Categoria: Sociedade

  • Ambiente ‘tóxico’ na Quercus

    Ambiente ‘tóxico’ na Quercus

    Esta notícía foi alvo de um direito de resposta de Aline Pinheiro Rodrigues, que pode ser lido aqui.

    No ano que completa o seu 40º aniversário, a associação ambientalista Quercus prepara-se para tomar uma medida drástica e inédita: expulsar quatro associados, incluindo o ex-presidente João Branco e uma antiga dirigente de um núcleo regional, Aline Pinheiro, que até já fora expulsa em 2008 mas mais tarde readmitida.

    A proposta será votada em Assembleia Geral Extraordinária (AGE) agendada para este sábado, e surge na sequência de uma ‘guerra fraticida’ que envolve processos de antigos e actuais dirigentes. [Os quatro associados acabaram mesmo por ser expulsos após a votação em AGE].

    Foto: D.R.

    Esta medida é o culminar de anos de polémicas e disputas internas na histórica associação ambientalista, fundada em 31 de Outubro de 1985, que já incluiu processos judiciais contra o seu antigo presidente João Branco. Por sua vez, o líder da Quercus entre 2015 e 2019 avançou com uma participação junto do Ministério Público contra diversos dirigentes e associados da organização.

    Segundo a convocatória da AGE, são cinco os pontos na ordem de trabalhos nesta reunião de associados que se realizará num formato híbrido, na sede da Quercus, em Lisboa, e também online. O ponto um diz respeito à designação do presidente da comissão arbitral. Os restantes quatro pontos são relativos à proposta de expulsão dos quatro associados: Aline Pinheiro, que, no passado, presidiu ao Núcleo da Quercus em Lisboa; Cláudia Monteiro, ex-presidente do Núcleo do Algarve; João Branco, antigo presidente; e Paulo Mendes, ex-dirigente do Núcleo Regional de Braga e autor de uma providência cautelar, intentada no início de 2024, para destituir a actual direcção nacional da associação, alegando ter havido irregularidades na convocatória da assembleia-geral em Abril de 2023.

    Alexandra Azevedo, presidente da Quercus, reconheceu, em declarações ao PÁGINA UM, que a proposta de expulsão dos quatro sócios e ex-dirigentes se trata de uma medida inédita, e que, pelo menos desde 2008, é a primeira vez que são expulsos associados. Segundo a actual líder, a expulsão foi “proposta pela direcção nacional”, tendo a “comissão arbitral feito a instrução do processo e o relatório final”. Alexandra Azevedo escusou-se a revelar pormenores dos processos. A decisão final cabe agora aos associados que votarão a proposta de expulsão dos quatro associados.

    Alexandra Azevedo, presidente da Quercus. / Foto: D.R.

    Para João Branco e Paulo Mendes, a expulsão é uma manobra para eliminar eventuais candidatos em futuras eleições para a liderança da organização ambientalista. Segundo João Branco, com esta proposta “a actual direcção afasta a concorrência”.

    No resumo dos processos disciplinares que o PÁGINA UM consultou, Paulo Mendes considerou que “o procedimento disciplinar não tem qualquer fundamento e que não passa de um lamentável exercício destinado a afastar da Quercus um sócio incómodo e, nomeadamente, de o impedir de se candidatar às próximas eleições para os órgãos sociais”.

    Por sua vez, João Branco avançou com uma participação junto do Ministério Público contra diversos membros dos corpos sociais e organismos da Quercus, designadamente a actual presidente da associação ambientalista. Na participação, Alexandra Azevedo é acusada de actos que lesaram a Quercus no âmbito de uma obra de construção e ainda de ter beneficiado associados no pagamento de quotas em atraso em troca do seu voto nas eleições em assembleia-geral. Acusa ainda a dirigente de ter falsificado os relatórios e contas de 2020 e 2021 para obter resultados positivos.  

    João Branco. / Foto: D.R.

    A expulsão de João Branco, associado n.º 13447 e presidente da Quercus nos mandatos de 2015-2017 e 2017-2019 consta do quarto ponto na ordem de trabalhos da AGE. O antigo dirigente nacional da associação ambientalista foi processado pela Quercus, designadamente devido a acusações de má gestão financeira durante o seu mandato como presidente. Essas acusações incluem a alegada utilização indevida de fundos da associação para fins pessoais, o que motivou a abertura de um processo disciplinar.

    Na Justiça, João Branco foi alvo de três processos judiciais, no total. No primeiro, foi acusado de falsificar actas, tendo o processo sido arquivado, segundo informações do próprio ao PÁGINA UM, e indicou ainda que os outros dois processos estão em curso: um por alegada má gestão; e outro por se ter apropriado da conta da Quercus no Facebook.

    No caso do processo em que é acusado de má gestão, um parecer de Julho de 2018 do Núcleo de Assessoria Técnica do Ministério Público destacou a existência de operações e pagamentos que exigiam mais informações, designadamente gastos de deslocação em viatura própria e a compra de um fato, que foi classificada como despesa de representação. Mas também concluiu que, com base na informação do ROC da Quercus, “a certificação legal de contas do ano de 2018 confirma a melhoria da situação da associação, invertendo-se assim a situação dos anos anteriores, não identificando, caso se realizem os projectos iniciados, qualquer incerteza quanto à sua continuidade – em 2018 apresenta um resultado líquido de 100.225,91 euros”.

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    No processo disciplinar interno, João Branco é acusado de “falsificação de actas” da direcção nacional; “má gestão financeira e patrimonial”; “despesas não documentadas”; “contratação de serviços a empresas com relações familiares directas”; “acesso ilegítimo ao Facebook oficial da Quercus”; e “uso abusivo do nome, logótipo e marca ‘Quercus’”.

    A comissão arbitral concluiu que “o comportamento do associado para além de ser abusivo, é uma traição, uma afronta e uma deslealdade para com a Quercus”.

    Segundo a comissão arbitral, “os documentos constantes do presente procedimento disciplinar mereceram total credibilidade e corroboram os factos alegados na proposta fundamentada apresentada” pela Direcção Nacional, “mormente a Auditoria Forense realizada, que foi um trabalho externo, imparcial e preciso, elaborado por profissionais independentes. Todos os factos e documentos não foram impugnados pelo associado”.

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    João Branco, além de refutar as acusações, diz que solicitou o relatório da auditoria e que nunca lhe foi enviado. No caso da página da Quercus no Facebook, o engenheiro florestal garante que “não se apropriou da página da Quercus”.

    O segundo ponto da ordem de trabalhos da Assembleia Geral deste sábado inclui também a expulsão de Aline Pinheiro, que presidiu ao Núcleo da Quercus em Lisboa. No seu curriculum refere ainda que “criou e coordenou a temática da Construção Sustentável”, na associação e que “é autora do Projecto Edifício Verde – Edifício demonstrativo de construção sustentável, que implementou”. A arquitecta tinha sido expulsa em 2008, mas foi reintegrada quando João Branco liderou a associação.

    Segundo o resumo dos processos disciplinares, Aline Pinheiro é acusada de ter feito um “contacto à Gestora de Conta da Quercus da Caixa Geral de Depósitos (CGD), sem legitimidade e alegando motivos falsos, que resultaram na suspensão da decisão deliberada e aprovada, por unanimidade, a concessão de um empréstimo de 150.000 euros” por parte do banco “à Quercus, essencial para garantir a segurança financeira” da associação, “bem como para cumprimento de obrigações fundamentais”.

    Também é acusada de ter tido um “padrão de intervenções escritas desta associada numa linha de clara deslealde para com a Quercus, enviando e-mails a terceiros e/ou com conhecimento de terceiros”. A actual Direcção Nacional alega também a existência de “fortes indícios” de que Aline Pinheiro “esteve a dispor de “grande parte dos activos financeiros deixados pela Direção anterior do Núcleo, no valor de cerca de 20.000 euros, para benefício próprio, com diversas transferências para a empresa de que é sócia – Bongreen”.

    Aline Pinheiro. / Foto: D.R.

    Segundo o documento, “desde o ano de 2019, [Aline Pinheiro] recebeu através de pagamento á empresa Bongreen – Consultoria, Formação e Arquitectura, Lda., da qual era sócia maioritária, um total de 17.904,01 euros, dos quais 16.467,37 euros utilizando indevidamente a conta bancária do Núcleo Regional de Braga”. Adianta que “todos os factos e documentos não foram impugnados pela associada”, que num e-mail, em 20 de Maio de 2023, respondeu à associação: “Por favor! O que é isto? Eu estou-me a cagar para a Quercus ou para aquilo que vocês pensam de mim. (…)” .

    Para a Quercus, “a associada agiu, de forma voluntária, reiterada e com dolo directo, contra o bom nome e prestígio da Associação, e contra o cumprimento do consignado na Declaração de Princípios, Estatutos e Regulamentos, zelo e diligência nos cargos/funções que ocupava”. Na proposta final de sanção disciplinar, a comissão arbitral diz que “considera adequado e proporcional a aplicação da sanção disciplinar de expulsão da associada [Aline Pinheiro].”

    Cláudia Monteiro, ex-presidente do Núcleo do Algarve, eleita em 2020, é também um ‘alvo a abater’. Está acusada de ter feito um contacto ilegítimo com a Agência Portuguesa de Ambiente (APA) que resultou na suspensão da inscrição da Quercus no Registo Nacional das Organizações Não-Governamentais de Ambiente. Cláudia Monteiro respondeu à acusação por escrito, em Janeiro de 2024, “invocando a prescrição e caducidade do direito de acção disciplinar”, refutando as acusações e defendendo que sua actuação mais não foi do que “o exercício efectivo das competências que à data lhe assistiam enquanto Presidente do Núcleo Regional do Algarve, manifestando a sua discordância com a forma como a DN [direcção nacional] vinha exercendo as suas funções”.

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    O quinto e último potencial sócio expulso é Paulo Mendes, que foi dirigente do Núcleo Regional de Braga. O jurista foi o autor de uma providência cautelar, intentada no início de 2024, para destituir a actual direcção nacional, alegando ter havido irregularidades na convocatória da assembleia-geral da Quercus em Abril de 2023, na qual foi eleita a actual direcção presidida por Alexandra Azevedo para um segundo mandato. A providência cautelar acabou por ser revogada.

    Paulo Mendes é acusado pela Quercus de utilização indevida do nome de domínio ‘quercus.com.pt’. Mesmo depois de lhe ter sido pedido que cessasse a utilização do domínio, o antigo dirigente regional do Núcleo de Braga continuou a fazê-lo. Também é acusado de ter enviado informações confidenciais e de notas de imprensa no âmbito da providência cautelar que intentou.

    Em resposta às acusações, Paulo Mendes considerou que “o procedimento disciplinar não tem qualquer fundamento e que não passa de um lamentável exercício destinado a afastar da Quercus um sócio incómodo e, nomeadamente, de o impedir de se candidatar às próximas eleições para os órgãos sociais”. Também refutou as acusações e, sobre o uso do domínio, argumentou que “a palavra ‘quercus’ se reporta a um género de árvores” e que “pela consulta à base de dados do INPI, utilizam a marca ‘Quercus’ diversas entidades”. E diz que se “prontificou a oferecer à Quercus a titularidade do domínio ‘quercus.com.pt’”.

    Paulo Mendes “impugnou toda a matéria da acusação e os documentos que a acompanham”, peticiona o associado, a final, o arquivamento do procedimento,” e chegou a arrolar testemunhas”. Mas nenhuma testemunha chegou a ser ouvida e o associado continuou a usar o e-mail com domínio ‘quercus.com.pt’. Para a comissão arbitral, “o associado pretendeu, de forma clara, denegrir a imagem da Quercus, colocando em causa o seu bom nome e prestígio perante o público”.

    Apesar destas expulsões, o ‘ambiente tóxico’ entre os actuais antigos dirigentes da Quercus deverá continuar a prevalecer já que prosseguem processos em Tribunal, havendo ainda a possibilidade de haver nova litigância judicial no futuro após a confirmação da expulsão dos quatro associados.

    A Quercus é, desde há décadas, uma das mais activas associações ambientalistas de âmbito nacional, embora tenha ‘perdido’ parte dos seus ‘activos humanos’, depois da saída de vários destacados membros, que viriam a formar em 2015 a Zero, liderado por Francisco Ferreira.

    Mesmo com uma intervenção menos activa, a Quercus contava em 2023 com 2.897 associados, o valor mais baixo dos últimos 15 anos, mas vive actualmente uma situação financeira mais desafogada depois de anos de aflição. Nas contas de 2023 apresentou activos de cerca de 2,6 milhões de euros, rendimentos (sobretudo de donativos e apoios estatais) ligeiramente superior a um milhão de euros e contabilizou um lucro de 215 mil euros, contando com 15 funcionários.

    Notícia actualizada para adicionar a confirmação da expulsão dos quatro associados da Quercus, no 2º parágrafo.

    N.D.: Como é referido na Declaração de Transparência do PÁGINA UM, o director do jornal, Pedro Almeida Vieira, foi dirigente da Quercus, tendo desempenhado funções de vogal na direcção nacional no período de 1993-1995. Actualmente, não é sócio da Quercus. Também foi sócio-fundador da Zero (sem qualquer actividade).

  • ‘Dados biométricos ‘sacados’ pelo Estado vão parar às mãos de duas empresas estrangeiras

    ‘Dados biométricos ‘sacados’ pelo Estado vão parar às mãos de duas empresas estrangeiras

    São dados sensíveis que permitem a identificação de cidadãos através de características físicas, como o reconhecimento facial ou a impressão digital, mas estão a ser recolhidos por equipamentos fornecidos por empresas estrangeiras. Mas não existem garantias de que estejam a ser recolhidos e armazenados em segurança, e quais os níveis de acesso, manuipulação e uso por parte dos técncos de empresas privadas.

    Numa análise do PÁGINA UM aos contratos registados na plataforma de contratação pública, o Portal Base, observou-se que duas empresas estrangeiras estão já a dominar os chorudos contratos públicos relativos ao fornecimento de equipamentos e serviços relacionados com a recolha de dados biométricos: a sueca Speed Identity e ainda a Vision Box, uma empresa inicialmente portuguesas, financiada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e por outros programas da União Europeia, mas acabou vendida no ano passado à espanhola Amadeus, uma gigante ligada ao sector do turismo.

    Estas duas empresas arrebataram contratos que superaram, no total, os 14 milhões de euros (sem IVA), na sua maioria sem passar por concurso público. E também sem se saber qual o uso que as empresas privadas poderão dar ao dados biométricos que forem recolhidos no âmbito desses contratos, até porque está explícito que existe também uma prestação de serviços com técnicos e informáticos.

    O acesso a informação pessoal e sensível − como dados biométricos dos cidadãos − levanta sempre riscos em matéria de soberania, segurança e privacidade. Num mundo cada vez mais digital, a informação pessoal sensível é um produto que vende, mas também pode ser uma arma e uma ferramenta para eventuais roubos e fraudes.

    Segundo a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), a lei permite que entidades públicas ou privadas subcontratem serviços relacionados com recolha ou tratamento de dados respeitando as condições previstas na lei, designadamente as que estão previstas no artigo 28 do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), que estabelece a possibilidade de subcontratação. Contudo, apesar de todos os contratos que possam existir, acaba por ser uma questão de confiança, já que nem todas as entidades têm a capacidade para auditar a prestação do serviço prestado pelas empresas contratadas.

    A questão do acesso de terceiros a dados pessoais sensíveis é um tema que já levou a vários escândalos e à aplicação de multas aos infractores. Recorde-se que em Dezembro de 2022, a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) multou o Instituto Nacional de Estatística (INE) em 4,3 milhões de euros “pela prática de cinco contraordenações”. A condenação surgiu na sequência de um contrato adjudicado pelo INE à polémica empresa norte-americana Cloudflare, a qual teve acesso aos dados dos portugueses que responderam ao inquérito relativo ao Censos de 2021.

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    Um caso internacional que causou muita polémica envolveu a maior rede social do mundo, o Facebook, da Meta, e a Cambridge Analytica. O escândalo envolveu o acesso a dados sensíveis de quase 90 milhões de utilizadores da rede social pela consultora britânica, durante a década de 2010. A Cambridge Analytica usou os dados para fins de propaganda política sem o consentimento dos utilizadores.

    O Facebook foi obrigado a pagar 500 mil libras (quase 600 mil euros) ao Reino Unido por ter exposto os dados dos seus utilizadores a riscos graves. Quanto à consultora, declarou falência em 2018. Nos Estados Unidos, a Federal Trade Comission, cuja missão abrange a protecção dos consumidores, aplicou ao Facebook uma coima recorde de 5 mil milhões de dólares (cerca de 4,8 mil milhões de euros).

    Em Portugal, no ano passado, registaram-se, ao todo, cerca de 40 contratos públicos de aquisição de equipamentos e serviços de recolha daqueles dados sensíveis. Dois deles foram os maiores de sempre, referentes a tecnologias de recolha de dados biométricos.

    Foto: Vision Box / D.R.

    Os dois maiores contratos registados no Portal Base, foram adjudicados no ano passado à Speed Identity, um por via de ajuste directo e outro através de concurso público. No total, esta empresa facturou 4,2 milhões de euros (5,2 milhões de euros, com IVA), com três contratos celebrados em 2024 com entidades estatais portuguesas.

    O maior contrato envolvendo equipamento de identificação e leitura de dados biométricos foi adjudicado pela secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), em Julho último, para o fornecimento, “instalação, manutenção e assistência técnica de equipamentos controlo manual de fronteiras e de equipamentos de recolha de dados biométricos”. O negócio foi entregue à empresa sueca, através de concurso público, ascendendo a 2,4 milhões de euros com um prazo de execução de três anos.

    No passado dia 13 de Novembro, a PCM fez novo contrato com a Speed Identity, através de um ajuste directo no valor de 1,6 milhões de euros para “Aquisição, instalação, assistência técnica e manutenção de 75 equipamentos móveis de recolha de dados biométricos”. Não se conhecem os detalhes do negócio, já que o caderno de encargos não está disponível.

    Foto: D.R.

    A justificação para o ajuste directo foi a habitual “urgência imperiosa”, uma ardilosa forma de não realizar concurso público. Por regra, somente se pode alegar “urgência imperiosa” para justificar um ajuste directo se ocorrerem “acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, [e] não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Ora, quase nunca essa invicação surge justificação.

    Este contrato foi celebrado ao abrigo de uma disposição na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, que prevê que os contratos cujo valor seja superior a 950 mil euros e tenham sido celebrados por motivo de urgência imperiosa, podem entrar em vigor antes do visto ou declaração de conformidade do Tribunal de Contas.

    Já em Março, a sueca tinha ganho um concurso da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), no montante de 211.541 euros, para “aquisição equipamento para recolha de dados biométricos (10 impressões digitais)”.

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    Mas a empresa que obteve o maior valor em contratos do género foi a Vision Box. Em 2024, a Vision Box angariou contratos de 5,6 milhões de euros (6,9 milhões de euros, com IVA) junto de entidades públicas, na maioria através de ajustes directos. Entre as entidades que adjudicaram contratos a esta tecnológica estão a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), a Secretaria-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), Agência para a Modernização Administrativa e Qualidade do Serviço ao Cidadão e a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).

    No caso da PCM, fez um ajuste directo recente à Vision Box para a “aquisição de 54 leitores de documentos, no âmbito do Sistema de Controlo de Fronteiras”, no valor de 306.770 euros. O Governo também fez outros ajustes directos recentes com outras entidades no âmbito do projecto ‘Smart Borders’, designadamente um no valor de 541.266 euros, com a Claranet, no dia 30 de Dezembro, e um no montante de 154.325 euros, com a Integrated Biometrics, no dia 26 de Dezembro. Também nestes casos, os respectivos cadernos de encargos não estão acessíveis, uma quebra de regras de transparência na contratação pública. Questionada sobre os contornos destas compras, a PCM não respondeu às questões colocadas pelo PÁGINA UM.

    Também o Ministério dos Negócios Estrangeiros fez ajustes directos para a aquisição do mesmo tipo de equipamentos e serviços. O MNE efectuou, no dia 26 de Dezembro, um ajuste directo com Vision Box, no valor de 744.375 euros, para “aquisição de estações móveis para recolha de dados biométricos”. O prazo de execução é de 21 meses.

    A justificação para não ter sido feito concurso foi, neste casos, os direitos de propriedade intelectual. Os detalhes do negócio não são, porém, conhecidos. Apesar de ser disponibilizado no Portal Base um ‘link” para se aceder às peças deste procedimento, a ligação remete para uma página que indica “acesso não autorizado”, pelo que não se conseguem visualizar os documentos, nomeadamente o caderno de encargos.

    Em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM, o MNE justifica a realização deste contrato com o facto de que a “empresa Vision Box fez parte da equipa que desenvolveu este projeto”, tendo “desenvolvido a solução de recolha de dados biométricos K-PEP (e agora também M-PEP) num processo de parceria com as entidades governamentais portuguesas, designadamente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do Ministério da Administração Interna e o Instituto de Registos e do Notariado (IRN) do Ministério da Justiça”.

    O Ministério também explicou que, “entretanto, há cerca de três anos, foi criado um grupo de trabalho com todos os intervenientes (IRN, MNE, Casa da Moeda) para estabelecerem requisitos específicos de melhoria das funcionalidades dos quiosques tanto ao nível da usabilidade e portabilidade como ao nível da Segurança”.

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    Os dados biométricos são considerados dados sensíveis, existindo o risco de poderem ser usados para roubos e fraudes. / Foto: D.R.

    No entanto, “o MNE, aguardando os resultados deste grupo de trabalho, tem vindo a assegurar os serviços nos Postos Consulares apenas com os quiosques antigos (a[c]tuais), que necessitam invariavelmente de reparações, com todas as implicações que daí advêm tais como custos de reparações e outros custos de transportes”, salientou.

    Contudo, as conclusões do grupo de trabalho criado há três anos nunca mais chegam, Segundo o Ministério liderado por Paulo Rangel, “face ao significativo atraso destes resultados, aos vários pedidos dos Postos, e não podendo pôr em causa os serviços prestados no estrangeiro, o MNE terá de adquirir alguns quiosques para, enquanto não se obtêm resultados para as novas especificações técnicas, minimizar as faltas já existentes e que põem em causa o bom funcionamento dos serviços consulares no Estrangeiro”.

  • Conselho Superior da Magistratura promete, finalmente, acatar a lei do acesso aos documentos administrativos

    Conselho Superior da Magistratura promete, finalmente, acatar a lei do acesso aos documentos administrativos

    Após mais de três anos de litígios, João Cura Mariano, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e por inerência do Conselho Superior da Magistratura (CSM), manifestou ontem ao final da tarde a intenção de acatar a sentença proferida no passado dia 14 de Janeiro pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, que obrigou a cúpula da justiça portuguesa de disponibilizar e permitir a cópia em fotografia do inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês. Através de mensagem de correio electrónico, foi solicitado ao PÁGINA UM que indicasse “o dia em que pretende proceder à consulta requerida, nas instalações do CSM”.

    O caso remonta a finais de 2021, tendo sido a primeira de uma longa lista de mais de duas dezenas de intimações já colocadas pelo PÁGINA UM nos tribunais administrativos, com o apoio financeiro dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Em causa estava então o acesso ao inquérito do CSM sobre a distribuição do processo da Operação Marquês, entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre. Este inquérito, que revelou irregularidades como a ausência de sorteio electrónico, foi mantido secreto pelo CSM, apesar de ser classificado como documento administrativo. Após uma recusa inicial e um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), o CSM continuou a negar o acesso, alegando questões de confidencialidade.

    Sede do Conselho Superior da Magistratura, em 2 de Agosto de 2023, quando o director do PÁGINA UM se deslocou para consultar o relatório do inquérito da Operação Marquês, após um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. A recusa de obtenção de cópia nessa data implicou nova ‘batalha judicial’ somente concluída mais de 17 meses depois.

    A resistência do CSM levou o PÁGINA UM a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa, onde, em Junho de 2022, uma primeira sentença favorável ordenou a entrega integral dos documentos, sem restrições. O CSM apelou da decisão, mas o Tribunal Central Administrativo do Sul confirmou, em 2023, a sentença inicial. Apesar disso, o CSM dificultou o acesso integral, impedindo que fosse fotografados os documentos, e mutilando partes consideráveis do texto em fotocópias então disponibillizadas, o que levou o PÁGINA UM a recorrer novamente ao Tribunal Administrativo. Se o CSM não acatasse agora a nova sentença deste mês, o juiz conselheiro João Cura Mariano seria pessoalmente responsável pelo pagamento de 50 euros por dia de atraso.

    Este desfecho marca uma vitória histórica para o PÁGINA UM, que, desde a sua fundação, tem lutado pela transparência e pelo acesso à informação. No entanto, este caso também levanta questões cruciais sobre a responsabilização individual de altos dirigentes em situações de incumprimento de decisões judiciais e sobre o papel das instituições judiciais no respeito pelos princípios democráticos e pela liberdade de imprensa.

    Recorde-se, aliás, que o PÁGINA UM tem em curso outros dois casos absurdos de incumprimento de acórdãos dos tribunais administrativos superiores. O primeiro caso refere-se à consulta da base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH), que inclui toda a informação dos internamentos, sem qualquer identificação de pessoas, há muito prevista nas próprias competências da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Apesar de uma ‘luta jurídica’ iniciada em Setembro de 2022, que culminou em três decisões judiciais, incluindo um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo em 1 de Junho de 2023, a ACSS mutilou completamente a base de dados, eliminando ou agrupando variáveis, comprometendo toda a integridade da informação. O pedido de intervenção ao Tribunal Administrativo ainda não teve um epílogo.

    João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do Conselho Superior da Magistratura, a cumprimentar o Presidente da República: sentença do Tribunal Administrativo aplicou uma sanção pecuniária compulsória de 50 euros por dia se não fosse satisfeito integralmente o pedido do PÁGINA UM.

    O outro caso envolve a base de dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19, um processo iniciado também no final de 2021, e que teve um acórdão favorável do Tribunal Central Administrativo do Sul ao PÁGINA UM em 11 de Julho do ano passado. Esse acórdão, que alterara uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, ordenava que se facultasse o acesso aos dados pretendidos no Portal RAM. Mas o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo, enviou os elementos mas mutilando informação, agregando variáveis e escondendo outras variáveis, incluindo a causalidade. Embora o PÁGINA UM tenha já feito diversas insistências para que Rui Santos Ivo deixe de esconder intencionalmente essa informação, ainda não se conseguiu reverter a postura obscurantista de um funcionário público que não cumpre decisões dos tribunais administrativos.

    Um outro caso pode ainda juntar-se a estes dois. O presidente do Instituto Superior Técnico, Rogério Colaço, ainda não manifestou intenção de cumprir um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul do passado dia 12 de Dezembro que ordenou a disponibilização de 51 relatórios desta instituição universitária sobre a pandemia, que alimentaram o contínio alarme social nos anos de 2021 e 2022. Recorde-se que, para tentar não mostrar ao PÁGINA UM estes trabalhos supostamente científicos, o IST chegou a referir cada relatório era afinal “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

  • Multa diária põe em xeque bolsos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

    Multa diária põe em xeque bolsos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

    Um caso sem precedentes em Portugal. E sobretudo um caso singular do espinhoso caminho contra a prepotência do poder e contra a falta de transparência. Através de uma sentença inédita de um juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, o presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM) foi alvo de uma sanção pecuniária compulsória se este órgão de cúpula do poder judiciário continuar a recusar ao PÁGINA UM o acesso integral ao inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês. Uma luta judicial que se iniciou em finais de 2021, e que constituiu a sua primeira iniciativa com o apoio do FUNDO JURÍDICO.

    Uma sanção pecuniária compulsória é uma multa aplicada como meio de coerção para obrigar alguém, geralmente uma entidade ou autoridade, a cumprir uma obrigação legal ou decisão judicial. O PÁGINA UM consultou vários juristas para saber se são conhecidas sentenças similares contra o CSM, e nenhum tem memória de uma sentença desta natureza contra o órgão de cúpula responsável pela gestão e disciplina dos magistrados judiciais em Portugal.

    De acordo com a decisão do juiz Bruno Gomes – que não está sob a alçada do CSM –, a partir do trânsito em julgado da sua sentença do passado dia 13 deste mês, o juiz conselheiro João Cura Mariano – presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que lidera por inerência a cúpula da magistratura – terá de pagar, do seu bolso, uma ‘multa’ de 50 euros por dia se mantiver o incumprimento de uma sentença de 2022 favorável ao PÁGINA UM. Em causa está o acesso integral e sem restrições, requerido no final de 2021, ao inquérito do CSM relativo à distribuição do processo da Operação Marquês.

    Apesar de nesse inquérito se ter apurado que não houve sorteio electrónico na entrega do processo ao juiz Carlos Alexandre e que se fez à margem da lei, o CSM manteve o relatório secreto, recusando divulgá-lo à comunicação social, apesar de se tratar de documentos administrativos. No início de Janeiro de 2022, o jornal ECO revela a resposta taxativa da CSM: “Sobre o pedido de acesso ao relatório em questão, informa-se que o mesmo não será disponibilizado”.

    O PÁGINA UM – que, desde a sua fundação, colocou como ‘bandeiras’ a transparência e o acesso à informação pelos jornalistas – não aceitou esta ilegítima postura do CSM, ademais tratando-se da cúpula da magistratura, a saber: o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, dois membros designados pelo Presidente da República, sete membros eleitos pela Assembleia da República, por sete membros eleitos por Magistrados Judiciais, dois juízes dos Tribunais da Relação e quatro juízes de Direito.

    João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do Conselho Superior da Magistratura, a cumprimentar o Presidente da República: sentença do Tribunal Administrativo aplicou-se uma sanção pecuniária compulsória de 50 euros por dia se não satisfizer integralmente pedido do PÁGINA UM.

    Após um requerimento inicial do PÁGINA UM ainda em 2021, o CSM exigiu o impensável numa democracia que constitucionalmente deveria preservar a liberdade de imprensa:  saber “qual a finalidade do acesso e da recolha” dos documentos solicitados. O PÁGINA UM insistiu que a lei não determinava tal obrigatoriedade, muito menos a jornalistas, e assim, num parecer, a juíza Ana Sofia Wengovorius – curiosamente, filha de um advogado do Sindicato dos Jornalistas durante duas décadas, entre 1970 e 1991 – considerou que os documentos do CSM estavam acima de meros documentos administrativos.

    E começava aqui a estranha interpretação da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) por parte do CSM. A mesma juíza, num segundo parecer, em finais de Dezembro de 2021, considerava que “o acesso e/ou recolha solicitado só é lícito se forem recolhidos apenas os dados estritamente necessários para uma finalidade reconhecida por Lei que o legitime, pelo que só conhecendo a finalidade se pode fazer a ponderação que a lei impõe”, acrescentando que “dentro das condicionantes próprias do procedimento em causa que é confidencial o requerente deve esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos ou se pretende a decisão final”. E de forma paternalista concluía a juíza do CSM: “Mais sugiro que seja remetida cópia do anterior parecer emitido para melhor compreensão”.

    Passaram mais de três anos desde o parecer desta juíza e aquilo que se pode concluir é que quem precisava de uma melhor compreensão da lei e sobretudo da convivência democrática era o CSM. Mas não era preciso tanto tempo. Logo no início de 2022, o PÁGINA UM recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), então presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, que viria considerar que o acesso era devido, através de um parecer de meados de Fevereiro desse ano.

    Mas nem assim o CSM se disponibilizou a ceder os documentos do inquérito, advogando que o parecer da CADA não era vinculativo, acabando mesmo por “convidar” o PÁGINA UM a ‘usar’, com custos e tempo, o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Conselho Superior da Magistratura: um Golias que, em vez de ser um exemplo de transparência, andou mais de três anos numa incompreensível ‘guerra’ de ocultação e de falta de transparência.

    O órgão superior de gestão e disciplina dos juízes dos tribunais judiciais portugueses considerou então, através da também juíza Ana Cristina Chambel Matias que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não invocou, nem demonstrou que o acesso aos documentos constantes do processo de averiguações em causa são necessários para a tutela de um qualquer seu direito ou interesse legalmente protegido para que lhe seja conferido o direito a esse acesso”, acrescentando que “apesar de notificado por mais de uma vez pelo CSM, não concretizou cabalmente os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e não esclareceu qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos”.

    A prepotência do CSM mantinha-se.

    E a inflexibilidade do PÁGINA UM também. E iniciou-se então uma verdadeira luta judicial entre David e Golias. Em sede da intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – naquele que viria a ser o primeiro processo judicial do PÁGINA UM financiado pelos seus leitores através do FUNDO JURÍDICO. Em sede de contestação, o CSM insistiu na tese da existência de “dados nominativos” no relatório do inquérito. Porém, em vez de acreditar piamente no CSM, o juiz Pedro Almeida Moreira exigiu que lhe fosse enviado “em envelope selado, cópia dos documentos a que o Requerente [director do PÁGINA UM] pretende aceder, de molde a permitir a este Tribunal aquilatar se os mesmos contêm ou não ‘múltiplos dados pessoais’ e, ‘se a isso se chegar, tecer um juízo de proporcionalidade concernente aos interesses que aqui se encontram concretamente em jogo’”.

    Em 30 de Junho de 2022, a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa deveria ter sido o tira-teimas. acabou assim por comprovar que o CSM, desde o início, estava a alegar com argumentos muito distantes da verdade factual. Na sua sentença, o juiz Pedro Almeida Moreira teceu mesmo duras críticas às alegações do CSM, considerando que “a vingar a interpretação que aqui é propugnada pelo Requerido [CSM], isso significaria que o mero nome de um funcionário público que tenha intervindo num qualquer procedimento administrativo apenas poderia ser tornado acessível aos interessados após a ponderação dos interesses em jogo no âmbito de um juízo de proporcionalidade, o que não se mostra aceitável em face das exigências de transparência que impendem sobre a Administração, nos termos constitucional e infraconstitucionalmente consagrados.”

    Quo vadis, justiça portuguesa?

    E concluía: “Não perscrutando este Tribunal motivos plausíveis para se afastar da regra geral de livre acesso dos interessados a documentos administrativos nos termos acabados de expender, e nada mais vindo invocado pelo Requerido, não lhe restam alternativas que não concluir pela procedência da presente intimação, o que se julga de seguida, sem necessidade de maiores desenvolvimentos”. A sentença deveria ter sido cumprida no prazo de 10 dias.

    Já com duas ‘derrotas’ – CADA e Tribunal Administrativo de Lisboa –, o CSM quis arriscar ter uma terceira, até porque as taxas de justiça e os custos de patrocínio não lhe pesam. E recorreu, para assim adiar a sentença, e conseguiu… perder uma terceira vez, desta vez no Tribunal Central Administrativo do Sul.

    O acórdão demorou sete meses, mas veio demolidor, mais uma vez, para o CSM. Votado por unanimidade pelos desembargadores Lina Costa (que foi a relatora), Catarina Vasconcelos e Rui Pereira, este acórdão arrasou em toda a linha a argumentação que o CSM usou para evitar o acesso ao inquérito.

    Primeiras páginas da sentença de Junho de 2022 e do acórdão de

    Para os desembargadores, a sentença inicial do juiz Pedro Almeida Moreira seria para manter em toda a linha, concluindo não haver qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.

    O acórdão mostrava-se, aliás, particularmente importante por clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo em muitos outros processos de intimação protagonizados pelo PÁGINA UM.

    Nessa linha, os desembargadores salientaram que “essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo Recorrente [CSM], enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”. E sabendo-se que o relatório da inspecção não tinha esse tipo de dados, o CSM deveria ter permitido logo o acesso.

    Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”

    Decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa em aplicar uma sanção pecuniária compulsória ao Presidente do Conselho Superior da Magistratura.

    Os desembargadores concluíram ainda que o CSM não poderia ter decidido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos], até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”

    Numa situação ‘normal’, num Estado de Direito e no respeito pelos princípios da liberdade de imprensa, o CSM deveria ter, enfim, dar-se por convencido, mesmo que não se quisesse dar por vencido.

    E aparentou ir abrir mão dos documentos, quando, em finais de Julho de 2023, se agendaram as visitas de consulta dos documentos. Porém, o CSM começou por impor um pagamento de taxas exorbitantes em caso de se solicitar fotocópias. E no dia da consulta, pouco depois de o PÁGINA UM ter começado a fotografar as páginas dos dossiers do processo, foi proibida por ordem expressa da juíza secretária do CSM. Além disso, quis que as fotocópias fossem expurgadas de determinadas partes, o que contrariava a sentença. Dois requerimentos do PÁGINA UM não demoveram o CSM, que se achou no direito de criar regras próprias em vez de seguir regras legais. E, mais uma vez, só restou ao PÁGINA UM socorrer-se novamente do Tribunal Administrativo.

    Sede do Conselho Superior da Magistratura, em 2 de Agosto de 2023, quando o director do PÁGINA UM se deslocou para consultar o relatório do inquérito da Operação Marquês, após um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. A recusa de obtenção de cópia nessa data implicou nova ‘batalha judicial’ somente concluída mais de 17 meses depois.

    Nesta fase, o processo tornou-se ainda mais kafkiano. Apesar da intimação do PÁGINA UM para a execução da sentença ter entrado no Tribunal Administrativo de Lisboa em Outubro de 2023, durante praticamente um ano esteve absurdamente parado. Uma das razões foi ter saído a jurista do CSM responsável do processo, tendo só sido substituída largos meses depois. O juiz acabou por aceitar renovar a notificação.

    Seja como for, mais de 37 meses depois de ter sido feito o requerimento inicial, o juiz Bruno Gomes foi peremptório na sua sentença ao conceder razão ao PÁGINA UM para aceder e também fotografar integralmente os documentos em posse do CSM, por este ser um método previsto na lei, “equivalente ao envio por correio elecrónico”, ao qual, saliente-se, “não é devida qualquer taxa”. E disse ainda que não acolhe a posição do CSM de que a obtenção se faz “através de um único exemplar, sujeito a pagamento, pelo requerente, da taxa fixada”.

    Além disto, a sentença diz ainda que, sendo certo que “perpassa ao longo dos requerimentos” que o PÁGINA UM pretendia aceder aos “documentos através de reprodução por registo fotográfico, de modo a evitar os custos inerentes à reprodução por fotocópia”, mesmo que fossem requeridas fotocópias, estas teriam de ser entregues em “termos rigorosamente correspondentes ao do conteúdo do registo”. Ou seja, sem qualquer mutilação.

    Em Agosto de 2023, o CSM impediu o PÁGINA UM de fotografar o relatório do inquérito à distribuição da Operação Marquês e forneceu fotocópias completamente mutiladas. Tribunal Administrativo diz agora, finalmente, que esse impedimento foi ilegal.

    Saliente-se que, em Agosto de 2023, o CSM chegou a disponibilizar ao PÁGINA UM diversas fotocópias completamente mutiladas, apagando assim os nomes dos intervenientes no processo disciplinar, a descrição dos eventos, o número do processo, a data da distribuição e o nome do escrivão que interveio.

    Apesar desta evidente e histórica vitória do PÁGINA UM, e apesar da necessidade de duas sentenças e um acórdão – e de mais de três anos de luta em tribunal –, o juiz Bruno Gomes considerou que o CSM não foi litigante de má-fé. Certo é que somente por esta derradeira luta para conseguir fotografar os documentos, o PÁGINA UM vai ter de despender mais cerca de 300 euros em custas. Todo o processo, em taxas judiciais, envolveu mais de um milhar de euros.

    N.D. Leia actualização desta notícia AQUI.

  • Gouveia e Melo ‘despedido’ sem honra nem glória da Universidade Nova de Lisboa

    Gouveia e Melo ‘despedido’ sem honra nem glória da Universidade Nova de Lisboa

    O almirante na reserva Gouveia e Melo vai deixar de ser professor e regente da disciplina de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – pomposamente denominada Nova School of Law –, apesar de o seu nome ter ainda constado dos horários do segundo semestre do actual ano lectivo (2024/2025), divulgados pela instituição universitária nos últimos dias de Dezembro.

    De acordo com o documento a que o PÁGINA UM teve acesso, com data de 30 de Dezembro de 2024, Gouveia e Melo mantinha-se como responsável da cadeira de Maritime Security no mestrado em Direito e Economia do Mar, repetindo o estatuto de regente dos dois anos lectivos anteriores, embora nunca tenha leccionado. Mas depois de novas perguntas do PÁGINA UM à Nova School of Law sobre a sua manutenção no corpo docente, a instituição universitária aparentemente ‘exautorou’ Gouveia e Melo, que afinal só leccionava a cadeira de Maritime Security “enquanto CEMA [Chefe do Estado-Maior da Armada], por inerência”, o que deixou de ser no passado dia 27 de Dezembro.

    Gouveia e Melo acabou ‘exautorado’ de regente de uma cadeira de mestrado onde nunca deu uma aula em dois anos lectivos.

    Em nota transmitida por uma agência de comunicação privada, a LPM, por via de um contrato público no valor de 29.760 euros celebrado em Fevereiro de 2023 com a Nova School of Law – cuja inserção no Portal Base apenas ocorreu no passado dia 9 de Dezembro, três dias após uma anterior notícia do PÁGINA UM –, é dito ainda que “se aguarda indicações da Marinha Portuguesa sobre a equipa que assegurará essa cadeira no próximo semestre”, acrescentando que os novos horários, corrigidos no início da semana passada, já “não têm qualquer referência ao almirante Gouveia e Melo”.

    Porém, no site do mestrado, consultado esta tarde pelo PÁGINA UM, na descrição da cadeira de Segurança Marítima, o nome de Gouveia e Melo continua referido, informando-se que “o programa é narrativo”, e que “possui uma introdução em três partes, que seguem a lógica do título do programa”, acrescentando ainda que as “suas metodologias de ensino, como convém à ADN da faculdade, são aulas teórico-práticas interactivas que envolvem a participação dos alunos” E diz-se ainda que, “em alguns casos, os alunos podem decidir fazer apresentações sobre o tema da sessão, caso em que a interacção se torna mais espessa e multicêntrica”.

    Seja como for, o ‘despedimento’ sem honra nem glória de Gouveia e Melo – que mantém ainda activo o e-mail institucional, embora não tenha respondido ao pedido de comentários do PÁGINA UM – contrasta com o entusiasmo de um comunicado da instituição universitária quando anunciou a sua ‘contratação’, sem nunca referir que era apenas Chefe do Estado-Maior da Armada.

    O comunicado destacava em especial o seu papel de coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a covid-19 e salientava que a sua ‘contratação’ – que até agora não se sabe se envolveu pagamentos – constituía um exemplo do “empenho [da Nova School of Law] em robustecer o nosso corpo docente com os melhores e mais talentosos profissionais, contribuindo para a excelência deste mestrado, que se destaca pela sua natureza diferenciada, assente numa visão ampla e integrada, consciente de que no mar estão os maiores desafios e oportunidades do planeta para um desenvolvimento sustentável”.

    Nos horários do segundo semestre de 2024/2025 do mestrado em Direito e Economia do Mar ainda foram divulgados, no final de Dezembro, com Gouveia e Melo como regente. Depois das perguntas do PÁGINA UM, o seu nome ‘caiu’.

    Recorde-se que, como revelou o PÁGINA UM no mês passado, o almirante Gouveia e Melo terá violado o Estatuto dos Militares das Forças Armadas ao acumular a regência da cadeira de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa com o seu cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada, sobretudo porque afinal nunca existiu um protocolo entre as duas entidades.

    O diploma de 2015 explicita que “as funções militares são, em regra, em regime de exclusividade”, embora possa haver situações excepcionais, se forem compatíveis “com o seu grau hierárquico ou o decoro militar”. Sendo certo que a regência de uma cadeira de mestrado é uma função digna, Gouveia e Melo tinha um problema legal: o desempenho de funções em regime de acumulação, independentemente de serem exercidas graciosamente – como alegou a Marinha na semana passada –, “depende da autorização prévia do Chefe do Estado-Maior respectivo”.

    Ora, para a situação específica de Gouveia e Melo existia “um impedimento legal por interesse próprio”, como confirmaram ao PÁGINA UM dois professores universitários de Direito. Conforme estipula o Código do Procedimento Administrativo – que rege também actos desta natureza das Forças Armadas –, os titulares de um órgão no exercício de poderes públicos não podem intervir em qualquer processo “quando nele tenham interesse, por si, como representantes ou como gestores de negócios de outra pessoa”. Isto aplica-se mesmo se as funções forem exercidas a título gracioso, subentendendo-se sempre que Gouveia e Melo obteria, para si, o estatuto de professor universitário, melhorando o currículo público.

    Assunção Cristas (esquerda) e Margarida Lima Rego, actual directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Em concreto, a colaboração nos dois anos lectivos anteriores (2022/2023 e 2023/2024) de Gouveia e Melo – e de militares a si subordinados, que acabaram por leccionar as aulas, sem sequer serem (re)conhecidos os seus nomes como docentes – seria legal, mas mesmo assim sujeita a concordância da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), se estivesse suportada num protocolo. Porém, na verdade, esse propalado protocolo somente viu a luz do dia, passando então finalmente a existir, no final do mês de Dezembro passado, depois das revelações do PÁGINA UM.

    A revelação de que Gouveia e Melo nunca deu uma aula, que o seu nome nunca foi convenientemente aprovado pelo Conselho Científico da Facudade de Direito e que essa regência não estava prevista na renovação da acreditação pela A3ES estavam a constituir mais um incómodo do que uma vantagem para a instituição universitária.

    A própria coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, antiga ministra centristra, chegou mesmo a revelar uma fotografia a revelar uma visita à Base Naval do Alfeite em Novembro de 2022, acompanhada pela filha, e tendo como ‘cicerone’ o Almirante Gouveia e Melo, referindo-o como responsável da cadeira de Segurança Marítima, quando tal nem sequer fora divulgado pela Faculdade de Direito. Perante a celeuma, a continuação da regência por parte de Gouveia e Melo nem ao próprio seria vantajosa num cenário de candidatura às Presidenciais de 2026.

    Assunção Cristas: antiga ministra do CDS e coordenadora do mestrado tratou assuntos de uma universidade pública como se fosse ‘coisa caseira’.

    Em todo o caso, a Marinha, agora liderada pelo almirante Nobre de Sousa desde 27 de Dezembro passado, não quis remeter o seu conteúdo ao PÁGINA UM, recusando satisfazer um legítimo pedido de acesso em prol da necessária transparência, dizendo que “será divulgado publicamente em breve”. O gabinete de imprensa da Marinha não definiu o conceito de “breve”.

    A Marinha descarta também responsabilidades no afastamento de última hora do putativo candidato a Belém nas funções de regência da cadeira de Segurança Marítima. “No caso da eventual referência ao Senhor Almirante Gouveia e Melo nos horários do próximo semestre da Nova School of Law, bem como à sua divulgação, trata-se de matérias do foro exclusivo da referida faculdade, pelo que se sugere contacto directo com a mesma”, disse o gabinete de imprensa do Estado-Maior da Armada ao PÁGINA UM.

  • Solar dos Presuntos com lucros de 2 milhões, mas novas admissões ‘corridas’ a salário mínimo

    Solar dos Presuntos com lucros de 2 milhões, mas novas admissões ‘corridas’ a salário mínimo

    O custo das refeições ultrapassa, facilmente, os 50 euros por comensal, mas consolidou-se como um ponto de referência para almoços e jantares de figuras públicas. O icónico Solar dos Presuntos, em Lisboa, aumentou em 2021 a sua capacidade e, em dois anos, ultrapassou facilmente a crise causada pela pandemia e mais do que duplicou o número de empregados. Na semana passada, o seu gerente, Pedro Cardoso, revelou que um quarto dos trabalhadores é de origem nepalesa, sendo que a experiência é tão boa que não os trocaria por nada. O PÁGINA UM foi olhar as contas da empresa gestora do restaurante para concluir que Pedro Cardoso só pode estar mesmo satisfeito: em termos reais, depois de um forte investimento em 2021, conseguiu um aumento real dos lucros da ordem dos 65% entre 2019 e 2023, que atingiram os dois milhões de euros, mas também muito por via do salário médio líquido dos empregados ter baixado 26%. Pela análise às contas, apesar de a margem líquida (lucro a dividir pelas receitas) ser mais de sete vezes superior à média do sector da restauração, grande parte dos novos contratados pelo Solar dos Presuntos estará a ganhar valores próximos do salário mínimo nacional.


    “Gosto muito deles, somos como uma família, são essenciais à nossa actividade e eu não faço qualquer distinção com os outros funcionários portugueses que aqui estão”. Foi com estas palavras ao jornal Expresso, na semana passada, que Pedro Cardoso, o proprietário do Solar dos Presuntos, supostamente quis homenagear a importância dos imigrantes, destacando mesmo que o famoso restaurante na Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa, não seria o mesmo sem os nepaleses, que constituem cerca de um quarto dos trabalhadores. “Se o pessoal do Nepal fosse todo embora, a restauração fechava, não tínhamos mão-de-obra necessária à nossa actividade”, afiançou o empresário.

    A falta de mão-de-obra, sendo questão recorrente, até para justificar a imigração, deve ser ponderada num contexto salarial. Ou seja, muitas vezes, a falta de mão-de-obra está sobretudo associada a um contexto salarial. Não é raro que a alegada escassez de trabalhadores provenha sobretudo da ausência de condições atractivas, sejam salariais, contratuais ou de progressão profissional. E isso mostra-se mais visível em determinados sectores, como a restauração. Daí que a entrada de imigrantes implica, em muitos casos, sobretudo em tarefas pouco qualificadas, mas exigentes em termos de condições de trabalho, um reajustamento salarial – para baixo. E não para sobrevivência das empresas, mas simplesmente para aumento dos lucros.

    Pedro Cardoso ‘herdou’ a gestão de um dos mais icónicos restaurantes de Lisboa fundado em 1974.

    Foi nessa óptica – e num contexto em que se sabe que a subutilização do trabalho em Portugal abrangia quase 614 mil pessoas em Novembro passado, ou seja, cerca de 11% da população activa alargada –, que o PÁGINA UM foi tentar perceber, através da análise das contas da empresa proprietária – a Gonzalez, Teixeira e Seoane, Lda. –, se o Solar dos Presuntos está com a ‘corda na garganta’ e, sobretudo, perceber a sua política salarial face à evolução da facturação e, em especial, do lucro.

    Analisaram-se assim, em detalhe, as demonstrações financeiras e outros elementos constantes da Informação Empresarial Simplificada (IES) da empresa proprietária do Solar dos Presuntos para os exercícios anuais de 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023. As contas de 2024 apenas serão conhecidas ao longo dos próximos meses. Aliás, a IES de 2023 somente foi reportada pela empresa no passado dia 18 de Outubro. Nesse contexto, mostrou-se desnecessário, até pela isenção jornalística que se pretende transmitir, solicitar mais esclarecimentos à Gonzalez, Teixeira e Seoane, dado que a IES oferece dados claros e suficientes para uma análise económica e financeira rigorosa.

    Convém desde já destacar que, tal como sucedeu com todo o sector da restauração, os anos de 2020 e 2021 foram complicados para o Solar dos Presuntos, por via dos confinamentos e da redução abrupta do turismo. Nesse contexto, mesmo com subsídios estatais nesses dois anos da ordem dos 520 mil euros, a empresa apresentou um inédito prejuízo de 60 mil euros em 2021. Mas esse desempenho também se deveu ao investimento numa profunda remodelação do restaurante que mais do que duplicou a capacidade. O restaurante reabriria em Agosto desse ano passando de cerca de 200 lugares para 450, com um investimento anunciado de quatro milhões de euros. Assim terá sido, até porque as contas o reflectem: os activos fixos tangíveis (que incluem sobretudo os edifícios) subiram de quase 2,6 milhões de euros em 2020 para um pouco mais de 6,4 milhões em 2021.

    A presença de futebolistas é o ‘prato forte’ do Solar dos Presuntos. Nesta foto, revelada pelo gerente Pedro Cardoso, estão Jeremiah St Juste, Franco Israel, Francisco Trincão e Viktor Gyökeres, todos jogadores do plantel do Sporting.

    Esse aumento da capacidade, a par da inauguração em 2023 do Gracinha – um espaço de petiscos que, aparentemente, não tem caído nas graças de muitos clientes –, catapultou a facturação e os lucros da empresa do Solar dos Presuntos. Depois dos dois anos da pandemia (2020 e 2021) com facturação em cada um dos exercícios a rondar os três milhões de euros – uma queda significativa face a 2019, que se cifrou em 5,9 milhões de euros –, a empresa conseguiu facturar mais de 7,7 milhões de euros em 2022 e terminou o ano de 2023 com quase 9,5 milhões, ou seja, uma receita diária superior a 28 mil euros.

    Mas se a facturação atingiu, em 2023, montantes elevados, mesmo para um restaurante popular – frequentado por VIPs, sobretudo futebolistas –, mais impressionantes foram os lucros, que mostraram o sucesso do investimento no período da pandemia. Com efeito, se em 2020 os lucros tinham recuado 63% face ao ano anterior (de 1,07 milhões de euros para 361 mil euros) e em 2021 foram contabilizados prejuízos (-60 mil euros), a recuperação iniciou-se de imediato em 2022. Nesse ano, a empresa do Solar dos Presuntos teve um lucro de 571 mil euros e em 2023 atingiu a cifra dos 2.006.040 euros.

    Parecendo evidente que o investimento no redimensionamento do Solar dos Presuntos em plena pandemia, que causou prejuízos em 2021, foi uma aposta ganha, há também outro factor: com o aumento do pessoal, os salários médios diminuíram, ou seja, uma parte dos trabalhadores contratados sobretudo a partir de 2022 passou a ganhar menos. E este menos é ainda menos se considerarmos o efeito da inflação.

    De facto, considerando os encargos com os empregados, bem como a retenção de IRS, o salário médio líquido dos funcionários do Solar dos Presuntos era, em 2019, de cerca de 1.340 euros, tendo baixado para os 1.123 euros em 2023. Entre 2019 e 2023, o número de empregados aumentou de 52 para 94. Mas a evolução salarial agravou-se ainda mais pela forte inflação que se registou sobretudo a partir de 2022.

    Assim, se se considerar o factor de actualização do Instituto Nacional de Estatística (INE), o salário médio em 2023 deveria ser 13,9% superior ao de 2019 para, em teoria, não ocorrer perda de poder de compra. Ou seja, em média o salário de 2023 deveria ser de 1.525 euros – porém, é de 1.123 euros, o que significa que a folha salarial média em valores reais desceu 26,4%.

    Não sendo de esperar que quem já trabalhava no Solar dos Presuntos em 2019 tenha passado a ganhar menos – pelo contrário, terá havido alguma actualização em virtude da inflação –, aquilo que estes valores revelam é que as novas contratações, em termos líquidos, tenham sido ‘corridas’ a salários próximos do ordenado mínimo nacional, que em 2023 estava fixado nos 760 euros. Ou seja, uma parte substancial dos contratados pelo Solar dos Presuntos desde 2022 estará a receber o salário mínimo nacional.

    Ao invés de uma redução do salário médio em termos reais de cerca de 26% entre 2019 e 2023, o lucro quase duplicou em termos nominais (passando de 1,07 milhões para 2,01 milhões de euros), registando um crescimento de 65% em termos reais. Se os salários de 2019 tivessem sido aumentados com um factor de actualização de 1,1389 (INE) e os salários médios dos novos contratados fossem semelhantes aos salários mais antigos, os gastos do pessoal seriam, de acordo com as estimativas do PÁGINA UM, de cerca de 2,9 milhões de euros, um pouco mais de 520 mil euros face aos valores reais. Nessas circunstâncias, o Solar dos Presuntos estaria muito longe de ficar aflito: a empresa ‘apenas’ baixaria os seus lucros de 2,01 milhões para cerca de 1,5 milhões de euros.

    Evolução (em euros) das vendas, dos custos das mercadorias vendidas e das matérias consumidas (CMVMC), dos fornecimentos e serviços externos (FSE), dos gastos com pessoal (incluindo todos os encargos) e dos lucros entre 2019 e 2023. Fonte; IES da Gonzalez, Teixeira e Seoane, Lda.

    Aliás, a situação da empresa gestora do Solar dos Presuntos era, no final de 2023 (só a meio do presente ano se saberão as contas de 2024), bastante desafogada, com activos no valor de quase 16 milhões de euros, dos quais mais de 3,2 milhões de euros em caixa e contas bancárias. Nos últimos cinco anos, período analisado pelo PÁGINA UM, o endividamento sempre foi relativamente baixo – o passivo era de dois milhões de euros – face a um robusto capital próprio de 13,9 milhões de euros, dos quais 10,4 milhões de lucros acumulados. A margem líquida (razão entre lucro e receitas) em 2023 atingiu os 21,2%, um valor mais de sete vezes superior ao do mercado da restauração, de acordo com os números de Banco de Portugal. Se a empresa do Solar dos Presuntos tivesse apresentado a taxa média de margem líquida do sector (2,94%), mesmo assim o lucro em 2023 seria da ordem dos 277 mil euros.

    Segundo as informações do IES da empresa, nos últimos cinco anos nunca houve distribuição de dividendos, nem tão-pouco gratificações declaradas quer à gerência quer ao pessoal.

    Apesar do volume de negócios, dos montantes do balanço e do número de empregados estarem em patamares que exigiriam a certificação das contas por um revisor oficial de contas (ROC), a empresa do Solar dos Presuntos continua a assumir ser, em termos contabilísticos, uma “pequena entidade”, algo que, a manter-se, pode suscitar uma intervenção da Autoridade Tributária.


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  • Quinta de luxo do Banco de Portugal custa 1,3 milhões em manutenção de espaços verdes

    Quinta de luxo do Banco de Portugal custa 1,3 milhões em manutenção de espaços verdes

    Nos últimos sete anos, a Quinta da Fonte Santa, uma herdade do Banco de Portugal de 22 hectares às portas de Lisboa, custou 1,3 milhões de euros só em serviços de manutenção dos espaços exteriores. A propriedade de luxo, alberga um centro hípico, que está concessionado, além de piscinas e até uma discoteca. Oficialmente, o Banco de Portugal atribui ao espaço a pomposa designação de ‘centro de formação’. A propriedade passou a património da instituição liderada por Mário Centeno em 1989, sendo de uso exclusivo dos quadros do Banco de Portugal e suas famílias. De resto, só pode lá entrar quem tiver convite. Manter os espaços exteriores envolve despesas várias, que não estão discriminadas no relatório de contas e de actividades, mas o mais recente contrato surge no Portal Base: foi assinado no final de Dezembro com o valor de quase 880 mil euros, com IVA.


    Monda. Ressemeadura. Retancha. Não é todos os dias que se lêem documentos do Banco de Portugal com palavras ligadas a jardinagem e agricultura, sendo mais comum encontrar relatórios e publicações escritos numa linguagem económico-financeira e muito burocrática. A explicação é simples. É que, além de barras de ouro, o Banco de Portugal guarda um outro ‘tesouro’ de luxo e de cariz mais ‘rural’: a Quinta da Fonte Santa, a qual exige manutenção, designadamente dos espaços verdes.

    A propriedade de 22 hectares, situada em Caneças, Odivelas, às portas de Lisboa, é fechada ao público e alberga um vasto conjunto de valências que vão desde o centro hípico, que está concessionado, a piscinas, e até uma discoteca.

    Mas isto de ‘ser rico’ sai caro. Só na manutenção dos espaços verdes, a propriedade de luxo do Banco de Portugal custou 1,62 milhões de euros (com IVA) nos últimos sete anos, segundo uma análise do PÁGINA UM aos contratos registados no Portal Base, plataforma de registo de compras públicas.

    Entrada da Quinta da Fonte Santa, em Caneças, Odivelas. / Foto: D.R.

    No mais recente contrato feito pelo Banco de Portugal, no dia 27 de Dezembro, a despesa envolvida na “Aquisição de Serviços de Manutenção de Espaços Verdes e de Espaços Exteriores” para a Quinta da Fonte Santa ascende a 715 mil euros, que sobe para 880 mil com IVA. O serviço, com um prazo de cinco anos, foi adjudicado à empresa Espaços Verdes – Projectos e Construção, Lda., através de concurso público. Contudo, não estão disponíveis os nomes das restantes empresas que eventualmente concorreram a este procedimento.

    As tarefas incluídas no caderno de encargos abrangem, além dos trabalhos de jardinagem e limpeza de caminhos e muros, outras tarefas, nomeadamente a “limpeza dos galinheiros, pombais e capoeiras, incluindo a reposição de alimento para as espécies animais”, bem como a limpeza das lareiras e das churrasqueiras.

    Planta da Quinta da Fonte Santa com o detalhe das várias infraestruturas existentes no espaço de 22 hectares. / Foto: Banco de Portugal

    Nos últimos sete anos, o Banco de Portugal assinou cinco contratos com empresas para prestarem aquele tipo de serviço na Quinta da Fonte Santa. A 2 de Outubro de 2017, foram assinados dois contratos com duas empresas distintas para serviços de manutenção de espaços exteriores e serviços de limpeza para a Quinta. O contrato de valor mais elevado, de 171 mil euros, com um prazo de execução de três anos, foi adjudicado à Espaços Verdes. O segundo contrato, no valor de 103.680 euros, também com um prazo de execução de três anos, foi entregue à empresa Não Se Mace – Limpezas.

    Seguiu-se, a 18 de Janeiro de 2021, um outro contrato com a Espaços Verdes, no montante de 43.848 euros, com um prazo de execução de nove meses. A 16 de Setembro desse mesmo ano, o Banco de Portugal contratou a Purgest Serviços Ambientais, Lda. para fazer a manutenção dos espaços exteriores da Quinta por um período de três anos, tendo pago 286.500 euros por este serviço.

    Estes contratos não abrangem manutenção de piscinas ou limpeza de espaços interiores da Quinta da Fonte Santa. No Portal Base constam três contratos efectuados em 2019, 2020 e 2021 entre o Banco de Portugal e empresas que prestam serviços de manutenção de piscinas, mas os respectivos cadernos de encargos não se encontram disponíveis, pelo que não existem detalhes sobre os serviços contratados a estas empresas, sendo apenas referido que se trata de “serviços de manutenção da rede hidráulica”. Dois dos contratos foram realizados com a Regapool – Bombas, Jardins e Piscinas, Lda. e um outro com a Cimai, Engenharia e Química Avançada, Sociedade Unipessoal, Lda..

    A Quinta celebrou o seu 30º aniversário na posse do Banco de Portugal em 2019, com um almoço comemorativo que contou com altas figuras da instituição e representantes da Câmara Municipal de Odivelas. / Foto: D.R.

    Apesar da dimensão da Quinta e de se tratar supostamente de um centro de formação do Banco de Portugal, o PÁGINA UM não encontrou referências ao espaço nos mais recentes relatórios institucionais do Banco. Aliás, consultando a página do Banco de Portugal na Internet, é como se a Quinta não existisse. A principal referência ao espaço é encontrada na página do Centro Hípico Quinta da Fonte Santa, o qual está aberto ao público, disponibilizando aulas de hipismo e ‘baptismos’.

    De resto, pesquisando na Internet sobre a Quinta e o Banco de Portugal, encontra-se um ‘link‘ que remete para um ‘esclarecimento‘ que a instituição fez em 2012 na sequência de uma notícia sobre o espaço. No comunicado, era referido que “a Quinta da Fonte Santa é património do Banco de Portugal desde 1989” e que “a aquisição do imóvel resultou de um processo de dação em pagamento de dívidas ao Banco”. Ainda de acordo com o comunicado, “o Banco aproveitou este activo como centro de formação e espaço institucional para a realização de reuniões de trabalho (nomeadamente para acolher acções no quadro do funcionamento dos bancos centrais do Sistema Europeu de Bancos Centrais e de cooperação com os bancos centrais dos Países Lusófonos)”.

    O Banco também explicava, nessa nota, que “dada a sua implantação e características de origem, a Quinta da Fonte Santa serve igualmente para a promoção de diversas actividades de natureza social, cultural e desportiva, destinadas aos colaboradores e reformados do Banco e eventuais convidados”, estando “aberta a iniciativas da comunidade local, acolhendo periodicamente actividades de escolas e associações (neste caso, incluindo actividades para pessoas com deficiência)”.

    A Quinta da Fonte Santa tem 22 hectares. / Foto: D.R.

    No comunicado, o Banco adiantou que optou por concessionar o picadeiro para que pudesse ser aproveitado, abrindo o espaço ao público em geral, “sem que a mesma implicasse custos para o Banco e preservasse o seu valor patrimonial”. Garantiu, na altura, que “trata-se de uma infra-estrutura que não representa custos para o Banco nem visa servir o Banco” e que o “único objectivo que presidiu ao respectivo concessionamento foi manter aberto um espaço que serve a comunidade onde está localizada a Quinta da Fonte Santa, mantendo o seu valor patrimonial para o Banco”.

    Também se encontra disponível uma referência à Quinta na página da Câmara Municipal de Odivelas, por ocasião do evento de celebração do 30º aniversário do espaço como fazendo parte do património do Banco de Portugal. O evento, ocorrido a 5 de Outubro de 2019, contou com a presença de quadros de topo do Banco e representantes da autarquia, e incluiu um almoço na biblioteca da Quinta.

    De resto, encontram-se também classificações ao espaço no Google feitas por visitantes e convidados que puderam desfrutar da Quinta privada. Num comentário publicado há sete meses pode ler-se: “Propriedade privada do Banco de Portugal. Uma linda quinta com excelentes condições para campo de férias! Piscina, jardins, hipismo, discoteca… Foi um privilégio ter frequentado o local. Cuidado com as alergias e com os insetos.”

    Helder Rosalino (ao centro na foto) foi um dos altos quadros do Banco de Portugal que participou no 30º aniversário da Quinta da Fonte Santa, em 2019.

    Visualizando fotos da Quinta na Internet e nas redes sociais, há quem tenham vindo ao engano até Caneças. Foi o que aconteceu com um utilizador que atribuiu uma estrela ao recinto: “Bela treta. Fui eu fazer uma viagem de carro e gastar gasolina, andei perdido para encontrar este jardim , com a minha mulher e dois filhos e sou barrado à entrada, dizendo que era uma propriedade privada e só com convite se pode entrar, Obrigado ao Banco de Portugal.”

    Quintas de luxo às portas de Lisboa não é para quem quer, mas para quem pode. Até porque as despesas de manutenção são altas. Pelos vistos, o Banco de Portugal quer e pode.


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  • A excepção tornou-se a regra: nove ajustes directos do Turismo de Portugal aos mesmos advogados já vão em 3,2 milhões

    A excepção tornou-se a regra: nove ajustes directos do Turismo de Portugal aos mesmos advogados já vão em 3,2 milhões

    Desde 2017 já ‘rolaram’ a partir do Turismo de Portugal nove contratos por ajuste directo para prestação de serviços jurídicos pela Clareira Legal, num total de 3,2 milhões de euros (com IVA). Justificando os contratos como de “natureza intelectual” e invocando “urgência imperiosa”, o instituto público dispensou concursos públicos, fazendo da excepção a regra. A Clareira Legal é liderada pelo advogado André Luiz Gomes, conhecido por defender o empresário Joe Berardo.


    A adjudicante é um instituto público – o Turismo de Portugal – e a adjudicatária uma sociedade de advogados – chamada Clareira Legal, mas que já se chamou Luiz Gomes & Associados. Se é certo que existem formalismos a tratar, tudo já aparenta ser feito como se fossem ‘velhos amigos’, apesar da existência de contratos, os quais servem apenas para confirmar ajustes directos, uns atrás dos outros. E nada nem ninguém os parece demover. As relações, iniciadas em finais de 2017, já vão em nove contratos de ‘beija-mão’ no valor de 2,625 milhões de euros, com IVA ascendendo aos 3,2 milhões de euros.

    Já em Novembro de 2023, o PÁGINA UM detectou que a sociedade fundada por André Luiz Gomes, que ficou conhecido por ser advogado de Joe Berardo, contava sistematicamente com uma espécie de avença do Turismo de Portugal para patrocínio judicial e consultadoria em litígios com concessionárias de zonas de jogo, principalmente casinos.

    brown and green round analog clock

    As relações comerciais começaram em Dezembro de 2017, com um ajuste directo de 150 mil euros (sem IVA), onde se invocava um artigo do Código dos Contratos Públicos que nem se aplicaria ao caso. No quinquénio seguinte, começaram paulatinamente a cair contratos no valor de 190 mil euros por ano, desta vez invocando uma norma que tem sido usada cada vez mais por gestores públicos para garantir os préstimos de sociedades de advogados ‘amigas’ (ou de confiança, como se queira) sem necessidade de concurso público.

    Com efeito, em ‘juridiquês’ interpretado a preceito, o Turismo de Portugal justificou estes cinco contratos por ajuste directo, porque considera que o trabalho de advocacia é de “natureza intelectual” e que a natureza das prestações de serviços em causa “não permit[e] a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas para que sejam definidos os atributos qualitativos das propostas necessários à fixação de um critério de adjudicação” nem alegadamente se mostra possível a “definição quantitativa dos atributos das propostas”.

    Este argumento da impossibilidade de lançar concursos públicos por alegada dificuldade em definir atributos para os critérios de adjudicação é bastante falacioso, uma vez que os serviços de advocacia são bastante regulamentados, sendo possível avaliar propostas com base em critérios objectivos, como a experiência, as qualificações, o preço dos honorários e as metodologias de trabalho. Mas invocar aquela norma, sem a justificar, foi um expediente para garantir à Clareira Legal cerca de 1,17 milhões de euros (IVA incluído) em serviços jurídicos entre 2018 e 2022.

    Chegou entretanto o ano de 2023, e o Turismo de Portugal optou por outro expediente: para representação do Estado português em três acções arbitrais, adjudicou novamente à Clareira Legal cerca de 1,48 milhões de euros (IVA incluído), mas sob a fundamentação de “urgência imperiosa” sem possibilidades de optar por concurso público.

    Carlos Abade, presidente do Conselho Directivo do Turismo de Portugal.

    De acordo com o Turismo de Portugal, o caso foi levantado por concessionárias de três zonas de jogo e o valor global dos pedidos de compensação apresentados ascendia a mais de 330 milhões de euros. Apesar de garantir então ao PÁGINA UM, em Novembro de 2023, que todo o processo de adjudicação era legal, o Turismo de Portugal admitiu outra causa “determinante”: a Clareira Legal tinha conseguido “obter vencimento nas acções propostas pelas concessionárias perante os tribunais judiciais, protegendo e beneficiando assim o interesse público”. E acrescentava que assim “foi escolhido o prestador em quem se deposita[va] confiança técnica e profissional, sendo que, nestes casos, as próprias Directivas Comunitárias de contratação pública não se aplicam a este tipo de contratos.”

    Contratos na base da “confiança” ou da amizade não estão, no contexto dos princípios da contratação pública, associados às regras da transparência e da livre concorrência, até porque os honorários da Clareira Legal não são baratos, atingindo, nos contratos conhecidos, entre 180 e 200 euros por hora (com IVA).

    Mas isso pouco importou ao instituto público liderado por Carlos Abade. E assim, no ano passado, a sociedade liderada por André Luiz Gomes recebeu mais duas ‘prendas’: um ajuste directo de 55 mil euros (sem IVA), em Agosto passado, para patrocínio de uma providência cautelar intentada pela Sociedade Figueira Praia, por alegada “urgência imperiosa”; e um segundo ajuste directo, mais chorudo (290 mil euros, sem IVA), no final do mês passado.

    André Luiz Gomes ao lado de Joe Berardo, numa audição parlamentar em Maio de 2019. Fonte: AR-TV.

    Apesar da ‘colecção’ de ajustes directos, que tornam a excepção uma regra, aparentemente tudo vai continuar, a atender pela reacção do Turismo de Portugal. Para esta entidade pública, o tipo de patrocínio judiciário executado “não é compatível com a descrição detalhada das actividades a desenvolver, as quais são variáveis em função do desenvolvimento dos processos e, muitas vezes, são consequência directa da estratégia processual definida pelos advogados prestadores dos serviços e, portanto, insusceptíveis de serem antecipadas pelas entidades adjudicantes”. E acrescenta ainda que o Código dos Contratos Públicos “tem consagração legal precisamente para acolher situações como a presente.”

    Se o Turismo de Portugal advoga, tal como outras entidades públicas, que o ajuste directo se pode aplicar sempre aos serviços jurídicos, resta assim saber qual a razão para algumas outras entidades também públicas insistirem em lançar concursos públicos, assumindo, deste modo, ser possível definir critérios para uma adjudicação mais transparente e competitiva.


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  • Sem sequer subir ao palco, Tony Carreira ‘saca’ lucro milionário com Passagem de Ano em Lisboa

    Sem sequer subir ao palco, Tony Carreira ‘saca’ lucro milionário com Passagem de Ano em Lisboa

    Em finais de Junho, Carlos Moedas subiu a um palco do Terreiro do Paço para, de voz estridente, anunciar a entrega da medalha de mérito cultural a Tony Carreira. Pouco meses depois, sem chinfrim, de forma discreta, a empresa do cançonetista, a Regi-Concerto, teve uma oferta de ‘mão-beijada’ concedida pela Câmara Municipal de Lisboa: a co-organização das festas de Ano Novo no valor de 265 mil euros, incluindo IVA. Com um cartaz que não custará mais de 80 mil, constituído pelo ‘veterano’ José Cid e pelo seu próprio filho Mickael, e como a EGEAC assume ainda despesas, Tony Carreira terá um lucro, sem subir ao palco lisboeta, próximo dos 150 mil euros. Algo apenas possível quando se tem ‘mérito’… para sacar ajustes directos num mercado onde o ‘amiguismo’ prevalece.


    Não foi só uma Medalha de Mérito Cultura da Cidade que este ano Tony Carreira recebeu das mãos de Carlos Moedas; também recebeu de ‘mão-beijada’ o direito de co-organizar as festividades da Passagem de Ano no Terreiro do Paço, possibilitando-lhe meter no cartaz o filho Mickael, em queda de popularidade. E se a medalha pode pesar no coração do cançonetista; o ‘cheque’ pelo espectáculo na oficialmente chamada Praça do Comércio, com vista para o Tejo, vai pesar-lhe bem na carteira.

    Sem se conhecer, mais uma vez, os critérios de selecção de artistas e produtoras para a organização de espectáculos, a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) escolheu este ano a produtora de Tony Carreira, a Regi-Concerto, para co-produzir as celebrações do Novo Ano na principal praça de Lisboa, que terá como ‘ponto alto’ as actuações de José Cid – e convidados não definidos – e de Mickael Carreira, para além do habitual fogo-de-artifício. O contrato foi assinado no passado dia 20, assinado por António Manuel Mateus Antunes – o nome real de Tony Carreira, como gerente da Regi-Concerto –, apesar da EGEAC ter anunciado o cartaz na semana anterior.

    Carlos Moedas entregou medalha de mérito cultural a Tony Carreira em Junho passado, Meio ano depois, a autarquia entregou, por ajuste directo, um contrato que lhedará um lucro de quase 150 mil euros. Foto: CML.

    O valor do contrato por ajuste directo, justificado para defender direitos de autor, uma alegação bastante questionável, atinge os 265.680 euros, incluindo IVA, mas os custos para a empresa municipal deverão alcançar os 300 mil. Com efeito, através do contrato, a EGEAC assume também responsabilidades bastante onerosas, como a obtenção de licenças, a promoção e publicidade, a disponibilização de camarins e equipamentos auxiliares, a contratação de serviços de segurança, a limpeza e logística, e a garantia de fornecimento eléctrico adequado.

    Por sua vez, a Regi-Concerto, a empresa de Tony Carreira obriga-se apenas a assegurar a representação dos artistas, incluindo contratação e gestão de despesas relacionadas, bem como a montagem e operação de equipamentos técnicos (som, iluminação e vídeo).

    O montante a pagar pela empresa municipal da autarquia liderada por Carlos Moedas será o mais elevado de sempre conseguido pela empresa de Tony Carreira em contratos públicos. Considerando valores sem IVA – que, neste caso, atinge os 216 mil euros –, a Regi-Concerto tinha, até agora, como contrato mais chorudo, um ajuste directo para as festas populares do Monte da Caparica em 2022. Por “serviços musicais e audiovisuais” não especificados no contrato, a União das Freguesas de Caparica e Trafaria pagou à Regi-Concerto um total de 74.260 euros. O segundo contrato público de montante mais elevado da Regi-Concerto referia-se, por sua vez, à contratação do próprio Tony Carreira para abrilhantar a Passagem do Ano de 2023 para 2024 em Coimbra. Há um ano, autarquia coimbrã despendeu 62.500 euros para ter o artista.

    E é, exactamente, por esse motivo que o valor agora pago pela EGEAC assume um montante exorbitante, até porque Tony Carreira – que é um dos artistas mais bem pagos em contratos públicos – decidiu rumar para outras paragens. Por valores desconhecidos, vai actuar no Hotel Tivoli de Vilamoura para um selecto público que se dispôs a pagar um mínimo de 490 euros por cadeira (e mesa).

    De facto, considerando os preços praticados tanto por José Cid como por Mickael Carreira, os cofres da Câmara Municipal de Lisboa foram generosos para a Regi-Concerto. No caso de José Cid – que se mantém, aos 82 anos, ainda bastante activo –, o seu ‘cachet’, quando actua sozinho, variou este ano entre os 12.500 e os 50.750 euros. O seu mais recente concerto foi para as comemorações do 20º aniversário da elevação a cidade de Anadia – a sede do concelho onde se radicou ainda na adolescência –, e cobrou apenas 15 mil euros. Mas há um ano, pela actuação na Passagem de Ano no Campo de Viriato, a autarquia de Viseu pagou à sua empresa (José Cid, Lda.) 30 mil euros. Aliás, esse foi o valor que a própria EGEAC lhe pagou em 2019 para actuar na Passagem de Ano, poucos meses depois de ter recebido o Grammy Latino de Excelência Musical.

    Quanto a Mickael Carreira, que tem tido uma carreira sobretudo à sombra do pai, o seu valor medido em termos de ‘cachet’ e procura é mais baixo ainda do que o do veterano José Cid. De facto, em actuações a solo, apenas se encontram três contratos públicos com a sua presença este ano: em Arronches, na Chamusca e no Marco de Canavezes, por valores entre os 18.500 e os 21.330 euros. Em 2023 registam-se apenas dois (Pampilhosa da Serra e Lamego), por valores próximos.

    Deste modo, atendendo as ‘cachets’ habituais de José Cid e Mickael Carreira, e mesmo tendo em conta os valores mais elevados praticados em festas de Passagem de Ano, jamais seria de esperar valores acima de 70 mil euros para o conjunto, a que se podem juntar mais entre 10 mil e 20 mil euros de fogo-de-artifício. Ou seja, o lucro imediato por uma noite para a Regi-Concerto deverá estar próximo dos 150 mil euros, um excelente negócio para Tony Carreira, por obra e graça do contínuo esbanjamento de dinheiros públicos sem se conhecerem critérios de escolha dos artistas e das produtoras nem de custos.


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  • 29 meses após um arrogante ‘não’, presidente do IST vai ter de mostrar 51 ‘esboços embrionários que consubstanciam meros ensaios para eventuais relatórios’ sobre a pandemia

    29 meses após um arrogante ‘não’, presidente do IST vai ter de mostrar 51 ‘esboços embrionários que consubstanciam meros ensaios para eventuais relatórios’ sobre a pandemia

    Num país onde há cientistas que, por ocuparem uma cátedra, ‘falam de cátedra’ sem humildade científica, um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul veio dar este mês uma lição ao presidente do Instituto Superior Técnico (IST). Após Rogério Colaço ter recusado divulgar, de forma arrogante, relatórios sobre a situação epidemiológica da covid-19 no Verão de 2022, uma luta judicial do PÁGINA UM ao longo de quase 30 meses teve finalmente um desfecho: o IST vai ter o mesmo de revelar o conteúdo integral de 52 relatórios, elaborados em parceria com a Ordem dos Médicos, que ‘ajudaram’ a prolongar o estado de pânico durante a segunda metade da pandemia. O PÁGINA UM já conseguira em primeira instância que o IST cedesse o último relatório (nº 52) que, com base em estimativas enviesadas e especulações de escasso rigor e transparência, atribuíra centenas de mortes às festas populares e aos festivais de música no Verão de 2022. Com episódios caricatos e pouco edificantes para a academia, o IST chegou a dizer que não elaborara qualquer relatório mas sim “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório’. Agora, tem de mostrar mais 51, mesmo se mantiver a espúria tese dos “esboço embrionário”.


    Senhor Pedro Vieira,

    O sr André Pires [do gabinete de comunicação] respondeu exatamente de acordo com as instruções dadas por mim. O pedido formal ao presidente do IST está respondido e a resposta é negativa.

    Rogerio Colaço

    Presidente do IST

    Foi desta forma, seca e arrogante, enviado pelo Galaxy pessoal às 12 horas e 19 minutos do dia 30 de Julho de 2022, que o catedrático Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico (IST), recusou ceder ao PÁGINA UM a cópia de um relatório de investigadores desta (suposta) prestigiada instituição universitária pública de Portugal sobre a situação epidemiológica da pandemia. Em pleno Verão do terceiro ano da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, estando um curso um alívio significativo das medidas restritivas, incluindo a ‘retoma’ de festividades, mas havendo muitos ‘especialistas’ a desejarem manter níveis de pânico elevado, o IST fizera divulgar, através da agência Lusa, um relatório ‘bombástico’ que concluíra que as festas populares e festivais de música em Lisboa tinham estado “na origem de 340 mil casos de covid-19” que teriam causado “a morte de 790 pessoas”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusou divulgar os relatórios em 2022. Vai ter de ceder por ordem do tribunal.

    Mas quando o PÁGINA UM pediu a um dos autores desse estudo, Henrique Oliveira, que mostrasse o relatório escrito e o ficheiro de dados que o suportava, as portas fecharam-se. Este relatório inseria-se num parceria entre o IST e a Ordem dos Médicos que se terá iniciado em Julho de 2021, com pompa e circunstância: Rogério Colaço e Henrique Oliveira, por parte da instituição universitária, e Miguel Guimarães e Filipe Froes, por parte da associação profissional de clínicos, tinham até promovido uma conferência de imprensa, apresentando um novo indicador de avaliação do estado da pandemia, supostamente melhor do que as da Direcção-Geral da Saúde, por ser “uma ferramenta que resulta de um trabalho colaborativo”, desenvolvida através da “agregação de competências”. Nesse momento, Filipe Froes orgulhava-se por ter participado numa “equipa coordenada pelo Dr. Miguel Guimarães”, então bastonário da Ordem dos Médicos, cuja associação com o IST “abrir[a] as portas do futuro para parcerias e sinergias (…) em que todos somos vencedores”.

    Porém, na hora da verdade, “as portas do futuro”, e do suposto conhecimento científico – que deve ser confrontado – fecharam-se. E começaram a surgir as mais estapafúrdias desculpas numa triste novela pouco edificante para uma universidade pública.

    Quando o PÁGINA UM apresentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar o IST a fazer aquilo que deveria ter sido feito de forma natural, a instituição liderada por Rogério Colaço ‘inovou’ pelo absurdo: considerou, em finais de Setembro de 2022, que aquilo que fora divulgado seria “um esboço embrionário, que consubstancia[va] um mero ensaio para um eventual relatório”. A intenção era clara: querer convencer o tribunal a não se aplicar a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Pouco mais tarde, ainda em sede de processo de intimação, o IST diria que nunca negara “ter elaborado um ensaio, apenas afirm[ara] que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso que era um esboço”. E acrescentava que o seu “esboço” que associou mortes às festividades de Junho “pode não conter informações exactas e precisas.”

    A Lusa noticiou, em 28 de Julho de 2022, as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o suposto impacte das festividades em Junho desse ano na transmissão e mortes por covid-19. A instituição universitária, que faz Ciência, quis convencer o Tribunal Administrativo de que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”.

    Em resposta, neste jogo do gato e do rato, a juíza de primeira instância exigiu, em Novembro desse ano, que o IST lhe enviasse o documento em envelope lacrado que considerava “um esboço embrionário” para apurar se era um “esboço” ou uma desculpa esfarrapada. Mesmo perante esta suprema humilhação – uma instituição universitária a ver-se forçada a mostrar se andava a mentir ao tribunal –, o IST continuou perseverou: em vez de enviar o original, remeteu uma cópia com “anotações manuscritas a lápis”, em mais uma vã tentativa de ver o relatório considerado um “esboço”. Somente com uma nova entrega revelou então que se estava perante 52 relatórios, com o último a ser aquele que se referia às festividades.  

    Finalmente, em Janeiro de 2023, o Tribunal Administrativo de Lisboa tomou uma decisão, mas para grande surpresa, apesar de ter concedido o direito de o PÁGINA UM ter acesso ao Relatório 52, a sentença não se pronunciou sobre os outros 51 relatórios nem sobre os ficheiros de dados. O IST acabou por enviar o Relatório 52, que seria ‘esmiuçado’ pelo PÁGINA UM em Fevereiro do ano passado. Esta semana, aproveitando as evoluções tecnológicas, o PÁGINA UM usou o ChatGPT para uma análise ao Relatório 52 com base em critérios de “rigor académico, transparência, clareza e impacte científico”, elaborada “de forma isenta e detalhada”.

    Numa análise de três páginas, o ChatGPT atribuiu uma avaliação de 12 (em 20) à equipa de investigadores do IST, coordenada pelo catedrático Rogério Colaço, e salienta que “o Relatório Rápido nº 52 […] é um documento tecnicamente competente, mas apresenta falhas significativas que comprometem a sua utilidade como ferramenta de apoio à decisão”, acrescentando que “a falta de transparência nos dados e metodologias, combinada com mensagens contraditórias, reduz a sua credibilidade e impacto académico”. E sugere recomendações como seja “detalhar as metodologias utilizadas, especialmente para estimativas contrafactuais; publicar os dados brutos e aumentar a transparência das fontes; incluir variáveis adicionais e explorar contextos sociais e económicos mais amplos; [e] garantir maior consistência na comunicação para evitar mensagens ambíguas”.

    Rogério Colaço, cidadão português nascido em Soure em Junho de 1968, conjunturalmente presidente do Instituto Superior Técnico, vai ter de entregar 51 relatórios elaborados por uma instituição universitária pública, ao cidadão Pedro Almeida Vieira, nascido em Coimbra em Novembro de 1969, conjunturalmente director do jornal PÁGINA UM.

    Tanto o PÁGINA UM como o IST – que ainda tentou ‘sacar’ do tribunal a cópia que enviara em envelope selada – recorreram da sentença, por razões diferentes. Apesar de ter entregado o último relatório, o IST argumentou junto do Tribunal Central Administrativo do Sul que a sentença estava errada, enquanto o PÁGINA UM alegava que a juíza Telma Nogueira erradamente não se pronunciara sobre os outros 51 relatórios – que também deveriam ser disponibilizados – nem sobre os ficheiros com os dados.

    E é sobre este recurso que o Tribunal Central Administrativo do Sul veio agora pronunciar-se, mais de dois anos e cinco meses depois do pedido inicial do PÁGINA UM, através de um histórico acórdão.

    Apesar de o IST, em sede de contra-alegação, ter chegado a defender que ficara “apenas provada [na primeira sentença] a existência do relatório intitulado Relatório Rápido n.º 52, não se provando a existência de outros elementos”, e que “cabia ao recorrido [PÁGINA UM] fazer prova da existência dos restantes relatórios, assim como, dos alegados ficheiros informáticos com dados numéricos”, os desembargadores Marcelo Mendonça, Ilda Côco e Ana Lameira consideraram o óbvio. “Não é difícil perceber que, tendo sido elaborado pelo Recorrido público [IST] o relatório n.º 52 sobre a avaliação epidemiológica da covid-19, a ordem numérica, cronológica e lógica das coisas impele-nos a concluir que terão de existir 51 relatórios antecedentes vindos da safra do Recorrido público”, salientam.

    Os desembargadores consideraram também que “um relatório sobre a avaliação epidemiológica da covid-19 que surge depois de um trabalho prévio de análise, estudo ou tratamento de dados coligidos segundo uma determinada metodologia, a partir de um sítio da internet de acesso público (da Direcção Geral da Saúde), em que se utilizou um determinado programa de análise matemática, nada tem de esboço ou de rudimentar, pois que, atentas tais características, o conteúdo ou a informação escrita que daí emerja já não pode ser encarada como um mero rascunho”.

    O Relatório Rápido nº 52 do IST assegurava que que houvera um aumento das infecções com as festividades populares no Verão de 2022, mas tal não sucedeu. O relatório divulgado pela Lusa em finais de Julho pretendia convencer o público que afinal as previsões estavam quase certas. Mas, na hora de mostrar a base científica dessas conclusões, o IST recusou essa validação externa. As festas populares em Lisboa no Verão de 2022 tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos positivos de SARs-CoV-2 regrediram face a Maio.

    E acrescentam ainda os desembargadores que mesmo que esses documentos contenham “ainda estimativas, cujas respectivas conclusões e resultados extraídos ainda carecem de análise e confirmação”, são sempre documentos administrativo, pois “se de um relatório se trata, algum conteúdo útil há de abordar e relatar, ainda que preliminarmente, não se admitindo que essa eventual provisoriedade seja motivo para negar o acesso ao conteúdo ou informação escrita já existente”. E concluem ainda que, mesmo se se estivesse perante direitos de propriedade intelectual ou segredo relativo à propriedade intelectual, “o princípio vigente é o da acessibilidade”.

    Em todo o caso, o acórdão considerou que o IST não está obrigado a facultar os ficheiros informáticos usados para a elaboração dos relatórios – e necessários para efeitos de replicação dos resultados, como se mostra necessário em Ciência –, uma vez que os desembargadores consideraram que o PÁGINA UM fez um pedido “vago, genérico e indeterminável, porque desprovido de informação concreta que melhor especifique, por exemplo, a origem, a índole, o hiato temporal, a autoria ou o local específico de arquivo electrónico donde possam ser extraídos tais elementos”.

    Saliente-se que, sem desprimor da decisão do Tribunal Central Administrativo do Sul, o pedido sobre os ficheiros era não apenas exacto como óbvio em ciências exactas: um relatório com resultados de modelos quantitativos avançados tem sempre subjacente um ficheiro de dados numéricos. Ou seja, para cada relatório existirá necessariamente um ficheiro de dados numéricos. Mas o óbvio em ciências exactas não é, aparentemente, o óbvio em ciências jurídicas.

    woman, face mask, covid-19

    Agora, o IST está intimado a facultar, no prazo de 10 dias, que terminará nos primeiros dias de 2025, os 51 relatórios em falta. Se assim desejar pode fazê-los acompanhar, voluntariamente, dos ficheiros numéricos para eventual replicação dos relatórios. Se não incluir esses ficheiros numéricos, então reforçam-se as ‘críticas’ da análise crítica do ChatGPT que sustenta a “falta de transparência” do Relatório nº 52, uma vez que, entre outros aspectos, “Não são apresentados os dados brutos utilizados para calcular os indicadores e fazer previsões, dificultando a replicação dos resultados”.

    Note-se que esta luta judicial do PÁGINA UM implicou, além de desmesurado tempo, o pagamento de taxas de justiça próximo de mil euros, tendo contado com o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Quando os relatórios do IST forem finalmente entregues, o PÁGINA UM vai divulgá-los na íntegra e pedirá uma análise do seu rigor por parte do Conselho Científico daquela instituição que integra a Universidade de Lisboa.


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