área alheia.

    O Arouca não reagiu ao segundo golo porque o Benfica não tirou o pé do acelerador. Seguiram-se algumas hipóteses de golo desperdiçadas, um golo anulado e mais uma dose de nervos até ao fim.

    O prolongamento chegou com 7 minutos que ninguém percebeu e o Arouca, vendo que o jogo não era sentenciado, apostou tudo nos instantes finais, conseguindo marcar já depois dos 95 minutos.

    O campeonato volta a dar mais uma volta e, pela segunda vez, o Benfica não aguenta a liderança mais do que uma semana.
    Tal como disse no início desta crónica, gosto pouco destes jogos em que pouco se ganha e tudo, ou quase, se perde.

    Fotos de Pedro Almeida Vieira (no estádio)

  • Ainda de olho ao peito

    Ainda de olho ao peito


    Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, dizia Camões — e, valha a verdade, se o nosso épico não tivesse perdido um olho, talvez visse com mais nitidez o que esta crónica, de visão ainda turva, tem vindo a confirmar: a tradição já não é o que era, e quem de costume observa a bola da Varanda da Luz, anda mais dado a filosofias e quejandos do que à redondinha propriamente dita, aqui o garante.

    De facto, nos últimos jogos do Benfica na Liga, este vosso cronista habitual fez gazeta, primeiro porque foi lourear a pevide para Espanha, depois porque um bisturi decidiu meter-se em campo e substituí-lo sem aviso prévio. Ou seja, perdeu dois jogos no conforto da Luz, mas vá-se lá saber como, no último mês e meio, apareceu em Montjuic, foi a Alvalade ver a selecção e ainda teve a ousadia de ir ao antro do Dragão, onde o Benfica deu uma coça ao Porto.

    E tudo isto, nas últimas duas semanas, com um olho que vê mal ao perto e só agora começa a distinguir camisolas ao longe. E o outro está como estava: mal. Ja consigo ver os números nas costas dos jogadores, o que é um progresso — antes disso, via os jogos como quem lê prescrições médicas: de longe, com desconfiança e a torcer para não me enganar.

    Mas como o bom filho à casa retorna (ainda que tropeçando nos degraus e piscando os olhos ao ecrã como quem faz sinal à torre de controlo), eis que esta crónica volta à vida. Ou melhor, ressuscita com ajuda: o relato de hoje é da pena do Tiago Franco, que além de ver bem (ao que consta) ainda escreve com propriedade sobre futebol. Ficam mais bem servidos, não duvidem — porque se fosse eu a escrever, acabava-se a falar da teoria do caos, da filosofia dos penáltis, ou da geopolítica dos fora-de-jogo.

  • Barcelona 0.1

    Barcelona 0.1


    Cheguei atrasado à Varanda da Luz – só se justifica ficar aqui escrito por ser uma crónica, e não uma notícia, porque só o raro é notícia. Nem vi a águia a voar e perdi todo o ritual que marca o início das grandes noites europeias. Que seja: promete chuva, mas nada como aquele dilúvio do inglório 4-5 de há um mês e meio. Interessa, sim, dizer que estou confiante. Hoje, há qualquer coisa no ar. Talvez seja por causa do Bruno Lage estar de volta, e o futebol ter sempre um fraco por histórias de redenção.

    (estranhamente, o estádio não está cheio, não sei se pelo preço dos bilhetes ou pela semana do Carnaval ter esvaziado Lisboa)

    Ou talvez seja, para criar hipóteses absurdas para justificar o meu optimismo, por ter avistado há pouco um adepto, atrasado como eu, com uma camisola do Poborsky, o que só pode ser um sinal de que esta noite terá algo de mágico. Ou ainda por ter ouvido um senhor hoje no café dizer que, em vésperas de jogos grandes, quando sonha com um golo de calcanhar do Benfica, a vitória está garantida. Ou, vá-se a ver, por ter esta tarde visto um tipo engasgar-se a beber um fino quando assistia à antevisão do jogo na CMTV, e dito, quando recuperou: “Isso foi um presságio. Mas não sei é se bom ou mau”.

    Enfim, sinais não faltam. Se resultam em golos, logo se verá.

    Em todo o caso, temos aqui um problema: é que o meu atraso custou-me caro. Esgotou-se o farnel. Nem a pão e água estou. Pensando bem, nem é de todo mau – há semanas que ando a adiar uma dieta, e talvez esta seja a deixa que precisava.

    No relvado, tudo calmo por agora. O Barcelona pode não ser o colosso de outros tempos, mas continua a ser adversário de muito respeito. Troca a bola com aquela paciência estudada, como quem acredita que mais cedo ou mais tarde vai encontrar um buraco para ferir. Mas hoje não quero sofrer. Basta o que eu vou sofrer na próxima semana – e mais não digo por agora…

    (boaaaaaa… cartão vermelho para o Pau Cubarsí, que rasteirou um afoito e isolado Pavlidis; e quase que dava o bónus de penálti)

    Mais confiança. Está no ar, digo eu, uma oportunidade de ouro. Vão ser quase 70 minutos em superioridade numérica. Sei que ainda há muito jogo pela frente, mas a minha intuição não me engana: hoje pode ser uma daquelas noites em que a Luz se transforma num inferno para quem vem de fora.

    Agora é não facilitar – daqui é fácil de dizer. O Benfica tem de fazer valer o homem a mais, e nada melhor do que marcar já, ou daqui a cinco minutos, ou a dez, ou quando calhar: tem é de marcar, que isto não acontece todos os dias.

    Porém, estranhamente, enquanto denoto a incapacidade de o Benfica sufocar o Barcelona – as equipas portuguesas jogam contra o Barcelona ou o Real Madrid sempre com mais medo do que o Leganés ou o Osasuna –, começo a fraquejar no entusiasmo. Conheço este filme: tantas vezes já vi equipas reduzidas a dez crescerem dentro do jogo, das tripas fazerem coração, enquanto a equipa em vantagem numérica hesita, falha passes, exibe demasiadas cortesias no momento do remate, e contenta-se em trocar bolas como se houvesse um prémio para posse de bola estéril. E os adeptos querem é golo, nem que seja aos baldões.

    (para estragar a festa, e o Benfica apanhar uma valente e justificada multa da UEFA, os tontos dos No Name Boys, ou quem sejam eles, lançam tochas e outros artefactos; nunca compreendo a razão de as direcções dos clubes permitirem estas diatribes)

    Lá em baixo, não estou a ver grandes melhorias – e, na verdade, o jogo está equilibrado, com o Barcelona a ganhar até cantos e a fazer alguns remates. Vou ter de me concentrar uns minutos a assistir ao jogo para ‘meter’ energias nesta malta para que cheguem ao intervalo em dupla vantagem numérica: jogadores e golos.

    (pois bem, ou mal, termina o primeiro tempo, e só há vantagem em jogadores, e não em golos…)

    E recomeça o jogo. Entretanto, a fome aperta. Já parece que me cheira a bifanas. E começo a convencer-me de que, se o Benfica não marcar nos próximos cinco minutos, terei de reavaliar a minha relação com a dieta. Tento distrair-me com o jogo, mas a combinação de estômago vazio e nervos em alta não está a ajudar. O Barcelona, mesmo com dez, começa a ter mais bola, e eu começo a ver fantasmas. Isto de ser benfiquista é viver, em constância, entre o aconchego do sonho e o medo do trauma.

    Não sei se os jogadores são muito dados a palestras, nem se o Bruno Lage tem queda para prelecções entusiásticas. Mas, às tantas, devia ter pedido ao ChatGPT para lhe compor um discurso onde se clamasse que a História pode ser escrita também com os pés. E que esta noite o Benfica não joga somente para ultrapassar o Barcelona, mas para dar a um país cansado um vislumbre de grandeza, um motivo para acreditar que ainda há feitos que engrandecem, para além daqueles que envergonham.

    Portanto, quando tudo à volta parece um pântano, onde se afundam valores e esperanças, eles e o futebol são a tábua de salvação. Eu sei que é filosofia barata, mas com falinhas e bolinhos se enganam os tolinhos.

    (mas que lindo serviço nos fez o António Silva: falha um passe e o ex-sportinguista Raphinha marca; isto só visto)

    Lá se vai o ‘meu discurso’ para emplogar jogadores. Aquele paleio de que devem consciencializar-se para jogarem não pelo salário ou pelo prémio de jogo, ou pela progressão na carreira ou por estatísticas pessoais – que devem jogam, sim, para resgatar um orgulho que se tem esbatido entre manchetes de escândalos e o cansaço de um país que já nem se surpreende com nada. Jogam porque, entre o golfe do Montenegro, as avenças e o teatro habitual dos poderosos, o povo precisa de alguma coisa que seja só emoção e verdade – e o futebol, no seu estado puro, ainda pode ser isso.

    Agora, está a ir esfumar-se uma noite glorisa..

    Vamos lá! A História exige coragem. E a questão, como sempre, é se há coragem suficiente para não se deixar adormecer pelo medo, para não se contentar com a mediocridade, para não hesitar quando for preciso arriscar. Porque o medo de falhar muitas vezes pesa mais do que a vontade de vencer – e já vimos demasiadas equipas portuguesas a jogar contra colossos com um respeito que roça a subserviência. A História não se faz com medo.

    E eu a encher já chouriços…

    Agora, o pior não é perder. Perder, todos perdem alguma vez na vida. O pior é perder sem ter dado tudo, sem ter lutado, sem perceber a grandeza da ocasião. E temo que seja isso que me arrisco a assistir esta noite, aqui na Luz: contra um Barcelona reduzido a dez durante 70 minutos e sem o Benfica capaz de assumir o jogo, sem a ambição crua e visceral que transforma uma equipa boa numa equipa histórica. E o futebol não perdoa àqueles que hesitam, e a História muito menos.

    (lá em baixo, ninguém com um rasgo de talento; e o guarda-redes polaco, cujo nome não sei escrever e muito menos pronunciar vai dando conta do recado)

    Caminha o jogo para o fim – e, pela segunda vez, o raio do Raphinha fez das suas. Mais um murro no estômago, mais um lembrete cruel de que quem não quer ganhar acaba sempre por perder.

    E pronto: apito final. Saio daqui da Varanda da Luz com fome e com azia. Tudo mau. E esta crónica tornou-se simplesmente um repositório de filosofia barata e de frustração. Para a semana, lá estarei em Barcelona – mas acho que só lá vou para fazer turismo…

  • Boavista 3.0

    Boavista 3.0


    Deveria ser uma noite tranquila de futebol – e até foi – sem sobressaltos. Mas nunca é. O cronista que também é jornalista, que por sua vez é também director do próprio jornal, decidiu que merecia a ida ao Estádio da Luz ver o seu Benfica, escrevinhar a crónica e degustar o seu farnel.

    No entanto, o problema da multipersonalidade – que isto de dizer esquizofrenia já nem sei se se pode – impôs-se. Às oito da noite, quando a bola já rolava, o director entendeu que havia condições para cobrir, com urgência, a notícia explosiva sobre os negócios imobiliários de Hugo Soares que, no dia anterior, apontara o dedo ao Chega por interesses imobiliários, quando afinal tinha os seus próprios terrenos no jogo. E havia mais umas nuances. As empresas dos homens do Chega eram um hino à falta de cumprimento das regras de gestão; e até o presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco, molhava o bico e tinha também a sua empresa imobiliária. E decidiu telepaticamente falar com o jornalista, que fez um bypass ao cronista.

    O director insistia. “Notícia para o Página Um, tem de ser hoje ainda!” — ordenava. O jornalista suspirava. O cronista tentava ignorar. Mas o director é teimoso. Assim, com o olhar intercalando entre o relvado e a timeline de um documento de texto, a crónica do jogo teve de ser intercalada com mais um caso de ‘normalidade política lusitana’, ou seja, mais um escândalo.

    Assim, enquanto à esquerda, Bruma – acho que era ele – lançava um sprint pela ala, à direita eu abria os registos empresariais de Hugo Soares. “Compra e venda de imóveis próprios ou alheios”. Pimba, mais um parágrafo. Cruzamento para a área, desvio de cabeça, defesa do guarda-redes. “Capital social de 5 mil euros transformado num pé-de-meia de 285 mil.” Será que o guarda-redes do Boavista, que fez defesas espectaculares – se calhar para impressionar o Preud’homme, velha estrela numa época em que o Benfica andou mal – também faz render assim os seus investimentos? Duvido.

    O Benfica marcou entretanto pelo italiano Belotti, mas a história mais dramática era a de Aguiar-Branco, que detém quase 40% de uma empresa do sector imobiliário. Para alguns, uma jogada legal. Para outros, um autogolo ético.

    Ao intervalo, entre uma trinca na maçã e um gole de água, a notícia já estava a meio. A segunda parte começou. Um cartão vermelho para um jogador do Boavista ajudou o Benfica, mas não a mim. O jornalista corria contra o tempo, mas o cronista teimava em rever na televisão o pisão do Miguel Reisinho ao Kökçü com a mesma atenção aos detalhes que dava ao RusticGate. Porque sim, a política e o futebol não são assim tão diferentes: ambos têm os seus protagonistas, os seus falhanços clamorosos e, claro, as suas infracções. O problema é que, na política, o VAR está a dormir.

    O segundo tempo caminhava para o fecho e a notícia precisava também de ser encerrada. Entre um contra-ataque perigoso e mais um remate defendido, surgiam os detalhes finais: a ligação entre os negócios imobiliários e os interesses políticos, os lucros que surgem do nada, os terrenos que mudam de valor por decisão legislativa. No ecrã do telemóvel, as últimas correcções. No campo, o Benfica tentava dilatar a vantagem. E eu? Eu tentava não perder o fio à meada.

    Foi então que o inevitável aconteceu. Golo! Pavlidis, vindo do banco, ampliava a vantagem para 2-0. E, no mesmo instante, o jornalista concluía o seu artigo: “No fim, todos ganham. Ou quase todos.” O director podia respirar aliviado. A manchete estava pronta. O cronista, por sua vez, olhava para o campo e pensava: “Mas será que algum dia eu vou poder simplesmente ver um jogo de futebol?”

    No final do jogo, com o Benfica a atropelar o Boavista por 3-0, o jornalista enviava a notícia para publicação. O director, satisfeito, desligava as notificações. E o cronista, esse, ficava a matutar: “Mas afinal quem é que marcou os golos desta noite? O Benfica ou os negócios imobiliários da política portuguesa?”

    Saí do estádio com essa dúvida a martelar na cabeça. No metro, olhei para os adeptos e ouvi as suas conversas. Alguns celebravam o resultado, outros lamentavam a falta de eficácia perante um checo que defendeu mais de 10 remates.

    Ninguém, obviamente, falava dos negócios imobiliários de Hugo Soares ou Aguiar-Branco. No país do futebol, os verdadeiros jogos jogam-se nos bastidores, com jogadas bem mais sofisticadas do que um contra-ataque bem desenhado.

    Cheguei ao PÁGINA UM ainda a tempo de umas arrumações para receber uns amigos, para uma conversa sobre a vida, a inteligência artificial e ideias para este jornal. E a crónica desta A Varanda da Luz fica assim, hoje, algo esquisita. É a vida. Importante, sim, é que foi um dia triplamente ganho, não fosse o Benfica espetar 3-0 ao Boavista.

  • Moreirense 3.2 (antecedido de Mónaco 3.3)

    Moreirense 3.2 (antecedido de Mónaco 3.3)


    A escrita tem destas coisas – ou melhor, eu tenho destas coisas. Houve um tempo em que Da Varanda da Luz era escrita inteiramente no estádio, num nível fisicamente acima do fervor dos adeptos, acompanhado pelo famigerado farnel. Era um ritual, quase religioso, com a escrita a sair enquanto mal assistia ao jogo e, amiúde, apenas com o aviso de um bruá para poder ver os golos ao vivo. Publicava a crónica ali mesmo, sem filtro nem ponderação, porque a urgência do momento assim o exigia. Era, muitas vezes, um dos últimos jornalistas a sair do estádio, já com as luzes normais apagadas e apenas as vermelhas brilhantes acesas, dando-me uma sensação de exclusividade. Ajustes e acertos? Esses, em muitos casos, vieram depois, quando já ninguém queria saber, mas ainda assim os fiz, que a dignidade da crónica também conta.

    Mas veio a edição quinzenal e, com ela, um novo método – ou uma nova complicação. Já não era um sprint frenético de 90 minutos e descontos. Pior: a crónica começou a “ir-se fazendo”, o que nunca é boa ideia. Entre outras escritas, outras paixões e, claro, algumas conveniências, a crónica passou a ser apenas alinhavada no estádio e concluída à distância, com a serenidade – ou procrastinação – de quem acha que há sempre tempo. E foi assim que, aqui e ali, começou a sair fora de horas, por vezes colada a um jogo da Liga dos Campeões, porque o futebol não tem paciência para cronogramas nem respeita calendários editoriais.

    Eis o que nos traz a este momento. A crónica sobre o jogo contra o Moreirense deveria ter saído antes, a quente. Não saiu. E eis-me, assim, a concluí-la, como já fizera com o Barcelona, porque assim se fica com a sedução do futebol europeu. Mas hoje não estou talhado para uma crónica sobre o Mónaco. Até porque cheguei atrasado – o Montenegro não me deixou.

    Portanto, terão os leitores – se calhar poucos – apenas para ler a crónica do Moreirense,  e antes umas fotografias deste Benfica – Mónaco por um lugar nos oitavos de final da Liga dos Campeões. Ainda bem que não me apeteceu escrevê-la – e não me levem a mal. Previ que seria um jogo de sofrimento. E não me enganei: passámos à rasca, como poderíamos ter ido de vela. A imprevisibilidade nos jogos do Benfica já se torna previsível.


    Hesito, mas não muito. A dúvida instala-se como incerto anda a meteorologia deste Fevereiro, sem ser suficientemente enevoada para me fazer recuar, mas incómoda o bastante para me obrigar a pensar duas vezes se trago o chapéu de chuva. Esta tarde não chovia, mas veio-me a pergunta que não cala: vou ou não vou ao jogo? Sei que, no final, a resposta quase sempre é afirmativa, embora, a cada jornada que passa, a interrogação se torne um ritual — uma espécie de exame de consciência benfiquista, um exercício de ascese futebolística. Vale a pena? E não é só pelo resultado do Glorioso que pesa; é a antecâmara do jogo, a travessia, a incerteza do que ali me espera.

    Bem sei que, se o Benfica me desse apenas alegrias, não haveria grande mérito em ser benfiquista. O fervor clubístico vive de uma mística que se alimenta do triunfo, se bem que também de alguma provação, não demasiada, para que a felicidade se mostre ainda mais dulcífera. E é nesta última que a reflexão se impõe.

    Como Job a questionar a justiça divina, dou por mim a interrogar-me sobre as razões pelas quais me imponho esta jornada, sabendo que pode redundar em euforia galopante – o Campeonato está no papo –, mas também em aborrecimento taciturno – com esta equipa não vamos lá – ou, pior, naquela cólera amarga que apenas a ineficácia ofensiva e a displicência defensiva conseguem produzir – e aqui não reproduzo palavras por decoro.

    (ena, ena… um brinde do VAR que nos oferece um penálti… e golooooooooo! PAVlidis, sem hipóteses!)

    Bom, mais bem-disposto, embora não o suficiente para me fazer esquecer a viagem de metro. Ah, o metro. Esse purgatório subterrâneo onde se comprimem almas sofredoras de todas as condições, algumas com cachecóis encarnados, outras alheias ao rito futebolístico, mas todas reféns da mesma lógica de transporte errático. No Metropolitano de Lisboa, a passagem de um comboio não é nunca uma certeza, mas uma hipótese estatística, sujeita a atrasos e a falhas técnicas que soam a castigo divino. Quando não, o melhor que se aspira é um trem de sete em sete minutos, ou dez, sempre cheio nas proximidades do início e fim do jogo. Ando cada vez mais exigente desde que andei de metropolitano de Copenhaga: três minutos e lá vem mais um. De certeza.

    (e goloooooooooo!!! PAVlidis de novo. Finalmente, com veia goleadora o grego; finalmente, a fazer jus às três primeiras letras do nome)

    Estou mais animado, mas, enfim, agora tenho de continuar a minha reflexão. Dizia eu que, mais de uma vez parado numa plataforma pejada de fiéis e de curiosos, questiono-me se a peregrinação à Luz será assim tão distinta da Via Dolorosa. Pelo menos Jerusalém tem uma mística que a justifica; já a estação do Alto dos Moinhos, onde de ordinário saio para apanhar a credencial, nada tem para devaneios místicos.

    Mas avanço, porque a recompensa há-de vir – um dia. Há-de vir, mesmo sem saber que recompensa me espera: a Liga dos Campeões ou só o (habitual) campeonato nacional? Em todo o caso, a chegada ao estádio é sempre um alívio. Sair do metro e respirar o ar fresco – mesmo que cheire a castanhas queimadas, a torresmos suspeitos e a bifanas de qualidade duvidosa – traz um conforto que só quem passou vinte minutos em contacto forçado com a axila de um estranho pode verdadeiramente apreciar.

    Mas depois de subir do piso -2 até ao piso 4, começa a ascensão, mas já nada heróica, e sim lenta e implacável: a grande escadaria que tenho de calcorrear, até chegar à Varanda da Luz – esse meu santuário laico onde a devoção se consume –, anda a inclinar-se com os anos. Os meus anos, diga-se. Aqui, permito-me mais uma analogia bíblica: Moisés subiu ao monte Sinai para receber os mandamentos; e eu subo esta ladeira maldita para receber, com sorte, um golo bem construído. Mas se Moisés seguia ao encontro aprazado com Deus, eu, amiúde, nada tenho garantido.

    (olha!, temos golo do Moreirense; como é possível!)

    E ia eu embalado para escrever que, quando finalmente atinjo o meu lugar, olho para a imensidão do estádio e sinto, momentaneamente, que tudo valeu a pena… Mentira: hoje sinto que, mais uma vez, vamos andar à rasca, como têm sido quase todos os jogos deste campeonato, tirando um ou outro. O relvado está ali, verde e aparentemente promissor, como se cada jogo fosse um novo começo, uma nova possibilidade de redenção – mas não… Os dois primeiros golos do Pavlidis concederam-me esperança – não para o mítico 15-0 –, mas surgem demasiados adormecimentos…

    De facto, nos últimos tempos, a esperança inicial tem cedido demasiadas vezes à frustração. O jogo começa e, em poucos minutos, aquilo que deveria ser um caminho glorioso revela-se uma provação. A bola não circula com a fluidez desejada, os passes saem denunciados, e a nossa defesa parece acreditar mais na fé do que na marcação aos atacantes.

    E eu pergunto-me: vale a pena tudo isto? Vale a pena suportar o metro, a escadaria, a angústia dos minutos que passam sem golo? Por regra, quando o adversário marca, o estádio mergulha num silêncio fúnebre, a dúvida a todos assola, incluindo os jogadores. Talvez esta Via Sacra seja, afinal, um castigo. Talvez Deus (ou Eusébio, que, no fundo, são manifestações do mesmo princípio metafísico) me esteja a pôr à prova.

    (goloooooooo… 3-1, marca Otamendi)

    Pelo menos há animação… isso não posso questionar. E vou agora descansar um pouco que o intervalo está a chegar.

    (e vem o intervalo…)

    … e recomeça o jogo.

    Aqui está o texto corrigido, mantendo o acordo ortográfico anterior a 1990:


    Portanto, continuemos: sina ou malapata, de jornada em jornada, de dúvida em dúvida, de sofrimento em sofrimento, cumpre-se a minha peregrinação. Sei que voltarei a questionar-me se devo meter-me no metro, se quero mesmo subir aquela escadaria, se tenho estofo para mais uma noite de emoções extremas no resultado, mas de exibições pouco consistentes. Mas também sei que, quando cá chego, quando finalmente me sento na Varanda da Luz, fico sempre com esperança de que tudo melhore. Na verdade, por mais irritante que por vezes esteja, o Benfica não se explica – cumpre-se.

    E cumpre-se sempre da forma mais imprevisível possível, confesso. Porque, no fundo, o Benfica já nem é apenas uma equipa de futebol – é uma experiência existencial, um exercício contínuo de fé cega e teimosia emocional. Cada jogo traz consigo a promessa de redenção, mas também a ameaça de um martírio. E é neste limbo que me encontro desde que comecei estas crónicas, e nem sei que lição tenho de aprender.

    No fundo, talvez seja isso que me mantém preso a este ritual: a ilusão de que, um dia, deixe de sofrer – e só haja prazer. A chatice é que esse El Dorado nunca mais chega – e eu, aqui, de coração nas mãos.

    E jogo a jogo tudo recomeça. Sempre recomeça, como um ciclo vicioso de esperança e frustração. Os jogadores voltam a correr, a bola volta a rolar, e eu volto a iludir-me, a acreditar que desta vez será diferente, que hoje veremos uma exibição convincente, sem tremores nem sobressaltos. E eu a repetir-me. Já acho que fazem de propósito. O Benfica é mestre na arte de manter os seus adeptos em suspense, de os obrigar a viver cada minuto como se fosse o último, de os fazer passar do êxtase ao desespero num simples passe mal medido. E, por mais que todos se queixem, por mais que resmunguem e ameacem nunca mais voltar, o Benfica sabe que estarão aqui na próxima jornada, no mesmo lugar, a repetir o mesmo ritual.

    (e golo do Moreirense; grande porcaria: 3-2 para sofrer)

    E pronto, instala-se de novo o pânico. O estádio, que há instantes parecia exalar um alívio quase festivo, regressa ao estado natural de inquietação. As mãos voltam à cabeça, os murmúrios ganham volume, e já vejo quem pragueje de pé, indignado com a facilidade com que se sofrem golos.

    E o relógio, esse maldito, mexe-se agora numa sádica lentidão, e eu sei o que me espera: uns dez minutos, com descontos, de mais tormento – uma vergonha para um Benfica de glórias perante uma equipa de Moreira de Cónegos. Pelo amor do Santo Padre!!!

    (… nem vale dizer nada sobre o jogo…)

    Pronto! Mais uma vitória suada, com golos sofridos, uma porcaria! Regresso no próximo. Claro!

  • Famalicão 4.0 (seguido de Barcelona 4.5)

    Famalicão 4.0 (seguido de Barcelona 4.5)


    Há derrotas que doem e há derrotas que humilham. E depois há ainda aqueloutras cuja única redenção entronca no olvido. Aquela do Benfica contra o Braga, em tempos hodiernos na cronologia, mas em tempos de antanho na memória, inscreve-se neste último e mui ingrato capítulo. Quem vive de paixões não deve escrever sobre uma ferida ainda aberta, dizem os médicos, tal como não se narra um naufrágio enquanto o submarino não emerge. Mas disso não entendo nada, talvez seja melhor ao Almirante Gouveia e Melo, mesmo arriscando que, estando já na reserva, se tenha esquecido de muita coisa.

    Em todo o caso, no registo filosófico que me cabe nesta crónica, declaro: há momentos em que o silêncio não é apenas um acto de prudência e de sabedoria, mas uma ética de sobrevivência.

    Ora, mas no que concerne – não costumo usar este termo; enfim, fica… – à escrita desta crónica, dois fenómenos se apresentam de natureza complementar – uma espécie de proverbial casamento entre a fome e a vontade de comer. Por um lado, a minha indolência em dissecar o que foi, aos olhos do mundo, aquele descalabro do Glorioso contra os homens de Bracara Augusta. Por outro, a sábia decisão do director desta “casa” – que, por feliz acaso, sou eu – que, em exercício digno de Cícero, ponderou: “É justo perpetuar na memória uma catástrofe que até o mais benfiquista dos benfiquistas prefere esquecer?” Não, caro leitor. Não é justo. Como não foi justo o passe em falso, a defesa em apneia ou… o árbitro – sempre o árbitro, porque o árbitro é, invariavelmente, parte do enredo.

    É bem verdade que um silêncio jornalístico sobre uma tragédia desportiva pode parecer parcialidade. Tanto mais a notícia é o homem a morder o cão, e neste caso notícia seria o Braga vencer o Benfica. Mas já dizia Voltaire – e se não dizia, devia ter dito, porque me dá jeito meter aqui um filósofo para sustentar a minha tese – que não há imparcialidade no amor. E amar o Benfica é, afinal, o destino que se abraça com a mesma intensidade que fez um Romeu à sua Julieta, mesmo que por vezes nos esfaqueie, ou fraqueje, o coração.

    Aliás, muitos leitores do PÁGINA UM me criticam por esta Da Varanda da Luz, dizendo, com razão, ser inconcebível um jornalista que se reputa de isento andar nestas andanças – com pleonasmos à mistura. Mas quem, em futebol, espera uma crónica honesta, imparcial e detalhada? Afinal, cansa ser neutro – e para se ser imparcial nas notícias mostra-se necessário um escape. E qual é o melhor escape que não a bancada de um estádio?

    Aliás, voltando ao silêncio sobre o Braga: a História está repleta de exemplos de momentos em que o silêncio foi estratégico. Vasculhei por aqui, e li que Esparta, após a batalha de Leuctra, optou por não relatar a derrota aos cidadãos, temendo abalar o orgulho nacional. Li também que Roma – não Associazione Sportiva, mas a dos romanos –, quando derrotada por Aníbal Barca em Canas, fez esquecer a humilhação, varrendo a derrota da memória colectiva e focando-se somente na vingança, alcançada pouco mais de uma década depois na Terceira Guerra Púnica.

    Pois bem, partilho o mesmo espírito: por que relatar, com detalhes lancinantes, aquilo que já dói sem narração? Afinal, a dor colectiva já deve ter ficado expressa por mui benfiquistas nos cafés, nas redes sociais e no silêncio constrangido nos lares. Que mais há para dizer, portanto?

    Poderia, claro, aproveitar este espaço para filosofar sobre a decadência do futebol moderno, sobre o preço dos passes milionários ou sobre a fragilidade de uma equipa que se imortalizou nos anos 60, deu uns fogachos nos anos 80, e que custa a levantar voo, apesar das águias. Mas, convenhamos, tal seria um exercício cínico num momento em que a derrota já foi sentida nos ossos. Se já há o fardo da existência, deixemos o peso da derrota para os outros.

    E assim fica completa a crónica que não foi. Ou antes, a justificação para a ausência de crónica que, em si, é uma manifestação de puro benfiquismo: abraça-se a glória, mas vira-se o rosto à humilhação. Não é covardia; é elegância. E nem foi, convenhamos, por falta de tema. Foi falta de ânimo, é certo – mas também uma delicada aliança entre a necessidade de não perpetuar a desgraça e a vontade de avançar para vitórias que certamente me esperam hoje.

    Além disso, e como diz o povo, acumulada por sabedoria de milénios de adversidades e de vinho, muita água faz o tempo correr por baixo da ponte. E, em duas semanas, não só correu água, como, depois da tristeza, já o Benfica levantou um caneco – a Taça da Liga –, à custa do mesmo Braga e também do Sporting. E, portanto, temos hoje Benfica renascido. E, aliás, renascido, e sei isso, porque estando a alinhavar esta crónica, já estão dois encaixados nas redes do Famalicão.

    Já agora: esta crónica também vai ficar diferente, porque não me dá jeito escrever sobre as incidências do jogo. Entrei mais uma vez atrasado, e quando entrei já o Benfica ganhava. Não cheguei para ver o golo inaugural, mas cheguei a tempo de testemunhar uma coisa tão rara quanto fascinante: uma bancada central cheia de lugares vagos. Não resisti à tentação, claro. Em vez de uma colina himalaica que tenho de subir até à Varanda da Luz, fiquei aqui mais por baixo, com a promessa de uma visão privilegiada do relvado e, ao que parece, um festival de palavrões que os sócios mais antigos, e seguramente mais experientes, têm na ponta da língua… e com a qual vão mimando o árbitro, apesar de estarmos a vencer.

    Sentar-me na bancada central, embora impossibilite escrever confortavelmente, foi uma decisão calculada. Melhor vista? Sim. Mais palavrões? Com certeza. Menos tumulto? Nem por isso. Porque se há uma coisa que aprendi no futebol é não há papas na língua. Um destes dias ainda escrevo uma crónica só com palavrões e dichotes enquanto se assiste aos 90 minutos. Estes são os verdadeiros cronistas, mais ferozes do que qualquer jornalista, mais eloquentes do que qualquer filósofo. De cada vez que o árbitro apita contra o Benfica, lá vem um ensaio oral, misto de tragédia e comédia. Uma falta contra o Benfica, e a mãe do jogador adversário é vilipendiada.

    Com o Benfica em vantagem no marcador, tenho garantida uma noite tranquila. O Famalicão, ao que parece, está disposto a facilitar a vida. Nem um chuto digno de nota. O Trubin daqui a nada adormece.

    Por agora, contento-me com esta bancada central, com os seus cronistas de língua afiada e vista atenta, com a promessa de mais golos e mais emoções. Se a noite acabar em goleada, tanto melhor. Se não, bem… há sempre espaço para mais uma crónica, mais uma análise, mais uma ópera de palavrões. Afinal, na Luz, nunca há dias iguais – só noites cheias de histórias para contar.

    E encerro esta crónica – e vou armar-me em espectador normal. Até vou sair do estádio como adepto normal, num lento magote até ao Colombo. Terça-feira cá estarei: o Barcelona espera-me, ou espera-nos.


    Recepção ao Barcelona. Liga dos Campeões. Não é todos os dias nem para todos. Terceira-feira de dilúvio. Debaixo de chuva, os céus prometeram uma noite épica, e tudo começou com uma ilusão – palavra parecida com o castelhano ilusión, que significa mais entusiasmo ou mesmo alegria –, mas que terminou isto num aguaceiro de frustrações. Desta vez metido numa ala lateral da Varanda da Luz, uma espécie de coxia, porque houve mais jornalistas do que mães para assistir ao jogo, mas aparentemente escolhido para maximizar a irritação: não só pingava – um gotejar rítímico e implacável que, se fosse numa cela medieval, seria tortura reconhecida – como ainda me puseram junto de jornalistas vindos da Catalunha.

    O Benfica, confesso, começou como um furacão, levando-me a acreditar que, finalmente, o colosso catalão seria domado. Percebi a aflição de um jornalista, a meio lado, com sotaque brasileiro. Ao intervalo, tínhamos um 3-1 vistoso e galvanizante. Mas, mas, mas… na Liga dos Campeões, o Benfica é uma espécie de Estoril na nossa Liga que está a ganhar por 3-1 ao intervalo, mas inseguro de alcançar a vitória final.

    Aos 65 minutos, o Benfica esmoreceu e os golos do Barcelona começaram a cair, cada um mais doloroso que o anterior. A última machadada, aos 95 minutos e uns quantos segundos, imediatamente depois de um lance que deveria (pelo menos com o lusitano VAR) dar penálti a nosso favor, pareceu-me castigo divino, como se os céus dissessem: “De que serve sonhar tão alto se não tens guarda-chuva nem defesa sólida?”

    Se a derrota já era difícil de digerir, a cereja no topo foi ter de encontrar uma dose extra de fair play para continuar a sorrir para o simpático jornalista brasileiro, radicado na Catalunha, com quem fui compartilhando as incidências do jogo e os pingos de chuva.

    Não se perdeu tudo: o Lucas, assim se chama, trabalha para o site brasileiro do Barcelona. Fiquei com o contacto dele, prometendo que, numa próxima oportunidade, visitarei o Camp Nou. Assim, pelo menos, com as suas indicações, não passarei pelo que lhe aconteceu aqui em Lisboa: andou às voltas durante uma hora, perdido e irritado, à procura de uma entrada que parecia ter sido escondida de propósito.

    Talvez, numa outra noite, menos molhada e menos caótica, consiga redimir esta frustração – em todo o caso, mais memorável do que a derrota com o Braga. Mas, por agora, fico apenas com a certeza de que, no jogo e na vida, há dias em que os deuses do futebol decidem deixar-nos à chuva. Literalmente.

  • Estoril 3.0

    Estoril 3.0


    Aquele golo sofrido, no fim-de-semana passado, no último lance do jogo contra o AVS – que nem sei bem o que significa – doeu muito. Não tivesse o Trubin despachado tão mal aquele atraso, não houvesse falta, não tivesse a defesa do Benfica andado a ver navios…  Enfim, o prazer faz-se pagar caro, mas, de igual sorte, quanto mais tarde chega, mais saboroso parece ser. E estou confiante, depois de mais um percalço do Sporting, graças ao excelente treinador João Pereira (longa vida lhe desejava eu aos comandos dos lagartos, mas, infelizmente, como o peru, não sobreviveu à quadra), desta vez é que é: vamos mesmo chegar ao Natal em primeiro lugar. Presumo eu, que comeceu esta crónica pouco depois dos primeiros pontapés, ali em baixo.

    Nisto, depois de tudo o que se passou com o Roger Schmidt, prenunciar o Benfica em primeiro lugar é melhor do que aquela filhó que chega à mesa, dourada como o sol deste Inverno, estaladiça na borda e macia no centro, com um aroma subtil de aguardente a aquecer a alma.

    Não há melhor. Nem que fosse uma daquelas rabanadas que se desfazem na boca, banhada em calda de açúcar e canela, húmida e perfumada, como se trouxesse o abraço do Natal num pedaço.

    O Benfica em primeiro no Natal será melhor do que uma fatia generosa de bolo-rei, de brilhantes frutas cristalizadas, de crocantes nozes e amêndoas, daquele que liberta perfume a laranja e vinho do Porto, ou melhor, aquilo é mais do Douro, ou, vá lá, de Vila Nova de Gaia.

    (tudo calmo ali em baixo, já agora… e já agora, poderia o Benfica ofertar uma fatia de bolo-rei que este famigerado farnel merecia melhorias; se melhoraram o treinador, metendo o Lage, não sei a razão para manterem o lanche como está…)

    Enfim, continuemos nestas analogias. Acrescento eu que ver o Benfica no topo da clasificação será mais apetitoso do que qualquer tronco de Natal, mesmo se com aquela textura cremosa de chocolate, laivos de açúcar como neve fresca em decoração, a envolver as papilas num abraço de sabores.

    Nem qualquer sonho se iguala, que sonho já vivem agora os benfiquistas depois do pesadelo alemão – e mesmo que fosse um daqueles sonhos que parecem flutuar, leves como uma nuvem, por terem sido fritos até à perfeição, com a superfície caramelizada e polvilhada de açúcar.

    E metam também os pudins de ovos em calda de caramelo, ou as broas-de-mel em farinha de trigo ou as tartes de amêndoa de crosta dourada – tudo perde no confronto com o Benfica em gloriosa posição.

    (é goloooooooo; golooooooooooooo… já está. O nosso PAVlidis a dar-nos melhor música do que o Vangelis!)

    E digo mais agora, que o primeiro lugar me parece garantido: nem todo o ouro, nem todo o incenso, nem toda a mirra valem mais do que este momento. Exagero? Talvez. Acho que exagero mesmo. Quer dizer, pelo ouro de todo o Mundo eu até prescindia – que não sou doido –, mas só para que pudesse guardar uma pequena porção. Para quê? Ora, para alguns reforços cirúrgicos na ‘janela de Janeiro’, claro, que o assalto final à época não se faz com romantismos, mas com pragmatismo. E, além disso, temos a Champions, e eu não quero mais ver derrotas desta varanda.

    Em todo o caso, sendo certo que o ouro pode comprar jogadores, não compra o espírito. Não compra o grito da multidão, o abraço colectivo nos golos, nem o sabor desta vitória. Aquilo que desejo vincar é que o Benfica no topo, antes deste Natal, transcende qualquer presente material. É um presente que se sente, que nos percorre as veias e nos aquece melhor do que qualquer lareira da casa das nossas avós.

    O prazer de ver este nosso Glorioso no cume da tabela não é só estatística; é a chegada de triunfo que, como dizia Nietzsche, só se torna verdadeiramente glorioso depois de superados os obstáculos. E superámo-los: os percalços com o Roger Schmidt, o renascimento com Bruno Lage, e até os deslizes que pareciam comprometer o destino.

    (chega o intervalo, e o Benfica, na verdade, não deslumbra, mas mostra-se competente, mas tem de marcar mais golos para nos sossegar)

    Enquanto isto, filosofo mais, enquanto os guerreiros descansam, sobre esta reconfortante sensação que é o prazer, e que, desde tempos imemoriais, tem sido um tema central da Filosofia – e que me parece ter nesta Da Varanda da Luz o local ideal para uma competente dissertação.

    Sabemos que o prazer para os antigos gregos, mesmo sem saberem nada das artes da ludopédia, não era apenas uma questão de experiência, mas de equilíbrio e significado. Epicuro, frequentemente mal compreendido como hedonista, defendia que o verdadeiro prazer residia na ausência de dor, tanto no corpo quanto na alma. Para ele, a gratificação era maior quando obtida com moderação, ponderação e, sobretudo, depois de se ultrapassarem grandes dificuldades.

    (e recomeça o jogo; força Benfica!)

    Por outro lado, Aristóteles via o prazer como um complemento da virtude; era bom, mas nunca deveria ser o objectivo em si. Para ele, o esforço e a excelência eram a chave para uma vida bem vivida, e o prazer surgia como uma consequência natural desse caminho. Talvez devessem mesmo experenciar a dor de ter um treinador como o Roger Schmidt no início da temporada… – ou, para quem é do sportinguista, ver o João Pereira a desbaratar um início perfeito do Ruben Amorim, que, aliás, quis ir sofrer para Manchester.

    Passando agora dos antigos para os modernos. Sobre o prazer, podemos sempre recorrer ao útil Nietzsche, que desafiou o ideal da busca pelo conforto. A sua ideia de amor fati, ou o amor ao destino, sublinha que é no confronto com as adversidades que se encontra o verdadeiro sentido da existência. Não sei ainda bem se isto se aplica ao futebol. Aplica-se?

    (ai ai ai!, desgraça! Penalti contra o Benfica. Grande porcaria… espera… espera… o VAR ‘anulou’, ou melhor, o árbitro reverteu a decisão depois de ir ver o VAR. Alivio! Depois da dor pela antecipação de uma desfeita, foi como se viesse o prazer depois de uma dor percebida)

    Suspiro, aliviado. Tréguas para continuar a filosofar nesta Varanda da Luz. E respondo à pergunta. Claro que sim. Se o amor fati nos ensina a abraçar o destino, com todas as suas adversidades, então aplica-se, sim, ao futebol. E porquê? Porque o futebol, como a vida, não é uma sucessão de vitórias fáceis e momentos perfeitos; antes sim, é feito de frustrações, de reviravoltas, de lesões inesperadas, de golos sofridos no último minuto – como aquele contra o AVS, que ainda me dói só de lembrar. O amor fati é isso: aceitar que a dor faz parte do jogo da vida, e é precisamente essa dor que torna as vitórias mais doces.

    Quando pensamos na travessia inicial desta época, com Roger Schmidt a transformar-se numa fonte de frustração, ou quando olhamos para o Sporting – cujo início parecia prometer glórias, apenas para que o João Pereira desmoronasse tudo como um castelo de cartas –, percebemos que o futebol é um microcosmo da existência humana. É a luta contra as probabilidades, o confronto com a imperfeição, que dá significado ao jogo. Nietzsche diria, se vivesse agora, que, ao amar essas adversidades, ao encontrar beleza nas derrotas e nos momentos de dúvida, crescemos enquanto adeptos – e enquanto seres humanos.

    (goloooooooooo!!!! Benfica! Zeki Amdouni, acabadinho de entrar, e logo a marcar. Alívio. E o Natal está a 17 minutos de chegar, mais os descontos)

    E veja-se: se não fosse pelo sofrimento inicial, e até o sofrimento deste jogo, que houve, onde encontraria eu o sabor pleno do momento actual? O Benfica em primeiro lugar antes do Natal é um presente que só faz sentido porque passámos por altos e baixos. Se a vitória fosse certa, constante, garantida, perderia o seu valor. O futebol seria uma monotonia, sem emoção, sem intensidade. A glória de PAVlidis a marcar hoje, como se fosse o outro Vangelis a compor uma sinfonia em campo, mostra-se arrebatadora porque é fruto de esforço, de trabalho, e, sim, de dor superada… Acho que estou a exagerar, mas, enfim, quem não…

    Talvez seja isso que Nietzsche, mesmo antes do futebol ser inventado como o conhecemos, nos ensina: não há prazer genuíno sem luta, não há glória sem adversidade. Por isso, amar o destino, com as suas curvas e tropeços, constitui uma declaração de amor ao futebol em toda a sua imprevisibilidade. Por isso, sim, o amor fati aplica-se ao futebol – e talvez o futebol, no fundo, seja um dos maiores exercícios de amor fati na vida moderna. Afinal, que outra paixão nos leva a sofrer tanto e, ainda assim, a amar cada instante?

    No coração de cada adepto, sinto agora nestes benfiquistas, um pouco mais de 60 mil aqui no estádio, reside um ethos semelhante ao dos filósofos: o prazer supremo destas últimas semanas, e de hoje em particular, esteve inextricavelmente ligado à paciência, sobretudo com o alemão, ao esforço, à espera e, muitas vezes, à dor de suportar derrotas e empates. Não é o sabor mais ou menos fácil das vitórias sucessivas com o Bruno Lage que agora cativa; é o momento glorioso que chega após uma sequência de desafios superados.

    (e golooooooooooo… 3-0; novamente o suíço com o nome esquisito, que me parece que está a ficar melhor do que o Seferovic)

    Termino, como termina o jogo, em glória, afirmando que o Gloriosa, nesta temporada, será é o exemplo perfeito desta Filosofia da Ludopédia aplicada à vida. Qualquer adepto já saberia que as conquistas mais satisfatrórias são aquelas que surgem depois de períodos de frustração. E agora, basta seguir o caminho. Alvalade será o próximo bastião a quebrar: dizem-me que já sem o João Pereira… Agora, até podiam contratar o Pep Guardiola…


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  • Guimarães 1.0 (seguido de Bolonha 0.0)

    Guimarães 1.0 (seguido de Bolonha 0.0)


    A delícia do futebol é, na verdade, ser um reflexo da vida, e esta constatação vai muito além do cliché que se repete nas bancadas ou em mesas de café. É o teatro do improvável, a vida ou o futebol, uma peça onde o destino brinca com o esperado para introduzir o inesperado, transformando as certezas irrefutáveis em poeira no primeiro sopro de surpresa.

    Se a vida é uma luta constante entre a ordem e o caos em cima de uma bola chamada Terra, o futebol é a sua recriação mais fiel mas curta, em 90 minutos, de drama humano condensado em passes, golos, falhanços e, claro, nesta imprevisibilidade esperada que nos faz voltar, semana após semana, para ver como o capítulo seguinte será escrito.

    (e cheguei atrasado ao estádio, o que não é, certamente inesperado; salva-se que, no meio disto, esgotaram-se as doses de farnel, donde resultou que me desenrascaram apenas um pacotinho de batatas fritas, uma água e, vá lá, uma bifana verdadeira)

    Continuemos. Vejamos o exemplo do Glorioso e do seu arqui-adversário da Segunda Circular. Ainda há pouco mais de um mês, a Liga portuguesa arriscava ser um imerso marasmo. O Sporting de Amorim limpava tudo com uma surpreendente facilidade, cabazadas a eito, e o Benfica em estado de letargia tão desinspirada que já nem a mais fervorosa das águias acreditava numa reviravolta.

    Sob a direção de Roger Schmidt, nem um pingo de pressão, muito menos de criatividade, parecia ter perdido o fôlego, arrastando-se por uma sequência de exibições que fazia os adeptos suspirarem pela próxima época como a única salvação possível. Mas, como no futebol e na vida, as coisas nunca são tão simples nem tão lineares. E eis que assim se Schmidt, e o Sporting viu o seu treinador de sucesso rumar ao Manchester United – e num picar de olhos, a realidade altera-se. O Benfica feito carta fora do baralho, já está em posição de líder virtual, ‘bastando-lhe’ sair vitorioso deste Vitória e do jogo em atraso contra o Nacional, se os nevoeiros se escafederem em nova visita, que o ex-benfiquista João Pereira tratou de escavacar os lagartos depois da debandada de Ruben Amorim para a Velha Albion.

    (e gooooooooooloooooooooooo!!! Benfica… Aktürkoğlu, ao minuto 29, a desbloquear o nulo; isto estav a difícil, com as ofensivas muito afuniladas; venham mais agora, que já temos luz verde para a vitória)

    De facto, há algo profundamente filosófico neste jogo de incertezas. Heraclito dizia que “tudo flui”, que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. No futebol, é certo que nunca se joga duas vezes o mesmo jogo, mesmo quando o adversário é o mesmo e as equipas tenham as mesmas caras. O golo inesperado, o erro do árbitro (ou do VAR), o ressalto fortuito – tudo contribui para esta dança do imprevisível que transmuta o futebol num espelho tão claro da existência humana. E é nesse fluxo constante, nessa impossibilidade de prever o que vem a seguir, que encontramos o fascínio deste desporto.

    Mas não é só a filosofia que encontra eco no futebol. Também a História, com as suas vitórias e derrotas inesperadas, parece partilhar da mesma lógica. O futebol, nesta imprevisibilidade que tanto o define, reflecte o melhor e o pior da vida. A narrativa do Benfica encontra – exagero, claro! – paralelos históricos que mostram como os momentos de maior adversidade podem ser os precursores de vitórias inesperadas.

    (intervalo, e espero que o descanso dê mais alento ao Benfica, que me parece ago inquieto com este atrevido Guimarães)

    Enquanto o descanso dos guerreiros decorre, um pouco de História: lembremo-nos do desembarque de Dunquerque, durante a Segunda Guerra Mundial. Em Maio de 1940, as tropas britânicas e aliadas estavam cercadas pelas forças alemãs na costa francesa, e a situação era desesperante, e a derrota inevitável na apoarência. Mas, num acto de coragem e engenho, a Operação Dínamo mobilizou civis e militares para uma das mais extraordinárias evacuações da História. Mais de 300 mil soldados foram salvos, um feito que, embora não fosse uma vitória no sentido convencional, representou uma viragem moral e estratégica que mudou o curso da guerra. Foi um exemplo claro de como a resiliência, a esperança e a acção coletiva preparam aquilo que seria uma derrota iminente num triunfo inesperado.

    (e começa a segunda parte)

    Continuemos… e isto para, evitando mais exemplos bélicos, não introduzir aqui em detalhe a Batalha de Inglaterra, que se seguiu a Dunquerque. A Royal Air Force, em inferioridade numérica face à Luftwaffe, conseguiu defender os céus britânicos dos contra-ataques devastadores, demonstrando que a determinação e a coragem podem superar probabilidades aparentemente intransponíveis. O futebol, tal como a História, está, pois, repleto destes momentos em que o improvável se torna possível, em que as narrativas são subitamente invertidas, mudando o desespero em esperança e a fraqueza em força.

    Por isso, quando o Sporting decidiu apostar num treinador novato como João Pereira, muitos riram-se da ousadia ou da ingenuidade. E, no entanto, essa decisão, aparentemente inocente, foi o catalisador para que o Benfica encontrasse espaço para se reerguer. O futebol, como a vida, tem destas ironias deliciosas. Pequenos gestos, pequenos desvios, podem gerar mudanças monumentais. É a teoria do caos em acção: o bater de asas de uma borboleta em Manchester pode mesmo gerar um cataclismo em Lisboa.

    (ui… o Florentino a inventar, bola a ressaltar para o Guimarães, e nem sei como não foi golo nem sei, mesmo com repetição na televisão, se o corte do Otamendi, in extremis, pode ter sido feita sem as mãos; o VAR é soberano!)

    Mas o futebol nem é só isto que eu estava aqui a dizer. É também uma celebração do presente, uma pausa na lógica e na racionalidade do dia-a-dia para vivermos o agora em toda a sua intensidade. Quando estou no estádio, entre cânticos e gritos, embora eu seja bastante comedido na Varanda da Luz, ou os leitores e leitoras em frente à televisão a sofrer pelo golo que tarda em chegar, não há ontem nem amanhã. Há apenas aquele instante, aquele momento de esperança, de angústia ou de êxtase puro. É por isso que o futebol, mais do que um desporto, é uma experiência existencial. É, como diria Camus – não sei bem se disse, ouvi dizer –, o lugar onde “aprendemos que uma bola nunca vem para nós como esperamos”.

    E o Benfica, nesta temporada, mostra-nos como o futebol e a vida se entrelaçam. Não há finais garantidos, não há glória sem risco, não há narrativa que não possa ser reescrita. É a incerteza que dá sabor às vitórias e torna as derrotas suportáveis. Ser líder virtual não é ser campeão, e os próximos meses serão uma montanha-russa emocional onde tudo pode acontecer. Mas, para já, o Benfica é a prova viva de que, no futebol como na vida, nunca se deve subestimar o poder do improvável.

    E é isso que faz do futebol uma delícia. Porque, no final, o que nos prende ao jogo não é a previsibilidade, mas a promessa do inesperado. O golo que surge contra todas as probabilidades, o passe mágico que desarma a defesa, o falhanço que nos faz rir e chorar ao mesmo tempo. É no futebol que encontramos a essência da vida – essa mistura de caos e beleza, onde cada segundo é uma oportunidade de redenção. E, no fundo, é isso que nos mantém vivos. E a sonhar.

    (lá em baixo, o jogo anda vivo, mas eu gostava que estivesse morno, porque o Guimarães me parece mais próximo do empate do que o Benfica de marcar mais um)

    Não desejo cantar já vitória, mas a trajetória do Benfica nesta temporada ganhará, se vencermos, uma dimensão quase épica. Há poucos meses, os adeptos pareciam estar num estado de luto antecipado. Num piscar de olhos, a lógica foi subvertida, e o caos organizou-se em algo que parece agora uma caminhada rumo à glória. A liderança virtual não é ainda o título, mas é uma lembrança poderosa de que no futebol, tal como na vida, a única constante é a mudança.

    Mas continuemos a filosofar, enquanto ali o jogo caminha para o final, com alguns estrebuches do Vitória que me estão a pôr nervoso. O futebol é, por outro lado, também uma celebração do presente, algo que o distingue de quase todas as outras áreas da vida. Quando um golo é marcado no último minuto, nada mais importa. Não há passado nem futuro, apenas aquele momento puro de emoção. É por isso que este desporto, além de ser um reflexo da vida, é também uma lição sobre como viver. Na Varanda da Luz, ou em frente à televisão, os adeptos não pensam no amanhã; vivem o agora com uma intensidade que transcende o racional.

    (eu já só quero que isto acabe, porque não há crónica do que aquela que nasce com o rei na barriga, ou seja, com a vitória antecipada e, depois, redunda num desastre, e eu quero mesmo ir a Alvalade, com o Carlos, no dia 29, com o Benfica à frente do campeonato)

    Esta será a maior delícia do futebol: a sua capacidade de nos lembrar que a vida é feita de momentos. Momentos que, como o desembarque de Dunquerque ou a Batalha de Inglaterra, nos mostram que nem tudo está perdido, mesmo quando tudo parece estar contra nós. O Benfica, nesta temporada, é mais do que uma equipa de futebol; é um símbolo da resiliência e da força do improvável. Porque, no fundo, no futebol como na vida, nunca se deve subestimar o poder da surpresa – é nela que reside a verdadeira magia.

    E o jogo acabou e eu estou aliviado… Acho que quarta-feira só aqui venho, para assistir ao jogo contra o Bolonha, apenas para descontrair. Até porque ainda estou a lembrar-me daquela desgraça que foi contra o Feyenoord.


    E sobre o jogo contra o Bolonha, não há muito a dizer. Foi uma nulidade. Um nulo, de que pouco ou nada se deve dizer.


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  • Porto 4.1

    Porto 4.1


    Cheiinho de razão estava o espanhol Ortega y Gasset, que, apesar do nome, era um só: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim”. De facto, também eu sou a interdependência entre mim e o ambiente que me rodeia. Por muito que me jugue capaz, eu, tal como os demais, sou moldado, condicionado e influenciado pelas circunstâncias em que vivo, ou seja, pelo contexto social, histórico, cultural e material em que me insiro. Isto, no geral; porque, no particular, sou mais moldado, condicionado e influenciado por pequenos acasos, pequenas circunstâncias, pequenos condicionalismos, pequenos nadas.

    Por exemplo, se por natureza tenho uma inclinação, que muito me prejudica, em andar a correr atrás do tempo – isto é, a lutar in extremis para não chegar atrasado –, hoje está cheguei bem cedo aqui à Varanda da Luz, mas por razões circunstanciais associadas, hélas, a um atraso. Quer dizer: na perspectiva do Benfica, cujos (simpáticos) serviços consideraram que eu me atrasara no envio no pedido de acreditação, e na troca de e-mails do dá ou não dá, e investido do Estatuto de Jornalista na mão, como um Camões de manuscrito de ‘Os Lusíadas’ na mão, decidi vir para os lados de Benfica para, se necessário fosse, tirar desforço. Não valeu a pena, porque, enfim, me enviaram, entretanto, mensagem electrónica confirmando a acreditação, donde se conclui que, por força de um (alegado) meu atraso, as circunstâncias precipitaram uma chegada antecipada. E mesmo assim dando tempo – ou seja, aproveitando o tempo, para não o perder noutra circunstância – de ir antes do jogo à Estrada de Benfica por mor de uma investigação em curso… sairá na próxima edição, assim espero.

    Por esta (afinal) feliz circunstância de chegar mais cedo (uma hora), garantido está que não vou perder, em princípio, qualquer golo, como amiúde sucede quando me agacho para meter a ficha do computador na tomada, já no decurso do jogo. Já perdi dois golos, pelo menos, à conta disso… Hoje, já está tudo a carregar bem carregado… Também estou com fé por ter entrado, desta vez, pela via do Colombo, e não pelo Alto dos Moinh. Pelo menos, a ‘paisagem’ foi diferente.

    (… e, entretanto, começou o jogo…)

    Por falar em dois golos: como é possível o Sporting de Braga ter estado a ganhar por dois golos a zero, e depois levantar quatro ‘secos’ do Sporting na segunda parte? Credo! Ainda bem que o Ruben Amorim vai para as terras de Manchester! E já vai tarde…

    E por falar em dois golos e no Sporting…

    (goloooooooo. Benficaaaaa: Alvaro Carreras, o espanhol, com um belo remate, antecedido de um passe de trivela, estranho pela posição, de Tomás Araújo; assim já can um!)

    Isto já está a animar. Mas continuemos…

    Estava eu a falar – ou, melhor dizendo, a escrever – sobre golos desperdiçados e sobre o Sporting, e isto é um déjà vu: há dias, enfim, fui até Alvalade, esperando ser presenteado com uma sandes de leitão de Negrais, enquanto assistia a uma cabazada fornecida aos lagartos por Bernardo Silva & Ca., para assim me rir na cara do Carlos Enes, mas tudo se esfumou por obra e graça de Santo Amorim’. Não, a sandes, que essa, afinal, nunca chegou. Aquilo que se esfumou foi a possibilidade de assistir in loco, a uma reviravolta épica sob a batuta de um benfiquista. E tudo porque não houve sandes de leitão, coisíssima nenhuma, nem uma bolachita de água e sal.

    Aliás, aqui me penitencio, desde já, por andar, há muito, a ironizar, com sarcasmo, em redor do famigerado farnel do futebol (FFF), ofertado pelo Benfica aos jornalistas, e que, de ordinário (no sentido, de ser vulgar ou comum), consiste numa sande de conteúdo interior (relativo ao panificado) nem sempre identificável, em uma singela peça de fruta (hoje foi maçã), de uns acepipes (hoje saiu batata frita em pacote pequenino) e garrafinha de água (de pH básico, próximo da lixívia).

    (chiça! Mas o Otamendi agora lembra-se que jogou no Porto, e faz mais uma fífia de tudo o tamanho; e sai um golo para os tripeiros)

    E chega o intervalo, e continuemos…

    Ora, aqui, com o FFF, não corro, digo já, o risco aqui no Estádio da Luz de ter de sair para comprar umas asas de frango a um qualquer McDonald’s, como sucedeu com o Carlos Enes. Resultado: perdemos dois golos, porque não deu para fazer todo o percurso antes do início da segunda parte. Hoje, não vou perder nenhum. Mas tenho esperança de que o resultado seja similar: 4-1, depois estar também 1-1 ao intervalo.

    (e recomeça o jogo)

     … E estou aqui a ver que não vamos repetir o feito do Amorim. Já passaram quase 10 minutos, e nada…

    (… e golooooooo. Angel Di Maria!!! Já está!!!)

    E eu hoje, estou como estive noutros jogos, com pouca vontade de escrever e com mais vontade para assistir… Vou ver se isto agora vai encarreirar…

    (… e encarreirou!!! Bastaram seis minutos, e já entrou mais um; nem sei se foi golo do Benfica ou auto-golo do Porto; pouco interessa: já está 3-1)

    Deixa-me ver se encontro no WhatsApp o especialista do PÁGINA UM também em comentário desportivo, sobretudo do Benfica, corrosivo quando correm mal: Tiago Franco…

    Estou já a meter-lhe uma cunha…

    … e está garantido um textinho, a ser metido aqui nesta crónica. Posso então meter o computador no saco… Ou não. Tenho de meter aqui o próximo golo do Benfica, para meter o treinador do Porto com o ‘melão’ do Pep Guiardiola em Alvalade…

    (e é penalty para o Benfica… Di Maria para marcar e… marca: 4-1. Caramba, espero ainda mais!)

    Mas não houve mais, embora pudesse haver. Uma noite perfeita, muito similar aos quatro ‘secos’ metidos ao Atlético de Madrid, não fosse a fífia do Otamendi.

    Concedamos, então, agora, o merecido espaço à análise do Tiago Franco, que percebe da poda muitíssimo mais do que eu, o que não seria difícil, uma vez que eu percebo zero… Por isso mesmo, disfarço com estas crónicas…

    Esta era a noite do primeiro grande teste a Bruno Lage. A Liga dos Campeões permite alguns fogachos aos clubes portuguese, que, na melhor das hipóteses, terminam nos quartos de final. Portanto, é no campeonato e, em especial, contra o maior rival deste século, que se vê o que se pode esperar desta equipa.

    Vítor Bruno deu uma ajuda a Bruno Lage, deixando Pêpê no banco, e apresentando um 11 onde o perigo se resumia a Samu e Galeno. O Benfica apareceu com o seu melhor 11 e dominou do princípio ao fim, ficando a dever a si próprio a possibilidade de uma goleada histórica. O golo de Samu surge de um erro de Otamendi, e depois de uma pausa de jogo forçada, num momento em que o Benfica carregava na área do Porto…

    Aqueles adeptos especiais, que lançam tochas, quando a sua equipa está por cima do jogo, deveriam ter direito a um subsídio do Governo para a compra de capacetes e esponja de parede.

    Falando em gente especial: sempre que vejo este miúdo Carreras a correr, driblar adversários, marcar golos e iniciar jogadas de ataque, lembro-me de tempos não muito distantes em que ele se sentava naquele banquinho, ali ao lado, a ver o Morato a chutar contra os adversários. Bruno Lage não é o meu treinador de eleição, mas é um treinador, algo que já não havia na Luz há dois anos. Tem um plano de jogo, estuda os adversários, mexe a partir do banco. Passou o teste, era este o teste.

    Vítor Bruno com um plantel fraco, tal como Sérgio Conceição, não mostra a mesma arte deste em meter aquela gente a espumar da boca mal avistam o Colombo. O Porto joga pouco, as soluções não abundam. O Benfica também não enche o olho, convenhamos, mas tem uma equipa consideravelmente melhor e, parece-me, mais competência no banco.

    Di Maria é, na realidade portuguesa, ainda um extraordinário jogador.  O trio de meio-campo é este, com Florentino na recuperação e Kökçü e Aursnes na saída. Não é preciso inventar, basta meter os 11 melhores. Foi o que Bruno Lage fez, mas com uma chamada de atenção a Otamendi: está a precisar de banco, e o Benfica está mesmo a pedir aqueles dois miúdos no centro da defesa.

    Uma nota final para dizer que, embora o Porto seja o tradicional rival neste século e portanto, a vitória é saborosa, a competição este ano será contra o Sporting. E esses, até ver, estão uns furos acima de Benfica e Porto. Rezemos pelo fim do efeito Ruben. Sem acento.

    E em Dezembro há mais.


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  • Feyenoord 1.3 (seguido de Rio Ave 5.0)

    Feyenoord 1.3 (seguido de Rio Ave 5.0)


    No Benfica aplica-se a máxima: “quem se se levanta primeiro, calça os chinelos”, de sorte que, enfim, remetido fui hoje, por via da acrescida procura, para a ala esquerda, já algo de esguelha, da Varanda da Luz, que aparentemente é para onde ‘exilam’ os jornalistas estrangeiros – digo eu, pois, aqui ao derredor, vejo ‘olheiros’ da polaca Telewizia Polska, da alemã Sportbild Hamburg e da norte-americana ESPN.

    Bem sei que cheguei ‘resvés Campo de Ourique’, com o apito do árbitro a apanhar ainda a meio da escadaria de mochila às costas e o famigerado farnel do futebol (FFF) na mão, mas sempre poderia o Benfica proceder como os ‘lagartos’ do outro lado da Segunda Circular: reservar posições fixas. Ah, já agora, fornecer uma sandes de leitão de Negrais: dei agora mesmo uma trinca nesta espécie de carcaça e consegui identificar um ligeiro sabor a carne na fatia posta – e não colocada [estás a ver, Manuel Monteiro?] – no pão aberto.

    Enfim, culpem-me também por esta minha pouca inclinação para a pontualidade britânica – e não por considerar os ingleses snobs, que mereçam ser maltratados, como opina o ‘nosso’ almirante Gouveia e Melo –, mas a vida não anda fácil quando, no mesmo dia, se tem de lidar com as bicicletas disfuncionais da EMEL, com umas consultas de processos na ERC, com reclamações na Decathlon por uma encomenda não entregue e já paga [o que valeu uma devolução e um cliente perdido]. No meio disto, restou pouco tempo para avançar com a edição. E como podem, deste modo, aperceber-se, não estou hoje particularmente bem disposto…

    (Golo do Feyenoord, grande porcaria! Isto não estava previsto; logo aos 11 minutos, com uma facilidade enorme)

    Agora ainda menos… TSe calhar, mais valia ter-me atrasado ainda mais. O raio do tempo, esse tirano invisível que insiste em reger a nossa existência, mesmo, ou sobretudo, no futebol, que tudo se passa em noventa minutos mais os descontos. Para alguns, o relógio é uma bússola moral, um farol que os guia entre os perigos do caos, para outros uma imoralidade. O Kant, por exemplo, via a pontualidade como uma virtude, quase uma obrigação moral, um acto de respeito pela humanidade, uma espécie de imperativo categórico de quem entende que o tempo do outro também tem valor. Eu sei, e flagelo-me tanto, pelos meus atrasos.

    (ena, c’um caraças, segundo golo do Feyenoord, e isto depois de um outro golo ter sido anulado; está lindo hoje)

    Até porque nunca sequer usufruo da deliciosa arte de se chegar atrasado. E, se as há: as vantagens! Quem disse que o mundo é feito apenas para os que respeitam o relógio? Nietzsche defendeu, dizem-me, porque confesso que nunca li qualquer passagem a esse respeito, que a obediência cega ao tempo era uma das formas mais subtis de opressão. A liberdade verdadeira, essa sim, é a de quem chega quando bem entende. Chegar atrasado, sejamos sinceros, é uma afirmação de poder, uma espécie de grito silencioso contra a rigidez da vida moderna, sendo, contudo, que tenho dúvidas se a UEFA autorizaria que este jogo somente começasse quando eu chegasse…

    Se eu tivesse chegado apenas às 22 horas, como dono do meu próprio tempo, senhor do meu destino, livre das correntes invisíveis que prendem os outros, não estaria agora impaciente, roendo as unhas, zangado por esta péssima primeira parte; ao invés, no desconhecimento e ignorância estaria a gozar de uma serenidade aristocrática, como se o universo simplesmente tivesse ajustado a sua cadência para se alinhar apenas para não me causar qualquer dano.

    Chega o intervalo, entretanto, e nem sequer vale muito a pena fazer balanços. Foi mau em demasia. Avancemos para o intervalo…

    E que já passou. Veremos como corre esta segunda parte. Vou estar um pouco mais atento nestes próximos minutos… Aliás, só vou escrevere novamente quando o Benfica marcar…

    Isso estou eu agora a dizer porque neste momento sinto-me um existencialista, como Sartre, porque a liberdade de quem não se prende ao relógio pode rapidamente virar angústia. Estás tão livre, tão fora de qualquer compromisso temporal, que de repente percebes que a vida, sem as amarras do tempo, pode parecer um vasto vazio, onde até o prazer perde o gosto. Agora, na verdade, estarei nesta segunda parte agarrado ao relógio para saber se ainda vamos, hélas, a tempo de corrigir na segunda parte do tempo de jogo o mal que se fez na primeira.

    Nisto, meto Epicuro: nem tanto ao mar, nem tanto à terra – o ideal será o equilíbrio. Obviamente, chegar sempre atrasado pode fazer-nos sentir uma espécie de semi-deus – por exemplo, eu poderia nem vir ver o jogo –, mas deste modo não aproveitaria o prazer, que por agora é pouco, de estar aqui. Já aquele que vivem agarrados ao relógio podem acabar sem ter vivido, sempre correndo de um compromisso para o outro, sem parar para sentir o prazer do momento.

    (Goloooooo! Goloooooo! É do Benfica!)

    E agora a pressa…

    Ah, agora a pressa, essa fiel companheira da esperança e dos desesperados. Não há nada como o apelo dramático da sofreguidão quando tudo está prestes a desabar, mas há ainda uma réstia, um lampejo de ventura, que nos possa debelar o sofrimento, Schopenhauer já advertia que a vida é essencialmente sofrimento e se o sofrimento ainda se tornará maior depois de esgotado o tempo de jogo, porque aí a eventual derrota se mostrará irreversível, então o relógio mostra-nos como a esperança se escapa pelos dedos ao som de um tiquetaque, ainda mais quando, lá em baixo, não se anda sequer em correrias desenfreadas.

    Em todo o caso, a pressa e a sofreguidão também nunca foram boas conselheiras nestes momentos, e nem seria desejável que agora, lá em baixo, os jogadores do Benfica se portassem como aqueles trabalhadores de olhos esbugalhados e cabelos desgrenhados, correndo de uma tarefa para outra com a sofreguidão de quem acredita piamente que a pressa resolverá tudo. A pressa, na verdade, nunca se deve confundir nem ser um sinal de desespero. Para Nietzsche, a pressa era mais uma manifestação, uma revolta contra a falta de controlo que temos sobre o mundo. No caso, deste jogo, a pressa advém de, para se pontuar, pelo menos, o Benfica precisa de marcar mais um golo sem sofrer qualquer outro (válido) antes do árbitro apitar pela derradeira vez.

    Aliás, precisamos de um pensamento cartesiano, racional, um “penso, logo existo’ aplicado à bola. E não é um “corro, logo existo’ nem um ‘chuto, logo existo’, mas sim um «penso, logo ganho’. Um jogador perdido em campo, sem direcção, ou a passar para trás, como o João Mário, não ‘existe’ de todo. Mas se apenas pensa, e não corre nem chuta que está ali a fazer? Nada. Na melhor das hipóteses, melhor estaria a escrever crónicas, sem préstimo, ou pouco.

    Enfim, como se anunciam agora seis minutos de desconto, já pouco me importam as congeminações filosóficas: cada passe, cada decisão táctica, pode ser cartesiana ou raquidiana; interessa sim que o Benfica marque…

    Com os seis minutos de desconto, já pouco me importam reflexões: cada passe, racional ou instintivo, que resulte em golo!

    (… mas é o Feyenoord que marca)

    Pronto, guardemos a guitarra. Pela primeira vez desde que subo à Varanda da Luz, vejo o Benfica perder. Aceitemos o amor fati: tanto o sucesso como a derrota são etapas da vida. Nietzsche diria que são necessárias para o espírito. Mas eu só penso no tempo que perdi com esta derrota.

    O ritmo moderno parece pedir-nos pressa a todo o custo, esquecendo a importância de parar e pensar. Agimos por impulso, sempre contra o relógio. A pressa tem sua utilidade, mas é um remédio de efeito breve. Corremos porque acreditamos que isso resolverá tudo, mas, no final, acabamos exaustos, como num labirinto sem saída.


    Felizmente, o meu regresso à Varanda da Luz, quatro dias depois, foi mais feliz. Fiz gazeta apenas para apreciar o jogo, tirar umas fotos e, enfim, vingar-me do Provedor do Adepto do Rio Ave, o ex-presidente de infausta memória do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas… Cinco ‘secos’. Agora, o regresso aqui à Luz, depois das visitas ao Algarve e a Munique (ai Jesus), será com o Porto! Carrega, Benfica! Ou não.


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