Categoria: Sociedade

  • Nada se vê da piscina de São João da Madeira, mas Souto Moura já ‘nada’ em 400 mil euros

    Nada se vê da piscina de São João da Madeira, mas Souto Moura já ‘nada’ em 400 mil euros

    Nem sequer são obras de Santa Engrácia, porque ainda nem saíram do papel, mas certo é que a nova piscina municipal de São João da Madeira arrisca ser um ‘sumidouro’ de dinheiros públicos antes de sequer ser lançada a primeira pedra. Em 2011, era então presidente da edilidade o actual ministro da Coesão Territorial, Castro de Almeida, um concurso de ideias ganho por Souto de Moura resultou num contrato de 250 mil euros para o projecto de arquitectura e de especialidade. Porém, a falta de consenso político ‘abortou’ a obra, orçada inicialmente em 4,5 milhões de euros, mas que antes de qualquer pedra lançada, em 2016, já subirá para os 5,7 milhões. Agora, liderada pelo Partido Socialista, a autarquia do distrito de Aveiro ‘ressuscitou o sonho’ e, mesmo sem garantias de financiamento nem prazo de execução, deu um novo passo: pediu alterações ao projecto a Souto Moura. São mais 150 mil euros.


    Corria ainda o ano de 2011, e Eduardo Souto Moura, que acabara de ser então galardoado com o prestigiado Prémio Pritzker de Arquitetura, tinha razões para festejar: vencera um concurso público para a concepção do projecto de arquitectura das piscinas municipais de São João da Madeira. A selecção fora feita a partir de 46 candidaturas, e o ‘prémio’ consistia num contrato de praticamente 250 mil euros, que incluía o projecto de arquitectura propriamente dito e os projectos de estabilidade e de especialidade, incluindo das componentes de segurança e energia.

    Implicando uma empreitada estimada inicialmente em 4,5 milhões de euros, a nova piscina coberta de São João da Madeira seria o quarto projecto que Eduardo Souto Moura desenvolvia para este município do distrito de Aveiro, e estava prevista a sua construção no Complexo Desportivo Paulo Pinto, substituindo o antigo equipamento em funcionamento desde os anos 80 do século passado.

    woman leaning on white concrete surface beside swimming pool during daytime

    O contrato para a execução do projecto foi assinado em Maio de 2012 por Souto de Moura e Castro Almeida, o actual ministro da Coesão Territorial, que então presidia à edilidade de São João da Madeira. No momento da apresentação do projecto, em Setembro de 2014, o custo previsto já saltara para os 5,3 milhões de euros, mas apontava-se como justificação os investimentos para poupança energética, sendo que esta seria a primeira piscina coberta da Europa com certificação internacional LEED (Leadership in Energy and Environmental Design).

    Porém, apesar de ser ter cogitado um pedido de empréstimo de cerca de dois milhões de euros ao Banco Europeu de Investimento, “não foi alcançado o consenso político necessário na Câmara Municipal, entre as diferentes forças políticas, e a realização da obra não foi aprovada”, salienta fonte da autarquia agora liderada pelo socialista Jorge Vultos Sequeira, que assumiu funções em 2017.

    E o projecto ‘ressuscitou’. Ou melhor dizendo, teve de ‘renascer das cinzas’ com uma injecção de mais 155 mil euros para Souto Moura alegadamente ‘renovar’ um projecto de arquitectura das novas piscinas que, a surgirem, ainda não têm um custo previsto de empreitada. A autarquia socialista diz ser necessário ainda, para agora avançar com a construção de piscinas que já tinham projecto definido por Souto Moura, “adequar este projeto, com data de 2012, a normas e regulamentos actualmente em vigor implementados por via de atualizações verificadas durante os últimos 12 anos, isto é, aprovadas em momento posterior à elaboração do projeto inicial”, designadamente de ordem técnica e organização funcional.

    Pormenor do plano da piscina ‘gizado’ por Souto Moura em 2012.

    No sentido de justificar a nova ‘chamada’ de Souto Moura, a autarquia aponta, aliás, para uma portaria de Dezembro do ano passado sobre requisitos técnicos e de funcionamento gerais das instalações desportivas de uso público e também de nova normas de poupança energética. E destaca mesmo, em concreto, as actualizações necessárias ao nível tanto das estruturas como das instalações hidráulicas como de sistemas de energia e de segurança.

    Contas feitas, aparentemente, nada será aproveitado do projecto de arquitectura anterior, embora no contrato de 2014 tivessem sido discriminados os custos de cada projecto de especialidade. Por exemplo, o estudo do comportamento térmico, incluindo declaração de conformidade regulamentar, ficou orçado em 5.338 euros, e a certificação LEED custou, no ‘bolo’ dos 250 mil euros recebido por Souto Moura, valeu 23.375 euros.

    Na verdade, de acordo com o contrato de 2014, as obrigações de Souto Moura já tinham ‘prescrito’ há muito. Nesse contrato, o arquitecto comprometia-se a conceder assistência técnica durante a execução da empreitada, mas ficava desobrigado dessa tarefa caso essa fase não fosse iniciada nos três anos seguintes à aprovação do projecto de execução. A opção passaria assim por um novo concurso de ideias ou por uma adjudicação por ajuste directo a Souto de Moura. A opção da autarquia socialista foi a segunda, entregando ao Prémio Pritzker mais um cheque de 155 mil euros.

    Apesar de evidenciar a existência de condições políticas para avançar com as novas piscinas – o Partido Socialista tem maioria na autarquia –, não se sabe ainda quanto custará a execução do projecto. Fonte oficial da autarquia admitiu ao PÁGINA UM que, apesar de não haver comparticipação europeia nos investimentos em infra-estruturas desportivas, o projecto é mesmo para avançar, mesmo não se sabendo o custo, que em 2016 se estimava já em 5,7 milhões de euros sem haver ainda uma pedra metida.

    Souto Moura, Prémio Pritzker de Arquitetura em 2011. Foi nesse ano que venceu o concurso de ideias para o projecto da nova piscina municipal em São João da Madeira. Treze anos depois, piscina nem vê-la, mas o arquitecto já ‘viu’ 400 mil euros pelo projecto e agora pela alteração do projecto.

    “Naturalmente, o valor da concretização de um projeto que tem cerca de 12 anos, aos preços de hoje, ser[á} mais elevado”, admite a autarquia de São João da Madeira, acrescentando que “a estimativa do novo valor será conhecida após a actualização do projeto”. Quanto à previsão para o início da empreitada”, a mesma fonte diz ser “prematuro” indicar uma data, “atendendo a todo o processo que se seguirá”, incluindo o prazo de 120 dias para Souto Moura alterar o projecto, a aprovação pelos diferentes órgãos autárquicos, a operação de financiamento, o lançamento de concurso da empreitada e o visto do Tribunal de Contas.

    Em suma, por agora, o único a ganhar com a ‘mítica’ piscina de São João da Madeira é Souto Moura, uma individualidade particularmente crítica do poder local, que soma agora 400 mil euros em dois projectos de Arquitectura. E o adágio popular diz que ‘não há duas sem três’.


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  • Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização

    Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização


    Em 16 de Setembro, o Ministério da Saúde palestiniano publicou um documento de 649 páginas com uma lista de todas as mortes causadas pela punição colectiva israelita de Gaza pelo massacre do Hamas em 7 de Outubro.

    A lista inclui mais de 34 mil das 41 mil vítimas de Gaza. As restantes vítimas ainda não foram identificadas. A lista não inclui as 10 mil pessoas (no mínimo) presas sob os escombros nem todas as vítimas indirectas da agressão israelita. O prazo abrangido pelo documento estende-se até 31 de Agosto. Desde então, pelo menos mais mil habitantes de Gaza foram mortos.

    Ao lado dos nomes das vítimas também estão listados o sexo, número de documento pessoal e idade. Nas primeiras 14 páginas do documento, o número na faixa ‘Idade’ é 0 Zero. São 14 páginas com o nome de crianças mortas antes de completarem o seu primeiro aniversário.

    Foto: D.R.

    No passado dia 9 de Setembro, outro ano escolar deveria ter começado em Gaza. Depois de um ano de horror indescritível, cerca de 640 mil crianças deveriam estar voltando às salas de aula. Cerca de 45 mil teriam ingressado no primeiro ciclo.

    É claro que isso não aconteceu.

    Enquanto 700 equipas das Nações Unidas (ONU) vacinavam em massa as crianças palestinianas contra a poliomielite, cujo ressurgimento em Gaza marca uma forma de eclipse social, as bombas e mísseis israelitas continuavam a chover. No dia em que as aulas deveriam ter começado, o exército israelita invadiu a escola do campo de refugiados de Nuseirat, que funcionava no âmbito do programa Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para a Palestina (UNRWA). Doze mil pessoas que tinham sido expulsas das suas casas encontraram refúgio lá. Vinte e cinco foram mortas no ataque; seis eram funcionários da ONU. Em pouco menos de um ano, 250 trabalhadores humanitários e 170 jornalistas foram assassinados no enclave palestiniano – mais do que em qualquer guerra até agora.

    Este ataque ao que deveria ter sido uma zona segura custou a uma mãe palestiniana todos os seus seis filhos.

    Cerca de 40% das vítimas do massacre israelita em Gaza eram crianças. Outras 20.000 crianças ficaram órfãs ou separadas dos pais. Um ano de destruição indescritível que certamente se estenderá pelas gerações vindouras.

    Foto: D.R.

    Neste momento, nenhum lugar em Gaza é seguro. De acordo com dados da ONU, 93% dos habitantes foram deslocados internamente – a maioria deles várias vezes, alguns deles até 10 vezes. Mais de 80% de Gaza foi devastada. O enclave palestiniano foi praticamente demolido, portanto, tornou-se inabitável durante anos.

    Mais de um milhão de pessoas – um pouco menos de metade da população de uma das áreas mais densamente povoadas do mundo – está a tentar sobreviver nas condições brutais no campo de Al Mawasi, na costa do Mediterrâneo. A maioria deles fugiu para lá depois que o exército israelita lançou uma ofensiva terrestre em Rafah, onde 1,3 milhão de pessoas procuraram refúgio após os primeiros meses da invasão de Israel.

    Em Al Mawasi, os refugiados exaustos, doentes e profundamente traumatizados quase não têm água, alimentos e medicamentos à sua disposição. As condições nos outros abrigos temporários entre as ruínas pós-apocalípticas são praticamente as mesmas. Apenas alguns hospitais em Gaza conseguiram continuar a funcionar. Inúmeras instalações médicas foram saqueadas; centenas de trabalhadores médicos assassinados. Durante semanas a fio, as forças israelitas sitiaram vários hospitais, incluindo o maior deles – Al Shifa.

    A situação dos residentes de Gaza agravou-se ainda mais em Maio, durante a ofensiva terrestre em Rafah, quando o exército israelita assumiu o controlo do lado palestiniano da passagem da fronteira egípcia – e pouco depois também do chamado Corredor de Filadélfia.

    Isto provocou a paralisação quase total da ajuda humanitária, cujo afluxo já tinha sido severamente dificultado pelos bloqueios israelitas. É agora claro que Israel optou por recrutar a fome em massa como mais uma arma no seu arsenal. Neste momento, mais de 70% da população de Gaza está a passar fome, totalmente dependente da ajuda externa que quase nunca chega. Isto é especialmente verdadeiro no caso do isolamento a norte de Gaza, que foi transformado num gueto faminto onde as forças israelitas atacaram comboios humanitários em diversas ocasiões.

    Já há dois meses, a reputada revista médica britânica The Lancet estimou o número total de vítimas directas e indirectas da agressão israelita em 186.000. Ou 8% de toda a população de Gaza.

    Guerras Eternas

    Pode-se perguntar: como pode ser tudo isso?

    As estruturas internacionais não estão a funcionar. As Nações Unidas foram há muito reduzidas a um fóssil vivo que presidiu a um número cada vez maior de genocídios (Ruanda, Srebrenica, Darfur, Gaza, …). O domínio geral dos membros permanentes do Conselho de Segurança, em combinação com os seus direitos de veto, representam o obstáculo final a qualquer tipo de intervenção competente. Especialmente agora, em tempos de perturbação bipolar global, cujas guerras frias estão agora a fundir-se numa guerra bastante quente.

    As decisões do Tribunal Penal Internacional (ICC) e do Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia perderam há muito tempo quase toda a relevância. O mesmo se aplica ao direito humanitário internacional, às principais convenções internacionais e ao próprio conceito de direitos humanos, que agora parecem meros ecos de uma época passada que talvez nunca tenha realmente existido. Os tempos tornam-se mais distópicos a cada hora – e mais divididos, racistas e estratificados. Todos os contratos sociais há muito existentes estão a desmoronar-se diante dos nossos olhos. É praticamente o mesmo em todo o mundo, e certamente no Ocidente agora quase impossivelmente narcisista.

    Esta é parte da razão pela qual vivemos numa época de guerra eterna.

    Nem uma única guerra iniciada depois do 11 de Setembro de 2001 terminou realmente. No Afeganistão, em Agosto de 2021 assistiu-se ao regresso dos Taliban ao poder, após 20 anos de ocupação norte-americana. Sim, muitos dos combates podem ter acalmado, mas a guerra contra a população afegã está longe de terminar. A invasão do Iraque pela “coligação” em Março de 2003 – seguida de uma ocupação e de uma guerra civil selvagem – enviou ondas de choque por toda a região. Os ecos da guerra no Iraque tiveram um impacto terrível na guerra sem fim na Síria e nos horrores em curso no Iémen, que a chamada comunidade internacional há muito varria para debaixo do tapete.

    A guerra que eclodiu no Sudão, em Abril passado é uma das guerras mais horríveis do nosso tempo. Segundo dados da ONU, também provocou a maior crise humanitária da história… E não há fim à vista. Tal como aconteceu com os conflitos na Líbia e na República Democrática do Congo. Este último conflito dura desde 1997. Os seus primeiros seis anos custaram seis milhões de vidas.

    E depois há a guerra na Ucrânia, que traz todas as características de mais uma guerra eterna. Ao lado dos massacres diários em Gaza, é o melhor testemunho da total irresponsabilidade da comunidade internacional, que é cada vez mais liderada por psicopatas e até por assassinos em massa.                         

    a yellow car is parked on the side of the road
    Foto: D.R.

    Poucos dias depois das atrocidades do Hamas no sul de Israel, o secretário-geral da ONU, António Guterres, comentou que os ataques do Hamas “não aconteceram no vácuo“. Foi a descrição mais branda possível de 75 anos de racismo sistematizado, roubo de terras, deslocalizações forçadas, apartheid, humilhação colectiva e violência perpetrada por Israel.

    A manhã de 7 de Outubro trouxe a constatação de que o status quo se foi para sempre. E que uma resposta selvagem de Israel era inevitável. Também era certo que a comunidade internacional não conseguiria encontrar uma resposta. Parafraseando o secretário-geral: o que aconteceu depois dos ataques do Hamas também não aconteceu no vácuo.

    Tudo o que foi dito acima foi perfeitamente compreendido pelos líderes do Hamas, que optaram por ceder à sua própria impotência política e ao estado completamente depravado da política interna palestiniana para levar a sua própria nação à beira da ruína total. Após a sua tomada violenta do poder no Verão de 2007, o Hamas governou o enclave palestiniano com mão de ferro. E também, de mãos dadas com os seus co-progenitores, a elite política israelita.

    Foi a receita perfeita para um desastre total e implacável.            

    Foto: D.R.

    Durante o ano de massacres em massa em Gaza, as autoridades israelitas de extrema-direita lideradas pelo eterno primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não conseguiram alcançar um único dos seus objectivos oficiais. Cerca de 100 reféns israelitas ainda permanecem em Gaza, embora não esteja claro quantos ainda estão vivos e quantos foram mortos pelos seus captores ou pelas bombas e mísseis israelitas.

    Esta é a principal razão por trás dos protestos em massa que ocorrem nas ruas de Tel Aviv e de outras cidades israelitas todos os fins de semana. Em 14 de Setembro, por exemplo, mais de um milhão de israelitas protestaram e exigiram a libertação imediata dos reféns. Não pela força militar, que já se revelou insuficiente, mas através da negociação de um cessar-fogo com o Hamas.

    Depois de um ano de selvageria desenfreada, o exército israelita não conseguiu derrotar o Hamas, nem no sentido militar nem no sentido político. Apesar de ter sofrido enormes baixas, a posição do Hamas na região foi significativamente reforçada. Acima de tudo, nas ruas do mundo árabe, onde ainda existe um mínimo de solidariedade para com os palestinianos… Ao contrário das elites políticas árabes corruptas, que ficaram suficientemente felizes em trair Gaza pelo que parece ser uma última vez.

    Tendo em conta o facto de o Hamas ser indiscutivelmente uma organização terrorista e de as autoridades palestinianas (AP) serem meros subcontratantes da ocupação israelita, os palestinianos não têm ninguém que os represente.

    Israel como uma ameaça a si mesmo

    Apesar de toda a carnificina, Israel ainda está inundada com enormes quantidades de armas.

    Segundo os últimos dados da Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a grande maioria das armas importadas por Israel entre 2019 e 2023 veio dos Estados Unidos (65,6%); 29,7% vieram da Alemanha, 4,7% de Itália. Há dois meses, Washington autorizou uma venda adicional de armas a Israel no valor de 20 mil milhões de dólares.

    De acordo com dados do SIPRI, as vendas combinadas de armas europeias a Israel no ano passado totalizaram 326,5 milhões de euros – 10 vezes mais do que em 2022. Por outro lado, o Ministério da Defesa de Israel admite livremente que Israel exportou 13 mil milhões de dólares em armas em 2023. O seu acordo de armas mais lucrativo foi com a Alemanha, que pagou a Israel 3,5 mil milhões de dólares pelas suas armas. Interceptador de mísseis antibalísticos Arrow 3 sistema.

    No Médio Oriente, tal como em qualquer outro lugar, enriquecer com a guerra é normalmente uma via de dois sentidos.

    Foto: D.R.

    Um ano de violência em Gaza e cada vez mais ao longo da Cisjordânia ocupada também enfraqueceu significativamente o próprio Israel. As suas perspectivas de segurança, sociais, económicas e políticas diminuíram enormemente. Muitos investimentos internacionais foram retirados. Em todos os 76 anos da sua história, Israel nunca esteve tão dividido internamente e insultado globalmente.

    Vale a pena afirmar que Netanyahu e os seus parceiros de coligação de extrema-direita, messiânicos e semelhantes aos Taliban começaram a conduzir o Estado judeu para o seu actual caminho totalitário ainda antes de 7 de Outubro. A sede de poder do primeiro-ministro de Israel nunca foi tão evidente quando tentou aprovar uma forma judicial que colocaria o Supremo Tribunal – o tradicionalmente mais independente e progressista entre as instituições israelitas – inteiramente sob o seu controlo.

    Atenção: a motivação de Netanyahu era mais pessoal do que política. Ainda há um julgamento em andamento sobre suas supostas práticas corruptas.

    Ao longo dos últimos anos, os extremistas governantes liderados por Netanyahu levaram a cabo uma espécie de revolução (anti)cultural em Israel. No entanto, apesar disso, e do facto de as autoridades israelitas terem sido totalmente culpadas pelo fiasco de segurança de 7 de Outubro, o controlo do poder do primeiro-ministro parece mais firme do que era há um ano. Não importa que nenhum dos seus principais objectivos políticos declarados tenha sido alcançado. E não importa que, ao espalhar o conflito ao Líbano, à Síria, ao Irão e ao Iémen, o primeiro-ministro expôs o Estado judeu a um grave risco existencial.

    Em 13 de Setembro, o jornal israelita Maariv publicou uma sondagem segundo a qual Netanyahu e o seu partido ainda ganhariam o maior número de assentos no parlamento. A mesma sondagem também evidenciou que a popularidade pessoal do primeiro-ministro aumentou desde o início da guerra. O público israelita parece considerá-lo o homem mais adequado para o cargo.

    Foto: D.R.

    Mais uma vez: como pode estar a acontecer tudo isto?

    Toda a oposição política genuína no país foi extinta. O que resta é liderado por oportunistas desavergonhados como Beni Gantz, que a Casa Branca há muito escolheu como sucessor de Netanyahu.

    O que hoje em dia passa por oposição é, portanto, cúmplice da orgia contínua de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Palavras semelhantes poderiam ser usadas para descrever uma grande parte dos actuais manifestantes antigovernamentais. O terrível sofrimento dos palestinianos não é algo com que se sintam obrigados a preocupar-se, dado que os seus protestos são sobretudo alimentados por preocupações etnocêntricas.

    Em abril passado, o historiador Amos Goldberg, professor associado da Universidade Hebraica de Jerusalém, publicou um artigo muito significativo na revista israelita Sicha Mekommit.  Intitulado, ‘Sim, isso é genocídio‘, o artigo classificava em alto e bom som as acções israelitas em Gaza como genocídio – e depois justificava meticulosamente a afirmação.

    É claro que tal posição exige enorme coragem no Israel de hoje. Os riscos estão longe de ser negligenciáveis.

    Prevalece na sociedade israelita uma atmosfera radical de desumanização dos palestinianos de um nível tal de que não me consigo lembrar nos meus 58 anos de vida aqui.” Goldberg declarou recentemente numa entrevista.

    Goldberg também relatou que a princípio hesitou muito em usar a palavra genocídio e tentou fazer tudo o que pôde para se convencer do contrário. “Ninguém quer ver-se como parte de uma sociedade genocida. Mas havia uma intenção explícita, um padrão sistemático e um resultado genocida – então, cheguei à conclusão de que é exatamente assim que o genocídio se parece”, diz Goldberg.

    Uma vez que você chega a essa conclusão, você não pode ficar em silêncio“, disse o historiador israelita de forma clara.

    Portanto, cabe aos corajosos historiadores locais continuarem dizendo a verdade. Mas quem fornecerá os dados para futuros bravos historiadores? Os jornalistas estrangeiros continuam impedidos de entrar em Gaza e os jornalistas nacionais estão a ser mortos propositadamente pelo exército israelita.


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  • “Culpado de fazer jornalismo”: Conselho da Europa diz que Assange foi um preso político

    “Culpado de fazer jornalismo”: Conselho da Europa diz que Assange foi um preso político

    A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa considerou que Julian Assange, jornalista e fundador da WikiLeaks, foi um preso político no Reino Unido. Após uma audiência a Assange, esta semana, a instituição apelou aos Estados Unidos para que alterem a Lei de Espionagem e pediu ao país para que não a volte a usar contra jornalistas. A audiência, que teve lugar em Estrasburgo, marcou a primeira declaração pública de viva voz por parte do jornalista australiano. Na sua declaração numa sessão plenária do Conselho da Europa, Assange declarou que apenas está em liberdade porque aceitou dar-se como “culpado de fazer jornalismo”.


    A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europeu (APCE) considerou que Julian Assange, jornalista e fundador da WikiLeaks, foi um preso político quando esteve detido no Reino Unido, na sequência de uma acusação dos Estados Unidos.

    A instituição condenou o encarceramento de Assange e pediu aos Estados Unidos para alterarem a Lei de Espionagem de 2017 e também apelou que não a mesma não seja de novo usada contra jornalistas.

    O jornalista e fundador da WikiLeaks esteve ontem presente numa sessão plenária do Conselho Europeu, junto com a sua mulher, Stella Assange, e o editor-chefe da WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson. Na sua declaração proferida perante a audiência, Julian Assange afirmou: “estou livre hoje, após anos de encarceramento, porque porque me declarei culpado de fazer jornalismo”.

    Stella e Julian Assange na sessão plenária da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Foto: D.R./Wikileaks

    O Conselho da Europa, com sede em Estrasburgo, França, foi criado em 1949 e é uma instituição que actua na defesa dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito no continente europeu. A Assembleia reúne membros de 46 nações que integram o Conselho Europeu e já antes tinha condenado a detenção de Assange e tinha alertado para o grave precedente que a sua prisão criou.

    A APCE aprovou uma resolução sobre “A detenção e condenação de Julian Assange e os seus efeitos arrepiantes nos direitos humanos” com 88 votos a favor, 13 contra e 20 abstenções.

    Na resolução, a Assembleia Parlamentar mostrou uma profunda preocupação em relação “ao tratamento duro e desproporcional” que Assange enfrentou e considerou que criou “um efeito perigoso e arrepiante” que ameaça a protecção de jornalistas e denunciantes em todo o Mundo.

    Julian Assange à saída do tribunal em Saipã, nas Ilhas Marianas do Norte (território dos Estados Unidos), já como um homem livre. (Fonte: D.R.)

    Assange foi finalmente libertado, no passado mês de Junho, depois de ter aceitado um acordo com a Justiça norte-americana. Para sair em liberdade, o jornalista declarou ser culpado do crime de conspiração para fazer espionagem por publicar provas de crimes de guerra e abusos de direitos humanos por parte dos Estados Unidos e irregularidades cometidas pelos Estados Unidos em todo o Mundo.

    Foi o fim de 14 anos de perseguição, que incluíram o encarceramento de Assange em condições duras numa prisão de alta segurança no Reino Unido. Assange regressou entretanto ao seu país Natal, a Austrália, onde reside actualmente com a mulher e os dois filhos do casal.

    Numa entrevista ao PÁGINA UM, em Março deste ano, Stella Assange afirmou que já tinha alertado que o caso do seu marido era apenas um dos sinais alarmantes da crescente tendência de se querer eliminar a liberdade de imprensa e censurar.

    De resto, na Europa tem vindo a ser implementada legislação, como a nova directiva para os media e a directiva sobre serviços digitais, que tem merecido críticas por abrir a porta ao amordaçar de jornalistas e agrilhoar da liberdade de expressão. [Sobre este temas pode ler mais AQUI AQUI].

    Além disso, recentemente a Comissão Europeia tentou que fosse aprovada legislação para eliminar a privacidade e a encriptação de mensagens, ferramentas essenciais para o jornalismo e protecção de denunciantes.

    Nota: Pode ler AQUI o testemunho completo de Julian Assange perante a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa.


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  • Fluxo migratório recente aproxima-se dos tempos da Descolonização, mas com fenómeno inédito

    Fluxo migratório recente aproxima-se dos tempos da Descolonização, mas com fenómeno inédito

    O saldo migratório de 2023 foi o terceiro maior de sempre, apenas ultrapassado pelos anos de 1975 e 1976, no decurso de processo de Descolonização no pós-25 de Abril, segundo uma análise do PÁGINA UM a partir de dados demográficos desde 1887 até 2023. Mas se este recente fluxo de entradas marca o terceiro ciclo de saldo migratório positivo – num país que desde finais do século XIX se tem mostrado um país mais ‘convidativo’ para sair do que para entrar -, tem características especiais: o fluxo de saída (emigração) encontra-se também a níveis elevados; menos de metade das entradas constituem regressos (de portugueses); e o crescimento populacional coincide com um saldo natural negativo. O impacto destes fenómenos demográficos, bons ou maus, será inédito em Portugal.


    São números oficiais – e imunes a orientações ideológicas. O fenómeno migratório em Portugal nos últimos anos aproxima-se do intenso fluxo de entrada de novos residentes no período da Descolonização em África. De acordo com a análise do PÁGINA UM aos saldos migratórios – a diferença entre imigração (entrada de residentes) e emigração (saída de residentes) – desde finais do século XIX, os últimos dois anos (2022 e 2023) juntam-se aos anos de 1975 e 1976, no restrito ‘clube’ dos que registaram valores positivos superiores a 100 mil pessoas.

    Sendo certo que o ano de 2023 (com saldo migratório de 155.701 pessoas) e de 2022 (+136.144 pessoas) ficaram ainda bastante aquém do enorme fluxo decorrente da independência das antigas colónias africanas – em 1975, o saldo migratório foi superior a 257 mil e no ano seguinte superou os 177 mil –, a tendência nos anos mais recentes evidencia um fenómeno de contornos inéditos.

    No último quinquénio, o somatório do saldo migratório – assente sobretudo na entrada de estrangeiros, que se aproximará dos 400 mil entre 2019 e 2023 – atingiu, oficialmente, os 488.816 indivíduos, mesmo contabilizando-se a saída para o estrangeiro de quase 144 mil pessoas nesse período. Estes valores confrontam com um somatório do saldo migratório de quase 530 mil pessoas entre 1974 e 1979, mas em circunstâncias políticas e sociais únicas e irrepetíveis, ou seja, resultaram na entrada sobretudo de portugueses das antigas colónias africanas, o que, aliás, veio a quebrar um ‘estrutural’ saldo migratório profundamente negativo durante o Estado Novo, que se prolongava desde 1948 até 1973.

    Numa análise do PÁGINA UM aos dados demográficos – baseada nos saldos migratórios indicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) a partir de 1991 e, no período anterior, nos cálculos dessa variável a partir das estimativas demográficas da população e da mortalidade e nascimentos por ano a partir de 1886 –, mostra-se patente que o país assiste, nos últimos anos, ao terceiro ciclo no regime democrático com um saldo migratório positivo, e que tem permitido compensar um saldo natural negativo (mais mortes do que nascimentos).

    Com efeito, antes da Revolução dos Cravos, a ‘porta da saída’ de Portugal foi muito mais aberta do que a ‘porta de entrada’. Entre 1887 e 1929, raros foram os anos com saldo migratório positivo. Contam-se apenas quatro anos em 43 anos, destacando-se 1918 com valores substanciais (78.395), que resultaram sobretudo do fim da Primeira Guerra Mundial. Porém, esse ano marcou também o auge da gripe espanhola em Portugal, que contribuiu para a morte de 4,2% da população do país. A título comparativo, no ano de 2021, em pleno auge da pandemia da covid-19, morreu 1,2% da população portuguesa.

    A partir dos anos 30, e até ao período imediatamente a seguir ao fim da Segunda Guerra Mundial, o fluxo migratório foi ligeiramente favorável à entrada, sendo que o saldo foi genericamente positivo, embora mais marcante em 1940, no ano a seguir ao início da guerra mundial. Nesse ano, em que Portugal contava apenas uma população de cerca de 7,7 milhões de habitantes e um saldo natural extraordinariamente positivo (mais cerca de 67 mil nascimentos do que mortes em cada ano), o saldo migratório deu então um pulo de quase 60 mil pessoas.

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    O ciclo económico e político nas décadas de 50 e 60 do século passado levariam a uma ‘fuga’, em muitos casos literal, dos portugueses para o estrangeiro, numa primeira fase sobretudo para o Brasil e América do Norte, e a seguir para países europeus, com França e Alemanha à cabeça. Deste modo, de acordo com os dados do INE, contam-se 26 anos consecutivos, entre 1948 e 1973, sempre com saldo migratório negativos, ultrapassando mesmo a fasquia dos 150 mil nos anos de 1952, 1965, 1967, 1969 e 1970. Por causa desta ‘sangria’, e pese embora um saldo natural bastante positivo de cerca de um milhão de pessoas, na década de 60 contabilizou-se um decréscimo populacional em Portugal, por causa de um saldo migratório acumulado negativo de quase 1,3 milhões de pessoas.

    Apesar de os anos da Primavera Marcelista terem marcado uma tendência de atenuação emigratória dos portugueses – em 1973, o saldo migratório continuou negativo, embora ‘apenas’ na ordem dos 74 mil, então o valor menos desfavorável desde 1963 –, foram os acontecimentos políticos de 1974 que inverteram por completo os fluxos de entrada e saída.

    No ano da Revolução dos Cravos, o saldo migratório passou repentinamente para terreno positivo (+46.214), mas ‘disparou’ para os 257.393 no ano seguinte, descendo para 177.655 em 1976. Ou seja, em apenas três anos, o saldo migratório foi positivo em mais de 480 mil. Considerando o saldo natural então bastante positivo, entre 1974 e 1976, a população portuguesa aumentou nesse triénio mais de 722 mil pessoas, um crescimento inédito na História de Portugal. O impacte desse ‘êxodo’ vindo das antigas colónias africanas foi complexo, tanto a nível social como urbano. Uma parte bastante considerável dos imigrantes era de origem portuguesa e confluíram sobretudo para a Grande Lisboa, criando, em muitas zonas, aglomerados de barracas e bairros de génese ilegal sem condições mínimas de salubridade.

    Evolução anual do saldo migratório em Portugal entre 1887 e 2023. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O saldo migratório positivo pós-25 de Abril manteve-se apenas até 1982. O ano seguinte, marcado uma intensa intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) e uma inflação galopante, iniciou novo período de saída em massa para o estrangeiro, com o regresso do saldo migratório negativo, embora não tão baixo como nos anos 60. O ano de 1989 foi aquele que registou, neste período de mais saídas do que entradas – e que se prolongou por 10 anos, até 1992 –, o saldo migratório mais desfavorável (-37.350).

    Com o crescimento económico resultante dos fluxos financeiros da entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia (CEE), surgiu novo fluxo favorável no saldo migratório, em grande parte para o sector da construção civil. O ano de 1993 seria o início do mais longo, até agora, período de saldos migratórios positivos, que se prolongaria até 2010. O cume seria, contudo, atingido no ano 2000 (+67.108 indivíduos).

    Com nova crise financeira, e a consequente entrada da ‘troika’ em Portugal, voltaram a sair mais do que aqueles que entravam. O saldo migratório manteve-se negativo entre 2011 e 2016, agravando assim o peso negativo do saldo natural, que desde 2009 passou a ser negativo. No sexénio 2011-2016, Portugal terá perdido mais de 216 mil habitantes, registos que apenas encontram paralelo na década de 60.

    A partir de 2017, apesar do saldo natural continuar extremamente negativo – nos últimos sete anos contribuiu para uma ‘perda populacional’ de 231.774 –, a inversão dos fenómenos migratórios modificou drasticamente o cenário demográfico. E em 2019 o ganho populacional pelo saldo migratório (+67.163) começou a ‘compensar’ as perdas no saldo natural (-25.264). Nesse ano, o crescimento populacional foi assim de quase 42 mil pessoas.

    Evolução anual do crescimento populacional em Portugal entre 1887 e 2023, considerando os saldos migratório (imigração – emigração) e natural (nascimentos – mortes). Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Embora o triénio da pandemia (2020-2022) tenha refreado temporariamente o saldo migratório, e agravado o saldo natural – tanto por via da redução dos nascimentos como pela elevada mortalidade –, mesmo assim o nível de ‘entradas’ manteve-se elevado. Em 2020, de acordo com os dados do INE, contabilizaram-se 83.654 imigrantes contra 25.886 emigrantes, resultando num saldo migratório positivo de 57.768 indivíduos. No ano seguinte, em plena pandemia, mesmo assim entraram 97.110 imigrantes, tendo saído de Portugal mais 25.079 pessoas, significando, deste modo, um saldo migratório positivo de cerca de 72 mil.

    No ano de 2022 ultrapassou-se pela primeira vez desde 1975 a fasquia dos 100 mil para o saldo migratório, fruto da entrada de 167.098 imigrantes e da saída de 30.954 emigrantes. Por fim, no ano passado, o saldo migratório chegou aos 155.701, por via de uma entrada de perto de 190 mil emigrantes e da saída de 33.666 pessoas para o estrangeiro. Note-se que a emigração de 2023 constitui o valor mais elevado desde 2016, embora a proporção se tenha modificado bastante. Se em 2017 por cada 100 pessoas que emigravam para o estrangeiro se contabilizavam 147 entradas de emigrantes, no ano passado esse rácio subiu para 562.

    Apesar de o INE ainda não ter revelado o número de estrangeiros entre os emigrantes em 2023, mostra-se muito provável que atinja os níveis de 2022, quando apenas um terço (cerca de 57 mil de entre 168 mil) das entradas foi de cidadãos portugueses. Se a proporção de emigrantes estrangeiros em 2023 tiver sido similar à de 2022, então terão entrado em Portugal nos últimos cinco anos 379 mil estrangeiros.

    Estes valores devem ser, contudo, observados com precaução, não apenas porque estes números não contabilizam situações de imigração ilegal, como uma parte pode ter, entretanto, saído para outros países. Por outro lado, no grupo de nacionais que entraram em Portugal estará também um número indeterminado de portugueses que adquiriram a cidadania por razões familiares, mesmo nunca tendo aqui residido.

    Evolução anual da imigração (entradas) e da emigração (saídas) em Portugal entre 2008 e 2023. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    No entanto, constata-se uma evidência: o último quinquénio, e especialmente os últimos três anos, está a ser marcado por uma dinâmica demográfica inédita: a população aumenta num cenário com saldo natural fortemente negativo, com uma emigração ainda intensa mas com um saldo migratório bastante elevado por via de uma imigração crescente. O rápido crescimento demográfico de curto prazo (três anos) observado em 2023 tem similitudes com o da segunda metade dos anos 70 e meados dos anos 90 do século passado, mas baseia-se em fenómenos sociais bastante distintos.

    Com efeito, o crescimento actual assenta somente na imigração de estrangeiros, algo que exige – mais do que sucedeu durante o período da Descolonização, onde o aumento populacional radicou numa natalidade elevada em migrantes portugueses não completamente ‘desenraizados’ – uma intervenção específica de integração social e de planeamento urbanístico. Estará a ser feita, ou a ser bem feita?

    A resposta pode começar a desenhar-se no facto de o Governo ter agora em mãos a regularização de 400.000 pessoas que estão em Portugal, e sobre as quais o próprio Governo desconhece “quem são, onde estão, onde trabalham”, como até já confessou recentemente o secretário de Estado Adjunto da Presidência, Rui Freitas.


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  • Sinais de corrupção atingem um terço dos gastos públicos do Reino Unido durante a pandemia

    Sinais de corrupção atingem um terço dos gastos públicos do Reino Unido durante a pandemia

    Uma organização anti-corrupção, a Transparency International UK, detectou 135 contratos públicos adjudicados durante a pandemia de covid-19 que levantam fortes suspeitas de terem envolvido práticas corrupção. No total, estes contratos envolveram um montante de 18,2 mil milhões de euros, cerca de um terço de toda a despesa pública efectuada na pandemia pelo país. Agora, aquela organização apela às autoridades britânicas para investigarem os contratos suspeitos. Não foi só no Reino Unido que a gestão da pandemia escancarou a porta para a corrupção. Em Portugal, houve o chamado ‘cartel dos testes’, envolvendo os maiores laboratórios do país, mas também floresceu a falta de transparência, como no caso dos contratos das vacinas assinados pela Direcção-Geral da Saúde, que permanecem envoltos em opacidade. Um processo de intimação do PÁGINA UM, apresentado em Dezembro de 2022, ainda não tem desfecho previsto, devido a sucessivas procrastinações e mentiras do Ministério da Saúde.


    A Transparency International UK, uma organização britânica anti-corrupção, analisou 5.000 contratos públicos adjudicados no Reino Unido durante a pandemia da covid-19 em busca de sinais de potencial corrupção. A análise aos contratos públicos detectou a existência de problemas significativos em contratos no valor de 15,3 mil milhões de libras (ou 18,2 mil milhões de euros), o que corresponde a um terço dos gastos globais. Segundo a análise da mesma organização, foram identificados 135 contratos com sinais de alto risco de poderem envolver práticas de corrupção.

    Testes, material de protecção médica e máscaras geraram estão entre os bens que originaram contratos nebulosos no Reino Unido. Um total de 28 contratos, no valor de 4,1 mil milhões de libras (4,9 mil milhões de euros), foram adjudicados a empresas com conhecidas ligações políticas. Outros 51 contratos, no montante de 4,0 mil milhões de libras (4,75 mil milhões de euros), foram adjudicados através de uma via VIP para empresas recomendadas por membros do parlamento e pares, uma prática que o Supremo Tribunal considerou ser ilegal.

    Para a Transparency International UK, a suspensão das regras normais de prevenção da corrupção no Reino Unido, careceu de fundamentação, na maior parte dos casos, tendo a medida acabado por trazer prejuízo aos contribuintes. Segundo aquela organização, quase dois terços dos contratos de valores mais elevados para fornecer bens como máscaras e equipamento de protecção médica durante a pandemia, num total de 30,7 mil milhões de libras (36,5 mil milhões de euros), foram adjudicados por ajuste directo.

    Um grupo de oito contratos, num valor global de 500 milhões de libras (593,8 milhões de euros) foram entregues a empresas que não tinham mais de 100 dias de existência, que é um dos sinais de alarme na prevenção da corrupção.

    A Transparency International UK, uma organização que tem tido um papel forte e activo na investigação à gestão da pandemia naquela país, apelou às autoridades para que investiguem os contratos identificados como apresentando um risco muito elevado de corrupção.

    Em Portugal, foi notícia, recentemente, a aplicação de coimas ao chamado ‘cartel dos testes‘ que envolveu os grandes laboratórios de análises clínicas do país. Mas, além da corrupção, a gestão da pandemia trouxe falta de transparência em diversos contratos públicos. O PÁGINA UM, por exemplo, aguarda ainda o desfecho da intimação colocada no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a Direccção-Geral da Saúde para o acesso aos contratos da compra das vacinas para a covid-19, bem como da correspondência com as farmacêuticas e as guias de remessa. A acção foi colocada em 31 de Dezembro de 2021, ou seja, há quase 21 meses.

    O Ministério da Saúde tem tentado aproveitar o secretismo dos acordos prévios assinados entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas para convencer a juíza deste exasperante e longo processo, Telma Nogueira, a considerar os tribunais administrativos portugueses incompetentes para analisar o pedido. A suceder significaria que qualquer acto administrativo que decorresse de Bruxelas podia estar vedado aos cidadãos portugueses se houvesse qualquer cláusula secreta determinada por ‘eurocratas’ não-eleitos, independentemente da sua cidadania.

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    Depois de o Tribunal Geral da União Europeia ter considerado abusivas as cláusulas de confidencialidade, a juíza Telma Nogueira instou o Ministério da Saúde, antes de concluir a sentença, a fornecer-lhe os contratos assinados pelo Estado português, bem como a correspondência. E deu um prazo de 15 dias. Esta semana, no limite deste prazo, a directora-geral da Saúde, Rita Sá Machado, pediu uma prorrogação de de mais 40 dias. A juíza concordou, o que, em princípio, fará com que um processo de intimação, considerado urgente, vá demorar, na primeira instância, aproximadamente dois anos.

    Além deste negócio da compra das vacinas, merece também destaque em Portugal uma aquisição sem contrato no valor de 20 milhões de euros do antiviral Paxlovid, da farmacêutica Pfizer, usando uma norma legal já revogada. De entre os casos obscuros de aquisição de testes e diversos materiais de protecção individual, estão situações qm que as empresas não detinham sequer qualificações nem histórico no sector.

    Houve também entidades públicas que esconderam compras por ajuste directo e sem documentos de suporte conhecidos, aproveitando um regime especial de contratação pública que dispensava a redução a escrito. O caso mais gritante detectado ao longho dos anos pelo PÁGINA UM passou-se no Hospital de Braga, presidido por João Porfírio Oliveira, que escondeu 1.354 ajustes directos de 47 milhões de euros relacionados com a pandemia por mais de dois anos. Em muitos nem se sabe o que se comprou. O PÁGINA UM ainda aguarda que o Tribunal de Contas se pronuncie sobre esta matéria.


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  • Mafra transforma patrocínio em falso contrato de ‘aquisição de serviços’ de organização de prova internacional de surf

    Mafra transforma patrocínio em falso contrato de ‘aquisição de serviços’ de organização de prova internacional de surf

    O Município de Mafra pagou 125 mil euros a uma empresa para organizar uma prova de surf, mas, na verdade, este evento desportivo integra o circuito da Liga Mundial de Surf e tem associada uma empresa de cerveja espanhola, uma marca de roupa desportiva norte-americana e a EDP. O ajuste directo para uma falsa prestação de serviços é assim, em concreto, um ‘subsídio’ a uma empresa privada dado pela Câmara de Mafra é justificado, pela autarquia com o facto de os municípios poderem apoiar eventos “que contribuam para a promoção da saúde e prevenção das doenças”. Desde 2018, a autarquia social-democrata já ‘lançou ao mar’ 750 mil euros. porque tem boas ondas…


    A Câmara Municipal de Mafra assinou um contrato por ajuste dirrecto para a “produção” em concreto da prova internacional de surf, mas, na verdade, trata-se de um apoioà organização deve ser visto com um patrocínio. Denominada “EDP Vissla Ericeira 2024”, a prova decorrerá na praia de Ribeira d’Ilhas, entre os próximos dias 29 de Setembro e 6 de Outubro, e integra o circuito internacional de Liga Mundial de Surf, sendo que a organização está associada a uma empresa espanholsa de cerveja (Estrella Galicia) e tem como ‘naming’ (principais patrocinadores) uma marca de roupa desportiva da Califórnia (Vissla) e a EDP.

    A autarquia do distrito de Lisboa tem, aliás, desembolsado anualmente sempre a mesma verba de 125 mil euros para pagar a organização da prova autorizada pela Liga Mundial de Surf, tanto directamente, como através de uma empresa municipal. Desde 2018, foram gastos 750 mil euros de dinheiros públicos para suportar gastos com a organização desta prova, que, em quase todas as edições, tem tido o ‘naming‘ da EDP, com a excepção do evento de 2021, que foi patrocinada pela MEO.

    Autarquia assume em contrato que uma empresa organiza para si um evento que é afinal da responsabilidade da Liga Mundial de Surf, estando associada a uma emprsa espanhola de cerveja e tem a Vissla e a EDP como patrocinadores com direito a ‘naming’.

    Este ano, o contrato assinado pelo presidente social-democrata da autarquia, Hugo Moreira Luís, em 3 de Setembro passado e registado no Portal Base na mesma data, beneficiou a empresa 3Sports Events e explicita que o objecto é a “Produção do Evento Desportivo – EDP Vissla Pro Ericeira 2024”. Porém, apesar de o contrato estipular que faz parte integrante o caderno de encargos, este documento não se encontra disponibilizado no Portal Base, como deveria. Deste modo, pouco se sabe sobre as tarefas a executar pela empresa contratada, inferindo-se, sem ser evidente, nas cláusulas do contrato que envolverá montagens e desmeontagens de estruturas e também limpeza de espaços. Este procedimento, através de ajuste directo, contrasta com apoios atribuídos por outras autarquias a provas desportivas, mesmo quando sob a forma de patrocínio, onde as contrapartidas estão definidas em detalhe.

    No único documento disponível no Portal Base, que se resume às sucintas cláusulas do contrato, apenas é mencionado que prazo para a prestação do serviço é de 19 dias e corresponde não só ao período em que decorre o evento, de 29 de Setembro a 6 de Outubro, incluindo um período para montagem de infraestruturas e posterior desmontagem e limpeza dos espaços. Mas não diz explicitamente que a emprsa adjudicatária seja quem executa essas tarefas.

    Em resposta a perguntas do PÁGINA UM, a autarquia de Mafra afirmou apenas que, “nos termos do caderno de encargos [que não enviou], a prestação de serviços é referente à ‘Produção do Evento Desportivo – EDP Vissla Pro Ericeira 2024’, a realizar, previsivelmente, de 29 de Setembro a 6 de Outubro do corrente ano, com período inicial de preparação e montagem das infraestruturas, e final onde será contemplada a desmontagem e limpeza dos espaços, prazo este com início a 22 de Setembro e término a 10 de Outubro do corrente ano”. Em suma, repetiu o que consta no contrato.

    O evento “subsidiado” pela Câmara Municipal de Mafra tem como patrocinador de destaque a EDP, que dá mesmo o nome ao evento. (Foto: D.R.)

    A mesma fonte oficial da autarquia adiantou ainda que esta prestação de serviços contempla a “apresentação de licença para realização da prova; produção do evento (gestão de atletas; viagens; refeições), gestão logística; montagem de infraestruturas e equipamentos; desenvolvimento de plano de comunicação; [e] gestão da atividade desportiva”. Ora, esta parte não consta nas breves cláusulas do contrato.

    Sobre o facto de a autarquia assumir os custos de produção de um um evento onde não é formalmente a organizadora – nem o seu nome consta na divulgação da prova no site da Liga Mundial de Surf –, e cujo ‘naming’ é de duas empresas privadas, a Câmara argumenta que “ainda que o município de Mafra não tenha o seu nome do evento, do mesmo faz parte a referência à Ericeira, que é uma localidade deste município e que, numa perspectiva de marketing territorial, se pretende promover”. E conclui ainda que “a referência do Município de Mafra, através do seu brasão, faz parte dos diversos materiais de comunicação da prova”. O PÁGINA UM consultou vários materiais e diversos vídeos de anteriores edições desta prova na Ribeira d’Ilhas, como a do ano passado, e apenas surgem referências à EPD, Vissla e Estrella Galicia.

    Para explicar a entrega deste ‘apoio’ à prova internacional através de um ajuste directo, a autarquia alegou a ncessidade de “proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”, o que torna estranho este contrato de prestação de serviços se estivesse em causa a simples montagem ou desmontagem de instalações e limpeza de espaços.

    O município de Mafra tem patrocinado o evento de surf pelo menos desde 2018, incluindo através da empresa municipal GIATUL. Fonte: Portal Base.

    A explicação para esta “aquisição de serviços” por parte da autarquia de Mafra também se mostra ‘sui generis’. O município liderado pelo social-demcrata Hugo Moreira Luís refere que o regime jurídico das autarquias locais lhe que confere competências para “apoiar actividades de natureza social, cultural, educativa, desportiva, recreativa ou outra de interesse para o município, incluindo aquelas que contribuam para a promoção da saúde e prevenção das doenças”. Fica por explicar como uma prova internacional privada de surf, já apoiada por empresas privadas, pode promover a saúde e prevenir doenças da população do concelho de Mafra.

    Segundo o contrato, o procedimento por ajuste directo foi autorizado por despacho do presidente da autarquia social-democrata, Hugo Moreira Luís, assinado pelo autarca a 11 de Julho deste ano. A prestação de serviços contemplada no contrato foi adjudicada pelo autarca a 26 de Julho.

    Este contrato está isento de fiscalização pelo Tribunal de Contas ao abrigo do artigo 48º da Lei 98/97 que refere que “ficam dispensados de fiscalização prévia os contratos referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 46.º de valor inferior a 750 000 (euro), com exclusão do montante do imposto sobre o valor acrescentado que for devido”.

    Câmara de Mafra alega que o seu brasão está em todos os materiais de divulgação do evento internacional.

    Saliente-se que este procedimento tem sido seguido em anos anteriores, embora por vezes em moldes distintos. Já o anterior presidente da autarquia, o social-democrata Hélder Sousa Silva, que saiu do cargo este ano, para assumir funções como eurodeputado, usou a mesma estratégia para conceder este “apoio”. No entanto, para o ano de 2022 e 2023, a autarquia fez contratos de “aquisição de serviços”, também no valor de 125 mil euros, à empresa Oceanptevents, para patrocinar o mesmo evento de surf na Ericeira.

    No entanto, nos três anos anteriores os contratos, por ajuste directo e pelo mesmo valor, foram suportados pela GIATUL, a empresa municipal que gere as actividades lúdicas, infraestruturas e rodovias deste concelho, mas neste caso o patrocínio, embora não explicitamente assumido, tornava-se mais evidente. Resta saber se, nos próximos anos, o município vai continuar a ‘surfar esta onda de águas turvas’, concedendo um apoio ou subsídio, justificando tudo através de um contrato de “aquisição de serviços”, aproveitando-se também do facto de não ser, aparentemente, exigido visto prévio do Tribunal de Contas.


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  • ‘Dino d’Santiago ten kunha na Câmara di Lisboa’

    ‘Dino d’Santiago ten kunha na Câmara di Lisboa’

    Uma associação criada pelo cantor Dino D’Santiago em Dezembro passado, mas que só se deu a conhecer em Maio deste ano, não teve de andar muito, e muitos menos até Santiago de Compostela, para receber uma ‘prenda’ da autarquia de Lisboa. Em vez de ser obrigada ao incómodo de apresentar candidatura aos apoios municipais, com um projecto concreto, como as demais associações, à Mundu Nôbu, presidida pelo músico, bastou convencer a empresa municipal EGEAC a dar-lhe 130 mil euros por troca de uma tertúlia e um concerto de Dino d’Santiago e uns poucos convidados. O concerto está agendado para próximo dia 28 de Setembro, duas semanas depois de um outro concerto deste músico em Lisboa, contratado por 21.500 euros pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. A EGEAC nega que se esteja perante um ‘subsídio encapotado0 e que tenha havido pressões para contratar a associação, cuja apresentação oficial foi apadrinhada por Carlos Moedas e Marcelo Rebelo de Sousa, que se ‘desunharam’ em elogios ao músico. A Mundu Nôbu não respondeu ao PÁGINA UM nem tem, no seu site, a lista dos órgãos sociais nem qualquer programa de actividades.


    Será um ‘milagre’ de D’ Santiago. A associação Mundu Nôbu, fundada há apenas nove meses pelo cantor e compositor Dino D’ Santiago, aparenta ter caído nas ‘boas graças’ da empresa municipal que gere os eventos culturais da capital. De uma assentada e sem grandes burocracias, e dois meses após a apresentação pública da Mundu Nôbu com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa e Carlos Moedas, a EGEAC decidiu contratá-la por 130 mil euros, através de um contrato por ajuste directo, para a co-organização de uma tertúlia e um concerto a realizar ainda este mês, na Praça do Município. O ‘prato especial’ é, aparentemente, o próprio Dino D’Santiago himself, que é o presidente desta associação que, no site, nem sequer apresenta os órgãos sociais nem tão-pouco um plano de actividades.

    Segundo o contrato disponível no Portal Base, a Mundu Nôbu foi contratada para conceber, coproduzir e apresentar o ‘Festival Mundo Nôbu 2024 – a interculturalidade portuguesa no top do Spotify, no âmbito da programação Festas na Rua 2024’, a ter lugar no dia 28 de Setembro, em Lisboa. A EGEAC também garante a instalação do palco na Praça do Município e toda a logística do concerto, incluindo a sua divulgação, que em circunstâncias normais ‘vale’ pelo menos cerca de 10 mil euros.

    Carlos Moedas (à esquerda) e Marcelo Rebelo de Sousa (ao centro), ‘apadrinharam’ a sessão de apresentação oficial da associação de Dino D’ Santiago (segundo a contar da direita), com sede na casa de Liliana Valente (segunda a contar da esquerda). Foto: D.R./MN.

    O valor do contrato serve assim apenas para a execução de uma simples conferência nos Paços do Concelho, com a presença de Dino D’ Santiago e convidados (não especificados) e dos eventuais cachets e acomodação dos artistas do concerto na Praça do Município, “com nomes como: Irma, Soluna, Criolo, Maro, Bateu Matou” [sic]. O concerto terá a duração de três horas, com acesso livre, mas pela leitura do contrato não se mostra claro se contará com Dino D’Santiago. No contrato, o seu nome apenas consta explicitamente na conferência vespertina na Sala de Arquivo dos Paços do Concelho, com início às 17h45, com convidados não especificados e sobre um tema ignoto.

    Mesmo se Dino D’Santiago participar no concerto de fim de tarde, a verba em causa está muito acima dos valores de mercado, incluindo os seus convidados. O músico algarvio de ascendência cabo-verdiana costuma cobrar, geralmente, entre 15 mil euros e um pouco acima dos 20 mil euros. Aliás, duas semanas antes deste espectáculo na Praça do Município, Dino D’Santiago vai estar no Largo José Saramago, junto ao Campo das Cebolas, como um dos cabeças de cartaz do festival Portas do Mar, organizado pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. Por esse concerto, a agência que representa Dino D’Santiago, a Arruada, vai receber 21.500 euros. De acordo com alguns contratos no Portal Base e consultores do mercado de espectáculos consultados pelo PÁGINA UM, os cachets habituais dos nomes indicados pela Mundu Nôbu rondam os cinco mil euros. Ou seja, quem quisesse fazer um contrato com os nomes indicados no contrato assinado por Dino D’Santiago – ou melh0r dizendo, por Claudino de Jesus Borges Pereira – nunca gastaria mais de 30 mil euros. Com Dino D’Santiago, a ‘coisa’ ficaria, no máximo, por 50 mil euros.

    Aliás, o valor pago pela EGEAC à Mundu Nôbu aproxima-se do valor que Dino D’ Santiago já facturou em 10 contratos públicos em 2024. Até agora, entre Janeiro e Setembro deste ano, sem incluir este contrato com a sua associação, o artista de ascendência cabo-verdiana custou ao erário público 137.799 euros pela realização de 10 concertos pelo país. Há seis anos, Dino d’Santiago era bem mais baratinho: um concerto contratado pela autarquia de Lisboa custou apenas seis mil euros.

    (Foto: D.R./MN)

    O sucesso da associação de Dino D ‘Santiago – que a fundou em parceria com Liliana Valpaços, antiga directora de operações da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), em cuja casa, em Lisboa, se encontra a sede – advém muito da sua popularidade entre políticos de todos os quadrantes. Na sessão oficial de apresentação ao público da Mundu Nôbu, em finais de Maio, no Hub Criativo do Beato, Dino D’Santiago deu e recebeu elogios de Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

    Na altura, à comunicação social, Liliana Valente diria que a ideia da associação surgiu após “uma viagem aos Estados Unidos da América”, depois de terem conhecido a organização Brotherhood Sister Sol, em Nova Iorque, que, diga-se, registou nos últimos dois anos receitas globais de 25,6 milhões de dólares e conta com um staff de cerca de meia centena de pessoas.

    Mas, afinal, porque decidiu a EGEAC entregar 130 mil euros a uma associação através de um ajuste directo e não pelos habituais procedimentos de apoio a este tipo de organizações de génese cultural e social? A pergunta pode ser indirectamente respondida pela consulta do regulamento de atribuição de apoios pelo município de Lisboa aos projectos associativos de vária índole, incluindo os relativos aos direitos humanos e sociais. Por um lado, estão, neste momento, a decorrer já os processos de avaliação das candidaturas para o próximo ano, onde se exigem projectos em concreto, e há um limite de 70 mil euros por associação.

    Questionada sobre se existem outros casos de associações de índole socio-cultural que tenham conseguido contratos desta natureza em tão pouco tempo, uma porta-voz da empresa municipal indicou que ao PÁGINA UM que, “de facto, a EGEAC realiza vários contratos com associações, promotores culturais e demais entidades para concretizar a sua atividade cultural ao longo do ano”, sem especificar quais. Mais adiantou que “a relação com a Associação [Mundu Nôbu] não é uma parceria, mas [fruto de] um contrato de aquisição de serviços de concepção, coprodução e apresentação ao público do Festival Mundu Nôbu”. Para a associação de Dino D’Santiago, a EGEAC surge classificada, porém, como parceira, ao lado de entidades privadas, e também da própria autarquia de Lisboa e de outra empresa municipal, a Gebalis.

    Duas semanas antes do evento pelo qual a EGEAC pagou 130 mil euros à novel associação presidida por Dino D’Santiago, o músico vai actuar num festival da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (Lisboa). A agência que o representa cobrou 21.500 euros.

    A EGEAC também descartou que tenha havido uma indicação expressa da autarquia para a realização da adjudicação à Mundu Nôbu, que anunciu também para este mês um programa de intervenção comunitária intitulado “O teu lugar no mundo“, envolvendo 160 jovens, nesta fase exclusivamente para residentes em bairros sociais. Mas esta iniciativa é uma incógnita. No site da associação apenas consta a ligação para inscrições (já terminadas) onde se diz haver formação (não especificada) duas horas por semana, em grupo, além de contacto com artistas, atletas e profissionais de sucesso, da realização de estágios, visitas a empresas e universidades, e também organização de espectáculos, prometendo-se “monitores disponíveis 24/7”.

    Apesar desta benesse recebida por uma empresa municipal da capital, as ligações a eventos da autarquia alfacinha têm trazido alguns dissabores a Dino D’Santiago, colocando-o no centro de polémicas. Por exemplo, quando Fernando Medina, um seu admirador, presidia à autarquia, dois eventos em que D’ Santiago participou foram alvo de notícias críticas. Não se sabe se este novo apoio da autarquia à novel associação do artista se irá transformar numa maldição, ou se vai ficar-se pelo milagre. Para já, os tempos são de bonança para a jovem organização, já ‘crismada’ com dinheiros da EGEAC, depois da benção, à laia de padrinhos, de Carlos Moedas e Marcelo Rebelo de Sousa.

    O PÁGINA UM colocou um conjunto de seis perguntas à associação de Dino D’Santiago e de Liliana Valente, que se se apresenta no LinkedIn como directora executiva da Mundu Nôbu, mas não teve uma resposta sequer.


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  • Município de Sintra assina contratos de refeições escolares que se ‘atropelam’ no tempo

    Município de Sintra assina contratos de refeições escolares que se ‘atropelam’ no tempo

    Foram duas das empresas acusadas pela Autoridade da Concorrência no ‘cartel das cantinas’, há 13 anos. Mas só com o município de Sintra, o consórcio constituído pelas sociedades ICA e Nordigal tem enchido o tabuleiro em contratos por concurso público mas misturados com ajustes directos com vista ao fornecimento de refeições escolares. No município liderado por Basílio Horta já se tornou mesmo um hábito vencer-se um concurso público mas, no mesmo mês, conseguir um ajuste directo milionário para o mesmo tipo de serviço. A autarquia garantiu ao PÁGINA UM que nunca os dois contratos ficam activos em simultâneo. Sem fiscalização, fica sem se saber se há facturação dupla e duplo pagamento. Além disso, a inflação das refeições escolares disparou: comparando com o contrato que vigorou até ao ano lectivo de 2023/2024, o preço de cada lanche cobrado pelo consórcio quase duplicou para os próximos três anos, enquanto cada almoço sofreu um aumento de 30%. Globalmente, desde 2015, a Câmara de Sintra já gastou mais de 87,6 milhões de euros na compra de refeições escolares à ICA/Nordigal.


    Neste mês de Setembro, começa um novo ano lectivo para a generalidade dos níveis de ensino, e recomeça também um dos mais apetecíveis negócios do país que movimentam milhões: o fornecimento de refeições escolares pagas pelas autarquia. Mas Sintra, o concelho do país com mais jovens em idade escolar, destaca-se por uma particularidade, que não se resume apenas ao (elevado) valor do contrato, mas sim ao estranho facto de, em Setembro, ter o fornecimento de refeições ‘suportado’ por dois contratos: um por concurso público com três anos de duração e outro por ajuste directo com a duração de apenas um mês. Ambos beneficiaram a mesmo consórcio, constituído por duas das principais empresas do sector, a ICA e a Nordigal.

    Comecemos pelo concurso público. Num negócio com direito a prato principal e sobremesa, este agrupamento empresarial ganhou, em Agosto passado, o contrato do município de Sintra, com uma duração de três anos por 35.471.520 euros com vista ao fornecimento de refeições nas escolas do primeiro ciclo e pré-escolar. No contrato surge especificamente que a data prevista de início é 1 de Setembro (domingo passado), mas como está dependente de visto para ser válido, a autarquia liderada por Basílio Horta foi a correr fazer um ajuste directo de mais de 921.300 milhões de euros para o mesmo mês. Em teoria, o mês de Setembro pode vir a ter dois contratos em vigor para o mesmo serviço.

    Sintra: um poço sem fundo de recursos financeiros para o pouco transparente negócio das refeições escolares. (Foto: D.R.)

    A duplicação de contratos que se ‘atropelam’ no tempo não é uma novidade em Sintra. O consórcio ICA/Nordigal já em 2021 tinha beneficiado do mesmo menu por parte da autarquia de Basílio Horta: ganhou concurso e teve direito a um ajuste directo extra, mesmo sabendo-se que o município teve ‘todo o tempo do mundo’ (três anos) para preparar um concurso público com adjudicação a tempo de receber visto do Tribunal de Contas. Ignora-se como se processaram os pagamentos.

    No caso dos dois contratos agora adjudicados, o município de Sintra lançou um concurso público para contratação do serviço de fornecimento de refeições escolares nas escolas do primeiro ciclo do ensino básico e pré-escolar da rede pública do concelho. Este contrato de quase 35,5 milhões de euros, sem IVA, adjudicado ao agrupamento constituído pela ICA – Indústria e Comércio Alimentar e pela Nordigal – Indústria de Transformação Alimentar, foi assinado a 13 de Agosto, sendo válido por 12 meses, mas prorrogável, em condições normais, até 36 meses. Os gastos máximos estipulados são de 4.598.160 euros em 2024, de 11.823.840 euros em 2025, de 11.823.840 euros em 2026 e de 7.225.680 em 2027.

    O preço fixado contratualmente é de 75 cêntimos por cada lanche da manhã e da tarde (0,85 euros, com IVA), de 2,97 euros por cada almoço (3,36 euros com IVA a 13%) e de 3,60 euros por cada refeição fora do período regular (4,07 euros com IVA).

    five red apples on white surface
    (Foto: D.R.)

    Ora, 10 dias depois da assinatura deste contrato, o município assinou um novo contrato com o ICA/Nordigal, mas por ajuste directo. O segundo contrato visa a prestação do serviço nos exactos moldes do contrato por concurso público, mas apenas por um período de quatro semanas, a começar a 1 de Setembro e envolvendo a quantia de até 921.300 euros, o que, com IVA, totaliza 1,o4 milhões de euros. Note-se que em grande parte das escolas a actividade lectiva inicia-se apenas entre os dias 12 e 16 de Setembro.

    Ao PÁGINA UM, o município de Sintra justificou o ajuste directo com um dos expedientes mais recorrentes: “urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, […] e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. No entanto, é difícil compreender como não se possa imputar à entidade adjudicante (autarquia de Sintra) a responsabilidade por inexistência de visto do Tribunal de Contas para um contrato que saiu de um concurso público que teve três anos para ser preparado.

    Mas o município garantiu que “em situação alguma os dois contratos estão ativos em simultâneo, pelo que está garantida a impossibilidade de poder haver duplicação de faturação”. Segundo a autarquia, “o contrato relativo ao ajuste direto contém uma cláusula que o faz cessar assim que é obtido o visto do Tribunal de Contas relativo ao contrato resultante do concurso público internacional”. Assim que “o contrato de ajuste direto cessa, procede-se ao pagamento das faturas relativas aos consumos realizados no seu âmbito, seguindo-se o seu encerramento e o descabimento do saldo remanescente”. Adiantou que “o contrato resultante do concurso público internacional só se torna eficaz após o encerramento do contrato do ajuste direto, pelo que nunca poderá haver duplicação de faturação” e que “o contrato resultante do concurso público internacional se torna eficaz o seu cabimento é reduzido, sendo-lhe deduzido o valor gasto com o ajuste direto”.

    food, sandwich, sardine
    (Foto: D.R.)

    Na verdade, em termos práticos, além de ter garantido que vai fornecer uma boa fatia do mercado de refeições escolares na rede pública de escolas em Sintra por mais 1095 dias, o consórcio ICA/Nordigal ainda contabiliza uma ‘borla’: a possibilidade de ‘engolir’ mais 1,04 milhões de euros de dinheiro dos contribuintes sem enfrentar concorrência.

    Para justificar este ajuste directo, o município adiantou ao PÁGINA UM que “o contrato no valor de 35,471 milhões de euros, publicado a 16 de agosto, diz respeito à abertura de concurso público internacional lançado pela segunda vez”, na sequência de um primeiro ter ficado deserto por “ausência de propostas”. E acrescenta que “tal facto levou o município de Sintra a lançar um segundo concurso, cujo contrato foi publicado no dia 16 de Agosto, mas que ainda não se encontra eficaz, uma vez que ainda decorre a apreciação do mesmo por parte do Tribunal de Contas para atribuição do respetivo visto”.

    Por esse motivo, o município diz que para garantir o fornecimento de refeições escolares neste mês de Setembro, “e numa situação em tudo similar com a ocorrida em 2021, tornou-se necessário proceder ao ajuste direto, conforme previsto na lei, também remetido ao Tribunal de Contas, e que permite assegurar a resposta em tempo até à emissão do referido visto por parte do Tribunal de Contas ao concurso público”. 

    girl holding two eggs while putting it on her eyes
    (Foto: D.R.)

    Em 2021, o município de Sintra adjudicou a este consórcio, em 13 de Outubro, um contrato para “fornecimento de refeições em estabelecimentos escolares da rede pública do concelho de Sintra, em regime de fornecimento contínuo”, através de concurso público, no valor de 21.526.230 euros, sem IVA. Mas acompanhou o ‘prato principal’ com uma ‘entrada’: um ajuste directo firmado a 6 de Outubro de 2021 com a empresa ICA para o mesmo serviço, no valor de 923.616 euros, sem IVA, para o prazo de 40 dias.  Também na altura, a “urgência imperiosa” explicou a entrega de mais de um milhão de euros de mão beijada a uma empresa.

    Em ambos os contratos, o valor do lanche era então de quase metade do praticado agora: 40 cêntimos, sem IVA. Já cada almoço registou um aumento de 30%. Em 2021, o consórcio cobrou ao município de Sintra 2,28 euros por almoço, menos 69 cêntimos do preço cobrado praticado agora. A inflação destas refeições subiu muito mais do que o índice de preços ao consumidor (IPC).

    Certo é que em dois contratos por concurso, e mais dois ajustes directos, o ICA/Nordigal facturou 58,9 milhões de euros com o município de Sintra, garantindo negócios por 2.190 dias à conta de dinheiros públicos.

    Mas não fica por aqui a facturação deste consórcio com a Câmara de Sintra. Ainda em 2021, a ICA garantiu o recebimento de 1.231.520,4 euros, sem IVA, por seis contratos firmados com o município, cinco dos quais por ajuste directo e um por consulta prévia.

    (Foto: D.R.)

    Já a Nordigal tinha facturado, três anos antes, quase 14,2 milhões de euros por via de um contrato assinado em 9 de Julho de 2018, válido por um período de um ano e prorrogável até três anos. Este contrato, ao abrigo de um acordo-quadro, visou a “aquisição de serviços para fornecimento de refeições escolares para o ano lectivo 2018/2019”, além do “fornecimento diário de refeições em estabelecimentos escolares do 1º ciclo de ensino básico e pré-escolar da rede pública no Concelho de Sintra, assim como da Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra”.

    Tudo somado, desde 2018, no global, a Câmara de Sintra entregou a farta quantia de 74,3 milhões de euros em contratos às duas empresas que agora voltaram a ser contratadas pelo município. Se forem contabilizados contratos anteriores, feitos por ajuste directo ou ao abrigo de acordo-quadro, a soma eleva-se para cima dos 87,6 milhões de euros.

    De resto, segundo os dados constantes do Portal Base, o município de Sintra tem entregue contratos de fornecimento de refeições escolares a outras empresas, mas os valores estão aquém dos montantes entregues ao ICA/Nordigal.

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    Foto: D.R.)

    Por exemplo, em Julho deste ano, o município firmou um contrato com a espanhola Mediterranea de Catering, envolvendo 12.879.972 euros, neste caso para “aquisição de serviços de fornecimento de refeições em estabelecimentos escolares da rede pública do Concelho de Sintra e na Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra”.

    O contrato assinado em 12 de Julho foi depois ‘acrescentado’, no mês seguinte, a 29 de Agosto, de um ajuste directo no valor de 921.580 euros para prestar, durante dois meses, o serviço de… “fornecimento e distribuição de refeições escolares em estabelecimentos escolares do 2.º, 3.º ciclo e secundária da rede pública do Concelho de Sintra e Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra”.

    Por coincidência, o primeiro contrato adjudicado pelo município de Sintra a este consórcio foi por ajuste directo em 15 de Julho de 2015, quatro meses depois do Tribunal da Relação ter decretado a prescrição da acusação da Autoridade da Concorrência contra o ‘cartel das cantinas’, que tinha entre os acusados o agrupamento ICA/Nordigal, o qual foi condenado pelo Tribunal da Concorrência a pagar 600 mil euros por ter trocado informação comercial com concorrentes.

    Saliente-se que um dos nomes mencionados na acusação do ‘cartel das cantinas’ surge, ‘preto no branco’, nos dois contratos agora assinados entre o ICA/Nordigal e a Câmara Municipal de Sintra: Nuno Perdigão, em representação do agrupamento empresarial. Na altura do ‘cartel das cantinas, entre a documentação, foi ‘apanhado’ um e-mail recebido por Perdigão, na qualidade de inspector de vendas da ICA, que comprovou a existência de troca de informação comercial entre as empresas do cartel.


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  • Ártico: quando o degelo e a geopolítica entram em choque

    Ártico: quando o degelo e a geopolítica entram em choque

    Nos últimos dois meses, o arquipélago norueguês de Svalbard derreteu cinco vezes mais rápido do que o normal. Nesta reportagem, o jornalista Boštjan Videmšek detalha a transformação por que está a passar toda a região, não só devido aos efeitos do degelo, mas também aos impactos das tensões entre o Ocidente e a Rússia, que colocaram a zona na linha da frente de um xadrez geopolítico.


    O convés superior do navio de exploração MS Polar Girl, com 60 anos de idade, mas maravilhosamente preservado, oferecia uma vista fantástica dos glaciares azuis e brancos. Estávamos a navegar para Barentsburgo, uma cidade mineira de propriedade da empresa estatal russa Arktikugol Trust … O que significava que estávamos a caminho para um novo campo de batalha geopolítico importante e em direção à linha de frente de nosso clima em mudança.

    Nos últimos dois meses, o arquipélago norueguês de Svalbard derreteu cinco vezes mais rápido do que o normal, de acordo com as últimas imagens de satélite da NASA.

    É bastante aterrorizador como se pode observar a massa gelada a descer lentamente para o oceano. Durante a minha visita, o degelo foi ainda mais acelerado pelo facto de que o sol do meio-dia tinha adquirido uma presença quase mediterrânea. Pelo segundo dia consecutivo, as leituras do termómetro ultrapassaram os 20 graus Celsius.

    Barentsburgo, localizada no Alto Ártico, começa a acostumar-se à quebra de recordes de temperatura. “Poderia ser descrita como Alterações Climáticas ao Vivo (Climate Change Live)”, disse um guia chamado Masha, com uma expressão de reprovação, no convés superior da MS Polar Girl.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Vindo de Omsk, nos Urais, Masha chegou a Barentsburgo em 2021. O seu domínio das línguas inglesa e norueguesa, obtido através dos seus estudos em Moscovo, obrigou alguns “caçadores de cabeças” a oferecerem-lhe um emprego em Svalbard.

    “Agarrei a oportunidade”, Masha explicou. “Em parte, porque isso significava que eu poderia ajudar financeiramente a sustentar os meus pais. O primeiro ano em Barentsburgo foi ótimo! Fui completamente afastado de qualquer tipo de política. Estávamos simplesmente a viver as nossas vidas. Senti-me muito mais livre … Mas depois tudo começou a mudar.”

    Masha fez uma breve pausa no seu relato para apontar um amontoado de morsas a absorver o sol. “É por isso que amo tanto Svalbard!” exclamou.

    Masha deixou Barentsburgo há dois anos – pouco depois do início da invasão russa da Ucrânia, que teve um efeito gravemente negativo na vida quotidiana da cidade mineira do Ártico. Antes da guerra, Barentsburgo abrigava cerca de 700 habitantes. Hoje em dia, não restam mais de 400.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    “O turismo viu um declínio acentuado”, contou Masha durante a nossa viagem a Barentsburgo. “Muitas pessoas decidiram sair. Eu fui uma delas.”

    Ela decidiu ir para Longyearbyen, cidade mineira norueguesa e o maior assentamento em Svalbard. Encontrou imediatamente um emprego no navio em que navegávamos a caminho para o reduto russo em Svalbard.

    Agora, Masha vive e trabalha no barco. “Cresci a amar este modo de vida. Como guia, posso fazer quatro vezes o que fiz em Barentsburgo. E gosto muito de trabalhar com pessoas. Excepto, claro, aqueles que me julgam pela minha nacionalidade, culpando-me por tudo o que está a acontecer só por causa da minha nacionalidade! Mas sabe, tornei-me muito seletiva quanto a permitir que essas pessoas ditem o meu humor.”

    Barentsburgo. (Foto: Boštjan Videmšek)

    A jovem russa passa metade do ano a trabalhar no navio e a outra metade a viajar pelo mundo. Ela gosta especialmente da Ásia, onde na maioria das vezes não precisa de visto.

    “Olhe!”, gritou pouco antes de o navio entrar no porto de Barentsburgo. A poucos passos de distância, dois grupos de baleias brancas beluga brincavam sob o brilho do sol.

    Tudo o que podíamos fazer era ficar em silêncio.

    Um reduto russo em Svalbard

    Ao chegar ao porto, fomos recebidos por uma estrela desenhada na face de uma colina, ao lado de um slogan que dizia “Миру-мир!‘ (‘Paz para o Mundo!“)

    Equipas de trabalhadores preparavam carregamentos de carvão negro para o transporte. Uma densa fumaça branca subia da chaminé de uma central térmica azul. Camiões pesados russos continuaram a fazer as rondas ao longo da estrada de cascalho fortemente revestida de cinzas negras. A antiga sede da empresa estatal russa de mineração ostentava as bandeiras russa e soviética.

    Parecia que estávamos prestes a entrar em um museu ao ar livre.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Barentsburgo foi baptizada em homenagem ao explorador holandês do Ártico Willem Barentzs. No dia 7 de Março deste ano, a cidade comemorou 100 anos de existência. A partir de 1932, tem sido propriedade da então empresa de mineração soviética, e agora controlada pelo Estado russo, Arktikugol Trust.

    De acordo com o Tratado de Svalbard de 1920, o arquipélago ártico está sob jurisdição e soberania norueguesa. No entanto, todos os países signatários (46) podem exercer livremente actividades económicas. No auge da onda de mineração, cerca de 4000 pessoas das ex-repúblicas soviéticas viviam em Svalbard. Agora, restam apenas cerca de 400, a maioria russos.

    Enquanto subia os íngremes degraus de madeira que levavam ao porto, vistas deslumbrantes de glaciares ao meu redor contrastavam nitidamente com imagens de outra época.

    Em cada passo, podia ver bandeiras russas e soviéticas a ondular na brisa. Em frente a um complexo de apartamentos de muitos tons típico das cidades satélites comunistas, uma alta estátua de bronze de Lenine resistiu em toda a sua serenidade benéfica. O slogan do homem “Comunismo – o nosso objetivo!” foi inscrito em letras enormes no prédio de apartamentos atrás da estátua.

    Vestígios de um passado soviético “glorioso” são omnipresentes nesta cidade, onde a maior parte da acção ocorre no subsolo profundo – até 1000 metros abaixo da superfície do mar, onde está localizada a galeria mais distante da mina.

    Apesar da falta de rentabilidade, a mina opera 24 horas por dia, todos os dias.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    As coisas são estranhamente semelhantes na outra cidade mineira russa na região, a há muito abandonada Pyramiden.

    Em 21 de junho, uma enorme bandeira soviética apareceu na montanha acima da cidade. Antes disso, as autoridades locais russas ergueram uma cruz ortodoxa considerável nos arredores da cidade. “A nossa tradição foi renovada e assim vai continuar viva”, declarou a direção da Arktikugol. No estilo de um soldado de infantaria soviético a libertar uma fortaleza nazi, a bandeira soviética no topo da montanha vizinha foi plantada pelo CEO da Arktikugol, Ildar Neverov.

    O provocador hasteamento de bandeiras parece ter sido transformado num desporto amado pelo Ártico russo. Durante o desfile da vitória do ano passado, em 9 de Maio, Arktikugol chegou a hastear a bandeira da autoproclamada República Popular de Donetsk. A bandeira foi pendurada em Pyramiden. Durante o desfile deste ano, a rua principal de Barentsburgo foi tomada por uma procissão de trenós de neve replectos de pessoas vestidas com uniformes do exército russo e a agitar bandeiras russas.

    Perto do lendário  pub Red Bear, notei alguns veículos militares noruegueses BV206 com bandeiras russas.

    No entanto, o papel principal da grande proliferação de símbolos russos e soviéticos em Barentsburgo e Pyramiden não é a preservação da história. Longe disso: a ubiquidade dos símbolos nacionais e ideológicos é uma questão da atual geopolitik real russa.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Dadas as consequências das alterações climáticas – que, em Svalbard, podem ser observadas a olho nu – a relevância geopolítica do Arquipélago Ártico é agora maior do que mesmo durante a Guerra Fria. Especialmente, depois do rápido desaparecimento do gelo marinho ter começado a abrir novas rotas marítimas, ligando a região do Pacífico Extremo Oriente ao Oceano Atlântico.

    O papel geopolítico e de segurança do Ártico também se acentuou devido às graves tensões entre a Rússia e o mundo ocidental. Essas relações estão atualmente piores do que nunca, disseram-me entrevistado após entrevistado.

    Na sequência da agressão russa à Ucrânia e da adopção de sanções ocidentais, as relações diplomáticas historicamente bastante sólidas entre a Rússia e a Noruega também sofreram um golpe. A Frota do Norte da Rússia está ancorada na península de Kola, a oeste de Svalbard, onde um grande número de ogivas nucleares também estão estacionadas. Ao mesmo tempo, a NATO está a exercer uma pressão crescente sobre a Noruega para reforçar a sua presença militar no Ártico. Há um ano, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo chegou mesmo a recategorizar a Noruega de país “hostil” para “muito hostil”.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Em 2019, Vladimir Putin criou um “comité Svalbard” especial. Em discursos anteriores, o líder russo salientou frequentemente a importância estratégica do Ártico e as suas benesses naturais para o crescimento económico da Rússia. Para que não nos esqueçamos: em 2007, a Rússia optou por hastear a sua bandeira no Polo Norte – um gesto simbolicamente profundamente agressivo.

    Sobre Svalbard, também se mostrou haver apetites crescentes por parte de alguns dos outros países signatários do Tratado de Svalbard de 1920. Por exemplo, a China, que agora deseja abertamente renomear-se como “um país ártico”. Em Julho, o governo norueguês suspendeu a venda do último grande pedaço de propriedade privada em Svalbard (Søre Fagerfjord) a um comprador chinês desconhecido. O governo norueguês pretende agora comprar a propriedade por cerca de 350 milhões de euros.

    Na opinião da China, o bloqueio da venda representou uma violação do tratado de Svalbard, especialmente da disposição que concede direitos iguais em relação às actividades económicas no arquipélago para cada um dos países signatários.

    De acordo com praticamente todas as pessoas com quem falei sobre Svalbard, todos estes desenvolvimentos só podem e devem ser interpretados no contexto geopolítico mais amplo.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    A Rússia não reforçou a sua presença em Svalbard apenas para hastear bandeiras. Pretende também abrir um novo centro de exploração científica na cidade abandonada de Pyramiden. Moscovo já convidou oficialmente a China, a Índia e a África do Sul a participar – bem como o Irão, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.

    Uma das instituições que colaboram para a criação do novo centro científico russo é o Instituto Biológico Marinho de Murmansk.

    “Em 2022, a cooperação com países hostis parou, embora antes disso estivesse a desenvolver activamente. Agora que o vector se virou para o Oriente, estamos a desenvolver a cooperação com os nossos colegas chineses”, disse, há algumas semanas, Denis Moissev, adjunto do diretor do Instituto Murmansk, ao jornal russo Komsomolskaya Pravda.

    A Rússia anunciou os seus planos para a abertura do centro científico logo após a Noruega ter declarado que o  Centro Universitário UNIS, sediado em Longyearbyen, era a única instituição de ensino superior autorizada no arquipélago.

    Sem surpresa, a Noruega vê a introdução do novo centro científico como uma mudança territorial. “Queremos reforçar o controlo nacional e reforçar a presença norueguesa no arquipélago”, revelou recentemente a ministra da Justiça da Noruega, Emilie Enger Mehl.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Aquando da minha visita, Barentsburgo parecia uma cidade tranquila e quase vazia. Apenas algumas pessoas podiam ser vistas a passear pela rua principal, a maioria delas turistas. E os blocos de apartamentos também não estavam exactamente repletos de vida.

    “Aldeia de Potemkin! (que simboliza uma imagem de fachada)’ foi a minha primeira associação espontânea.

    A pequena e bela capela ortodoxa de madeira construída para homenagear os mineiros mortos num acidente de avião em 1996 também parecia deserta. Apenas o já mencionado pub Red Bear ainda evidenciava sinais de antiga glória.

    Quatro anos e meio de paralisação contínua – primeiro induzida pelo coronavírus, depois devido à guerra – cobraram um alto preço à cidade mineira russa, onde a qualidade de vida costumava superar a da norueguesa Longyearbyen, localizada do outro lado do fiorde.

    Não resta muito carvão abaixo de Barentsburgo. E o pouco que resta é cada vez mais caro e difícil de extrair. Os mineiros, trabalhando ininterruptamente em quatro turnos, precisam de uma hora para chegar à galeria mais distante.

    A cidade foi mantida à tona através de injecções financeiras substanciais do Estado russo. As autoridades russas compreendem, naturalmente, que Barentsburgo não pode continuar a ser uma cidade mineira por muito mais tempo. É por isso que a empresa estatal Arktikugol decidiu empreender uma grande mudança na direção do turismo. Mas a pandemia eclodiu, seguida de guerra e sanções.

    Barentsburgo está agora a considerar seriamente a construção de uma fábrica de processamento de peixe. É imperativo que a Rússia mantenha uma presença em Svalbard, custe o que custar.

    Relações cortadas

    A antropóloga Dina Brode Roger é uma estudante contínua do Ártico. Regressa a Svalbard desde 2016. Em média, passa 6 meses por ano no arquipélago ártico. Antes disso, explorou a Gronelândia, o Alasca e a Islândia.

    Nos últimos oito anos, ela observou uma tremenda mudança em Svalbard. Especialmente relacionadas com as alterações climáticas, cujas consequências não são provavelmente mais óbvias do que aqui. No entanto, as consequências sociais e económicas do aumento das tensões geopolíticas também tiveram um enorme impacto.

    Dina Brode Roger. (Foto: Boštjan Videmšek)

    Brode Roger partilhou que desde 24 de fevereiro de 2022 – data que marca o início da agressão russa na Ucrânia – nunca visitou Barentsburgo. “Foi uma decisão pessoal.” Ela recusou-se a cooperar no projeto de propaganda que acreditava que o regime russo estava a conduzir na pequena cidade mineira.

    Antes disso, costumava fazer visitas regulares a Barentsburgo e Pyramiden.

    “Costumava haver bons contactos entre o lado norueguês e o lado russo”, disse-me Dina Brode Roger em Longyearbyen. “Especialmente através dos intercâmbios culturais e desportivos. Foi o mesmo no auge da Guerra Fria. Nessa altura, a Noruega envidou muitos esforços para que a situação em Svalbard se mantivesse o mais estável possível. E a União Soviética também evitou conflitos. Houve muita cooperação e assistência mútua. Veja, as pessoas precisavam umas das outras naquela época, quando os mineiros viviam e trabalhavam de ambos os lados. E agora… Bem, agora as coisas são muito diferentes. Especialmente por conta da invasão russa da Ucrânia. E por conta de como as coisas estão a ir na Rússia.”

    Brode Roger fez uma breve pausa e continuou: “Muitas pessoas vieram de Barentsburgo para Longyearbyen nos últimos dois anos. Estou a falar de ucranianos e russos que tiveram de sair. A sua experiência ajudou a moldar as opiniões dos moradores de Longyearbyen sobre o que estava a acontecer em Barentsburgo. E também sobre a guerra na Ucrânia. As actuais autoridades de Barentsburgo estão muito mais próximas de Moscovo do que nunca. Simplesmente fazem o que lhes é dito. A administração russa não está interessada em comunicar com a Europa. O isolamento parece estar na ordem do dia. Foi diferente durante a Guerra Fria. Muita coisa mudou. O mundo é um lugar muito diferente agora.”

    Outra pessoa que se sentiu obrigada a deixar Barentsburgo após a invasão russa da Ucrânia foi Timofei Rogozhin, ex-chefe do ramo de turismo da Arktikugol.

    Rogozhin disse, recentemente, ao  jornal Barentsburg Observer que todos os funcionários receberam ordens para parar de publicar as suas opiniões sobre a guerra ou corriam o risco de serem demitidos. “O ano passado transformou uma aldeia moderna civilizada, com uma sociedade aberta e amigável, numa espécie de pântano cinzento, fechado e agressivo”, acrescentou Rogozhin, depois de se mudar para o norte da Noruega.

    Longyearbyen. (Foto: Boštjan Videmšek)

    Apesar de tudo, alguns dos moradores de Longyearbyen estão determinados a manter relações. Especialmente durante o inverno, quando a viagem entre as duas cidades mineiras é possível com a ajuda de trenós de neve. Ao contrário das oficiais, as relações privadas ainda não tinham sido proibidas.

    “A Rússia é extremamente hábil em reconhecer os pontos fracos de diferentes países, especialmente os vizinhos”, disse Dina Brode Roger. “Os russos sabem muito bem que botões apertar. Estão sempre a ‘verificar a temperatura’, à procura de vulnerabilidades. A Noruega está a colocar uma grande ênfase na sua presença no Ártico. O projeto de mineração em alto mar é muito importante para o nosso governo. E a Rússia sabe disso muito bem, pelo que continua a enviar sinais claros através das suas acções políticas em Barentsburgo. Estão principalmente a enviar provocações na linha de: ‘Nós também podemos fazer isso!’ A instalação da enorme cruz ortodoxa, o desfile militar… Querem claramente que respondamos a estas provocações e sabem fazer muito com muito pouco dinheiro investido!”

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Um dos que ainda tenta manter pelo menos relações indiretas com seus colegas russos é Torgeir Mork, o principal meteorologista do aeroporto de Longyearbyen nos últimos 20 anos.

    Mork lamenta o facto de todos os contactos com cientistas russos baseados no Ártico terem sido cortados após a guerra. “Todas as manhãs, ainda envio as minhas leituras e previsões para Barentsburgo – assim como sempre fiz”, disse-me. “Nunca recebo uma resposta da estação meteorológica lá.”

    O meteorologista de longa data está convencido de que, para obter compreensão sobre as mudanças assustadoras que varrem a região do Ártico, a cooperação internacional deve ser primordial.

    “Antes da guerra, costumávamos nos visitar. Jogávamos xadrez e futebol. Divertimo-nos muito juntos. Só posso esperar que esta guerra miserável acabe o mais depressa possível… E essa história não está prestes a acabar”, relatou Mork no seu posto, ao lado da pista de aterragem de Longyearbyen.

    Torgeir Mork. (Foto: Boštjan Videmšek)

    A visão de uma escritora

    A escritora russa Dina Gusein-Zade, de 36 anos, chegou a Barentsburgo após o fim dos confinamentos do coronavírus, quando praticamente todo o Ártico ainda estava isolado do resto do mundo. Ela chegou a Svalbard logo após a Rússia ter lançado a sua ofensiva contra a Ucrânia.

    Vinda de Moscovo, Gusein-Zade foi atraída para o Ártico a fim de encontrar paz, abrigo e inspiração artística. O seu domínio de línguas estrangeiras valeu-lhe um emprego como guia turística e decidiu encarar o trabalho como uma excelente oportunidade para explorar o Ártico.

    “Tanto como escritora como como ser humano, sigo os meus próprios desejos e expectativas, não as expectativas dos outros,” afirmou Gusein-Zade. “A maior parte do que escrevo é escritora para mim, não para qualquer outra pessoa. Acho que poderia dizer que escrever é a minha forma de terapia. As condições para esse tipo de coisa são ótimas aqui, com toda a paz e tranquilidade e o afastamento geral. Ao mesmo tempo, posso misturar-me com algumas pessoas muito interessantes sempre que quiser. Toda a gente que aqui vem tem uma história interessante para contar.”

    A jovem escritora russa está actualmente a escrever o seu segundo livro.

    “Não posso ficar no mesmo lugar por muito tempo”, prosseguiu ela. “Passei vários anos a viajar à boleia por todo o mundo. Assim que a temporada turística começa aqui, eu voltei para a estrada. Gosto da Ásia, da África, do Cáucaso… Acho que sou basicamente uma nómada!”

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Dina Gusein Zade pode ser uma nómada, mas também acredita firmemente na conectividade.

    “Os seres humanos não devem ser separados à força!” afirmou, protestando contra o estado atual das coisas. “Todos nós que vivemos no Ártico devemos cooperar. Precisamos uns dos outros. Especialmente os cientistas. A política é outra história – ou melhor, outra dimensão, cheia de zonas cinzentas. Só posso esperar que os tempos difíceis acabem logo.”

    Apressou-se a acrescentar: “Nem todos são iguais. Não é justo que as pessoas comuns tenham de pagar o preço das decisões políticas desta forma. É injusto sermos tratados como criminosos e inimigos apenas com base na nossa nacionalidade. Nenhum país e nenhuma nação são intrinsecamente maus!”

    A jovem escritora-viajante russa fez uma pausa para procurar no horizonte as suas próximas palavras.

    “Demorei muito tempo a lidar com a minha humanidade”, contou ela. “Aceitar as minhas limitações. E o facto de que tenho pouco ou nenhum controlo sobre as coisas más que podem ser impostas às pessoas a partir de cima. Posso sofrer, mas isso não vai ajudar em nada a causa da paz. Especialmente quando é o seu próprio país que está a fazer algo de mau. Por isso, estou a concentrar-me no meu papel dentro da minha família e do meu círculo de amigos, e também no meu trabalho de escrita. Esta tornou-se a minha linha da frente.”

    Cemitério. (Foto: Boštjan Videmšek)

    Juntamente com o marido, um programador informático com quem se casou recentemente em Barentsburgo, Gusein-Zade está actualmente a planear mudar-se para a Turquia. A Rússia já perdeu um grande número dos seus melhores jovens. O mesmo se pode dizer de Barentsburgo, onde as terríveis consequências das sanções internacionais podem ser testemunhadas a cada passo.

    As lojas estão meio vazias. Os preços dos alimentos são excepcionalmente elevados. De vez em quando, as mercadorias destinadas a Barentsburgo ficam retidas no porto de Longyearbyen durante bastante tempo. Todos confirmam que a vida se tornou muito difícil. As rotas de abastecimento foram interrompidas. Os voos da Rússia para Svalbard foram interrompidos desde o primeiro confinamento do coronavírus. Por causa da guerra, simplesmente nunca foram repostos.

    Tudo isto teve um enorme impacto no turismo local. “Enormes navios de cruzeiro costumavam visitar o porto de Barentsburgo. Agora, só temos um ocasional navio turístico mais pequeno”, relatou Dina Gusein-Zade com uma certa tristeza. Praticamente não há turistas da Rússia. Aqueles que conseguem vir, apesar de tudo, geralmente já têm vistos e estão a viver fora da Rússia. Barentsburgo recebe principalmente turistas da Europa, América e Ásia. O navio da minha agência deve navegar até Longyearbyen para ir buscá-los. É a única opção disponível.”

    Como é que as sanções afectaram as relações pessoais em Barentsburgo, perguntei à escritora russa.

    Svalbard. (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Ah, as sanções e todas as tensões crescentes tiveram um impacto enorme!” respondeu. “Muita gente partiu. Mas aqueles de nós que permanecem parecem estar bem. Gostamos de nos ajudar, de dar a mão ao próximo. Esta é uma das vantagens de viver numa pequena comunidade. Mas as sanções já tinham causado danos terríveis. O seu efeito tem sido o fortalecimento dos conflitos já existentes dentro da comunidade. As pessoas aqui estão zangadas. As sanções revelaram-se mais prejudiciais para os economicamente mais vulneráveis e para aqueles que desejavam manter-se em contacto. Agora, pode realmente observar-se as pessoas a endurecerem em tempo real. E também há muito medo vindo de ambos os lados. O problema é que este tipo de medo leva ao ódio. Não creio, no entanto, que isolar-se seja a solução. O isolamento muitas vezes significa catástrofe. Especialmente aqui, onde já estamos mais ou menos isolados do mundo. Temos de nos manter ligados – é o único caminho para a paz. À coexistência!”

    Gusein-Zade fez uma última pausa. “Sabe, eu costumava acreditar que o Ártico estava vazio. Mas não está. Há muita vida aqui. E também é vasto e aberto. Isso é uma fonte de inspiração para mim.”

    Atrito geopolítico no Extremo Norte

    O Ártico pode, de facto, ser aberto, mas apenas no sentido espacial. A fricção geopolítica tornou-se recentemente numa enorme influência na vida dos habitantes. Especialmente em Barentsburgo, onde as autoridades locais – servindo a proposta do Kremlin – transformaram a cidade num parque temático de propaganda ao estilo soviético.

    As relações entre Barentsburgo e Longyearbyen começaram a deteriorar-se já em 2014, quando a Rússia anexou a península da Crimeia e enviou as suas unidades paramilitares para as regiões de Donetsk e Lugansk, na Ucrânia. As tensões aumentaram acentuadamente após 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia.

    No entanto, apesar das sanções e da interrupção da cooperação institucional entre a Rússia e a Noruega, ainda há comunicação entre o governador de Svalbard e o CEO da Arktikugol em Barentsburgo. O governador de Svalbard, Lars Fause, também visita o seu homólogo russo – o cônsul-geral em Barentsburgo – duas vezes por mês.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    “As grandes mudanças em Barentsburgo e dentro da comunidade russa em Svalbard começaram em 2021”, explicou Kari Aga Myklebost, professora de história da Universidade do Ártico da Noruega em Tromsø. “Foi então que o novo cônsul russo em Barentsburgo e o novo CEO da Arktikugol começaram a assumir poderes cada vez maiores. Arktikugol foi transformada num veículo para promover os objectivos da política externa russa. Poderosos políticos russos estiveram envolvidos, entre eles vários membros da Duma. O novo CEO e o cônsul-geral foram rápidos em ligar seus próprios funcionários. Especialmente quando tentaram expressar o seu apoio ao já falecido Alexei Navalny. O chefe do departamento de turismo da Arktikugol foi aconselhado a sair devido à sua oposição às novas políticas que estão a ser implementadas em Barentsburgo. Saiu, como vários outros funcionários. Desde então, a influência de Moscovo só se intensificou. Após a agressão à Ucrânia, a liberdade de expressão sofreu um novo golpe. Os acontecimentos em Barentsburgo são um reflexo da repressão que actualmente se verifica em toda a Rússia.”

    Aga Myklebost é considerado o maior especialista da Noruega em russo e no Ártico. “O novo regime começou imediatamente a insistir nos direitos dos trabalhadores russos no Ártico e em Svalbard. E também sobre os direitos históricos e a protecção da população russa”, afirmou, descrevendo a gradual ‘putinização’ da tradicionalmente moderada Barentsburgo.

    Kari Aga Myklebost. (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Mensagens muito semelhantes começaram a ser emitidas a partir dos altos níveis da política russa,” prosseguiu. “É uma tática bem conhecida. O Kremlin continua a repetir que o Ocidente procura um conflito com a Rússia. O mesmo tipo de linguagem era usada antes da invasão da Ucrânia. A Rússia vê este tipo de manobra de propaganda como extremamente barata, simples e eficaz.”

    De acordo com o professor norueguês, a endoutrinação cada vez maior de Barentsburgo não significa necessariamente que as autoridades russas estejam prestes a agir de acordo com sua retórica. A maior parte da propaganda pode muito bem ser dirigida ao público russo. Afinal, foi sufocando todas as vozes dissidentes que o apoio à agressão à Ucrânia ganhou apoio interno.

    “Os motivos russos em Svalbard não mudaram,” advertiu Aga Myklebost. “Querem manter o controlo do mar de Barents, que está agora a ser aberto ao comércio internacional devido ao degelo. É por isso que a Rússia continua a tentar contestar o tratado de Svalbard e a soberania da Noruega sobre o arquipélago. Querem impedir que Svalbard – e esta parte do Ártico – seja controlada pela NATO. Veja, se houver um conflito sério entre a Rússia e a NATO, a Rússia será forçada a fechar as vias navegáveis ao redor de Svalbard que levam diretamente à Rússia e à península de Kola, onde uma grande quantidade de capacidade nuclear russa está armazenada. Creio que é por isso que a Rússia não quer uma nova escalada das hostilidades com o Ocidente. Representaria simplesmente um risco excessivo.”

    Esta é a razão pela qual Kari Aga Myklebost acredita que as recentes provocações russas não foram de natureza militar. “É sobretudo ideologia. A Rússia está a gritar – mas principalmente apenas simbolicamente! Creio que estão muito mais interessados na resposta do público interno do que na resposta do Ocidente. Toda a propaganda é realizada exclusivamente na língua russa. Embora também seja verdade que a Rússia gostaria de provocar os decisores políticos noruegueses a fornecer um álibi para o fim do tratado de Svalbard.”

    Um enorme golpe para a ciência

    “Esperemos que as actuais más relações entre os principais protagonistas no Ártico não sejam o novo normal. O futuro da exploração do Ártico está em jogo, dado que cerca de metade da costa do Ártico está localizada na Rússia”, disse Kim Holmen, ex-diretor do Instituto Polar Norueguês e agora seu conselheiro especial.

    “Para aprofundar a nossa compreensão do Norte, precisamos de dados – precisamos de colaboração entre especialistas, independentemente da sua nacionalidade”, prosseguiu Holmen. “Isso seria do melhor interesse da humanidade. Mas, tal como as coisas estão, a colaboração é impossível.”

    Kim Holmén. (Foto: D.R.)

    O homem barbudo, considerado a principal autoridade na exploração do Ártico, acredita que a actual interrupção do fluxo de informações pode ser atribuída exclusivamente à invasão russa da Ucrânia. “Antes disso, o Instituto Polar tinha uma excelente relação de colaboração com cientistas russos. Mas agora a Noruega já não permite contactos entre instituições. As sanções também impedem transacções financeiras, o que representa um enorme obstáculo adicional.”

    Holmen disse-me que tinha vários amigos entre cientistas russos, mas conferenciar com eles já não era possível. “Há demasiados obstáculos. Começámos a compensar a nossa nova falta de dados com a utilização de satélites… Mas, no fim de contas, é necessário conhecimento humano para compreendermos como o Ártico realmente funciona. Precisamos de relatórios diretamente no terreno. O que se passa com o permafrost (solo congelado)? O que está a acontecer aos peixes? Aos oceanos? Aos glaciares? Os satélites não podem realmente fornecer esse tipo de dados.”

    De acordo com Holmen, uma consequência é que, nos últimos dois anos e meio, a nossa compreensão do que está a acontecer no Ártico começou a deteriorar-se. Dada a ferocidade das alterações climáticas, esta é uma péssima notícia. “O resultado é que teremos cada vez mais dificuldade em prever o futuro próximo. As relações cortadas terão certamente efeitos negativos de longo alcance. A ciência sofreu um duro golpe.”

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Era final da tarde quando o MS Polar Girl deixou o porto de Barentsburgo. Ao longe, pude observar o brilho dos glaciares, alertando-me para um mundo em desaparecimento.

    Perguntei a Masha se ao partir sentia que estava a sair de casa.

    “Não”, respondeu ela. “A minha casa é este navio!”


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  • Madeira: a ilha do tesouro (agora perdido)

    Madeira: a ilha do tesouro (agora perdido)

    Uma reportagem de Pedro Almeida Vieira publicada originalmente, e como tema de capa, em Março de 2003 na extinta revista GRANDE REPORTAGEM, que mostra a parte mais desconhecida da riqueza ecológica da ilha da Madeira, agora destruída pelo recente incêndio. As fotografias que acompanham esta reedição são de Sandra Mesquita.


    Na sua obra de referência, A Origem das Espécies, Charles Darwin citou-a mais vezes do que as misteriosas e luxuriantes ilhas Galápagos. Abriga quase cinco mil espécies de animais e plantas – e muitas mais, garantem os cientistas, estão por descobrir. Tem uma biodiversidade que rivaliza com algumas regiões da Amazónia, uma floresta virgem classificada como Património Mundial Natural e um primitivo e intacto difícil de encontrar em todo o planeta. É um inestimável tesouro que Portugal possui e que em peso, desconhece. Mas é também um dos pequenos territórios do globo com mais espécies ameaçadas. Uma viagem fantástica ao coração da Madeira selvagem.


    Reza a lenda que por volta do ano 1420, depois da descoberta oficial da ilha de Porto Santo, o capitão Gonçalves Zarco decidiu rumar em direcção a uma grande nuvem negra. Os marinheiros estavam aterrados. Sob aquele manto de escuridão borbulhante dizia-se estar a boca do inferno ou um abismo para onde cairiam os barcos borda fora do mundo. À coragem do navegador português obrigou-os a aproximarem-se do intenso nevoeiro, mas os rugidos tenebrosos que de lá saíam afugentaram-nos para sul, onde, já com a vista livre das trevas, em vez do inferno, encontraram o paraíso. Aos seus olhos, montanhas imponentes tombavam a pique sobre o mar, vales escarpados e verdejantes recebiam cascatas e riachos de água cristalina, animais nunca vistos pousavam-lhes nos ombros. E a vegetação, sempre presente em qualquer canto, luxuriante, exuberante, viçosa e majestática. Desde o pico mais alto até às praias pedregosas.

    Da lenda à realidade haverá uma pequena distância. A ilha da Madeira até já pode estar longe de ser um paraíso terreno – não fosse a região de Portugal com maior densidade populacional –, mas aí existem ainda os últimos redutos virgens da floresta dos descobridores portugueses. Ou mesmo da floresta dos tempos em que o Homem ainda nem sequer existia como espécie primitiva. É certo que a colonização humana rapidamente deu cabo de grande parte do arvoredo – mais uma vez, a lenda fala de sete anos de incêndios sem findar provocados pela arroteia de terrenos para a agricultura. Contudo, em pleno século XXI, a Madeira possui ainda a mais extensa floresta natural da região da Macaronésia, uma expressão grega que significa ‘Ilhas Afortunadas’ e que agrega também os arquipélagos dos Açores, Canárias e Cabo Verde.

    Capa da edição de Março da revista Grande Reportagem de Março de 2003.

    Mas, dentro desta região, a Madeira é um caso especial. À sua beleza e biodiversidade sempre encantaram tudo e todos. Mesmo aqueles que conheciam a fundo todas as maravilhas da Natureza. Não será por acaso que o pai do evolucionismo, Charles Darwin – cujo nome se associa, desde logo, às ilhas Galápagos –, acabou por citar a Madeira, no seu livro A origem das espécies, por vinte vezes. E a palavra Galápagos fica-se apenas pelas dezassete citações.

    *

    A viagem do aeroporto para o Funchal é percorrida numa via rápida com poucos pontos de interesse: campos agrícolas, alguns com bananeiras, umas pontas de mar e um casario que se vai massificando à medida que a cidade se aproxima.

    Depois receia-se uma desilusão. Quem só conhece a riqueza da ilha por aquilo que lhe disseram pensa que lhe venderam gato por lebre. Em cada pedaço de terra visível a partir do Funchal está a marca humana. O inverso daquilo que os descobridores de quinhentos encontraram. Desde o mar (literalmente, pois abundam os hotéis encostados às águas) até ao pico mais alto, dispersam-se casas e alguns prédios, numa mancha de óleo que ameaça alastrar ao topo da montanha. Apetece fugir dali. E partir à procura dos tesouros que maravilharam Zarco e os seus marinheiros, depois Darwin e ainda recentemente a UNESCO que, em 1999, classificou a floresta natural da ilha como Património Mundial.

    Apesar dos seus reduzidos 737 quilómetros quadrados – menos de nove vezes a cidade de Lisboa –, qualquer sítio parece longínquo nesta ilha. Sempre a subir, o jipe percorre uma estrada que serpenteia por onde pode – dois terços da ilha têm declives superiores a 25 por cento –, passando uma mancha urbana disforme e mais à frente áreas de pinheiros e eucaliptos, duas espécies importadas para esta região. À central de incineração de lixos, recentemente inaugurada, que lança um suspeito fumo negro, acentua-nos as dúvidas sobre a existência do tal paraíso.

    Mas eis que o paraíso surge, ao longe, no meio de nevoeiro e chuva miudinha. Encontramo-nos no sopé da Fajã da Nogueira, a poucos quilómetros da central hidroeléctrica, e a chuva intensifica-se. Nada mais normal. Estamos ainda no Inverno, numa zona onde pode chover 170 dias por ano e a precipitação chegar aos três mil milímetros, cerca do triplo da média de Lisboa. Pouco interessa, a ânsia já é mais forte do que o conforto abrigado do jipe. Entramos por um ribeiro, torneando uma pequena levada de abastecimento público de água, e subimos a saltitar pelas pedras. Umas pequenas cascatas, umas rochas escorregadias, umas escarpas que se percorrem com prudência e eis-nos num anfiteatro natural. Não aberto. Pelo contrário, bem fechado: de um lado e do outro, escarpas imponentes, cobertas de vegetação, dão alas a uma cascata inacessível de águas cristalinas. Perante este cenário, a chuva desaparece na memória – e o aspecto desolador do percurso evapora-se –, mesmo se o casaco continua a absorver a água dos céus.

    Quer-se ver todos os pormenores: o pequeno lago profundo criado pelas quedas de água, as tonalidades avermelhadas de algumas rochas e aquela árvore que abraça um pedregulho colossal numa perfeita simbiose para que ambos não caiam. Mas aquilo é apenas o cartão-de-visita. Lá mais para cima, dizem-nos, por detrás das nuvens, está o éden. Chamam-lhe floresta laurissilva.

    *

    O nome lembra uma mulher, a sua beleza também. E bem poderia ser: esta floresta é envolvente, misteriosa, acolhedora, enigmática, que não se descobre e prefere ser descoberta. À origem vem, contudo, da dominância das árvores da família do loureiro – cujas coroas de folhas estão, curiosamente, na génese do nome feminino Laura – que se desenvolviam por toda a ilha entre os 400 e os 1350 metros.

    Olhar ao longe esta floresta dos nevoeiros cria, contudo, um erro de óptica. À elevada inclinação das vertentes dá a sensação de um denso manto vegetal, mas de baixa estatura. É preciso embrenharmo-nos por esta floresta – preferencialmente pelos caminhos de uma levada – para notar a dimensão das árvores, sobretudo do til, mas também do barbusano, do vinhático e mesmo do loureiro. Mas não estão sozinhas. Há um mundo de outras pequenas árvores e arbustos de grandes dimensões, desde a faia até ao folhado, passando pelo perado, mocano, azevinho-madeirense, teixo, pau-branco, figueira-do-inferno, uveira-da-serra, sabugueiro, cedro-da-madeira e muitas outras. Grande parte destas espécies são quase eternas, perpetuando-se pelas raízes, ou seja, a árvore verde não é mais que o prolongamento vivo do tronco e ramos secos que estão a seu lado. Depois, há todas as plantas herbáceas que durante a Primavera dão um colorido especial à floresta. E ainda os fetos, musgos e líquenes, alguns com formatos indescritíveis. “É uma floresta de fadas”, diz Susana Fontinha, directora do Parque Natural da Madeira. E é o que parece.

    Na zona da Encumeada, entramos no Folhadal para um mundo quase místico. As veredas transportam-nos por autênticas varandas onde as nuvens e nevoeiros se envolvem com o arvoredo e as falésias. A presença de água é imutável, mesmo quando não chove. Além das levadas, as ribeiras saltitam por todo o lado e de quando em vez uma cascata de dezenas de metros surge do alto de uma falésia. O som musical da água a cair das alturas – como se viesse das próprias nuvens – é de um encantamento hipnotizante. Os túneis estreitos – escavados pelos madeirenses para que as levadas transpusessem os penedos – são percorridos em passo prudente, mas ansioso, porque no final aparece sempre uma nova paisagem, uma nova e imponente cascata, uma nova surpresa.

    Acompanhados por Susana Fontinha e dois técnicos do parque natural, pedimos – porque é proibido, sem autorização – para ir ver de perto uma cascata no interior da floresta. É mais uma cascata, mas nunca é de mais ver mais uma. São trezentos metros de puro êxtase. É impossível seguir em linha recta, porque o ribeiro contorce-se entre as rochas e as árvores – com os troncos cheios de outras plantas, musgos, líquenes e fungos – quase formando uma parede intransponível. Alguns ramos aparentemente viçosos partem-se ao menor toque. Apenas as pedras no leito do riacho se vêem; as outras estão completamente atapetadas de um manto espesso de musgos e líquenes. A falésia desta cascata é mais um ponto de assombro. Não é por estar coberta de vegetação, mas sim por ter várias árvores de mais de uma dezena de metros que cresceram com o fuste perfeitamente paralelo ao solo. Como se, para elas, o chão fosse a parede do penhasco.

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    A riqueza biológica da Madeira é simultaneamente fruto do acaso e uma bênção da Natureza. De origem vulcânica, a idade da ilha não ultrapassará os três milhões de anos – embora ainda haja uma discussão sobre esta matéria – e as últimas erupções terão ocorrido há cerca de 25 mil anos. A quase mil quilómetros das costas ibéricas e a cerca de setecentos da costa africana, só lentamente foram chegando sementes e animais, transportados pelos ventos e correntes marítimas. E o seu isolamento ‘livrou-a’ da última glaciação na época do Terciário – que fez desaparecer a floresta dos loureiros na Europa e a flora e a fauna evoluíram à sua maneira.

    Mas este não foi o único factor que transformou a ilha da Madeira num local único. Face à sua morfologia acidentada, à cordilheira de picos elevados e à proximidade do mar, os habitats da Madeira são extremamente diversificados. Em situação natural existiam, pelo menos, quatro estratos de vegetação e, em cada um deles, subtipos em função dos microclimas. Por exemplo, no caso da floresta laurissilva – que apenas ocupa a faixa entre os 400 e os 1350 metros de altitude – existem, segundo os mais recentes estudos botânicos, cinco diferentes tipos de formações vegetais. Na faixa litoral, mais seca e quente sobretudo na parte sul, abundavam as espécies herbáceas das falésias marítimas – muitas das quais endémicas – e um pouco mais no interior dominavam a figueira-do-inferno – uma eufórbia arbórea que, em outras regiões, apenas atinge um porte herbáceo –, a malfurada, o zambujeiro – uma oliveira selvagem endémica da Madeira – e o dragoeiro. Contudo, por ser esta a região mais humanizada da ilha, grande parte desta vegetação natural foi destruída, pelo que apenas nas falésias e zonas declivosas inacessíveis é possível encontrar alguns vestígios.

    Acima dos 1.350 metros, a vegetação é completamente diferente da floresta laurissilva, sobretudo devido às baixas temperaturas. Aí abundavam três espécies de urzes – a mais imponente das quais a molar, cuja ocorrência de exemplares centenários no Pico Ruivo nos faz recuar a tempos longínquos –, loureiros de pequeno porte, a uveira-da-serra e outras plantas herbáceas, musgos e líquenes. A sorveira, um arbusto endémico de grande porte, também era frequente, mas o seu corte indiscriminado quase a levou à extinção, ocorrendo agora apenas junto ao Pico do Areeiro. Na zona do Paul da Serra – um extenso planalto acima dos 1400 metros de altitude –, a acumulação de água e a acção do gelo criaram habitats de prados temporários húmidos de vegetação rasteira que a intensa pastorícia, ao longo dos tempos, acabou por degradar quase até à exaustão.

    Um passeio pelo Montado dos Pessegueiros mostra esta panóplia de habitats numa curta distância. Começando por entre um impenetrável urzal junto ao Paul da Serra, somos levados por uma floresta deslumbrante – em que sessenta por cento da área está no seu clímax vegetativo – que vai mudando à medida que se desce por uma vereda, ora escorregadia ora quase imperceptível. Na parte final, a floresta deslumbrante quase se torna numa selva implacável. À estreita vereda junto a falésias de centenas de metros é o parapeito entre uma beleza estonteante, onde o azul do mar tenta fazer inveja ao verde da floresta, e uma queda fatal para o abismo.

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    Mesmo um profundo conhecedor das plantas e dos animais do continente europeu terá dificuldades em identificar as espécies do arquipélago da Madeira. Os endemismos – ou seja, espécies que apenas existem nesta região – são em tão grande número que calcorrear uma vereda ou entrar pela floresta causa uma estranha sensação de destruição atroz. “Numa pequena parte de uma falésia junto ao litoral poderemos encontrar mais de vinte endemismos, entre plantas, musgos e líquenes”, diz Miguel Sequeira, botânico da Universidade da Madeira. O mundo vegetal desta pequena ilha é impressionante, mesmo a nível mundial. Estão actualmente inventariadas cerca de 780 plantas vasculares, das quais 234 são endémicas da Macaronésia e 157 exclusivas deste arquipélago. E, nos últimos anos, tem-se feito rectificações nas identificações, pelo que é previsível que este número aumente. “Algumas espécies que se pensava serem comuns são, afinal, endémicas, tendo dado origem a novas espécies”, afirma Roberto Jardim, director do Jardim Botânico da Madeira. Os musgos e plantas hepáticas são mais de 550 – também um número em crescendo à medida que são feitos mais estudos –, sendo que 35 são endémicos e dez são exclusivos da Madeira. “Estas ilhas são o Eldorado dos estudiosos de líquenes e musgos”, sustenta Susana Fontinha, que há três anos integrou uma equipa que classificou uma nova espécie de líquen nas ilhas Desertas.

    Nos seres invertebrados, a lista ainda é maior. Já Charles Darwin, em A origem das espécies, se mostrava maravilhado com a diversidade e formas evolutivas de muitos dos insectos da Madeira. Por agora, estão inventariadas, pelo menos, 3300 espécies de invertebrados, sobretudo insectos, muitos microscópicos e outros cavernícolas, e moluscos, na sua maior parte caracóis e lesmas. Cerca de trinta por cento são endémicos. E, neste caso, há mais espécies à espera de serem descobertas. Mas mesmo muitas mais. “Há vários milhares de espécies ainda por descobrir”, diz a galega Dora Pombo, uma entomóloga (especialista em invertebrados) da Universidade da Madeira.

    O reitor da instituição, Ruben Capela, também entomólogo, reforça esta ideia e lamenta que, em Portugal, não se aposte mais na classificação das espécies, a taxonomia. “Só existem verbas para investigar insectos que sejam prejudiciais ao homem, não se aposta no conhecimento básico e os taxonomistas são uma espécie em extinção”, critica, exemplificando com o facto de se ter visto na necessidade de enviar para laboratórios estrangeiros cerca de duas dezenas de prováveis espécies novas de insectos para identificação. “Existem registos, como na floresta amazónica, de invertebrados que nunca descem das copas das árvores, mas nunca conseguimos ver aprovado um projecto para os estudar”, queixa-se o reitor.

    Neste mundo primitivo que, em alguns sítios, lembra os cenários do Jurassic Park, as plantas e os insectos são reis e senhores – é a vantagem de se ter sementes ou ser-se pequeno – mas não os únicos habitantes. Os vertebrados são em reduzido número relativamente às regiões naturais do continente europeu. Mas poucos não significa pouca importância. Por exemplo, no arquipélago da Madeira, apesar de apenas ocorrerem 42 espécies de aves, das quais nove são endémicas, existem dois dos maiores santuários de aves a nível mundial: as Desertas e as Selvagens. Mas mesmo na 1lha da Madeira encontram-se algumas ‘relíquias’ endémicas: o pombo-trocaz – a ave emblemática da floresta laurissilva –, a freira-da-madeira, a freira-do-bugio, o canário-da-terra, a andorinha-da-serra, o corre-caminhos e algumas rapinas. Os anfíbios e répteis são pouco frequentes – embora haja uma lagartixa que tem o condão de polinizar uma planta –, enquanto os peixes de água doce estão ausentes, devido à torrencialidade e grandes cascatas das ribeiras. Mas essa ausência acaba por ser compensada pela riqueza das águas do mar, cujo exemplo é a Reserva Natural do Garajau, a leste do Funchal, a única área protegida exclusivamente marinha do país, criada em 1986.

    Os mamíferos terrestres também são raros, embora os marinhos estejam (bem) representados pela foca-monge – um dos mamíferos marinhos mais raros do mundo – e por dezoito espécies de baleias. Em terra, merecem especial realce cinco espécies de quirópteros, sobretudo o morcego-da-madeira, endémico da Macaronésia. E já não é pouco.

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    No entanto, nem tudo são rosas na biodiversidade da Madeira. Existem mesmo muitos espinhos encravados na natureza, fruto de anos de intensa humanização. Se as ilhas Desertas e as Selvagens estão completamente a salvo – sobretudo agora que esta última se apresta para ser também classificada pela UNESCO como Património Mundial Natural –, as ilhas do Porto Santo e da Madeira – apesar do seu estatuto de protecção alargado com os sítios da Rede Natura – possuem significativos problemas e ameaças. O último Livro Vermelho da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), divulgado em Outubro do ano passado, apresenta um cenário algo negro para o arquipélago da Madeira: dezasseis espécies em risco crítico de extinção, onze em perigo de extinção e 45 em situação muito vulnerável. De acordo com a lista da IUCN, se a Madeira – que em termos territoriais é minúscula – fosse um Estado, seria o quinto país europeu com mais espécies ameaçadas, a seguir à Rússia, Espanha, França e Itália.

    Estando integrada em Portugal, faz com que o nosso país seja o 38º a nível mundial com mais espécies ameaçadas e o segundo em toda a Europa, a seguir à imensa Federação Russa. E se se considerar apenas os animais, Portugal está nos vinte primeiros do Mundo com mais espécies ameaçadas.

    Na Madeira, o grupo dos moluscos encabeça a ‘lista negra’, com 55 espécies entre os três principais estatutos de ameaça criados pela IUCN. Curiosamente, as duas últimas espécies endémicas portuguesas que «aceleraram» para a extinção, declarada em 1996 pela IUCN, foram dois caracóis terrestres madeirenses (Letostyla lamellosa e Psedocampylaea lower).

    Mas nesta lista da IUCN estão também em vias de extinção plantas e animais de grande simbolismo deste arquipélago: a foca-monge (mamífero), a freira-da-madeira (ave) e duas borboletas endémicas, bem como o mocano, a sorveira e o cedro-da-madeira (plantas). Para cada uma destas três plantas estão inventariadas menos de quarenta árvores à escala mundial. Mas mesmo as principais árvores da floresta laurissilva – como o loureiro, o til, o vinhático e o azevinho-madeirense – encontram-se num limiar próximo das espécies ameaçadas a nível mundial, de acordo com os dados da IUCN. Outras espécies de árvores, outrora abundantes, estão praticamente extintas na Madeira – embora não nas outras ilhas macaronésicas –, nomeadamente o mocano, a tintureira, o marmulano e o dragoeiro. Para esta última planta – um símbolo natural da Madeira, cujo aspecto arbóreo esconde a sua verdadeira fisiologia de herbácea – restam apenas três exemplares selvagens, numa falésia da zona da Ribeira Brava.

    Para agravar ainda mais este cenário, um recente estudo desenvolvido por investigadores portugueses sobre as acções de conservação da flora portuguesa aponta mesmo para um maior número de espécies vegetais em perigo. No caso dos briófitos da Madeira, três espécies encontram-se em perigo de extinção, quinze estão vulneráveis e 42 são raras, enquanto para as plantas vasculares endémicas encontram-se 32 espécies em perigo de extinção, outras 41 estão vulneráveis e 32 são já raras.

    A principal causa desta situação foi – em especial nos casos do vinhático, til e cedro-da-madeira – o abate indiscriminado durante séculos para a construção de casas, móveis e outros utensílios de madeira. Outras árvores e arbustos foram sendo utilizados, de forma mais ou menos desregrada, para a construção civil, marcenaria e diversos utensílios domésticos e agrícolas. Susana Fontinha garante que, desde os anos vinte do século passado, “a floresta é exclusivamente de protecção, não há cortes e, além dos vigilantes da natureza, temos o corpo de guardas-florestais com quase noventa elementos a darem-nos apoio; na Madeira os políticos já se aperceberam da sua riqueza ambiental e económica”. A criação em 1988 do Parque Natural da Madeira – que ocupa dois terços da ilha – foi o corolário dessa nova postura. Actualmente a única excepção de corte, autorizada apenas em casos especiais, é o da urze-das-vassouras, utilizada para protecção das culturas agrícolas no litoral contra a maresia.

    Apesar de considerar que existem motivos de preocupação, sobretudo nos habitats de baixa altitude, Miguel Sequeira relativiza alguns estatutos de perigo de extinção. «Muitas espécies endémicas, sobretudo se forem exclusivas da Madeira, têm uma área espacial de ocorrência relativamente limitada, mas nem sempre conhecida por completo, ficando, desde logo, integrada num estatuto vulnerável», afirma este biólogo. E, além disso, salienta, “a inclusão de espécies ameaçadas depende muito da profundidade dos estudos que se realizam num determinado país e do seu peso político a nível internacional e junto da IUCN”.

    Na mesma linha segue o reitor da Universidade da Madeira. “A investigação em biologia depende de aspectos práticos, mas também da afeição que um determinado grupo merece por parte dos investigadores e das pessoas em geral. Por exemplo, quem se preocupa que um determinado mosquito se extinga, mesmo que os investigadores digam que isso pode vir a provocar uma epidemia de outras espécies?”, questiona Ruben Capela. Será, porventura, por causa disto que sendo a Madeira um museu vivo de insectos – com quase três mil espécies conhecidas –, estejam apenas quatro na ‘lista vermelha’ da IUCN, sendo que três delas são borboletas, as mais amadas deste extenso grupo de ‘indesejados’. “É muitíssimo improvável que na Madeira não haja mais espécies de insectos em risco de extinção, ou seja, isto significa que existem poucos estudos e não que as espécies de insectos estão de boa saúde”, salienta Ruben Capela.

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    Na generalidade, não se pode acusar a Madeira de não se preocupar com este cenário pouco idílico. Na última década foram investidos em projectos de conservação da natureza na Madeira, financiados pela União Europeia, mais de sete milhões de euros, abrangendo a foca-monge, cetáceos, moluscos e a recuperação e gestão da floresta laurissilva e outros habitats. Mas nem sempre as medidas chegam a bom porto. Nuns casos por colidirem com outros interesses, noutras situações por a recuperação ser onerosa ou tecnicamente difícil.

    As plantas infestantes são disso um exemplo. Actualmente, cerca de meia centena de espécies exóticas introduzidas nos últimos séculos invadiram extensas áreas da 1lha, sobretudo na vertente sul. E já começam a atingir algumas áreas no interior do parque natural, como acontece com a bananilha, uma herbácea oriunda da Índia que forma tapetes compactos até dois metros.

    Por outro lado, a recuperação de espécies vegetais em risco de extinção em estado selvagem, feita sobretudo pelo Jardim Botânico da Madeira, não tem sido tarefa fácil. “Para repovoamentos, recolhemos sempre material genético, sementes ou caules, de exemplares da natureza, como fizemos com os dragoeiros e em algumas plantas do litoral, mas é um processo difícil e moroso, nem sempre com resultados assegurados”, salienta Roberto Jardim. “Existem espécies, como o mocano, em que a reprodução é complicada – provavelmente extinguir-se-ia mesmo sem pressão humana –, embora recentemente tenhamos descoberto um método que nos permitirá fazer repovoamentos”, salienta. Em alguns casos, para fazer germinar as sementes, são encontradas soluções inesperadas e insólitas. Por exemplo, há alguns anos descobriu-se que para fazer germinar as sementes do cedro-da-madeira bastaria ‘lavá-las’ com… sabão azul

    Ainda mais complexa e lenta tem sido a recuperação de habitats destruídos pelo

    pastoreio desregrado. Largadas ao relento, cabras e ovelhas dizimaram áreas de herbáceas e de matos nas serranias, não permitindo também a regeneração natural do arvoredo. A ‘coisa’ já foi pior, mas ainda é possível encontrar muitas cabras e ovelhas ao deus-dará, comendo tudo o que lhes aparece pela frente. Raimundo Quintal, geógrafo e ex-vereador da autarquia do Funchal, é um adversário feroz do pastoreio nas serras madeirenses. “A criação de gado é uma estúpida questão tradicional, não há razões económicas; não existem rebanhos organizados nem pessoas economicamente dependentes do gado”, salienta aquele que é considerado um dos maiores divulgadores da Madeira natural.

    Para acabar com a degradação – que despiu quase por completo a vegetação no Paul da Serra e em algumas zonas do Pico Ruivo e do Pico do Areeiro –, o Governo Regional da Madeira instituiu um incentivo à redução do pastoreio livre, oferecendo aos proprietários, durante cinco anos, 38 euros pela retirada de cada cabeça de gado. “No ano passado gastámos cerca de um milhão de euros em pagamentos de compensações, esta é uma medida feita com diálogo, mas de forma intransigente; para quem não cumprir, o gado é morto pelos guardas-florestais”, diz Manuel António Correia, secretário regional do Ambiente. “Com esta medida beneficiou-se o infractor”, critica Raimundo Quintal que, apesar disso, releva a recuperação encetada em várias zonas Já libertadas do gado, nomeadamente no Paul da Serra e no Pico do Areeiro. Nesta última zona, grupos de voluntários já plantaram, nos últimos anos, milhares de plantas indígenas em terrenos do Parque Ecológico do Funchal. E os resultados começam já a ser visíveis.

    Sem solução à vista parece estarem as queimadas de matos que, indiscriminadamente, são feitas por populares, mesmo durante a noite. A sorte é que, na esmagadora maioria dos casos, afecta apenas as zonas mais próximas dos aglomerados urbanos e afastadas da floresta laurissilva. Mas, mesmo com a elevada humidade, já ocorreram incêndios em áreas de floresta laurissilva, que se tornam catastróficos face à dificuldade de os atacar. É em algumas zonas fustigadas pelos fogos a diferença para a floresta natural original é, diga-se, tristemente abissal.

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    As atenções ambientalistas sobre a Madeira estão agora, mesmo a nível internacional, viradas para a evolução de um projecto, no Pico do Areeiro, que poderá pôr em risco uma das mais ameaçadas aves do mundo. No momento em que ainda se ouvem os ecos da aceitação da candidatura das ilhas Selvagens a Património Mundial Natural da UNESCO – devido à sua riqueza em aves marinhas –, os ambientalistas receiam que a projectada construção de um radar militar da NATO possa afectar a freira-da-madeira. Considerada extinta até finais dos anos sessenta, esta ave foi entretanto ‘redescoberta’, mas já em estado de grande vulnerabilidade, estando apenas referenciados trinta casais. Vivendo praticamente meio ano em alto mar e estando em terra apenas para nidificar, as fêmeas põem apenas um ovo por ano num ninho escavado em falésias do Pico do Areeiro. Durante anos, os seus principais inimigos eram os ratos e os gatos abandonados que lhes comiam os ovos. Mas agora a principal ameaça é tecnológica.

    Perante a acérrima oposição dos ambientalistas e o comprometedor silêncio do Ministério do Ambiente, tem sido o ministro da Defesa, Paulo Portas, a ‘comandar’ as hostilidades. Já chamou “ecoxiitas” aos ambientalistas e estes responderam-lhe na mesma moeda, acusando-o de mentiroso. O braço-de-ferro deverá continuar nos próximos tempos, tanto mais que várias associações ambientalistas – a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves e a Bird Life International – já se queixaram à Comissão Europeia, visto que esta área está já classificada definitivamente como sítio de interesse comunitário no âmbito da Rede Natura, existindo mesmo um projecto de conservação da freira-da-madeira financiado pelo programa Life.

    O secretário regional do Ambiente da Madeira prefere não se meter nesta ‘guerra’, dizendo que “o Governo Regional é solidário com os propósitos do Governo português”. Mas Manuel António Correia vai acrescentando que “os estudos apontam para que não haja qualquer impacte ambiental, tanto mais que o radar situar-se-á no mesmo local da pousada do pico do Areeiro, além de que se vai adquirir, como medida de compensação, cerca de três mil hectares para serem entregues à gestão do parque natural”. Diga-se, contudo, que a compra dos terrenos já está garantida não por causa do radar, mas sim devido ao projecto do programa Life, da União Europeia, que visa a preservação da freira-da-madeira. E que, ao contrário daquilo que os responsáveis políticos dizem, o estudo de incidências ambientais, encomendado à Universidade de Aveiro, não consegue mais do que concluir que “quanto aos efeitos da radiação emitida pelo radar […] é difícil afirmar com determinação a ocorrência ou não de incidência” sobre a freira-da-madeira.

    José Alho, presidente da LPN, diz “não compreender a insistência do Ministério da Defesa na construção do radar, porquanto não provou que este equipamento é imprescindível, sabendo-se que está em causa a extinção de uma espécie única”. “Em caso de dúvida, deve aplicar-se o princípio de precaução; numa extinção não há forma de corrigir erros”, salienta.

    Outro projecto polémico, desta vez em plena floresta laurissilva, prende-se com o prolongamento da estrada do Fanal até ao Paul da Serra. Há cerca de uma década, o Governo Regional alargou e asfaltou um caminho de terra desde a povoação do Seixal até ao posto florestal do Fanal, atravessando uma zona de floresta natural. Agora, o mesmo Governo Regional quer acabar a ‘obra-prima’. O secretário regional do Ambiente defende que “os madeirenses têm necessidade desta estrada até ao Paul da Serra para usufruto, para os seus passeios”. Frontalmente contra este projecto está Raimundo Quintal. “Esta estrada não faz qualquer sentido”, contrapõe este geógrafo, acrescentando que “não serve populações nem beneficia em nada o turismo, apenas destrói a floresta”.

    Estes dois projectos serão, porventura, o calcanhar de Aquiles da postura pró-ambiental da Madeira e do seu Governo Regional, sendo evidentes os esforços em inverter a degradação de alguns habitats, recuperar espécies ameaçadas e manter o seu património natural. De resto, pode-se dizer que, quando todos os estereótipos já foram inventados para criticar a gestão da res publica pelo Governo de Alberto João Jardim, talvez neste sector a Madeira possa pedir, com justiça, meças ao Continente. Não é tudo perfeito, muito longe disso – e é bom nem falar do urbanismo, ou falta dele, nas deprimentes povoações madeirenses –, mas em política de conservação da natureza e gestão de áreas protegidas, o continente tem muito a aprender com a Madeira. Em postura, mas também em paixão e orgulho naquilo que a natureza deu e ainda existe.


    Uma floresta que vale ouro

    A laurissilva é não só um gigantesco reservatório de água como uma barreira de defesa contra tragédias e um atractivo turístico. E ainda tem outras virtudes.

    A floresta laurissilva não é apenas um mostruário natural. É um espaço vital para a economia e sobrevivência humana da Madeira. A começar pelo líquido chamado água, que produz um quarto da electricidade consumida na ilha. Num território de pequena extensão, mesmo chovendo muito, a água escorreria ingloriamente até ao mar caso não existisse uma densa floresta. A estrutura da laurissilva consegue não só armazenar a água como captá-la dos próprios nevoeiros, três vezes aquilo que chove, segundo dizem os especialistas. Além disso, sem a vegetação, torrentes de água, pedras e lama transformar-se-iam facilmente em catástrofes. Que, aliás, se verificam de tempos em tempos, sobretudo na vertente sul, mais humanizada e alterada, onde a vegetação natural foi ocupada por campos agrícolas, casas, pinhais e eucaliptais.

    Desde o século XIX existem registos de cheias catastróficas – denominadas localmente por aluviões –, tendo a mais destrutiva ocorrido em 1803, matando cerca de mil pessoas do Funchal, quatro por cento da população de então. Mas se a tragédia humana nunca mais atingiu aquelas proporções, a frequência intensificou-se. “Nos últimos dois séculos, cerca de setenta por cento dos aluviões registaram-se nas últimas cinco décadas”, diz Raimundo Quintal, geógrafo e ex-vereador da autarquia do Funchal. “A floresta é a maior barreira e defesa contra as cheias; isso é uma das suas maiores virtudes”, salienta.

    Mas há muitas mais virtudes. E algumas mesmo à mão de semear, embora quase não sejam aproveitadas. É o caso do potencial farmacológico das plantas da Madeira. “Na medicina tradicional há muitas utilizações de plantas e mesmo de fungos, mas existe pouca investigação nacional para a caracterização das substâncias vegetais que possam ter propriedades farmacológicas”, diz Roberto Jardim, director do Jardim Botânico da Madeira. Contudo, com tantas plantas ali mesmo à mão, “nada garante que multinacionais não tenham já vindo à Madeira recolher plantas para as estudar, encontrado e patenteado substâncias novas para a Medicina”. Miguel Sequeira, biólogo da Universidade da Madeira, defende que esta postura deve ser alterada. “Se não soubermos esses potenciais, nunca se poderá reivindicar qualquer eventual retribuição ao abrigo da Convenção da Biodiversidade”, diz.

    O turismo de natureza é outra componente económica importante da Madeira, mas cuja exploração é ainda incipiente, sobretudo entre a população portuguesa do continente. Para estes, a Madeira é pouco mais do que o sol no Verão, o Funchal, o Carnaval, a Festa da Flor e a passagem de ano. Por isso, pelas veredas e levadas da Madeira os caminhantes são sobretudo madeirenses ou então estrangeiros, mas a informação disponibilizada ainda é reduzida, sobretudo em termos de marketing internacional que ofereça a Madeira como um destino de turismo de natureza por excelência. E é bom que esse passo seja dado, uma vez que se estima que este seja um dos negócios mais florescentes a nível mundial, com crescimentos anuais de até vinte por cento em algumas áreas naturais do mundo. Com a vantagem que o turista de natureza tem, regra geral, elevado poder de compra e é respeitador dos valores ambientais que visita.


    PRINCIPAIS ESPÉCIES AMEAÇADAS DA MADEIRA

    Segundo a lista da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a Madeira possui dezasseis espécies em risco crítico de extinção, onze em perigo de extinção e outras 45 em situação vulnerável. Os moluscos – por terem sido mais estudados –, com muitas espécies endémicas, sobretudo no Porto Santo, são o grupo com maior número de espécies ameaçadas no arquipélago. Mas existem outras espécies mais conhecidas e simbólicas que estão em risco de desaparecer na Madeira.

    Cleópatra-da-Madeira

    Gonepteryx maderensis

    Situação: perigo de extinção

    Borboleta endémica da Madeira. Bastante rara, vive nas copas das árvores da floresta laurissilva. Alimenta-se de uma árvore chamada sanguinho.

    Foto:  Kerstin & Michael Schmitz.

    Grande-branca-da-Madeira

    Pieris wollastoni

    Situação: risco crítico de extinção

    Borboleta endémica cujo nome científico foi dado em honra de Thomas Wollaston – naturalista inglês amigo de Darwin, que se serviu dos seus estudos para citar a Madeira no livro A origem das espécies. Está praticamente desaparecida, devido a parasitas exóticos.

    Foto: Heiner Ziegler.

    Freira-da-madeira

    Pterodroma madeira

    Situação: risco crítico de extinção

    Embora a ecologia desta ave marinha ainda seja um mistério, sabe-se que apenas está em terra durante meio ano para acasalar em ninhos que escava em escarpas do Pico do Areeiro, na ilha da Madeira. Apenas existem cerca de trinta casais, que são fiéis durante a vida e apenas chocam um ovo por ano.

    Foto: Herman Blockx.

    Foca-monge

    Monachus monachus

    Situação: risco crítico de extinção

    Também chamado lobo-marinho, esta é a foca mais rara do Mundo, distribuindo-se desde a costa noroeste de África até à Madeira, embora existam apenas cerca de quatrocentos indivíduos. As ilhas Desertas são conhecidas por possuir a maior colónia de focas-monge, com cerca de vinte animais, tendo-se já referenciado a sua ocorrência na ponta de São Lourenço, na ilha da Madeira.

    Foto: Wild Wonders of Europe / Sá / naturepl.com

    Mocano

    Pittosporum coriaceum

    Situação: risco crítico de extinção

    Pequena árvore que se desenvolve em zonas escarpadas da floresta laurissilva, de odoríferas flores amarelo-pálidas, está quase extinta na Natureza. Depois de vários anos de tentativas, o Jardim Botânico da Madeira conseguiu recentemente a sua reprodução in vitro.

    Foto: Carlos Aguiar.

    Cedro-da-madeira

    Juniperus cedrus

    Situação: perigo de extinção

    Conífera de zonas escarpadas da floresta laurissilva, é bastante rara devido ao corte excessivo durante séculos, uma vez que a sua madeira era bastante apreciada para marcenaria e construção civil, sendo exemplo disso os tectos da Sé do Funchal. Em estado natural existem apenas, na Madeira e Canárias, 39 exemplares.

    Foto: Carlos Aguiar.

    Sorveira

    Sorbus maderensis

    Situação: risco crítico de extinção

    Arbusto de alta montanha. Tem umas bagas vermelhas semelhantes às do azevinho. Os fogos e a pastorícia reduziram a população da sorveira a cerca de trinta exemplares, os quais estão sobretudo localizados no pico dos Melros e Chão do Areeiro, em zonas de escarpa.

    Foto: Carlos Aguiar.

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